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Globalitarismo e Subjetividade -
algumas considerações sobre ética e liberdade.

Euclides André Mance
IFiL - Curitiba, PR

Introdução

Desenvolvemos neste texto uma reflexão sobre o atual modelo capitalista de globalização, que tem no neoliberalismo sua expressão política, e sobre sua incompatibilidade com o exercício ético da liberdade. Buscamos evidenciar como tal modelo contribui para a fragilização e obliteração do exercício das liberdades pública e privada da maioria da população mundial, enfraquecendo a democracia que vai sendo subsumida sob os parâmetros do regime globalitário.

Inicialmente explicitamos os traços estruturais desta fase de globalização do capitalismo, apresentamos suas características principais e conseqüências mais importantes para os países do Terceiro Mundo. Na seqüência consideramos como esse modelo cerceia profundamente as liberdades, convertendo-se em uma nova forma de autoritarismo. Destacamos, então, as condições fundamentais para o exercício da liberdade, enfatizando sua dimensão ética e salientamos, com dados da ONU e OIT, que elementos básicos ao exercício da liberdade pública e privada estão sendo negados no mundo todo sob o capitalismo atual. Consideramos, por fim, a existência de uma alternativa socialista e democrática ao atual modelo de globalização.

1. A Globalização como Configuração Atual do Capitalismo

Ao analisar o capitalismo no século XIX, Karl Marx já o considerava em sua dimensão de globalidade. Contemporaneamente, entretanto, assistimos a ocorrência de fenômenos econômicos, políticos e sociais inusitados que nos levam a considerar que o capitalismo globalizado entrou em uma nova etapa que requer novas categorias para ser compreendido adequadamente.

Na primeira metade de nosso século, assistiu-se a emergência do capitalismo monopolista. Didaticamente escreve Laurence Harris que “com a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, o método dominante de produção também se modifica: a produção da mais- valia absoluta dá lugar à extração da mais-valia relativa, que se torna a mola propulsora da acumulação quando a maquinaria domina o processo de trabalho , caracterizando-se aquilo que Marx chamou de submissão ou sujeição real do trabalho ao capital. E, com a produção mecanizada do capital monopolista, a produção se torna ainda mais altamente socializada que na etapa anterior: o trabalho produtivo chega a tomar a forma de trabalhador coletivo, uma força de trabalho integrada toma o lugar dos trabalhadores artesanais individualizados.”2.

Atualmente, a partir do último quarto do século, tanto a revolução tecnológica em curso (que envolve a robótica, a informática a biotecnologia, a tecnologia dos materiais e a sofisticação dos aparelhos orientadores da opinião pública e agenciadores de comportamentos) quanto a organização dos mega-conglomerados e dos mega-mercados, bem como o super- desenvolvimento dos capitais especulativos e dos signos como mercadorias (de softwares a logomarcas ou códigos genéticos sob copyright) imprimiram uma série de novas determinações ao capitalismo. Nesta passagem do capitalismo monopolista a uma nova fase do capitalismo globalizado também se verifica uma modificação no método dominante de produção. Ainda de modo embrionário percebe-se que a produção da mais-valia relativa vai sendo dialeticamente superada em fenômenos de geração de mais-valia virtual - seja a reprodução de capitais voláteis (que se deslocam por variados campos, multiplicando-se em fenômenos especulativos de toda ordem envolvendo ações, imóveis, obras de arte, direitos de cópia de signos, cirandas financeiras, etc) seja pela reprodução de bens intangíveis (softwares e outros)3. A extração de mais valia virtual se torna a mola propulsora da acumulação quando o trabalho científico se transforma na principal fonte de valor econômico, produzindo informações que, como bens intangíveis, são propriedade privada do capital. Em especial essa extração de mais valia virtual ocorre: a) quando essas informações podem se converter em produtos que regulam o funcionamento de máquinas, como softwares ou produtos que orientam fluxos eletrônicos, magnéticos e fóticos em computadores, vídeos, cd-players, etc., reproduzindo representações sígnicas audiovisuais; ou b) quando essas informações, como códigos genéticos alterados, regulam o desenvolvimento de organismos vivos, vegetais ou animais, como bactérias utilizadas em processos industriais, plantas e animais biotecnologicamente alterados para fins de alimentação de outras cadeias, de ampliação de insumos industriais, etc. Graças à informática e à robótica, após concluir-se a produção de um bem intangível que foi organizado em bites - como softwares, registros de sons e imagens -, a sua reprodução não depende mais do trabalho produtivo imediato, uma vez que ele é replicado pela própria ação do consumidor, possibilitando que o simples acionamento de um software produza milhões de cópias de si mesmo4.

Com a produção robotizada e informatizada sob os movimentos do capital globalizado, a produção se torna virtualmente ainda mais socializada que na fase anterior - no sentido que possui uma cadeia com etapas mais diversificadas e complexas, embora os sujeitos dessas etapas não estejam todos juntos em uma linha de montagem em um mesmo local. Por outro lado, o trabalho fácil de multiplicar, ilegalmente, informações gera movimentos de socialização destes produtos com as cópias piratas de softwares, audiocassetes, videocassetes, etc, que circulam em mercados proibidos de uma economia informal que movimenta bilhões de dólares. Há que considerar-se, também, que a polivalência do trabalhador em ambientes de tecnologia flexível exige uma socialização dos conhecimentos indispensáveis ao funcionamento de várias etapas do processo produtivo e não somente o desenvolvimento de uma especialidade, embora a qualificação específica de alguns trabalhadores em algumas áreas estratégicas seja o diferencial na vitória de algumas empresas sobre as suas concorrentes.

Outro aspecto essencial dessa nova fase do capitalismo é que ele se tornou definitivamente um sistema produtor não apenas de mercadorias, mas também de subjetividades - modelizando semioticamente desejos, afetos, necessidades, padrões estéticos, éticos e políticos, intervindo diretamente no inconsciente das pessoas com a finalidade de reproduzir seus próprios ciclos5. Como uma das mediações recorridas para tanto, distribui gratuitamente as peças publicitárias que, sendo consumidas, têm por objetivo tanto orientar o indivíduo ao consumo ou usufruto pagos de outras peças não-publicitárias quanto agenciar outras formas de comportamento. Assim para compreender-se corretamente o giro do capital, nesta etapa do capitalismo globalizado, há que considerar-se: a) tanto o capital investido no processo produtivo da mercadoria - o que exige, além da consideração clássica dos gastos em capital constante (matérias-primas, outros insumos e instrumentos de trabalho) e capital variável (a força de trabalho), destacar também os dispêndios na geração de novas tecnologias, que supõem necessariamente pesquisas científicas e produção de novos saberes; b) como também o capital investido na produção de signos publicitários (que são determinantes qualitativos das mercadorias ou serviços) replicados nas diversas mídias, que modelizem a subjetividade dos consumidores à aquisição de certos signos e à não-aquisição de outros, deste ou daquele produto que os suportem, a valerem-se dos serviços prestados por esta ou aquela empresa capitalista. Isto é, trata-se também de considerar o capital investido na criação de imaginários e realidades virtuais em que se mediatizam o movimento de consumo e a disputa por mercados6.

Nesta etapa do capitalismo globalizado, estamos frente a um aparente paradoxo. Se a fantástica terceira revolução tecnológica ampliou espetacularmente a produtividade, se é maior a produção de riqueza, porque juntamente com os indicadores de crescimento econômico também aumenta o número de pobres enquanto a riqueza se concentra cada vez mais nas mãos de uma parcela cada vez menor? A resposta é elementar: o capital precisa, cada vez menos, de trabalho-vivo para produzir cada vez mais capital.

O poder do conhecimento em aumentar a produtividade, inovando nas tecnologias, gerou a situação em que dá mais lucro ao capital explorar menos trabalho-vivo, isto é, manter menos trabalhadores empregados. Este fenômeno que Marx supôs nos Grundrisse em 1857 - mas não desenvolveu em O Capital porque não pretendia falar do futuro, mas apenas explicar cientificamente a economia de sua época - descrevendo-o como Disposable Time ou Nicht-Arbeitszeit7, isto é, como o tempo disponível ou tempo de não-trabalho que o capital não poderia mais empregar produtivamente de modo competitivo na fase superior da grande indústria porque a ciência se tornaria a grande fonte produtora da riqueza abaixando o tempo médio de trabalho necessário à produção das mercadorias, sendo a incorporação da tecnologia o diferencial entre a vida e a morte da empresa capitalista na competição do livre-mercado, é o que assistimos hoje. Se uma empresa não investe em pesquisa e desenvolvimento, não inova nas tecnologias - que indiretamente provocam uma redução dos trabalhadores por ela empregados para produzir o mesmo volume de mercadoria ou serviço - ela perde a concorrência, sendo derrotada pela empresa maior que a incorpora, dominando um segmento maior do mercado e desativando unidades produtivas, porque a alta produtividade das unidades tecnologicamente mais avançadas que permanecem é capaz de abastecer todo o mercado consumidor existente que era anteriormente atendido pelas unidades agora desativadas.

Como o grande capital tem mais recursos para investir em tecnologia que as pequenas e médias empresas, todos sabem qual é o final do jogo sob uma economia neoliberal desregulamentada: a concentração maior da riqueza com uma exclusão cada vez maior de trabalhadores - têm-se o horror econômico, descrito Viviane Forrester8. Nesta sociedade que equivocadamente apoia os ajustes neoliberais em nome da liberdade que tal projeto efetivamente aniquila para as maiorias, alguns senhores que dominam a riqueza no mundo podem realizar exóticos “gestos de caridade”, como o do mega- especulador George Soros que pôde se dar ao luxo de fazer uma doação de US$ 500 milhões de dólares à Rússia - sendo que a ex-URSS detinha 4 milhões de pobres em 1987 e agora possui, além de uma economia de livre-mercado, cerca de 120 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza absoluta, conforme um dos últimos relatórios da ONU.

Não se trata de uma crise econômica temporária para a qual a expansão da nova onda tecnológica, em especial da Tecnologia da Informação, trará alguma solução ao disseminar meios de produção virtuais - como softwares - a preços baixos por todo o mundo9. A disseminação da informatização em todos os setores da economia, mesmo no setor de comércio e de serviços, tem provocado desemprego na grande maioria dos países. O número de postos de trabalho criados por essa tecnologia tem sido muito inferior ao número de postos que ela vem fazendo desaparecer. Trata-se, isto sim, de uma nova configuração do capitalismo, que dependerá cada vez menos do trabalho vivo para ampliar-se e que, por isso, distribuirá cada vez menos recurso na forma de salário, significando que a concentração de capital será cada vez maior no mundo enquanto perdurar este modelo capitalista globalitário.

2. Algumas Características Gerais da Globalização

O atual movimento de globalização decorre de uma reconfiguração do domínio dos capitais na ordem mundial contemporânea neste último quarto de século. Para além da atual revolução tecnológica, assiste-se um movimento de concentração e internacionalização do capital, de regionalização do mundo em blocos econômicos, de mudanças na cadeia produtiva, de substituição de matérias primas, de restruturação e racionalização empresarial, de produção de subjetividades, baseando-se a economia, cada vez mais, na produção de conhecimento.

Com estas transformações, acompanhadas de taxas elevadas de urbanização e degradação ambiental, vem aumentando acentuadamente a pobreza entre a maior parcela da população do mundo, com o drama do desemprego e do emprego precário, com países soterrados sob o peso das dívidas externas e internas, enquanto uma pequena parcela de cidadãos deste mundo globalizado enriquece vertiginosamente.

Estas modificações econômicas são organizadas e mantidas sob um projeto político hegemônico, o neoliberalismo, que se realiza como uma espécie de modernização conservadora. Nesta nova geopolítica internacional, com o final da guerra fria, o conflito leste-oeste se converte no conflito Norte- Sul, no conflito entre ricos e empobrecidos.

Alguns estudos destacam as principais conseqüências desse modelo de globalização para os países do Terceiro Mundo:

1) Incorporação de empresas de capital nacional por empresas transnacionais em razão de não suportarem a concorrência, trazendo por conseqüência a rápida desativação de várias unidades produtivas em razão destes grupos transnacionais produzirem sob novos procedimentos organizativos e com tecnologias mais avançadas; 2) Subalternização de empresas de capital nacional que são contratadas de modo terceirizado pelas grandes empresas transnacionais que se instalam nos países periféricos e que, tendo uma estratégia mundial de crescimento, podem desativar grandes unidades a qualquer momento, deslocando-as para outras regiões, deixando, assim, as empresas locais terceirizadas à sua própria sorte, provocando graves conseqüências econômico-sociais; 3) Com a depreciação do valor das matérias-primas em razão de inovações no setor de tecnologia dos materiais e de engenharia genética, que possibilitam a substituição de inúmeros tipos destas matérias ou a sua produção alternativa, ficam prejudicadas as economias dos países que tem na exportação de matérias-primas sua principal fonte de divisas; 4) Pressão de déficits na balança comercial dos países dependentes em razão de importação de tecnologias para a modernização do parque produtivo, bem como pela da degradação do valor dos produtos de exportação e, ainda, em razão dos instrumentos de âncora cambial adotados com a finalidade de manter estabilidade monetária e de não afastar capitais estrangeiros que atuam nos mercados de títulos públicos; 5) Dependência de tecnologias de ponta, especialmente da tecnologia da informação, ocorrendo significativas queimas de capital para importá-las; contudo, a sua rápida obsoletização exige repetidas importações sucessivas de bens tangíveis e intangíveis mais avançados, o que leva a uma fabulosa sangria de capitais das nações dependentes, sem nunca atingir um grau de modernização de ponta nestes setores frente aos países de capitalismo avançado; 6) As economias ficam dependentes dos fluxos de capital internacional, sobre os quais não têm autonomia; os fluxos de capitais voláteis, fictícios ou virtuais especulativos geram um clima de aparente estabilidade econômica que nada tem duradoura, podendo gerar fortes crises ao sinal seguro de alterações no câmbio ou na taxa de juros que lhes reduza a rentabilidade; 7) Enfraquecimento do controle das economias nacionais pelos governos federais, em razão da internacionalização das finanças, bem como, pela acentuada penetração de capitais internacionais; 8) Submetimento a variadas oscilações econômicas em razão da interdependência dos países nos blocos econômicos que se integram, ocorrendo pressões sobre determinados segmentos econômicos nacionais que ficam prejudicados por esses acordos; 9) Acirramento dos desequilíbrios econômicos regionais, em razão das vantagens econômicas e comparativas existentes em certas regiões dos países ou blocos que possuem maiores economias de aglomeração, melhores condições de infra- estrutura e maior facilidade de integração regional dentro dos mega-mercados; 10) Surgimento de ilhas de prosperidade, isto é, algumas regiões em que o desenvolvimento econômico se acentua por nelas se investirem somas significativas de capital em atividades produtivas modernizadas que alavancam o crescimento local; 11) Inchamento de cidades para onde os pobres se deslocam em movimentos migratórios em busca de melhorias, pressionando o surgimento de grandes metrópoles; 12) Ampliação do montante das dívidas externa e interna em razão de empréstimos feitos para equilibrar pagamentos e rolagem de títulos públicos; 13) Transferência, para o exterior dos países, do poder sobre importantes decisões econômicas que envolvem investimentos e produção em amplos segmentos econômicos, principalmente nos setores mais modernos, que ficam desnacionalizados em razão dos processos de privatizações; 14) Perda da soberania da nação em razão de sua subordinação não apenas às regras da OMC, em que os países de capitalismo avançado hegemonizam, mas especialmente às decisões das empresas industriais e financeiras multinacionais, bem como, aos interesses dos blocos econômicos dos quais o país faça parte; 15) Exclusão social de significativa parcela da população das diversas regiões dos países que não participam dos resultados do progresso econômico e social que ocorre nas ilhas de prosperidade. 16) Desemprego em massa, como resultado do processo de modernização dos setores produtivos que se realiza com a finalidade de ampliar os níveis de produtividade e competitividade das empresas nos mercados interno e externo, introduzindo novas tecnologias e sistemas de gerenciamento. 17) Ampliação da informalidade e de práticas econômicas consideradas contravenção, como contrabando, pirataria, narcotráfico, prostituição, etc. 18) Precarização das condições de saúde pública, com o retorno de doenças infecto-contagiosas que já haviam sido controladas, em razão da falta de investimentos públicos em saúde e infra-estrutura - água, esgoto, vacinação, etc. 19) Pressões de devastação ambiental, sendo o meio ambiente degradado para promover alguma melhora imediata à vida das pessoas excluídas dos processo produtivos e da assistência por políticas públicas; 20) Decomposição do tecido social ampliando-se as desigualdades sociais na distribuição de renda, no acesso à informação qualitativamente relevante e na competência de interpretá-la, etc; 21) Agravamento dos indicadores da qualidade de vida; 22) Aumento da violência e criminalidade, em razão das tensões sociais provocadas pela exclusão econômica de significativas parcelas da população com necessidades elementares insatisfeitas e que concomitantemente são agenciadas pelas mídias a participarem de processos modelizados de consumo; 23) Ameaça de convulsões sociais com desdobramentos político-institucionais que podem afetar os regimes democráticos liberais: saques, revoltas contra a ausência de políticas públicas, contra a falta de empregos, etc, podendo haver a ascensão de movimentos fascistas que capitalizem tais insatisfações; 24) Perda nacional de referenciais culturais identificadores, em razão de fenômenos transnacionais de produção de subjetividade em que operam, especialmente, as mídias eletrônicas veiculando mensagens em tempo real pelo mundo todo, e em razão da publicidade que produz imaginários em torno de uma certa configuração de sociedade de consumo; 25) Tendência dos regimes políticos tornarem-se mais globalitários.

3. Globalização e produção de subjetividade

Uma das principais características que imprime uma nova configuração ao capitalismo globalizado é a revolução tecnológica nas áreas de informática, robótica, biotecnologia, tecnologia dos materiais e na área das mídias (comunicação em tempo real, computação gráfica, digitalização do conhecimento, Internet, etc). Com essa tecnologia há um aumento de produtividade que poderia ampliar o tempo livre das pessoas - que poderiam trabalhar menos recebendo salários melhores - como argumenta André Gorz em Metamorfose do Trabalho10. Mas as novas tecnologias produtivas, contudo, são utilizadas para acúmulo e concentração de capital, gerando o desemprego, o crescimento da economia informal e a exclusão social. Além disso as tecnologias da informação aprimoraram também as possibilidades de intervenção no inconsciente das pessoas, em particular, e das massas, em geral, possibilitando a emergência de regimes globalitários.

Como vimos, o capitalismo é um sistema não apenas produtor de mercadorias, mas também de subjetividades. Se a subjetividade não é uma entidade metafísica ou transcendental, se ela é histórica e modelizada culturalmente sob jogos semióticos que ordenam matérias e funções, então podemos afirmar que o capitalismo atualmente produz subjetividades, pois ele produz semioses que ordenam as funções de organização da sociedade e portanto da vida dos indivíduos. Ele produz subjetividades, por exemplo, produzindo o produtor flexível, isto é, modelizando a subjetividade daquele que deve produzir operando com tecnologias mais complexas e que é envolvido como colaborador da empresa; para tanto, usam-se técnicas de teatro, de tai- chi-chuan, técnicas de psicologia e psicodrama no desenvolvimento de inteligência emocional e muitas outras, para aumentar a produtividade, para que o indivíduo se sinta membro-participante da empresa e não um mero empregado, tendo maior autonomia, podendo até mesmo flexibilizar o seu próprio horário de trabalho, etc. Todas essas técnicas de produção de subjetividade estão incorporadas para o bom funcionamento da empresa e para o atingimento de seus objetivos estratégicos na competição com as empresas concorrentes.

Por outro lado, há o processo de produção do consumidor. Uma vez que as grandes empresas têm que competir entre si pelo mercado, quando os produtos objetivamente são muito similares não havendo diferença significativa, como no caso de dois sabonetes, por exemplo, o que faz com o consumidor consuma o produto A ou o produto B é uma peça publicitária que intervém em sua subjetividade, agenciando desejos, anseios e modelizando imaginários para levar o indivíduo a consumir um produto e não o outro. Consideremos um exemplo. Qual é a “mãe de família” que não gostaria de ter, pela manhã, uma mesa farta, com diversos tipos de pães, bolachas, frutas, frios, geléias, biscoitos, sucos, chá, leite e café, tendo ao redor da mesa os filhos felizes e bem dispostos que vão estudar e o marido bem trajado, carregando sua valise, pois está empregado e vai trabalhar em um escritório? E neste momento da peça publicitária ouve-se o bordão “Com Doriana, os elogios são para você! Com Doriana, só para você!”11. Trata-se pois de agenciar a subjetividade para consumir o produto. Neste caso, os sentimentos de fraternidade, carinho, alegria, felicidade e amor passam a ser modelizados como interpretantes, também, da margarina, por obra de uma espiral semiótica publicitária.

Há pois uma produção do consumidor, agenciando-lhe desejos e outros anseios e modelizando-lhes as utopias pessoais. Relógios, cigarros, automóveis, tênis, motocicletas, bebidas, roupas, etc, tudo estará envolvido com prazer, fruição exótica, status, liberdade, poder, sensualidade e outros atributos fascinantes. Se um jovem de classe média possui o tênis da moda terá prestígio em seu grupo de amigos, mas se utilizar um tênis considerado vulgar pelo grupo será ridicularizado. Assim, as empresas capitalistas criam signos que operam na individualização dos consumidores, modelizando- lhes a subjetividade em meio a uma sociedade excludente e individualista.

O capitalismo, portanto, pela ação de suas empresas e seus agentes, modeliza as utopias pessoais sob a sua lógica de dominação e lucro. Ele atua no inconsciente e move o desejo, a angústia e o medo das pessoas; altera a sensibilidade que é modelada sob a lógica do capital e o desejo de alteridade é modelizado para o consumo de produtos, para a posse de objetos, ficando as relações coisificadas - o desejo de ter um namorado é desviado para o desodorante, o desejo da família feliz é desviado para a margarina, o desejo de ter um grupo de amigos é desviado para a posse do tênis, entre outros exemplos. Ele também modeliza esteticamente a subjetividade: cria padrões de belo e feio, o que confere status ou não: que roupa se deve vestir, que objetos o indivíduo deve portar para ser reconhecido como importante pelo grupo em que participa, etc. Ele também modeliza a dimensão ética: mutila a sensibilidade das pessoas frente ao sofrimento alheio, frente à morte, desumanizando-as; altera as noções de justo e injusto, responsabilizando cada pessoa por sua exclusão escondendo-lhe as causas estruturais deste processo. Assim, se alguém fica desempregado é porque não estudou o suficiente para trabalhar com as tecnologias mais complexas, sendo responsabilizado pela seu próprio insucesso; se estuda e consegue emprego, o conseguiu porque estudou; se estuda e não consegue o emprego é porque não estudou o bastante. Essa ideologia, contudo, oculta o fato de que mesmo se todos estudassem o bastante, não haveria emprego para todos, pois não é a qualificação do trabalhador o que gera postos de trabalho. O capitalismo também produz imaginários, gerando certas compreensões ideológicas de mundo, esperanças impossíveis de cumprir-se, utopias alienadas, compreensões fragmentadas e virtuais do real, etc. O capitalismo modeliza também as necessidades humanas, transformando-as em possibilidade de alguns acumularem mais capital, gerando novas necessidades sociais

Portanto, o sistema capitalista, além de ser um sistema econômico, é o sistema semiótico modelizante principal. Ele produz e reproduz conjuntos articulados de signos a partir dos quais tudo é transcodificado. Ele transforma qualquer coisa em valor de troca. A afetividade humana, por exemplo, pode ser transcodificada para vender produtos nas peças publicitárias. A desgraça humana também pode ser transcodificada para ampliar o acúmulo de capital, por exemplo, sendo explorada para ampliar o índice de audiência de um certo telejornal, aumentando o lucro da emissora que cobra mais caro pela inserção dos comerciais entre os blocos de notícias. O capitalismo, inclusive, é capaz de modelizar com seus signos todas as linhas de fuga ou de subversão, colocando tudo a serviço de sua reprodução. Ele consegue sobrecodificar os signos de protesto e recuperá-los em sua espira dominante. A eficiência ou não desse procedimento depende da capacidade dos atores sociais, que geraram os signos que foram modelizados, propagar socialmente um certo conjunto de interpretantes capazes de ressignificar aqueles signos mantendo sua operatividade subversiva da semiose hegemônica em que foram transcodificados. Desse modo, por exemplo, as mídias no Brasil são capazes de transformar Chico Mendes - ecologista e líder político brasileiro, que foi assassinado por latifundiários - em defensor de borboletas e passarinhos, esvaziando o signo político das causas que o levaram a ser dirigente do Partido dos Trabalhadores no Acre, lutando pela aliança dos povos da floresta e pelo socialismo democrático.

Essas modelizações semióticas capitalísticas são possíveis porque a interação humana com os signos é simultaneamente estética e cognitiva. É estética do ponto de vista da sensibilidade; os signos geram em afetos e perceptos; é cognitiva porque resulta em representações e conceitos, mediados pelos elementos fundamentais da semiose que são os interpretantes. Todo signo gera nas subjetividades um conjunto de interpretantes, aquilo que o sujeito aplica ao signo para entendê-lo, frui-lo ou reagir a ele. Esses interpretantes podem ser intelectuais e afetivos, mas também podem ser energéticos - isto é, uma reação orgânica, por exemplo, frente ao grito de que há um incêndio no prédio em que se está. O capitalismo, pois, gera signos e agencia interpretantes; sabe capturar desejos e revoltas, sabe canalizar intensidades subjetivas; em muitos casos essas semioses levam os indivíduos a tomarem o imaginário como real, o virtual como efetivo.

O capitalismo como sistema político pode assumir várias configurações, cada uma das quais terá um jogo de semioses peculiares. Pode ser liberal, fascista ou social-democrata. Contudo, cada modelo destes engendra seus signos, seus imaginários, seus códigos, sendo que todos eles estão centrados no acúmulo de capital em detrimento da realização universal da liberdade e da dignidade humana de cada pessoa, pois o valor de troca passa a ser a mediação geral de equivalência entre todos os entes por ele modelizados. O capitalismo neoliberal, de sua parte, possui uma ideologia peculiar que o justifica; ele agencia utopias coletivas alienadas que jamais se realizarão, como a utopia do livre mercado, por exemplo, ou ainda a satisfação de todos os consumidores em razão da competição entre os produtores e comerciantes12. O que se nota, entretanto, é que quanto mais se desregulamenta o mercado, pior fica a situação dos excluídos13. A semiose neoliberal mobiliza desejos e anseios das pessoas levando-as a terem comportamentos políticos favoráveis aos interesses dos grupos economicamente dominantes - seja ecoando mensagens, através das mídias, em favor das reformas estruturais conforme os parâmetros do Consenso de Washington, seja apoiando politicamente grupos e partidos com elas comprometidos. Em síntese, essa atual configuração de capitalismo neoliberal engendra regimes globalitários. Produzindo subjetividades, essa forma de capitalismo não apenas se implanta como modelo econômico, mas como semiose hegemônica, que agencia e hegemoniza amplos segmentos sociais em defesa de projetos que excluem a maioria, embora essa maioria pense que esses projetos vão atender os seus interesses.

4. Os Regimes Políticos Globalitários

A globalização (os movimentos econômicos internacionais descritos anteriormente) tem capturado em sua espira a mundialização (o fenômeno de interferência cultural entre os povos) e a planetarização (a interferência política entre países e coletividades a nível internacional). Assim tanto mentalidades, hábitos, estilos de comportamento, usos e costumes, quanto pressões sobre políticas governamentais e legislações são modelizados com a finalidade de reproduzir os ciclos do capital, seja - por exemplo - sob ações publicitárias, seja sob ações efetivamente produtivas ou reprodutivas.

Esta captura potencializada pelos atuais desenvolvimentos tecnológicos e de gerenciamentos introduz um vetor totalitário não mais em escala nacional, mas sim global, podendo ser denominado como globalitário - nas palavras de Paul Virílio. Como a mundialização e a planetarização são capturadas sob a lógica globalitária, a digitalização dos mecanismos culturais em larga escala, modelizados sob as semióticas do capital, pode transformar as infovias em mecanismos para um novo tipo de dominação, embora nelas também ocorram ações de resistência.

Não se trata de um imperialismo colonial, nem de um imperialismo político de estilo nazista ou fascista que levaram à Segunda Guerra Mundial. Argumenta Paul Virílio que “com a globalização, o que existe é a possibilidade de um totalitarismo definitivo, um totalitarismo sem ‘exteriores’. Um totalitarismo global.” - para o qual o autor propõe o termo globalitário14. Como escreveu o jornalista Fernando de Barros e Silva, “ao contrário do totalitarismo cujo sucesso se devia à repressão a toda forma de oposição ou liberdade de expressão, os ‘regimes globalitários’ incentivam ao máximo a parafernália democrática (eleições regulares, imprensa livre, instituições saudáveis, etc.), ao mesmo tempo em que a transformam num ritual vazio, sem qualquer efeito sobre o curso do mundo.”15

Conforme Ignacio Ramonet, diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, os regimes globalitários são um outro tipo de totalitarismo; eles “repousam sobre o dogma da globalização e do pensamento único e não admitem nenhuma outra política econômica, subordinam os direitos sociais do cidadão à razão competitiva, e abandonam aos mercados financeiros a direção total das atividades da sociedade dominada.”16 Segundo Ramonet, esses regimes favoreceram nos últimos vinte anos “... a monetarização, a desregulamentação, o livre comércio, o livre fluxo dos capitais e as privatizações massivas. Os responsáveis políticos têm permitido a transferência de decisões capitais em matéria de investimento, de emprego, de saúde, de educação, de cultura, de proteção do ambiente da esfera pública para a esfera privada. Isto explica porque hoje, das duzentas maiores economias do mundo, mais da metade sejam multinacionais e não países.”17

Frente a este regime globalitário - que provoca a exclusão econômica e social das maiorias e a implementação de políticas sob uma nova forma de autoritarismo - torna-se necessário assumir uma clara posição de defesa do exercício ético das liberdades pública e privada em prol de uma democracia substantiva.

5. Um Possível Significado para Ética e Liberdade

O objetivo da ética é preservar e promover as liberdades pública e privada de modo tal a possibilitar a maior realização possível das diversas singularidades humanas que não sejam contraditórias à própria promoção da liberdade.

A liberdade, entretanto, não é uma qualidade transcendental ou metafísica, ou uma mera idéia suposta como condição da responsabilidade individual pela ação moral. Pelo contrário, a liberdade é exercício histórico, concretamente situado em um contexto, em uma época, sob uma cultura, atravessada por relações de poder micro e macro- políticas.

Por ser de tal modo histórica, a liberdade supõe condições materiais, políticas, educativo-informacionais e também éticas para se realizar como manifestação de cidadania. Consideremos brevemente estas condições.

Sem condições materiais não há como se a realizar a liberdade. A liberdade para comer só existe quando há o alimento disponível para comer. Aquele que não dispõe de comida, não possui liberdade para comer. A liberdade para trabalhar supõe condições materiais que a possibilitem. Sem dispor de terra, um agricultor não é livre para produzir com seu próprio trabalho. Sem dispor de uma casa, um apartamento ou um abrigo, não existe a liberdade para morar dignamente como ser humano, mas a imposição de viver ao relento. Sem as mediações materiais para preservar a saúde não há a liberdade para preservar o corpo da dor, do sofrimento e da morte evitável. Quem não dispõe de ar, não tem liberdade para respirar - como um torturado, cuja cabeça é mergulhada em uma tina de água pela ação do torturador que deseja obter dele certas informações.

Sem condições políticas, que assegurem a autonomia privada e pública, não há como preservar, promover ou realizar a liberdade dos indivíduos e da sociedade. Sem a possibilidade de participar, opinar, decidir e transformar as micropolíticas do cotidiano na vida privada e as macro- políticas - que envolvem inúmeras esferas de organização social e governamental - a liberdade fica mutilada, impedida de realizar-se de modo cidadão. O machismo, o racismo, a discriminação de índios e pobres e tantos outros preconceitos justificam ideologicamente micropolíticas autoritárias que negam a liberdade de mulheres, negros e demais segmentos discriminados. Também o tecnicismo, o economicismo e tantas outras ideologias que se desdobram de conceitos arcaicos sobre o valor epistemológico dos enunciados científicos contribuem para a negação da liberdade pública, negando o valor da participação popular na definição das macro-políticas governamentais nas diversas esferas.

Contudo, mesmo tendo as condições políticas e materiais para concretizar suas escolhas, se as pessoas não dispuserem de informações suficientes e de qualidade para as suas decisões ou não souberem como refletir adequadamente sobre as informações de que dispõem, o exercício de sua liberdade fica prejudicado. Portanto, sem a democratização da educação e da informação, a cidadania fica obliterada, pois embora pareça haver liberdade no ato de escolher, as escolhas acabam sendo induzidas por aqueles que selecionam e fornecem algumas informações e não outras - pois como nos ensinou Peirce, todo signo representa apenas parcialmente seu objeto dinâmico18.

Por fim, sem a condição ética, o exercício da liberdade de alguns pode aniquilar a liberdade de muitos ou vice- versa. A moral e o direito que impõem certos padrões para o comportamento pessoal e social que negam às pessoas a realização de sua liberdade - de sua condição feminina, homossexual, negra, indígena, infantil, etc. - ou que reproduzem privações sociais, obliteram a realização das liberdades públicas e privadas. A ética que preserva, promove ou realiza a liberdade se assenta no desejo de que o outro possa viver eticamente sua liberdade o mais plenamente possível e no imperativo de promovê-la desse modo. Assim, a liberdade privada não pode realizar-se aniquilando as condições de possibilidade da liberdade pública; e esta, por sua vez, deve respeitar qualquer livre exercício humano da liberdade privada, desde que este não inviabilize outros exercícios de liberdade pública e privada eticamente orientados.

6. A negação das liberdades públicas e privadas sob o capitalismo atual.

O que vemos nas sociedades contemporâneas na maior parte do planeta, entretanto, é a negação da liberdade pública e da liberdade privada das maiorias em nome da liberdade privada dos que dispõem de capital. Tal negação é tanto maior quanto mais se aplica o neoliberalismo. Os países que o acolhem passam a implementar políticas que cerceiam o exercício ético da liberdade pelas maiorias19. Esse totalitarismo global, esse Regime Globalitário, esvazia as instâncias políticas da autonomia pública, transformando o Estado em refém do capital financeiro e dos mega- conglomerados - como demonstram as recentes crises no México, Argentina, Tailândia e Hong Kong - tendo esta última repercutido no mundo todo.

Consideremos, neste quadro, entretanto, apenas duas liberdades fundamentais: comer e viver do próprio trabalho. Segundo o último estudo das Nações Unidas para o Desenvolvimento, aproximadamente 1,3 bilhões de pessoas no mundo todo vivem na pobreza absoluta, com menos de um dólar por dia, perfazendo 22,8% da população do planeta, sendo que o número de pobres cresce em torno de 25 milhões por ano20. Mas o volume da riqueza mundial é cada vez maior e mais concentrado, a tal ponto que, as 358 pessoas mais ricas do mundo em 1993 possuíam ativos que, segundo ONU, superavam a soma da renda anual de países em que residiam 2,3 bilhões de pessoas, isto é, 45% de toda a população do planeta. Outra estatística revela que “a riqueza combinada dos 447 bilionários do planeta é maior do que a renda de metade da população mundial” 21 Entre as 100 maiores economias do mundo, 50 são de mega-empresas.

Quanto ao desemprego, por sua vez, conforme documentos da OIT, este atingiu em 1994 cerca de 820 milhões de trabalhadores no mundo; isto é, aproximadamente 30% da força de trabalho mundial estava desempregada.22 Nos últimos anos esse número continua crescendo em termos absolutos. Nos países em que ele diminuiu - como nos Estados Unidos - ocorreu uma forte degradação do poder de compra dos salários e uma precarização das relações de trabalho.

O capitalismo atual, de fato, vem suprimindo e fragilizando mediações garantidoras das liberdades públicas e privadas, sejam mediações materiais, políticas, educativo- informacionais ou éticas. O modelo capitalista neoliberal globalitário propaga: a) a concentração dos recursos materiais e a exclusão das maiorias, b) o controle hegemônico do poder político pelos segmentos que controlam o capital, virtualizando cada vez mais a democracia, c) a saturação de informações e a fragilização da autonomia crítica da sociedade; d) uma moral individualista centrada na vantagem privada (em que as relações sociais ficam subordinadas ao mercado) e que renega a promoção da liberdade alheia, quando esta não contribui, ainda que mediatamente, para a realização do acúmulo de riqueza sob a ordem neoliberal.

7. O socialismo democrático como alternativa ao capitalismo globalizado

As grandes utopias coletivas que visam satisfazer as quatro condições do exercício da liberdade - que anunciamos anteriormente - necessitam expressar-se como projetos políticos que combatem toda forma de exploração, dominação e injustiça. Estes projetos são uma crítica real ao modelo neoliberal que, ao colocar o acúmulo do capital por alguns acima do direito público de realização da liberdade, prega um certo individualismo que torna as pessoas indiferentes ao drama dos que são excluídos do trabalho, do consumo e do conhecimento, entre tantas outras exclusões. Uma alternativa política ao modelo neoliberal é o projeto político socialista, democrático e popular, que vem sendo aprimorado teoricamente por um movimento de acúmulo reflexivo de toda a esquerda mundial. Tal projeto socialista é tanto expressão de uma concepção ecológica de preservação da biodiversidade e de interferência equilibrada nos ecossistemas, quanto expressão de uma concepção antropológica de promoção da diversidade cultural, respeitando as singularidades dos diversos povos e grupos, quando não são incompatíveis com a promoção universal da liberdade e da dignidade humana. Este projeto, que já está delineado, articula desenvolvimento com distribuição de renda, promovendo a geração de empregos e incorporando ao mercado consumidor as massas atualmente excluídas. Há, pois, uma alternativa democrática a este modelo globalitário neoliberal, a este dogma que o pensamento único pretende impor a todos.

Conclusão

O capitalismo globalizado fragiliza, cada vez mais, o exercício das liberdades pública e privada da maioria da população mundial. Sob a lógica do acúmulo privado de capital, a democracia vai sendo enfraquecida e subsumida por um regime globalitário, gerenciado por uma elite mundial que decide onde, quando e sob quais condições investir seu capital. Essa elite é capaz de promover alterações nas hegemonias políticas e legislações nacionais ou modelizar semioticamente elementos culturais particulares em função de seus interesses globais através de processos de produção de subjetividades. Assim, sob o capitalismo globalizado, a garantia das condições fundamentais para o exercício da liberdade - condições materiais, políticas, educativo- informacionais e éticas - fica prejudicada. Isso é perceptível ao considerarmos o aumento da pobreza, do desemprego, da precarização das relações de trabalho e a fragilização das políticas sociais na maioria dos países.

Destacamos que esse movimento hegemônico do regime globalitário perpassa o conjunto das relações sociais, políticas e culturais das sociedades nas quais é implantado e implementado. Consideramos que os poderes constituídos do Estado - o legislativo, o executivo e o judiciário - atuam hegemonicamente na implantação desse projeto e que as mídias de massa - graças ao aprimoramento das tecnologias comunicativas e das estratégias de produção de subjetividades - desempenham um papel decisivo para que esse movimento hegemônico possa cumprir-se. Por outra parte, o movimento de resistência democrática, que enfrenta esse modelo neoliberal globalitário, perpassa a sociedade civil e a sociedade política que se interpenetram. Assim, tanto no legislativo, no executivo, no judiciário, quanto nas mídias existem ações que se opõem a esse modelo, que já se encontra em fase avançada de implantação na América Latina.

Diferentemente dos regimes totalitários clássicos, os regimes globalitários necessitam que uma oposição exista e que ela apareça em ações a serem veiculadas pelas mídias. É fundamental a ocorrência de eleições - para que o eleitor possa escolher entre várias opções - e a existência de uma imprensa crítica. É fundamental que denúncias sejam feitas pela oposição, que parlamentares corruptos sejam cassados, que manifestações sociais ocorram protestando contra os governos, etc. Nada disto, entretanto, sob a estratégia globalitária deverá resultar em entraves para a implementação das políticas econômicas que é o objetivo maior do regime. Tudo o que possa dificultar a transferência do capital acumulado no país dependente ao controle dos megaconglomerados internacionais será enfrentado com os mais diversos procedimentos semióticos, políticos ou econômicos. Esta é, simultaneamente, a grande força do regime globalitário, mas também a sua fraqueza, pois ele necessita preservar espaços em que uma contra-hegemonia possa se exercer, embora deva contê-la, impedindo que inviabilize o próprio projeto hegemônico. Assim se é possível que os trabalhadores, em países de regime globalitário, possam sair em protesto pelas ruas e possam eleger seus representantes, por outro lado coage-se tais representantes a não implementarem políticas contra-hegemônicas ao globalitarismo capitaneado pelos megaconglomerados, pois se o fizerem, os capitais internacionais se vão, o FMI e o Banco Mundial não fornecem mais financiamentos e o resultado seria a tragédia econômica dos países.

Contudo, o cenário pode ser outro quando nos espaços contra-hegemônicos se consolida não apenas a resistência, mas se inicia a implantação, pelo poder público, de um projeto alternativo, democrático e popular, introduzindo mecanismos de distribuição de renda, de promoção de atividades produtivas que gerem postos de trabalho, mecanismos de acesso a informações qualitativas e relevantes, bem como, para o desenvolvimento da habilidade em articulá-las e compreendê-las. Se os milhões de excluídos puderem produzir com as tecnologias que já são socialmente disponíveis, se tiverem condições de satisfazer medianamente as condições materiais ao exercício de sua liberdade, se estiverem envolvidos politicamente com a consolidação de um projeto democrático substancial, se tiverem a habilidade de criticar as semioses publicitárias que conduzem ao consumo alienado e se forem capazes de consumir com a preocupação de garantir os postos de trabalho gerados por estas políticas, inicia-se, então, um movimento de acúmulo de poupança interna e a geração de um forte mercado consumidor. Progressivamente, o desenvolvimento de novas tecnologias adequadas ao potencial geoestratégico nacional, a redução progressiva da jornada de trabalho e a promoção da distribuição de renda e o crescimento da poupança interna vão reafirmando a soberania nacional - diminuindo as pressões das dívidas - e ampliando as mediações ao exercício das liberdades públicas e privadas. O consumo não alienado ocorre com a compreensão de que nele a produção encontra sua finalidade ou seu acabamento e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema, isto é, de que o consumo é a ultima etapa de um processo produtivo e que as escolhas de consumo podem influenciar tanto na geração ou manutenção de postos produtivos em uma sociedade em que se garante a autonomia pública, quanto na preservação de ecossistemas, na reciclagem de materiais, no combate à poluição ou na promoção do bem estar coletivo da população de sua comunidade, de seu país e do planeta. De outra parte, a internacionalização desse modelo - em que o trabalho e o consumo alienados dão lugar ao trabalho e ao consumo voltados a garantir o bem estar da comunidade e do país - poderá permitir que tecnologias sem pagamentos de royalties ou sem direitos de cópia sejam apropriadas por outras populações nas mesmas condições, em vistas da realização do mesmo projeto socialista e democrático. A complementariedade das economias internacionais, de suas poupanças se faria, então, em função da universalização das liberdades e não em favor do acúmulo da maior parte da riqueza do planeta por algumas centenas de milhares de pessoas. Criar-se-ia mecanismos públicos - de caráter estatal ou não - como elementos mediadores desses movimentos contra-hegemônicos de capitais. Se os fundos de pensão atualmente existentes, por exemplo, fossem gerenciados - por uma decisão política dos trabalhadores que os possuem - não sob a lógica da globalização mas de uma internacionalização econômica solidária, eles poderiam fomentar significativos movimentos de geração emprego com distribuição de renda.

Quando falamos de um poder público, referimo-nos a algo maior que o Estado no sentido estrito. A consolidação de um poder público somente é possível como consolidação de um poder popular, isto é, como um bloco de forças sociais que, atuando em diversas esferas da sociedade civil e da sociedade política, consolide uma hegemonia alternativa ao globalitarismo vigente. Para que esse bloco de forças sociais possa avançar ele necessita realimentar sua utopia coletiva a partir das singularidades emergentes nos diversos segmentos sociais, ampliando os espaços de realização da liberdade pública, considerando as quatro mediações já analisadas.

Na construção dessa contra-hegemonia, entretanto, é necessário considerar os elementos de produção de subjetividade e de composição das utopias pessoais com as utopias coletivas, sem o que a liberdade privada pode aniquilar a liberdade pública ou a liberdade pública pode se realizar em detrimento do legítimo exercício ético da liberdade privada. No cerne desse movimento contra- hegemônico está a afirmação de eixos de luta, articulados ao socialismo democrático e ecológico, que se apresenta como configuração alternativa de sociedade ao modelo neoliberal. Para o avanço deste movimento contra-hegemônico, é necessário promover a realização das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas como meio e fim da organização das relações sociais, bem como agenciar interpretantes energéticos e afetivos que singularizem a experiência histórica cotidiana do face-a-face com os excluídos e marginalizados, movendo o conjunto da sociedade a ações que visem superar as causas estruturais da exclusão e marginalização. Trata-se de uma outra forma de conceber a organização da sociedade, em que a liberdade privada não pode negar a liberdade pública ou vice-versa, quando ambas se orientam eticamente. Trata-se, pois, da afirmação de uma sociedade em que ambas as liberdades se promovam reciprocamente para a realização, a mais plena possível, de todas as valiosas singularidades de cada ser humano, de cada cultura, de cada povo.

 

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Notas

1 Presidente do IFIL - Instituto de Filosofia da Libertação, com sede em Curitiba, PR, Brasil.

2 HARRIS, Laurence in BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988, p. 285

3 Na atual economia observa-se que as várias formas de extração de mais-valia (absoluta, relativa e virtual) podem coexistir. A acumulação de mais-valia virtual é possível pela ocorrência de fenômenos de reprodução virtual de produtos finais intangíveis - sejam softwares, por exemplo, que são conhecimentos criativamente digitalizados em linguagens binárias de programação, sejam informações ordenadas significativamente pelo trabalho intelectual humano passíveis de direitos autorais, como patentes sobre códigos genéticos alterados por engenharia genética, entre outros. Ora, como o processo produtivo se conclui no consumo final do produto, no caso da indústria de software o montante do excedente produzido está diretamente ligado à quantidade de cópias reproduzidas e vendidas, o que depende diretamente, por sua vez, do valor de uso do produto comparado a outros. O que importa destacar é que o volume do capital acumulado por mediação desse mecanismo de extração de mais-valia virtual cresce a cada ano e que ele resulta, em sua base, da exploração do trabalho intelectual humano. Apenas como exemplo, analisemos o fato de que o Windows 95 vendeu 45,8 milhões de cópias até dezembro de 1996, cujos usuários foram registrados pela Microsoft. O produto comercializado é o programa, que resultou do trabalho intelectual de uma grande equipe que o produziu, uma única vez, como um valor de uso. Não há necessidade do mesmo volume de tempo e de trabalho intelectual para reproduzir uma segunda cópia. Qualquer pessoa, clicando um mouse, pode fazer novas cópias daquele programa. Assim, toda a mais-valia arrecadada com as 45,8 milhões de reproduções do programa se deve ao trabalho originário de sua produção. Virtualmente, entretanto, esta mais-valia pode continuar se avolumando enquanto outro produto com similar valor de uso não se sobrepuser a este, que continuará, assim, sendo multiplicado e comercializado. Concretamente, a reprodução do programa em disquete também supõe algum trabalho que possibilita comercializar, sob essa forma, aquele software. Sobre esse trabalho, também pode ocorrer exploração. Contudo, com o aprimoramento das infovias, a tendência é que este trabalho de reproduzir o programa se resuma à atividade exercida pelo próprio usuário ao fazer um download do arquivo que deseja adquirir, após ter realizado um pagamento digital pela cópia, como já vem ocorrendo atualmente a partir de muitos websites.

4 Um significativo exemplo dessa reprodução operada pelo consumidor ocorreu no final de agosto de 1996, na disputa entre Microsoft e Netscape que produzem browsers necessários à navegação na Internet, quando a Microsoft lançou a terceira versão do Explorer 3.0, e o distribuiu gratuitamente através da rede. Somente na primeira semana um milhão de usuários - espalhados por todo planeta, mas conectados à rede - copiaram o programa, isto é, fizeram o seu download.

5 Analisando a produção econômica e a produção da subjetividade no sistema capitalista, Félix Guattari destacou a ocorrência de uma semiotização das relações de poder em ambos os níveis, que são interativos. Os sistemas de signos que regem diversos domínios da vida ficam modelizados sob os códigos do Capitalismo Mundial Integrado. O capital, afirma Guattari, “é muito mais que uma simples categoria econômica relativa à circulação de bens e à acumulação dos meios econômicos. É antes uma categoria semiótica que se refere ao conjunto dos níveis da produção e ao conjunto dos níveis de estratificação dos poderes” E conclui: “é porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos Equipamentos Coletivos, pelos especialistas de todo tipo, que não podemos mais nos contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos de entidade intra-psíquica, como fazia Freud...”. Félix Guattari. Revolução Molecular, ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 213 e p. 167. Assim, sob os códigos do capital territorializa-se a ética, a política, a economia e a maioria dos órgãos do corpo social; modeliza-se a relação dos sujeitos entre si e com os objetos, produzindo-se-lhes significações, sentidos e códigos de interação. Os mass media são mediações necessárias ao movimento hegemônico desta sobrecodificação semiótica.

6 Sobre isso veja-se Euclides André MANCE, “Realidade Virtual - A conversibilidade dos signos em Capital e Poder Político” in Lumen Vol. 2 N.4 junho 1996, p. 75-135 ( www.milenio.com.br/mance/real.htm )

7 Veja-se Karl MARX. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse) 1857~1858. México D.F. Editora Siglo Veintiuno, 1972. Vol. 2 (Caderno VII), p. 231-232

8 Veja-se Viviane FORRESTER. O Horror Econômico. São Paulo, Editora UNESP, 1997.

9 Para uma abordagem parcial e capitalisticamente otimista desta transformação tecnológica veja-se: John EATON e Jeremy SMITHERS. Tecnologia da Informação. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1984.

10 André GORZ. Metamorfosis del Trabajo - Busqueda del Sentido - Crítica de la Razón Económica. Editorial Sistema.

11 Doriana é uma marca de margarina vendida no Brasil.

12 Veja-se Franz J. HINKELAMMERT. “Ética do discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica”. in Antonio SIDEKUM. Ética do discurso e filosofia da libertação - Modelos complementares. São Leopoldo, Ed. Unisinos. p. 73 a 116. Especialmente o item 1. A teoria da concorrência perfeita. p. 75 e a crítica sobre A aproximação assintótica da realidade à sua situação ideal, p. 80s

13 Veja-se nosso artigo: “Quatro teses sobre o neoliberalismo.” Revista Filosofazer, Passo Fundo, IFIBE, ano VI n. 11, p. 83 a 103, 1997.

14 “O sistema globalitário”. Folha de São Paulo, 09-02-97, pp. 5-9

15 BARROS E SILVA, Fernando de. “Publicitários brincam de democracia na TV”. Folha de São Paulo, 2-03-97 , Tvfolha, p.2

16 “Regimes globalitários substituem regimes totalitários”. Cepat Informa 3(26):8 25fev97 Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores, Curitiba. PR.

17 Cepat Informa 3(26):9 25fev97 Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores, Curitiba. PR.

18 Charles Sanders PEIRCE. Semiótica e Filosofia. Editora Cultrix, São Paulo, 1972

19 Veja-se Euclides André MANCE. “Quatro Teses Sobre o Neoliberalismo”. Revista Filosofazer. Passo Fundo, IFIBE, Ano 6, Número 11, 1977, pp. 83-103

20 Folha de São Paulo, 17-10-97, p.1-14

21 Pepe ESCOBAR. “Os donos do mundo”. Gazeta Mercantil, 21 a 23-02-97, Leitura de Fim de Semana, p.1

22 Inácio NEUTZLING. A Transformação Político-Econômica do Capitalismo no Final do Século XX. CEPAT, Curitiba, 1995 p. 12

 

Referências Bibliográficas Básicas

BARROS E SILVA, Fernando de. “Publicitários brincam de democracia na TV”. Folha de São Paulo, 2-03-97 , Tvfolha, p.2

BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988

EATON, John e SMITHERS, Jeremy. Tecnologia da Informação. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1984.

ESCOBAR, Pepe. “Os donos do mundo”. Gazeta Mercantil, 21 a 23- 02-97, Leitura de Fim de Semana, p.1

FORRESTER, Viviane. O Horror Econômico. São Paulo, Editora UNESP, 1997.

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NEUTZLING, Inácio. A Transformação Político-Econômica do Capitalismo no Final do Século XX. CEPAT, Curitiba, 1995 p. 12

PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica e Filosofia. Editora Cultrix, São Paulo, 1972


Globalitarismo e Subjetividade - Algumas considerações sobre ética e liberdade.
Conferência no Instituto de Formación Docente, Salto, Uruguai, 17-05-98
www.milenio.com.br/mance/global.htm


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