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A Consistência das Redes Solidárias

Euclides André Mance (1)*
Curitiba, junho de 2001

 

Situando o Tema e a Abordagem.

O objetivo deste texto é tratar, sob alguns aspectos, dos fundamentos teóricos e políticos das redes solidárias. De início cabe salientar que os fundamentos teóricos de práticas sociais não se confundem com o paradigma desde o qual são considerados. Em rigor tais fundamentos resultam de uma organização mais abstrata e coerente da teoria inerente à própria práxis. Essa teoria, por sua vez, é constantemente reelaborada, especialmente no que se refere à sua efetividade prática, conferindo à práxis sentido e direção, embora possa comportar equívocos e fragilidades. Em outras palavras, a reflexão sobre uma mesma práxis, a partir de paradigmas diferentes, chega a diferentes resultados. Esses resultados entretanto não se confundem com a construção conceitual peculiar à práxis considerada, construção essa que orienta a conduta dos atores que a implementam. Isso significa que embora seja possível refletir sobre as redes solidárias, considerando-as sob uma abordagem complexa, gerando-se diversos sentidos e conceitos sobre elas, tal compreensão não é necessariamente a teoria praticada na organização do conjunto dessas redes. Por isso mesmo, cabe a essa reflexão gerar elaborações que possam tanto dialogicamente contribuir no avanço da práxis considerada, apontando-lhe possíveis mudanças que permitam aprimorá-la, quanto ao mesmo tempo, estar aberta às exigências que a efetividade desta mesma práxis lhe impõe, no que se refere à própria transformação das teorias sobre ela construídas que, não sendo mais sustentáveis sob certos paradigmas, indicam a necessidade de operar-se rupturas epistemológicas e superações paradigmáticas para que sejam melhor compreendidas. É pelo fato de haver um conjunto de retroações operando nas relações que permeiam a efetividade da práxis (envolvendo mediatamente as construções conceituais que a orientam e sob as quais ela é compreendida, bem como os fundamentos categoriais e estratégicos desde os quais essas construções são argumentadas e ainda os paradigmas desde os quais essas fundamentações são operadas), que essas rupturas e superações podem ser por ela desencadeadas, afetando todos esses níveis de elaboração teórica.

Não sendo pois nosso objetivo apresentar o paradigma da complexidade desde o qual esses fundamentos se tornam compreensíveis de maneira mais ampla em sua consistência - mesmo porque a idéia de fundamentação aqui é totalmente distinta da compreensão que perdura até a modernidade, de chegar-se a um único princípio basilar e ordenador que opera como chave última de inteligibilidade do real - cabe-nos entretanto tratar de algumas categorias e da lógica subjacente a uma parcela dessas redes, em seu processo de emergência como atores sociais de intervenção local e global, que permitam compreendê-las, ainda que de maneira bastante limitada, em sua trajetória e em suas potencialidades.

Sob o paradigma em que inscrevemos nossa reflexão, a palavra consistir indica a necessidade de relações - conexões e fluxos - entre sujeitos diversos para que eles possam permanecer em sua própria condição de distinção, integrados aos demais em processos de constante devir. Assim podemos dizer que uma rede somente pode existir (no sentido do emprego habitual desta palavra) quando sujeitos diferentes se apoiam reciprocamente, mantendo relações de autonomia e complementariedade. Sem a manutenção criativa dessas relações, através de diversos fluxos, não há rede. A agregação de diversas redes em redes maiores, mantendo as diversidades, engendra novos fluxos desencadeando sinergias que, ao mesmo tempo em que podem fortalecer a todos, permitem a emergência de novas qualidades coletivas que não podem ser localizadas nas partes que compõem o conjunto.

Quando nos perguntamos pela consistência das redes solidárias, necessitamos realizar assim duas delimitações. A primeira é circunscrever as redes de que estamos tratando, uma vez que há uma grande diversidade delas - cada qual com suas peculiaridades que se perdem quando reduzidas teoricamente em generalizações universais - buscando compreender as suas singularidades e como essas singularidades se compõem em movimentos de redes, engendrando fenômenos coletivos com um grau mais elevado de complexidade. A segunda é considerar a sua consistência sob dois aspectos: tanto o de sua emergência histórica, isto é, de como essas relações entre atores diferentes foram sendo construídas dando origem a essas redes em constante transformação, engendrando potencialidades coletivas que não estão presentes nos atores isoladamente, quanto em que medida tal estágio de consistência pode subverter as estruturas de opressão responsáveis pelo surgimento das questões enfrentadas pelos diversos atores sociais singulares, que se integram nessas redes como forma de ampliar os seus poderes em suas lutas por libertação.

Por isso, ainda que de forma um tanto elementar, trabalharemos neste texto esses dois aspectos, em uma trança que retoma práticas, categorias teóricas e alguns elementos históricos. Neste movimento, vamos delimitando as redes de que estamos tratando, tomando os Fóruns Sociais Mundiais como espaços de potencialização das conexões e fluxos entre elas. Do ponto de vista conceitual, quando analisamos redes efetivas, partimos de algum conjunto circunscrito de atores, objetivos, estratégias e relações aparentes e, através das múltiplas conexões - que vamos descobrindo no trabalho investigativo - vamos chegando a diversos outros atores, objetivos e estratégias por cujas relações aquelas realidades das quais partimos se tornaram possíveis e persistentes, ainda que o possam ser de maneira provisória. Assim, escolhemos por onde começar, mas é impossível abarcar conceitualmente todas as conexões que possibilitam a consistência de todos os atores enredados, uma vez que cada rede compõe diversas outras redes com suas relações peculiares e inúmeros fluxos. Por isso, tomamos os Fóruns Sociais Mundiais como o conjunto de onde partimos para uma análise da emergência e da consistência das redes que a eles se integram, particularmente das que atuam no campo da economia solidária. Sob outro aspecto desta trança, consideramos a consistência dessas redes em sua capacidade de construir uma nova forma de colaboração global, superando as estruturas de opressão - o que nos exige, entretanto, apresentar algumas das categorias com as quais operamos em nossa reflexão, como a categoria de liberdade e a lógica das redes de colaboração solidária. Alguns temas centrais, entretanto, que trataremos detalhadamente em outra oportunidade, serão aqui apenas referidos rapidamente, ou mesmo preteridos, dados os objetivos e limitações deste texto. No correr da leitura certos temas recorrentes retornarão em passagens distintas, sendo analisados sob algum aspecto ainda não abordado. Algumas idéias chaves entretanto retornam em forma de nós que amarram elementos diversos já explicitados com novos elementos, em várias passagens do texto.

 

1. A Emergência das Redes como Atores Coletivos e como Esfera de um Novo Contrato Social

Nas últimas décadas surgiram em todo o mundo, nos campos da economia, política e cultura, inúmeras redes e organizações na esfera da sociedade civil lutando pela promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, constituindo-se embrionariamente em um setor público não-estatal. Redes e organizações feministas, ecológicas, movimentos na área da educação, saúde, moradia e muitos outros na área da economia solidária e pela ética na política - para citar apenas alguns - vão se multiplicando, fazendo surgir uma nova esfera de contrato social. O avanço de uma nova consciência e de novas práticas sobre as relações de gênero, sobre o equilíbrio dos ecossistemas e sobre a economia solidária, por exemplo, não emerge nas esferas do mercado ou do Estado. O consenso sobre essas novas práticas tem sido construído no interior de redes em que pessoas e organizações de diversas partes do mundo colaboram ativamente entre si, propondo transformações do mercado e do Estado, das diversas relações sociais e culturais a partir de uma defesa intransigente da necessidade de garantir-se universalmente as condições requeridas para o ético exercício das liberdades públicas e privadas.

A progressiva e complexa integração dessas diversas redes, colaborando solidariamente entre si - cuja consistência necessita ser melhor compreendida para que se possa alterar algumas relações que elas mantêm, gerando-se com isso uma sinergia ainda maior -, colocou no horizonte de nossas possibilidades concretas a realização planetária de uma nova revolução, capaz de subverter a lógica capitalista de concentração de riquezas e de exclusão social e diversas formas de dominação nos campos da política, da economia e da cultura.

Iniciando-se nos campos da cultura e da política, essas redes avançaram progressivamente para o campo da economia, afirmando a necessidade de uma democracia total, que somente se realiza introduzindo-se e implementando-se mecanismos de autogestão das sociedades em todas as esferas que a compõem. Não se trata, portanto, apenas do controle político da sociedade sobre o Estado, mas igualmente do controle democrático da sociedade sobre a economia, sobre a geração e fluxos de informação, sobre tudo aquilo que afeta a vida de todos e de cada um e que possa ser objeto de decisões humanas.

A noção de democracia que emerge nesta consistência como projeto a expandir e que já é praticado no interior de inúmeras redes é aquela que visa assegurar realmente as liberdades públicas e privadas, eticamente exercidas, ao conjunto das pessoas e sociedades. O exercício concreto dessas liberdades, todavia, supõe condições materiais, políticas, educativas informativas e éticas para realizar-se como manifestação de cidadania. Nesta luta por assegurá-las coletivamente, surgiram movimentos e organizações que, posteriormente, conformaram redes sociais que progressivamente começam a colaborar entre si.

Fazemos aqui um breve parêntesis para indicar uma noção de liberdade peculiar a diversas redes, para que possamos compreender o sentido histórico e político da integração de suas lutas e em que medida a colaboração entre essas redes pode ampliar o seu potencial revolucionário - como veremos em outra seção mais à frente.

 

1.1 O exercício das liberdades e as lutas por estender o seu horizonte

a) Condições Materiais

Sem condições materiais não há como se realizar as liberdades. A liberdade para comer ou trabalhar produtivamente, por exemplo, só existe quando há o alimento disponível para comer ou condições materiais que possibilitem aquele trabalho. Quem não dispõe de alimento, não possui liberdade para alimentar-se. Igualmente, sem dispor de moradia, não existe a liberdade para abrigar-se dignamente como ser humano, mas a imposição de viver ao relento. Sem as mediações materiais para assegurar a saúde não há a liberdade para preservar o corpo da dor, do sofrimento e da morte evitável.

Visando expandir o exercício das liberdades, mobilizando-se em torno de condições materiais, inúmeras organizações civis que operam nos campos da produção e reprodução social atuam diretamente sobre contradições sociais referentes à exploração e exclusão do trabalho, expropriação de consumidores e o progressivo empobrecimento de grandes parcelas das sociedades. Sindicatos, organizações de economia solidária, inúmeros movimentos populares e diversas outras organizações que atuam nessa esfera trazem às redes uma noção de democracia que exige o controle da sociedade sobre a riqueza produzida, desde o local de trabalho até a movimentação internacional dos valores financeiros.

 

b) Condições Políticas

Sem condições políticas, que assegurem a autonomia privada e pública, não há como satisfatoriamente preservar, promover ou realizar a liberdade dos indivíduos e da sociedade. Sem a possibilidade de participar, opinar, decidir e transformar as micropolíticas do cotidiano na vida privada e as macro-políticas - que envolvem inúmeras esferas de organização social e governamental - a liberdade fica mutilada, impedida de realizar-se de modo cidadão. O machismo, o racismo, a discriminação de imigrantes, índios e pobres e tantos outros preconceitos justificam ideologicamente micropolíticas autoritárias que negam a liberdade de mulheres, negros e demais segmentos discriminados. Também o tecnicismo, o economicismo e tantas outras ideologias que se desdobram de conceitos arcaicos sobre o valor epistemológico dos enunciados científicos contribuem para a negação da liberdade pública, negando o valor da participação popular na definição das macro-políticas governamentais nas diversas esferas. Também aqui, inúmeros movimentos, organizações e partidos políticos trazem às redes a afirmação do respeito à autonomia das pessoas e das sociedades, desde a esfera do cotidiano e da vida privada até as esferas públicas do controle democrático dos orçamentos e das políticas governamentais.

 

c) Informação e Educação

Contudo, mesmo tendo as condições políticas e materiais para concretizar suas escolhas, se as pessoas não dispuserem de informações suficientes e de qualidade relevante para as suas decisões ou não souberem como refletir adequadamente sobre as informações de que dispõem, o exercício de sua liberdade fica prejudicado. Sem a democratização da educação e da informação, a cidadania fica obliterada, pois embora haja alguma liberdade no ato de escolher, as escolhas acabam sendo induzidas por aqueles que selecionam e fornecem determinadas informações e não outras. Nesta esfera inúmeros movimentos e organizações travam suas lutas pelo direito à educação, informação e comunicação, entre muitas outras.

 

d) Condição Ética

Por fim, sem a condição ética, o exercício da liberdade de alguns pode aniquilar a liberdade de muitos ou vice-versa. A moral e o direito que impõem certos padrões para o comportamento pessoal e social que negam às pessoas a realização de sua liberdade - de sua condição feminina, homossexual, negra, indígena, infantil, etc. - ou que reproduzem privações sociais (como tantas leis injustas), obliteram a realização das liberdades públicas e privadas. A ética que preserva e promove a liberdade se assenta no desejo de que cada pessoa possa viver eticamente sua liberdade o mais plenamente possível e no imperativo de promovê-la desse modo. Assim, a liberdade privada não pode realizar-se aniquilando as condições de possibilidade da liberdade pública; e esta, por sua vez, deve respeitar qualquer livre exercício humano da liberdade pessoal, desde que este não inviabilize outros exercícios de liberdade pública e privada eticamente orientados.

 

1.2 A Recente emergência das Redes e suas Potencialidades

Com efeito a multiplicação e expansão recente das organizações e redes atuando nesses diversos campos visando assegurar as liberdades se deve, entre outras razões, ao fato de que o modelo capitalista neoliberal vem globalitariamente suprimindo e fragilizando as mediações garantidoras das liberdades públicas e privadas, na medida em que propaga: a) a concentração dos recursos materiais e a exclusão das maiorias, b) o controle hegemônico do poder político pelos segmentos que controlam o capital, virtualizando cada vez mais a democracia, c) a saturação de informações e a fragilização da autonomia crítica da sociedade; d) uma moral individualista centrada na vantagem privada (em que as relações sociais ficam subordinadas ao mercado) e que renega a promoção da liberdade alheia, quando esta não contribui, ainda que mediatamente, para a realização do acúmulo de riqueza dos grandes agentes econômicos sob a ordem neoliberal.

O que vemos nas sociedades contemporâneas em geral é a negação cada vez mais acentuada das liberdades pública e privada das maiorias, em nome da expansão da liberdade privada dos que dispõem do grande capital. Os países que adotam o modelo neoliberal passam a implementar políticas que cerceiam o exercício ético da liberdade pelas maiorias. Esse totalitarismo global, esse Regime Globalitário, esvazia progressivamente as instâncias políticas da autonomia pública, transformando o Estado em refém do capital financeiro e dos mega-conglomerados.

Em contrapartida, segmentos populares da sociedade civil planetária, compostos por contingentes oprimidos, explorados, expropriados, dominados, excluídos e por todos aqueles que lhes são solidários, passaram a se organizar internacionalmente na resistência a essa situação. Nas últimas décadas inúmeras práticas de solidariedade expandiram-se internacionalmente integrando-se em movimentos de rede, lutando por liberdades públicas e privadas e pelo acesso a condições reais de exercê-la. A partir delas - considerando-se o que começa a emergir em sua consistência complexa de rede - pode-se vislumbrar os primeiros sinais do nascimento de uma nova formação social que tende a superar a lógica capitalista de concentração de riquezas e exclusão social, de destruição dos ecossistemas e de exploração dos seres humanos, afirmando a construção de novas relações sociais, econômicas, políticas e culturais que, organizando-se em colaboração solidária, têm o potencial de dar origem a uma nova civilização, multicultural e que deseja a liberdade de cada outro em sua valiosa diferença.

Neste contexto, podemos nos referir à revolução das redes (Mance:2.000) com dois sentidos. No primeiro deles trata-se de um processo real, que está progredindo por toda a parte no enfrentamento desta globalização capitalista neoliberal e na construção/afirmação do projeto de um outro mundo possível, como nos atesta a pujança dos Fóruns Sociais Mundiais. No segundo caso, podemos tratar da revolução das redes como uma proposta estratégica - elaborada desde a reflexão sobre essas práticas concretas e seus referenciais teóricos -, que visa conectar a infinidade de organizações populares desta parcela emergente sociedade civil, tais como movimentos, associações, sindicatos, ONGs, partidos políticos, etc, e particularmente os empreendimentos solidários de produção, comercialização e financiamento bem como organizações de consumidores, em um complexo movimento de realimentação capaz de fortalecer ao conjunto dessas organizações e integrá-las em crescimento consistente, auto-sustentável, antagônico ao capitalismo e às várias práticas de dominação política e cultural, a fim de promover o bem viver das pessoas.

Este processo progressivo de crescimento orgânico das redes como um novo ator e uma nova esfera de articulações já havia sido detectado, em algumas de suas peculiaridades, há vários anos por alguns pesquisadores. No início da década de 90, analisando a emergência das redes de movimentos sociais, escrevia Ilse Warren-Scherer:

"trata-se de passar da análise das organizações sociais específicas, fragmentadas, para a compreensão do movimento real que ocorre na articulação destas organizações, nas redes de movimentos..."

"o que considero particularmente relevante em termos de análise da sociedade civil, para a década de 90, é a compreensão do significado e do alcance da ação política criada através destas redes de movimentos... Para o caso do Brasil parece-me particularmente importante estudar as redes que vem sendo estabelecidas entre organizações populares e outros movimentos culturais e políticos" (Warren-Scherer:1993:116).

Vários estudos apontados pela autora enfatizaram a importância política dessas redes para o fortalecimento da democracia. A grande novidade atual, entretanto, é que a expansão do conceito de democracia, retomando tradições revolucionárias, avançou, como vimos, para o controle social sobre a esfera econômica. Se a história recente das redes de economia solidária remonta às práticas de comércio équo dos anos 60, é entretanto recente a compreensão que a integração complexa do conjunto das redes sociais, culturais, políticas e econômicas tem um potencial global capaz de instaurar um novo modo de produzir, consumir e organizar a vida em todo o planeta. Esta progressiva aglutinação projetual deveu-se inicialmente, como vimos, à atuação coletiva de resistência às políticas neoliberais e em seguida à articulação das ações de resistência das diversas redes com as ações estratégicas por elas implementadas de construção de novas relações humanizadoras nas diversas esferas do mundo da vida. Assim, temos não apenas a articulação local e global de atores ou movimentos sociais e culturais, afirmando um pluralismo organizacional e ideológico, atuando nos campos cultural e político, mas a também a emergência de redes internacionais no campo da economia, centradas na promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.

 

1.3 As Redes de Economia Solidária

O termo economia solidária abarca muitas práticas econômicas e não há um consenso sobre o seu significado. Em geral ele está associado a práticas de consumo, comercialização, produção e serviços (entre os quais o de financiamento) em que se defendem, em graus variados, entre outros aspectos, a participação coletiva, autogestão, democracia, igualitarismo, cooperação, auto-sustentação, a promoção do desenvolvimento humano, responsabilidade social e a preservação do equilíbrio dos ecossistemas. Entretanto, nem todas essas características estão presentes nas diversas práticas concretas que são elencadas no campo da economia solidária em estudos e análise distintas que temos encontrado.

Avalio que o grande avanço nos anos 90 das práticas de economia solidária é fruto, entre outras razões, da progressiva conscientização da importância da organização de redes para o sucesso dos empreendimentos. A noção de rede coloca a ênfase nas relações entre diversidades que se integram, nos fluxos de elementos que circulam nessas relações, no laços que potencializam a sinergia coletiva, no movimento de autopoiese em que cada elemento concorre para a reprodução de cada outro, na potencialidade de transformação de cada parte pelo sua relação com as demais e na transformação do conjunto pelos fluxos que circulam através de toda a rede. Assim a consistência de cada membro depende de como ele se integra na rede, dos fluxos de que participa, de como acolhe e colabora com os demais.

De fato, nas últimas décadas tivemos o surgimento e propagação de inúmeras práticas de colaboração solidária no campo da economia, entre as quais elencam-se: renovação da Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações de Marca, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, os Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Economia de Comunhão, Sistemas de Micro-Crédito e de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Grupos de Compras Solidárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Sociais, difusão de Softwares Livres, entre muitas outras práticas de economia solidária. Significativas parcelas de organizações que se inscrevem nessas práticas e que, em seu conjunto, cobrem os diversos segmentos das cadeias produtivas (consumo, comércio, serviço, produção e crédito) começaram a despertar recentemente para ações conjuntas em rede, ao passo que outras já atuam dessa forma, há mais de três décadas. O crescimento mundial dessas redes, indica a ampliação de novos campos de possibilidade para ações solidárias estrategicamente articuladas com o objetivo de promover as liberdades públicas e privadas.

Houve também no Brasil, recentemente, um salto organizativo no campo da economia solidária, com o surgimento e fortalecimento de diversas redes e organizações atuando em âmbitos locais, regionais e nacional. Nos últimos dois anos, em nível nacional, tivemos a fundação da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, a organização da Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores e a adoção pela Anteag da estratégia de Rede de Negócios, integrando as suas empresas em laços de realimentação. Em junho de 2000, no Encontro Brasileiro de Cultura e Socioeconomia Solidárias, realizado em Mendes no Rio de Janeiro, foi lançada a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária Em seguida criaram-se as bases para a organização da Rede Global de Socioeconomia Solidária, no I Acampamento de Economia Solidária ocorrido no Rio Grande do Sul, com organizações de diversos países - rede essa que foi lançada no Fórum Social Mundial, com a participação de entidades, pessoas e organizações de 21 países. Por sua vez, o governo popular do Rio Grande do Sul adotou a estratégia de fomentar e apoiar a constituição de redes econômicas de empreendimentos, em projetos de desenvolvimento local auto-sustentável. Agregue-se a esse elenco a emergência de redes estaduais e regionais com diferenciados nomes e estágios organizativos em vários estados, articuladas na Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária (2).

 

2. Uma revolução em Curso - De Seattle aos Fóruns Sociais Mundiais

Como desdobramento dos eventos de Seattle em 1999, nos Estados Unidos, e no ano seguinte em Davos na Suíça - quando um expressivo conjunto de organizações e movimentos manifestaram-se contra a globalização que a Organização Mundial do Comércio tenta impor a todo o planeta - nasceu o primeiro World Social Forum, que ocorreu em Pádova, na Itália, em abril de 2.000, como um espaço de encontro de diversas redes no âmbito da solidariedade e da economia social e civil, com massiva participação de entidades italianas e de algumas redes que atuam internacionalmente. No centro deste evento, integrado a um salão da solidariedade e da economia social, estas organizações asseveravam coletivamente, em contraposição à globalização em curso, a necessidade de "maior democracia econômica e política". Naquele oportunidade, afirmou Susan George, referindo-se ao evento: "não há nada de semelhante no mundo, nada que se pareça a esta feira, uma união do público e do privado juntos pela solidariedade..." (Civitas:2000:2). De fato, mais de 10 mil pessoas compareceram àquele evento, que foi reeditado em maio de 2001 com um público aproximado de 20 mil pessoas; mas, até onde sei, não havia delegações estrangeiras nessas duas ocasiões.

Na Plataforma daquele Fórum, argumenta-se que após as revoltas de Seattle e Davos, os setores da sociedade civil, que nelas se reconheceram, devem "...'unir as próprias forças' contra o poder das grandes corporações e multinacionais que 'querem controlar todo aspecto da existência humana: agricultura, saúde, educação, informação." (Civitas:2000:6)

Assim, dos movimentos de agregação de redes diversas, inicialmente em as ações de protesto, surgem portanto movimentos complexos integrando redes internacionais com um projeto de enfrentar as grandes corporações, exigindo uma democracia econômica e política, que em sua base defende as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Para Emir Sader, a partir daquelas manifestações de protestos se pode afirmar que "um novo elo de solidariedade começa a surgir, permitindo vislumbrar o potencial de um novo projeto hegemônico." (Sader:2001:22)

No ano seguinte, em 2001, no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, com a efetiva participação de delegações de 122 países (com 1.502 delegados estrangeiros), foram realizadas 16 mesas redondas e cerca de quatrocentas oficinas, com um público aproximado de 20 mil pessoas, tratando de uma infinidade de temas e propostas que cerca de 900 redes presentes e demais organizações participantes vem defendendo nos diversos países, em suas mais variadas lutas, considerando a libertação dos seres humanos em suas diversas dimensões.

Para Oded Grajew, a história do Fórum Social Mundial permite "...ilustrar como uma idéia aparentemente utópica pode se tornar realidade quando juntamos e conectamos as inúmeras redes, movimentos, associações e governos que aspiram a um mundo melhor, dispostos a colocar seus recursos, poder e competência a serviço do bem comum." (Grajew: 2001:6)

Para efeitos desta nossa reflexão, cabe destacar que naquele espaço de solidariedade e de esperança, após vários seminários temáticos que tratavam de diferentes aspectos da economia solidária, foi lançada a Rede Global de Socioeconomia Solidária, como possibilidade de integração, transformação e avanço de todas essas redes, superando os isolamentos. Embora o termo Rede de Socioeconomia venha sendo adotado desde o Encontro Brasileiro de Cultura e Socioeconomia Solidária, ele não me parece adequado para expressar o projeto que está em sua base, que extrapola a esfera econômica, mesmo que seja adjetivada como social e solidária. A idéia básica que subjaz à estratégia da Rede Global é que a difusão do consumo e do trabalho solidários, em laços complexos de realimentação, possibilita que os valores econômicos gerados pelo trabalho possam realimentar o processo de produção e consumo, promovendo o bem viver das coletividades, o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável e a expansão do campo de possibilidades de realização da liberdades públicas e privadas, avançando na construção de uma nova formação social que pode configurar-se como uma sociedade pós-capitalista.

Não se trata de integrar apenas as organizações que atuam na esfera econômica, mas de perceber a dimensão econômica de todos os movimentos e organizações solidárias e de conectá-los em laços de realimentação. O potencial de consumo de toda sociedade civil organizada solidariamente no planeta é gigantesco. A integração em rede desse potencial de consumo existente com o potencial existente de geração de riqueza pela organização de empreendimentos de economia solidária, constituindo um laço de realimentação entre consumo e produção, permite consolidar a consistência dessas redes econômicas.

Igualmente não se trata de integrar em redes setoriais as organizações feministas, ecológicas, etc, mas de perceber a dimensão feminista, ecológica, etc, que toda rede que se constitui solidariamente deve assumir. A consistência de cada membro da rede depende da consistência dos demais. Por isso, na prática de cada pessoa que promove as liberdades públicas e privadas deve manifestar-se - tanto nas situações concretas de seu cotidiano quanto no projeto de sociedade que compartilha - o fim de toda a opressão de gênero, a preservação do equilíbrio dos ecossistemas, o fim da exploração do trabalho infantil, etc, compondo-se organicamente os diversos objetivos pelos quais as redes solidárias se mobilizam.

A revolução das redes é, pois, a integração das diversidades que somente podem florescer plenamente onde houver colaboração solidária entre as pessoas, organizações e movimentos. Trata-se, a meu ver, de construir-se redes de colaboração solidária por toda a parte, integrando, compartilhando e sustentando o conjunto dos avanços e enfrentado coletivamente, sob variadas estratégias, o conjunto dos desafios. Somente assim a integração dessas redes pode ter uma consistência realmente revolucionária, no sentido de promover transformações estruturais no enfrentamento da diversas formas de opressão que incluem práticas, de exploração, expropriação, dominação e exclusão de diversos tipos.

A proposta de que sejam realizados Fóruns Sociais Mundiais em todos os anos e em diversos lugares do mundo nas mesma datas, institui novos espaços de diálogos que avançam na consolidação dos acordos sociais que apontam para uma globalização solidária. Para além dos Estados e dos Mercados, as redes atuando solidariamente em processos de colaboração se consolidam, ao mesmo tempo que avançam na afirmação de um novo projeto hegemônico democrático. Não se trata apenas de controlar os orçamentos governamentais e as políticas públicas com a participação autônoma da sociedade em governos populares, mas de controlar com igual autonomia popular todas as cadeias produtivas dos processos econômicos, integrando o local e o global sob uma lógica de desenvolvimento, ecologica e socialmente sustentável. Trata-se também de afirmar uma nova cultura de solidariedade que permeie as micropolíticas do cotidiano, reafirmando a dignidade de cada ser humano em sua singularidade e as garantias necessárias à realização de seu direito ao bem viver.

 

3. Da Resistência ao Neoliberalismo à Globalização da Solidariedade

A nova geração de redes que começa a surgir baseada nessa idéia de colaboração solidária, carrega consigo características de inúmeras práticas solidárias bem sucedidas de diversas redes específicas anteriormente organizadas. Partindo-se dessas práticas e compreendendo-as desde o paradigma da complexidade, pode-se organizar estratégias de colaboração solidária com a capacidade de expandir novas relações sociais de produção e consumo, difundindo uma nova compreensão de sociedade, em que o ser humano, considerado em suas múltiplas dimensões, pode dispor das mediações materiais, políticas, educativas e informativas para realizar eticamente a sua singularidade, desejando e promovendo a liberdade dos demais.

Assim, analisando-se a consistência dessas redes em seu processo de emergência e em seus potenciais de transformação estrutural das sociedades, é possível supor e propor a ocorrência da integração das redes solidárias (que já participam e que venham a participar dos Fóruns Sociais Mundiais) em amplas redes de colaboração que permitam integrar ações de empreendimentos e grupos de consumidores, de associações de moradores, organizações eclesiais, sindicatos, movimentos populares e culturais e de diversas outras organizações sociais como formas de difusão do consumo e do trabalho solidários, da preservação do equilíbrio ecológico e das lutas contra toda a forma de preconceito, discriminação e opressão, reafirmando o direito de todos à cidadania. De fato, economia, política e cultura estão integradas, não sendo correto, sob a lógica da complexidade, considerá-las isoladamente, preterindo conexões e agenciamentos que as perpassam. O trabalho de análise e composição privilegia, desse modo, compreender as relações que permeiam a consistência dos sujeitos e desde aí considera as potencialidades que emergem da reorganização de suas relações, nos campos de possibilidade em que estão inseridos e sobre os quais atuam.

Com efeito, quando redes locais deste tipo são organizadas, elas operam no sentido de atender demandas imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem viver, ao mesmo tempo em que combatem as estruturas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão, e começam a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a solidariedade está no cerne da vida. As Redes de Colaboração Solidária portanto: a) permitem aglutinar diversos atores sociais em um movimento orgânico com forte potencial transformador; b) atendem demandas imediatas desses atores por emprego de sua força de trabalho e por satisfação de suas demandas por consumo, pela afirmação de sua singularidade negra, feminina, etc; c) negam estruturas capitalistas de exploração do trabalho, de expropriação no consumo e de dominação política e cultural, e d) passam a implementar uma nova forma pós-capitalista de produzir e consumir, de organizar a vida coletiva afirmando o direito à diferença e à singularidade de cada pessoa, promovendo solidariamente as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.

Essas Redes de Colaboração Solidária, atuando sobre as condições necessárias ao exercício das liberdades, podem avançar na construção de uma nova formação social, que se configure como uma sociedade pós-capitalista.

Economicamente, trata-se da difusão do consumo e labor solidários. O consumo solidário significa selecionar os bens de consumo ou serviços que atendam nossas necessidades e desejos visando tanto realizar o nosso livre bem viver pessoal, quanto promover o bem viver dos trabalhadores que elaboram aquele produto ou serviço, como também visando manter o equilíbrio dos ecossistemas. De fato, quando consumimos um produto em cuja elaboração seres humanos foram explorados e o ecossistema prejudicado, nós próprios somos co-responsáveis pela exploração daquelas pessoas e pelo prejuízo ao equilíbrio ecológico, pois com nosso ato de compra contribuímos para que os responsáveis por essa opressão possam converter as mercadorias em capital a ser reinvestido do mesmo modo, reproduzindo as mesmas práticas injustas socialmente e danosas ecologicamente. O ato de consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é também ético e político. Trata-se de um exercício de poder pelo qual efetivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, a destruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e a exclusão social ou contrapor-nos a esse modo lesivo de produção, promovendo, pela prática do consumo solidário, a ampliação das liberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável. Ao selecionar e consumir produtos identificados pelas marcas das redes solidárias nós contribuímos para que o processo produtivo solidário encontre seu acabamento e que o valor por nós dispendido em tal consumo possa realimentar a produção solidária em função do bem viver de todos que integram as redes de produtores e consumidores.

O labor solidário significa, além dos aspectos referentes à autogestão e corresponsabilidade social dos trabalhadores, que o excedente do processo produtivo - o qual sob a lógica capitalista é acumulado por grupos cada vez menores - seja reinvestido solidariamente no financiamento de outros empreendimentos produtivos, permitindo integrar às atividades de trabalho e consumo aqueles que estão sendo excluídos pelo capital, ampliar a oferta de bens e serviços solidários e expandir as redes de produtores e consumidores, melhorando as condições de vida de todos que aderem à produção e ao consumo solidários. Assim, com os excedentes gerados nos empreendimentos solidários organizam-se novos empreendimentos produtivos criando-se oportunidade de trabalho para desempregados, propiciando-lhes um rendimento estável que se converte, graças ao consumo solidário praticado por esses mesmos trabalhadores, em aumento de consumo final de produtos da própria rede, gerando-se assim mais excedentes a serem investidos. Os novos empreendimentos visam estrategicamente passar a produzir aquilo que ainda é adquirido no mercado capitalista, sejam bens e serviços para consumo final ou insumos, materiais de manutenção e outros itens demandados no processo produtivo. Esse expediente - acompanhado de uma crítica dos padrões capitalistas, ecologicamente insustentáveis de produção e consumo - visa corrigir os fluxos de valor, a fim de que o consumo final e o consumo produtivo não desaguem na acumulação privada fora das redes, mas possam nelas realimentar a produção e o consumo solidários, completando os segmentos das cadeias produtivas sobre os quais as redes ainda não tenham autonomia.

Nesta estratégia de rede, sob o que começa a ser denominado "Paradigma da Abundância", quanto mais se distribui a riqueza, mais a riqueza de todos aumenta, uma vez que tal distribuição se faz remunerando o trabalho que gera ainda mais riqueza a ser reinvestida e repartida. Desse modo, as populações que estavam anteriormente excluídas, ao serem incorporadas ao processo produtivo e ao receberem uma justa remuneração pelo seu trabalho, podem consumir produtos e serviços solidários que garantam o seu bem viver, realimentando o próprio processo produtivo sob parâmetros ecologicamente sustentáveis. Acordos coletivos no interior das redes permitem ajustar estruturas de custos e de preços sob parâmetros que viabilizem a sua autopoiese, como uma alternativa à lógica da escassez que regula os preços nos mercados sob o binômio oferta e procura. Sob a lógica da escassez que regula os mercados, em que os agentes operam visando a obtenção de lucros ou outras vantagens privadas, a abundância na oferta tende a gerar uma queda de preços, que podem mesmo chegar abaixo dos custos de produção, situação, por exemplo, em que agricultores que produzem raízes são obrigados a deixar grande parte dos alimentos produzidos apodrecerem embaixo da terra - pois sob a lógica do mercado não haverá como cobrir os custos da operação de colheita -, embora preferissem realizá-la, sabendo que mais de um bilhão de pessoas vivem em condição de pobreza extrema no mundo e teriam interesse em consumir esses alimentos. As necessidades desse contingente famélico, entretanto, não operam como demanda sob a lógica de mercado, pois tal segmento não dispõe dos valores econômicos requeridos para realizar alguma troca por aquilo que satisfaça as suas necessidades. Assim, sob a lógica da escassez que regula os mercados, não há como viabilizar que populações famintas possam consumir toneladas de alimentos que irão apodrecer, estejam elas em outros continentes ou no interior do próprio país em que a abundância da produção - aumentando a oferta no mercado - inviabiliza a recuperação dos custos da própria colheita e, muito freqüentemente, do próprio plantio. Ainda sob essa mesma lógica da escassez, as taxas de juros elevadas forçam uma parte daqueles agricultores, que tenha contraído dívidas para o plantio, a vender parcelas de suas terras, visando saldar o empréstimo realizado, pois a supersafra obtida, graças à competência de seu trabalho produtivo e às condições ambientais favoráveis àquela lavoura, o impede de saldar as dívidas contraídas.

Pelo contrário, sob a perspectiva das redes de colaboração solidária trata-se pois, no campo econômico, de garantir a produção, a distribuição, o emprego ou o consumo das mediações materiais necessárias à realização das liberdades públicas e privadas, eticamente balizadas. O princípio de diversidade implica na promoção da satisfação de demandas singulares, não em função do lucro, mas em razão do bem viver de cada uma e de todas as pessoas, compondo-se da melhor maneira possível o exercício solidário das liberdades. Como vimos, a conexão em rede do consumo e produção em laços de realimentação, com distribuição de renda, viabiliza economicamente a consistência e expansão desse sistema solidário (Mance:2.000:120-156).

Busca-se, portanto, integrar consumo, comercialização, produção e crédito em um sistema harmônico e interdependente, coletiva e democraticamente planejado e gerido, que serve ao objetivo comum de responder às necessidades da reprodução sustentável do bem viver das pessoas em todas as suas dimensões, inclusive, nos âmbitos da cultura, arte e lazer.

Politicamente, as redes de colaboração solidária defendem a gestão democrática do poder, buscando garantir a todas as pessoas iguais condições de participar e decidir não apenas sobre as atividades de produção e consumo praticadas nas redes, mas também, nas demais esferas políticas da sociedade, visando combater toda forma de exploração de trabalhadores, expropriação de consumidores e dominação política ou cultural, enfatizando o valor da cidadania ativa na busca do bem comum e da cooperação entre os povos.

Ora, sendo a rede, em sua dimensão econômica, baseada no consumo e no trabalho solidários, ela se constitui simultaneamente como rede política, isto é, a rede econômica não pode sobreviver sem que seus membros assumam uma outra concepção sobre os princípios que regem a convivência entre as pessoas, particularmente, a superação do individualismo pelo colaboracionismo solidário, buscando a melhor maneira de compor o exercício coletivo e pessoal da liberdade. Sob a dinâmica das redes de colaboração solidária o desejo do outro em sua diferença implica, micropoliticamente, na ação de promover a realização das diversas singularidades, eticamente orientadas, do modo mais pleno possível. Macropoliticamente, implica na transformação estrutural da sociedade, suprimindo a dicotomia entre o formulador da demanda social e o seu reformulador político, através de mecanismos democráticos de autogestão pública, que a rede exercita na sua própria consistência. Com a promoção das liberdades pública e privada, o crescimento da rede amplia o seu poder político - em razão de aglutinar um segmento cada vez maior da sociedade em torno de sua proposta de sociedade pós-capitalista - o que permite a constituição de um novo bloco social, capaz de promover revoluções molares sustentadas por inúmeras revoluções micropolíticas de caráter molecular e de transformar a estrutura e a gestão dos governos e dos Estados.

No campo da informação e educação, as redes de colaboração solidária buscam promover da melhor maneira possível a circulação da informação e geração de interpretantes que não apenas permitam ampliar os conhecimentos de cada pessoa, suas habilidades técnicas e domínios tecnológicos ou a sua competência em produzir e interpretar novos conhecimentos necessários às tomadas de decisão em todas as esferas de sua vida, mas que além disso permitam recuperar a sensibilidade, a auto-estima e outros elementos de ordem ética e estética imprescindíveis à realização do bem viver de cada pessoa e de toda a coletividade.

Sob este aspecto, destaca-se a relevância de uma das propriedades inerentes à rede que é o ininterrupto fluxo de informações. Promovendo a livre interação comunicativa entre os participantes, garantindo a todos as mediações materiais para a emissão e recepção de mensagens a qualquer participante da rede, ela sustenta o fluxo solidário de informações relevantes para as decisões particulares sobre as questões que se colocam a seus membros. Também neste campo são requeridas mediações adequadas para atender, entre tantas outras, demandas educativas, de qualificação profissional, de desenvolvimento artístico e científico - condições necessárias ao exercício da liberdade de cada um e ao bem viver de todos.

Eticamente as redes de colaboração solidária promovem a solidariedade, isto é, o compromisso pelo bem viver de todos, o desejo do outro em sua valiosa diferença, para que cada pessoa possa usufruir, nas melhores condições possíveis, das liberdades públicas e privadas. Desejar a diferença significa acolher a diversidade, de etnias, de religiões e credos, de esperanças, de artes e linguagens, em suma, acolher as mais variadas formas de realização singular da liberdade humana que não neguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Promover as liberdades significa garantir às pessoas as condições materiais, políticas, informativas e educativas para uma existência ética e solidária.

 

 

4. As Redes Solidárias, colaborando entre si, tornaram-se uma nova esfera democrática do contrato social.

Gostaria de enfatizar ainda um pouco mais esse aspecto, já indicado anteriormente, sobre a emergência de uma nova esfera de contrato social que não é nem o mercado, nem o Estado, mas as Redes Solidárias. Como vimos, o consenso de que é preciso manter o equilíbrio dos ecossistemas e preservar a biodiversidade não surge na esfera do mercado ou do Estado, mas na esfera das redes de movimentos ecológicos e sociais que lutam em defesa das liberdades públicas de todas as gerações a terem direito a um ambiente saudável, a ecossistemas equilibrados, à diversidade da fauna e flora, a um planeta não poluído.

Do mesmo modo, o consenso sobre a necessidade de construirmos novos parâmetros para as relações de gênero, superando as diversas formas de opressão, discriminação e violência que atingem as mulheres não surgiu a partir do mercado ou do Estado, mas das redes que conectam os mais diversos movimentos feministas e de mulheres, entre muitos outros, em todo o mundo.

É importante destacar que não se tratam de consensos da sociedade civil. De fato, há inúmeras organizações na sociedade civil que atuam no combate aos projetos emancipatórios. Há inúmeros institutos, movimentos e organizações na sociedade civil que agem em favor da manutenção de estruturas injustas e excludentes, porque delas, de algum modo, se beneficiam. É bastante comum que transnacionais - alvo de denúncias por práticas injustas em diversos países - organizem e financiem institutos de caráter social que, com efeito, não tem fins lucrativos mas fins ideológicos. Seguramente esses institutos não combatem os interesses das empresas que os mantém, mas atuam na sociedade civil para promovê-los: seja projetando uma boa imagem da empresa junto aos consumidores, consolidando uma valiosa sensibilidade social à sua logomarca, buscando parcerias com escolas e organizações comunitárias; seja financiando pesquisas sobre, por exemplo, as vantagens do tabagismo para o raciocínio ou as que comprovam que videogames violentos não interferem na subjetivação das crianças; seja, enfim, em inúmeras outras ações.

Não se tratam portanto de consensos da sociedade civil, mas de consensos construídos na sociedade civil em redes que não se confundem com o Estado ou com o Mercado, embora delas também participem organizações políticas e empreendimentos econômicos.

A relação estratégica dessas redes com o Estado e o Mercado é complexa. A reconstrução solidária das cadeias produtivas permite um progressivo crescimento da autonomia das redes frente ao mercado e um maior fortalecimento da economia solidária. A construção de consensos entre segmentos cada vez maiores sobre a necessária democratização do Estado, permite a eleição e consolidação de um número cada vez maior de governos populares o que reforça também o próprio empoderamento da sociedade em seu controle sobre os orçamentos e as políticas públicas.

Neste contexto, a importância dos Fóruns Sociais Mundiais reside justamente na possibilidade de integração e realimentação das inúmeras redes que atuam na defesa das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, buscando assegurar a todas as pessoas as condições materiais, políticas, educativas e informativas requeridas ao seu bem viver. Na medida em que o poder dessas redes vai crescendo pela integração das diversidades nas práticas e consensos que vão sendo construídos solidariamente, será cada vez maior o seu empoderamento e a sua participação na condução dos governos nas diversas esferas, mediados por administrações e partidos políticos compromissados no avanço radical da democracia, isto é, no enraizamento da democracia junto aos setores da sociedade que a defendem como meio para a promoção das liberdades e do bem viver de todos.

 

Conclusão

Não apenas um outro mundo é possível. Esse outro mundo já está brotando em inúmeros lugares, nas práticas mais diversas centradas na solidariedade, que visam promover as liberdades responsáveis, enfrentando as diversas formas de opressão, exclusão e injustiças. Na construção da democracia horizontal, trata-se de avançar no fortalecimento e expansão de redes solidárias, na criação de novas redes com esse caráter, na sua integração colaborativa com outras tantas em âmbitos locais, regionais e globais, acolhendo as diversidades que não reneguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Em seu atual estágio de organização e crescimento essas redes demonstram o potencial de superar estruturas opressivas e excludentes das sociedades contemporâneas. A efetivação dessa consistência, contudo, supõe um movimento livre de adesão do conjunto das redes a estratégias de colaboração solidária. Neste sentido, os Fóruns Sociais Mundiais possuem uma forte capacidade conectiva, cabendo avançar estrategicamente nos fluxos de informação, produtos, serviços, tecnologias e valores, realimentando o conjunto das redes. Muitas redes e organizações solidárias já se deram conta desse potencial coletivo, revolucionário, capaz de democratizar a economia, a política e a cultura, afirmando-se novos padrões para o desenvolvimento economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente sustentável, que integra o local e o global de maneira aberta e fecunda. A maior parte das organizações que atuam nesse campo, entretanto, ainda não se apercebeu desse potencial de transformação estrutural e continua agindo sem encadear as conexões necessárias para potencializar a sinergia que essa integração é capaz de gerar. O avanço coletivo dessa consciência e dessa tomada de posição histórica em favor de uma colaboração solidária, capaz de fazer emergir essa nova consistência, promovendo a expansão das liberdades públicas e privadas é, todavia, parte integrante do próprio processo em curso da revolução das redes.

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Referências Bibliográficas

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GUATTARI, Félix. "Subjetivação Subversiva" in Teoria e Debate, (12):60-64 nov 1990

MANCE, Euclides André. "Algumas Considerações Sobre o Exercício Ético da Liberdade em Face do Capitalismo Globalizado". Comunicação apresentada no I Corredor das Idéias, em Punta del Leste, Uruguai, em 1998: http://www.milenio.com.br/mance

MANCE, Euclides André. A Revolução das Redes - A Colaboração Solidária como uma Alternativa Pós-Capitalista à Globalização Atual. Editora Vozes, Petrópolis, 2000

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SINGER, Paul. Globalização e Desemprego - Diagnóstico e Alternativas. São Paulo, Editora Contexto, 1998

 

Resumo

Este artigo trata da consistência das Redes de Colaboração Solidária, considerando os Fóruns Sociais Mundiais como manifestação recente da emergência de uma nova esfera de acordo social, que não são o mercado nem o Estado, e que tem por atores centrais diversas redes solidárias atuando em colaboração, com o objetivo maior de promover as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, visando assegurar universalmente as condições requeridas para tal exercício. O artigo apresenta alguns aspectos dos fundamentos teóricos e políticos dessas redes e o potencial delas em superar estruturalmente formações sociais opressivas, engendrando uma alternativa sistêmica ao capitalismo e à sua globalização neoliberal.

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Notas

1. Euclides André Mance é filósofo, mestre em educação pela UFPR e sócio-fundador do Instituto de Filosofia da Libertação-IFiL, sendo colaborador da Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária. Artigos e conferências do autor encontram-se disponíveis http://www.milenio.com.br/mance

2. Para uma visão geral dessas redes e um mapeamento inicial de empreendimentos, produtos e serviços veja-se http://www.redesolidaria.com.br


A Consistência das Redes Solidárias
Seminário Nacional "Ética e Cidadania"
Recife, dezembro de 2001
www.milenio.com.br/mance/consistencia.htm


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