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Carta sobre Núcleos Comunitários
de Produção e Comercialização Alternativa

Euclides André Mance

Apresentação

Em 1987, ano em que conclui a graduação em Filosofia na Universidade Federal do Paraná, escrevi um trabalho acadêmico intitulado Revolução Desejo e Poder - Da Filosofia da Libertação a Metodologias de Revolução. Embora não fosse formalmente um trabalho de conclusão de curso, pois na época não havia essa exigência, ele se configurava como tal.

Naquela investigação apresentei um conceito de revolução que, recuperando diversas fontes históricas de luta popular - marxismo, anarquismo e filosofia da libertação - propunha uma estratégia que articulava ações econômicas, políticas e culturais na efetivação de uma utopia crítica gerada e assumida coletivamente.      

Economicamente tratava-se da organização de "Núcleos de Produção" que articulados estrategicamente poderiam crescer sustentavelmente. Essas comunidades produtivas poderiam inclusive resistir a movimentos contra-revolucionários, capitaneados pela elite internacional ou pelo Estado:

"... mesmo com a intervenção da elite internacional, e mesmo se efetivado o golpe de Estado, o Estado politicamente não conseguirá destruir as comunidades alternativas produtivas se elas forem em número elevado e se derem ao âmbito estritamente popular... (...) ...se as comunidades forem em número elevado e abrangerem várias áreas de produção, elas mesmo terão a possibilidade de se auto-subsidiarem e, em movimentos de pressão, irem se expandindo e topificando a formulação utópica, crítica e coletiva." (p. 186-187) 

Naquele mesmo ano,  um grupo de estudos em Curitiba refletia sobre as experiências comunitárias de produção buscando compreender o seu caráter estratégico e como aprimorá-las. No ano seguinte parte dessa discussão foi incorporada ao Programa de Governo do Partido dos Trabalhadores na cidade de Piraquara, PR. 

A carta transcrita abaixo, elaborada naquele momento juvenil, revela alguns traços fortes e originários da proposta das Redes de Colaboração Solidária, que cabalmente formulei dez anos depois, bem como algumas superficialidades analíticas no trato da conjuntura em questão e na distinção de linhas políticas no seio da esquerda.

O que importa destacar, entretanto, é que em sua origem essa proposta foi gerada coletivamente, retomando-se  a história das lutas populares e recolhendo-se a contribuição de muitas pessoas em particular que investigaram práticas concretas de produção solidária, durante vários anos. Esta carta é pois um registro desse esforço coletivo, escrita sob a perspectiva de uma contribuição pessoal a um novo momento de sistemarização daquela mesma investigação. 


Curitiba, 11 de junho de 1988

Aos Companheiros do PT de Piraquara.

O Luiz Goulart me deu a sugestão de escrever alguma coisa sobre os núcleos de produção para colaborar num debate interno mais aprofundado sobre este tema que faz parte do plano de governo petista para Piraquara. Pretendo com esta carta, portanto, colaborar com o debate.

No ano passado, um grupo de petistas fez várias conversas sobre este tema. Entre eles estavam o Deomar Bogado, Gilmar Zanca (ambos da zonal 145a ), Jair Santos e José Aparecido (ambos de Piraquara), o Sidnei Silva (simpatizante), Eu e o Luiz, que participou somente da última reunião. Por várias razões nos propusemos a fazer uma pesquisa sobre núcleos de produção e formas de comercialização alternativa comunitária. Levantamos dados sobre a padaria comunitária da favela do Capanema, a serralheria ABC, a cooperativa de construção civil da vila São Pedro, a Associação Central de Compras Comunitárias, a fábrica de roupas "Santos Andrade" (que é uma micro-empresa capitalista), clubes de mães e outros. Alguns nem chegaram a ser visitados como a fábrica de tubos e artefatos de cimento do Boqueirão. Ainda no ano passado esse grupo se desarticulou, pois não tínhamos condições de organizarmo-nos como um grupo de assessoria técnica, administrativa, jurídica e política para tais empreendimentos. Alguns queriam montar um grupo de produção e viabilizar pela prática uma proposta concreta; outros pretendiam assessorar empreendimentos já existentes no intuito de que eles conquistassem uma autonomia que permitisse um desenvolvimento mais amplo da produção e comercialização, bem como um domínio teórico sobre autodeterminação de fins e autogestão de meios, juntamente com uma competência administrativa; outra proposta era a organização de um "Escritório Modelo" para fins de assessoria técnica, administrativa, contábil, econômica, jurídica e formação de critica política. Mas no final o grupo se desfez, embora cada qual continuaria somando esforços no sentido de avançar a discussão e a prática dos "Núcleos de Produção". Neste intuito, eu o Luiz fomos a São Paulo, no começo deste ano, conhecer algumas experiências de "Núcleos de Produção" na zona leste da Grande São Paulo.

Entretanto, para tratar da questão dos Núcleos de Produção é preciso entendê-la na perspectiva dos movimentos populares. É sabido por todos, que no início da década de 60 os movimentos populares no Brasil tinham avançado muito na organização e na pressão política em favor das mudanças que se faziam necessárias. As Ligas Camponesas, o sindicalismo rural e urbano, as entidades estudantis articuladas na UNE e os movimentos eclesiais que surgiam a partir da Ação Católica, como a ACO (Ação Católica Operária), como a JAC, JEC, JIC, JOC, JUC (juventudes agrária, estudantil, independente, operária e universitária católicas) utilizando métodos de análise crítica (como o ver/julgar/agir, a dialética marxista) cresciam numa práxis de transformação social, alguns com certa clareza do socialismo, outros nem tanto. Contudo, com o golpe de 64, abriu-se declaradamente a repressão contra os movimentos populares, surgindo, então, uma infinidade de siglas de grupos revolucionários que naquele momento histórico acreditavam na possibilidade da revolução armada, quer com guerrilhas urbanas, quer com a articulação de células revolucionárias no campesinato. Entretanto, a repressão foi maior e centenas de militantes morreram tanto na tortura, como pelo "esquadrão da morte", como no confronto mais direto com as forças militares. Passado o período mais duro da repressão, as organizações da sociedade civil em favor dos direitos humanos, a luta pela anistia, o movimento sindical que vai recobrando suas forças a partir da metade da década de setenta, vão somando forças e pressionando o regime militar que se desgasta e vai perdendo a hegemonia que mantinha sobre a população através da ARENA para o MDB. Ocorre a reforma partidária e posteriormente os militares saem de cena, ficando nos bastidores, e têm-se a eleição de Tancredo/Sarney, governo de "transição".

Em poucas palavras: os movimentos populares de pressão que existiam antes do golpe foram duramente reprimidos pelo regime que se instaurou em 64. Lideranças expressivas desses movimentos de pressão articularam-se em células revolucionarias, sendo grande parte dessas lideranças perseguida e assassinada pelo Regime, enquanto outras lideranças deixavam o país ou se colocavam na clandestinidade. Passada a fase mais dura da repressão, o movimento popular de pressão volta a crescer derrubando a hegemonia do regime na sociedade civil o que o obriga à anistia, à reforma partidária e ao governo Tancredo/Sarney, governo de transição intitulado Nova República.

O movimento popular se deparava agora não mais com um Regime fundado na repressão militar, mas sim com uma situação confusa de um regime semipopulista, com "Planos Cruzados" e "Fiscais do Sarney" ao mesmo tempo em que organizações pára-militares da direita latifundiária cresciam chegando-se à consolidação da UDR. Nesta nova situação as organizações comunitárias proliferam de maneira criativa tanto nas comunidades eclesiais de base, quanto nas associações de moradores e outras modalidades. Ao mesmo tempo em que as organizações comunitárias vão conquistando e consolidando seus espaços, o regime tenta cooptar os movimentos com medidas populistas, como o Ticket de Leite, ou desmobilizar os movimentos com medidas administrativas. Em Curitiba tem-se como exemplo dessa última estratégia as Administrações Regionais, peça-chave na desarticulação do Movimento de Luta Contra o Desemprego e dos movimentos populares que, unidos, pressionavam o executivo de maneira direta, isto é, pressionavam o próprio prefeito, e que agora, divididos por freguesias, perderam muito de sua força.

No meu entender, é no quadro destes últimos quatro anos que se deve interpretar o fenômeno do surgimento de Núcleos de Produção nas organizações comunitárias como o embrião de nova ação de movimento popular. A produção caseira de pão, macarrão, sabão, confecção de roupas, hortas, criação de aves, etc..., não é nenhuma novidade em qualquer canto do Brasil. A grande novidade é que a produção familiar foi sendo superada, em inúmeras localidades, por uma produção comunitária, surgindo assim, hortas comunitárias, padarias comunitárias, clubes de mães, etc. Em muitos locais tais produções se organizavam em função mesmo das necessidades da comunidade e de maneira quase espontânea, sem uma fundamentação teórica mais aprimorada, a não ser a afirmação: "aqui ninguém trabalha prá patrão!"; em outros locais esses Núcleos de Produção foram conquistas do movimento popular de pressão. Como exemplo disso tenha-se em conta os mais de 300 núcleos de produção e prestação de serviços que se organizaram pelo Paraná graças às pressões dos movimentos de desempregados em Londrina e Foz do Iguaçu e do Movimento de Luta Contra o Desemprego em Curitiba, fazendo a Secretaria de Assuntos Comunitários abrir, primeiramente, Frentes de Trabalhos e, posteriormente, subvencionar a fundo perdido centenas de Associações de Produção. Embora esses dados levantados pelo Ipardes de 300 núcleos de produção e prestação de serviços possam ser um disfarce para desvio de verbas que chegavam as prefeituras a título de "fundo perdido", mesmo assim, tem-se um quadro extremamente significativo. Essas experiências comunitárias foram assim catalogadas: 1) Atividades Artesanais (marcenaria; olaria; confecções de panos de prato, acolchoados, roupa, tapetes; costura; reforma de roupas; artesanato em vidro; moenda comunitária; produção de sabão e materiais de limpeza; produção de vassouras; sapataria; confecção de materiais de pesca; moinho colonial; produtos caseiros; produção de chinelos; produção de vinagres; padarias; artesanato em palha de milho, em bambu e cipó); 2) Atividades de Suplementação Alimentar (hortas comunitárias em terrenos urbanos., escolas; vaca mecânica); 3) Atividade Agropecuária (cunicultura, piscicultura, lavoura comunitária, viveiros, roças comunitárias, sítios comunitários, granjas, pomares...); 4) Atividade de Prestação de Serviços (construção civil e pavimentação; mutirões; mutirões de saneamento; cooperativa de trabalhadores rurais, desmatamentos; mutirão escolar; corte de poliedros, pavimentação; serviço de manutenção de áreas verdes; reprocessamento e incineração de lixo; capina; colheita de algodão; artefatos de concreto e construção civil; lavanderia comunitária; carregadores autônomos; associação de catadores de papelão).

O surgimento do Movimento Popular de Produção faz parte de um processo mais amplo como já expusemos nos parágrafos anteriores. A avaliação que dele fazem os militantes e teóricos dos movimentos populares e de militância partidária de linha socialista é bastante divergente, dependendo da metodologia com a qual se analisa esse processo. Para alguns que se definem numa linha dialética-marxista, e que nem sempre são competentes no manuseio de tal método, tais movimentos não concorrem para a mudança da estrutura capitalista, uma vez que a contradição dialética entre capital e trabalho se dá de forma concreta entre a "Burguesia" que detém os meios de produção, e o "Proletariado" que padece o processo de alienação na medida em que não é dono daquilo que produz. A síntese superadora de tal contradição implica no fortalecimento das classes trabalhadoras que vivem num processo de alienação no sistema capitalista e que deverão tomar o poder no acirramento da luta de classes, que tem por instrumento privilegiado a luta em sindicatos combativos confederados numa central sindical de visão política clara, e a militância partidária num partido socialista. Nesta análise os Núcleos de Produção são "rotulados" de assistencialistas que tentam sanar os efeitos do sistema, encontrando formas de satisfazer as necessidades mais básicas e imediatas das comunidades ao mesmo tempo em que "fogem" da contradição "burguesia X proletariado" iludidos com o utopismo de mudar a situação sem o acirramento da contradição.

Para outros, de uma linha teórica mais anarquista, os Núcleos de Produção são organizações populares privilegiadas na prática efetiva do socialismo, uma vez que grande parte desses núcleos se fundam na auto-determinação dos fins da produção e na autogestão dos meios da produção; produzem em função das necessidades da comunidade, sendo a produção repartida entre todos segundo a necessidade e o empenho de cada qual na produção. Tal processo não prima pelo acúmulo de capital; pelo contrário, prioriza a solidariedade, o "crédito recíproco". Tais núcleos de produção se assemelhariam às comunidades anarquistas organizadas na Alemanha e na Suíça no começo do século por Gustav Landauer, um dos críticos de Marx. Por outro lado, em linhas afins, se fazem críticas ao movimento sindical, pois se no Capitalismo Mundial Integrado não há mais simplesmente acúmulo de capital e produção de ideologias, mas fundamentalmente, acúmulo de capital e produção capitalista da própria subjetividade dos sujeitos, produção de desejos pelos meios de comunicação de massa, neste novo contexto histórico o movimento sindical pode se tornar apenas um instrumento de aumento do poder aquisitivo dos trabalhadores, o que lhes permite realizar um maior número de desejos produzidos pelo sistema capitalista, dando maiores condições dos trabalhadores ''usufruírem" da sociedade de consumo, aliviando a frustração de seus desejos não realizados.

Há também algumas divergências na compreensão de poder e socialismo em ambos os casos. No primeiro, o marxista, prima-se pela tomada do poder, quer de maneira ortodoxa, com o acirramento da luta de classes pela revolução armada conduzida pelo operariado, como no caso da Albânia, quer de maneira mais heterodoxa como na geopolítica maoísta da revolução chinesa, quer na tática parlamentar como meio de traduzir partidariamente os avanços hegemônicos de um bloco histórico na sociedade civil, na conquista dos aparelhos ideológicos de Estado, etc. Aqui o socialismo se constrói a partir da tomada do poder, pela participação democrática efetiva das classes trabalhadoras no curso do processo histórico e pela planificação da economia, ou seja, por um planejamento político macroeconômico. No segundo, o de linha mais anarquista, também encontram-se varias correntes, umas que primam mais pela simples destruição do Estado e das formas jurídicas de "alienação" do poder, e outras de anarquismo mais construtivo que primam pela organização de comunidades socialistas com autodeterminação de fins e autogestão de meios e que formariam federações com outras comunidades, não havendo uma planificação macroeconômica por um poder central, mas sim uma reorganização da economia a partir das comunidades autônomas confederadas em espírito solidário de "crédito reciproco"; e da mesma forma como os "burgos" foram se formando no período de transição do feudalismo para o capitalismo, as comunidades autogestionárias socialistas iriam se formando na transição do capitalismo para o socialismo. O socialismo marxista decorreria da tomada do poder central, e no caso do PT, no atual momento histórico, pela via parlamentar; o socialismo anarquista de linha mais construtiva decorre da rearticulação dos poderes difusos na sociedade civil, organizando-se comunidades socialistas autônomas e confederadas.

Mas de fato, o que está acontecendo é o seguinte: enquanto os "teóricos" de esquerda discutem se o movimento popular de produção é assistencialista ou tão ''revolucionario'' como o movimento sindical, a LBA já lançou campanhas de cooptação de tais movimentos, solicitando que as associações se legalizem para que passam receber verbas e assessoria. Contudo, o recebimento de tais verbas é sempre assumido por uma pessoa física, que se torna o "patrão" oficial de uma micro-empresa de estilo capitalista.

A meu ver, a atitude do PT de Piraquara ao incorporar no plano de governo municipal a organização de núcleos socialistas de produção e um passo histórico de grande importância e coragem no avanço da luta pelo socialismo. O socialismo brasileiro construirá seus próprios modelos, e ao acolher e aprimorar o movimento popular de produção em seus aspectos técnicos, administrativos, econômicos numa política socialista, o PT dá mais um passo em direção do fortalecimento dos movimentos populares e do socialismo brasileiro. Não se pode permitir que tais movimentos acabem desaguando na LBA.

Contudo, é preciso distinguir os rumos diferentes que estes movimentos vêm tomando. Esquematicamente poderíamos dividi-los em três: assistencialista, capitalista e socialista.

No modelo assistencialista, a produção familiar é superada numa produção comunitária, como no caso das hortas, clubes de mães, etc. A produção é vendida na própria comunidade a um preço irrisório em "bazares beneficentes". Esses grupos não possuem autonomia econômica, recebendo verbas de entidades nacionais, do Estado e do exterior; os produtos têm uma qualidade técnica precária; não possuem neste modelo noções mais trabalhadas de administração e contabilidade pois as verbas vêm a fundo perdido; não possuem um referencial teórico crítico sobre os processos de produção na sociedade capitalista e socialista. Em síntese, as verbas recebidas são transformadas em produtos e praticamente "repassadas" para o consumo da comunidade suprindo algumas carências mais imediatas.

No modelo capitalista enquadram-se quase todas as micro-empresas privadas, inclusive as que efervesceram na época dos planos cruzados. Estas possuem certa competência técnica, administrativa e contábil, que varia de empreendimento a empreendimento. Elencam-se aqui também alguns projetos de padarias, serralherias, marcenarias comunitárias onde trabalham menores numa perspectiva de profissionalização (como algumas que visitamos em Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo) e posterior ingresso no mercado de trabalho; isto é, estes empreendimentos formam mão-de-obra que será posteriormente alienada no sistema capitalista. Enquadram-se aqui também os projetos de micro-empresas financiadas pela LBA, que talvez se espelhem em certas experiências italianas. ((Há vários anos atrás o índice de desemprego na Itália era alarmante e onerava os cofres públicos pois o Estado gastava altas somas no pagamento do salário-desemprego. O Estado então resolveu investir nas micro-empresas, com incentivos fiscais, isenção de certos impostos, etc. Por outro lado, os desempregadas que organizavam as "micro-empresas de fundo de quintal" não recebiam mais o salário-desemprego. O número de micro-empresas proliferou de maneira inesperada e, muito mais do que resolver os gastos do Estado com o salário-desemprego, melhorou a própria qualidade de vida da população, como também ser viu para recolocar em "equilíbrio" o capitalismo italiano.))

No modelo socialista são poucas as tentativas mais explícitas, embora várias tenham um matiz socialista. 1) A exemplo de matiz socialista, cito uma padaria comunitária que eu e o Luiz visitamos em Guarulhos, zona leste de São Paulo, no mês de fevereiro. No intuito de fazer um trabalho com menores, uma equipe fez um levantamento sociológico de dados sobre os menores infratores, menores carentes e evasão escolar em Guarulhos. Entabularam os dados conseguidos na FEBEM, Delegacia de Ensino e outras fontes, localizando as áreas de maior conflito. Num trabalho planejado com visão crítica-política bastante ampliada iniciaram um processo de educação pelo trabalho e não para o trabalho, o que resultou na organização de uma padaria autogestionada, onde os garotos dominam todo o processo de produção (organizado com turmas que se revezam em três turnos) e se encarregam da comercialização. Dois garotos são tesoureiros e fazem os registros contábeis. O grupo determina o valor de seu próprio "salário" e o montante de capital a ser reinvestido. Estão aprimorando a técnica de produção e ampliando o mercado de consumo de seus pães na própria comunidade. Além da autonomia na autogestão dos meios e autodeterminação dos fins, estão conquistando a autonomia econômica. 2) A exemplo de núcleo de produção num modelo interno socialista explícito, eu cito a Cooperótica em Santo André, também na zona Leste da Grande São Paulo. Depois de fazer um levantamento de mercado concluíram que era viável a produção de armações de óculos. Eram seis pessoas: um "técnico" nesta área específica e cinco trabalhadores que eram assalariados em outras fábricas. Eles trabalhavam nas fábricas durante a semana e nos finais de semana e feriados foram fabricando as máquinas com uma tecnologia alternativa. Elaboraram um estatuto interno de cooperativa e tiraram um registro de micro-empresa. O estatuto era expressão de uma proposta explicitamente socialista no que diz respeito à autogestão de meios e autodeterminação de fins. Começaram a produzir armações de óculos e comercializar. Infelizmente, depois de vários meses de trabalho, o ''técnico'', por motivos particulares, teve de se mudar e como os companheiros não dominavam todo o processo de produção, foi preciso momentaneamente encerrar a produção. Contudo, inspirado na Cooperótica organizou-se em Santo André um Núcleo de Confecções, oficina de costura, composto por 20 pessoas e instalado numa favela.

Em geral os núcleos de produção carecem de um entendimento administrativo, econômico e contábil (em razão disto a padaria comunitária do Capanema faliu; algumas semanas atrás eles reiniciaram as atividades); carecem de um entendimento crítico-político do processo de produção e comercialização (é o caso específico da serralheria e marcenaria na comunidade Nossa Senhora Aparecida na favela em Ermelino Matarazzo - SP); falta um aprimoramento técnico na produção. Outro dado curioso é a falta de informações a respeito deste tipo de movimento popular. As informações não circulam. Em Guarulhos, um grupo iniciou um núcleo de produção de vassouras mas depois de algum tempo desistiram de produzir vassouras pois havia três grandes empresas que monopolizavam o mercado. Alguns meses depois, em Ermelino Matarazzo, cidade próxima a Guarulhos, um outro grupo decidiu iniciar um núcleo de produção de vassouras e até agora acredita que conquistará autonomia econômica, embora esteja operando em déficit. Até mesmo no Centro de Pastoral Vergueiro não se tinha, no começo deste ano, arquivos de atividades de Núcleos de Produção ou coisas do gênero.

Perante toda esta situação, histórico e avaliação dos movimentos populares de produção, vamos ao que nos interessa mais neste momento: o que seriam e como deveriam funcionar os núcleos de produção que são uma das propostas do plano de governo petista para a prefeitura de Piraquara?

De inicio e preciso frisar que não há contradição alguma em apoiar-se o movimento sindical e o movimento popular de produção simultaneamente. Ambos devem ser criticados à luz de metodologias que consigam compreendê-los como variáveis que concorrem no atual processo histórico do movimento popular no Brasil para uma possível superação do capitalismo e instauração do socialismo, dependendo dos rumos que tomam. São apenas duas frentes de lutas distintas, com estratégias próprias, que podem convergir a um mesmo fim. E na medida em que ambas não tenham uma perspectiva política clara de direcionamento de suas ações para a construção do socialismo, cabe ao Partido dos Trabalhadores estar organicamente articulado a esses movimentos e esclarecer politicamente suas ações.

Esclarecer politicamente o movimento popular de produção é não só criticá-lo na teoria, mas também apresentar práticas concretas em que tais movimentos ganhem mais consistência, coerência política e autonomia. No caso específico da implantação dos Núcleos de Produção em Piraquara será preciso ter claras duas coisas: a primeira e o projeto enquanto seus objetivos, estratégias, enquanto proposta política e econômica; a segunda é a implantação de tal projeto que muitas vezes, em função da realidade concreta, acaba alterando as estratégias no intuito de alcançar os objetivos.

A) Considerações parciais sobre o projeto:

a) [Núcleos de Produção]

1) 0 projeto visa a implantação e organização de núcleos de produção que tenham auto-determinação de fins e autogestão de meios segundo a autonomia das comunidades, organizadas em associações, às quais esses núcleos servem. Portanto, o poder de decisão sobre o empreendimento permanece em nível de movimento popular.

2) Que os núcleos de produção sejam articulados em uma única associação, com um caixa-comum efetivando a autogestão (das verbas e dos investimentos) por parte dos associados, com apresentação de balanços dos núcleos, etc. Cabe a essa associação, talvez em reuniões mensais, decidir pela criação de outros núcleos de produção, corrigir os preços dos produtos, etc.

3) Que se organize uma equipe de assessoria administrativa-econômica-contábil, para levantamentos de mercado, contabilidade, balanços, etc; assessoria crítica-política, para distinção dos processos socialistas e capitalistas de produção e comercialização, etc; assessoria técnica para pesquisa e desenvolvimento de tecnologias que possibilitem uma boa produção, tanto em qualidade como em quantidade.

4) Que se organize o maior número de núcleos possíveis, aos invés de ampliar demasiadamente poucos núcleos.

5) Que os associados se comprometam a consumir da produção dos núcleos, mesmo que esta produção tenha uma qualidade técnica inferior em relação aos produtos equivalentes no mercado.

6) Que a produção seja integrada, isto é, que um núcleo de produção de macarrão de milho, por exemplo, "compre" a farinha de milho de um outro núcleo que, por sua vez, ''compre'' o milho produzido por um outro núcleo.

7) Que ocorra uma diversificação das áreas de produção.

8) Organização de armazéns comunitários e mercado volante com caminhões para escoamento da produção.

b) Organizar "Associações de Produção Doméstica", como tricô, crochê, bordado, tapeçaria, para que essa produção também possa ser comercializada nos armazéns comunitários e nos mercados volantes, na medida em que os produtores consumam outros produtos do armazém ou do mercado, pelo menos em torno de 50 %, do que venderem.

c) Organizar "Associações de Prestação de Serviços", como por exemplo, construção civil, pavimentação processamento de lixo, lavanderias e restaurantes comunitários, etc.

 

B) Considerações parciais sobre a implantação do projeto:

Cabe aqui abordar três aspectos: a) uma pedagogia de participação socialista; b) a ação administrativa da prefeitura; c) a autonomia do movimento popular frente ao Estado.

a) Pedagogia de participação socialista.

O socialismo é muito mais que um sistema econômico e político; é uma maneira de compreender a vida, o homem e o mundo. Embora a cultura do povo mais oprimido tenha fortes elementos de solidariedade e apoio recíproco, nem mesmo esta cultura escapa dos desejos consumistas manipulados no capitalismo. Na implantação deste projeto será necessária uma pedagogia que possibilite a cada qual realizar a crítica de seus próprios desejos, elaborar um projeto coletivo de sociedade e somar esforços na realização de tal projeto. A prática de tal pedagogia nos poderemos conversar mais tarde.

b) A ação administrativa da prefeitura.

Primeiramente será preciso mobilizar lideranças, associações de moradores, comunidades eclesiais de base, pastorais, etc, para apresentar-lhes e por em discussão o projeto dos núcleos de produção. Esses grupos poderão fazer um levantamento do que já existe em matéria de núcleos de produção e quais são as áreas que deveriam ser priorizadas. A partir daí, formar uma Associação dos Núcleos de Produção para que a prefeitura possa viabilizar repasses de recursos sob a forma de investimentos a fundo perdido, não caracterizando a configuração de relação empregatícia entre a prefeitura e os participantes dos núcleos de produção. As associações e os núcleos podem ser instituídos como instrumento legal para recebimento das verbas. Na primeira fase de implantação do projeto a própria prefeitura iniciaria a organização de uns cinco núcleos de produção que abrangessem as áreas de maior consumo e necessidade da população: talvez alimentação (produção de massas, horti-fruti-granjeiros), vestuário (roupas pessoais, de cama, mesa e banho) e produtos de limpeza (sabão, detergente, vassouras, escovas, etc); bem como se encarregaria de organizar as assessorias necessárias; como também se encarregaria de escoar a produção organizando os armazéns comunitários e mercados-volante; e ainda a prefeitura contrataria as "associações de prestação de serviços" para realizar obras municipais. Numa fase posterior, a Associação dos Núcleos de Produção deverá conquistar sua autonomia econômica arcando com as responsabilidades de assessoria e comercialização. É fundamental que até o final da gestão petista tal processo já tenha ocorrido.

c) A autonomia dos movimentos populares frente ao Estado.

A Associação dos Núcleos de Produção nunca deverá perder a sua identidade de Movimento Popular de Produção em função de sua própria autonomia. Ficar atrelada a órgãos do governo é algo muito perigoso, se analisamos as conjunturas políticas pelas quais o Brasil vem passando.

Se o movimento popular de pressão que deveria possuir autonomia frente ao Estado para pressioná-lo, por vezes acaba sendo cooptado, como no caso de inúmeras associações de moradores, pior será para o movimento popular de produção ficar atrelado administrativamente ao Estado.

Por outro lado, o espaço da sociedade civil onde se organizam os movimentos populares vem abrigando novas organizações de direita. Se na questão da Reforma Agrária, por exemplo, tem-se de um lado o Movimento Sem-Terras, do outro lado tem-se a UDR. Não basta conquistar o legislativo e o executivo; é preciso não perder espaços na sociedade civil.

Fortalecer hoje o movimento popular de produção é não permitir que este caia nas mãos da LBA, com sua política de microempresas capitalistas, mas criticá-lo teoricamente numa perspectiva socialista e efetivar práticas concretas de socialização da produção.

Enfim, companheiros, basicamente é isso o que eu tinha a dizer. Espero que essa cartinha, que acabou ficando meio grande, possa ajudar nas discussões sobre a viabilização do plano de governo petista para Piraquara no que se refere aos núcleos de produção. Posteriormente poderemos conversar sobre tudo isto.

Saudações petistas,
do companheiro Euclides André Mance.
Núcleo do PT - Vila Fanny

 


Carta sobre Núcleos Comunitários de Produção e Comercialização Alternativa
www.milenio.com.br/mance/carta.htm


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