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Questões Éticas no Mundo Globalizado

Euclides André Mance
IFIL, novembro, 1998

Introdução

Contemporaneamente, o mundo assiste uma nova revolução tecnológica que não apenas incrementou a produtividade econômica, provocou alterações nos mecanismos de hegemonia política e cultural nas sociedades, como também rompeu os limites, até então estabelecidos, entre o real e a fantasia. A cada dia os cientistas anunciam novas façanhas que pasmam o grande público. As mídias simplificam as análises e a imaginação de espectadores é alçada a vôos mirabolantes de toda ordem. As populações, atingidas pela profusão de mensagens replicadas através das mídias, perdem os contornos entre o que é ou não possível, o que é ou não real. O mundo passa a viver sob uma nova ontologia mágica: parece que quase tudo o que possa ser cientificamente concebido também possa ser realizado.

Se efetivamente nem tudo o que pode ser imaginado possa ser realizado, por outra parte nem tudo o que pode ser realizado com o auxílio desses novos conhecimentos e tecnologias deve ser efetivado. Nestes casos, quais serão os critérios a serem adotados a fim de estabelecer o que é ou não permitido ao cientista em suas pesquisas, aos empresários em sua disputa por mercados, às redes de televisão na disputa por audiência, etc?

Frente aos dados do relatório da ONU sobre desenvolvimento humano, publicado em 1998, considerando que os 20% mais ricos da população mundial são responsáveis por 86% do total de gastos em consumo privado, ao passo que os 20% mais pobres respondem apenas por 1,3%, e considerando que mais de um bilhão de pessoas não tem suas necessidades básicas de consumo satisfeitas (1), a pergunta pela referência ética ao que se deve fazer nos exercícios de liberdade, privados e públicos, ganha contornos ainda mais dramáticos. É ético, frente a esse quadro de exclusão social, que as 358 pessoas mais ricas do mundo, ainda em 1993, já possuíssem ativos que superavam a soma da renda anual de países em que residiam 2,3 bilhões de pessoas, isto é, 45% de toda a população do mundo? (2)

Sob os quadros da globalização, os neoliberais argumentam que o mercado é esfera básica do contrato social e que é a partir dele que a sociedade global deve ser reorganizar. Deixando-se que o mercado funcione livremente, por sua própria conta e risco, a riqueza econômica seria multiplicada e as necessidades humanas atendidas. O mundo todo viveria uma nova era de paz e prosperidade. Respeitando-se as leis do mercado o bem estar social estaria garantido a todos os seres humanos.

Assim, uma vez que a política fica subordinado ao mercado, a ética - segundo o neoliberalismo - subordina-se às leis praxeológicas que, sendo respeitadas integralmente, permitiriam a expansão máxima das liberdades. Como o que se vê, após o avanço dessa onda neoliberal, é a exclusão de gigantescas parcelas da humanidade das condições elementares ao bem viver enquanto uma pequena minoria acumula a maior parte da riqueza mundial, cabe pois investigarmos o caráter dessas leis praxeológicas que regulariam o livre mercado, avaliando se é legítimo subordinar a tais leis as obrigações morais, ou se pelo contrário a política deve determinar a economia e, portanto, se a ética deve ser considerada uma instância superior, a partir da qual seja estabelecido um conjunto de regras legais que imponha limites aos jogos de mercado.

Com este objetivo, apresentaremos na primeira parte do presente estudo uma exposição acerca dos pressupostos do neoliberalismo, formulados por Ludwig Von Mises, que estão na base de todas as vertentes neoliberais que se propagam atualmente pelo planeta. Isso nos permitirá criticar o neoliberalismo em seus fundamentos mais "sagrados", isto é, questionar a vigência das insuspeitas leis do mercado. Na segunda parte, apresentamos uma outra concepção do exercício da liberdade, refletindo sobre suas condições de possibilidade, materiais, políticas, educativo-informacionais e éticas.

Assim, compreendendo a discussão sobre a ética como uma reflexão sobre os critérios para o exercício das liberdades públicas e privadas, consideramos duas posições acerca de tal exercício, a partir das quais analisamos os critérios apresentados.

 

1. O Neoliberalismo - As Leis Praxeológicas e a Ética do Livre Mercado

Nos anos 30 Ludwig Von Mises sistematizou uma certa compreensão de liberalismo que foi posteriormente retomada e reelaborada por diversos outros autores (3). No final daquela década, mais precisamente em 1938, ocorreu na França um encontro de intelectuais liberais, o Colóquio Walter Lippman, em que se buscou adaptar o modelo liberal às condições do capitalismo na época. Entre outras inovações, afirmavam que o Estado deveria interferir na economia, não como agente produtivo, mas como mantenedor do equilíbrio dos preços através de uma estabilização financeira e monetária que seria obtida graças a políticas anti-inflacionárias e cambiais. Seis anos depois Friedrich August von Hayek escreve O Caminho da Servidão, combatendo os limites impostos pelos estados aos mecanismos de mercado. Recentemente, no final dos anos 80 e início dos anos 90, as teses neoliberais voltaram a projetar-se internacionalmente com grande força estando na base dos ajustes macroeconômicos nacionais, subordinando os países aos fluxos dos capitais internacionais.

As análises de Mises acerca da liberdade podem ser consideradas em dois momentos. No primeiro, o autor parte de uma axiomatização em que considera as ações humanas como estando submetidas a leis naturais, praxeológicas e civis - mostrando que a liberdade não tem como transgredir as duas primeiras e que deve ser restringida pela terceira quando os efeitos da conduta do indivíduo prejudicam a sociedade. No segundo momento, ele busca justificar o livre mercado a partir do que já havia deduzido anteriormente.

Para o autor o conceito de liberdade somente tem sentido por se referir a relações interhumanas, isto é, trata-se de uma categoria social, não havendo sentido em falar-se, portanto, de liberdade natural. Enfatizando o sentido praxeológico do termo, destaca que este "... refere-se à situação na qual um indivíduo tem a possibilidade de escolher entre modos de ação alternativos." (4) Ou dito de outro modo, "um homem é livre na medida em que lhe seja permitido escolher os seus fins e os meios a empregar para atingi-los" (5). Para o autor, contudo, a liberdade de qualquer pessoa é sempre restringida tanto pelas leis da natureza quanto pelas leis da praxeologia, não podendo o homem pretender atingir fins incompatíveis entre si. Se buscar fruir prazeres que naturalmente deixam seqüelas no corpo e na mente, o homem não terá como delas fugir. Igualmente, sob o aspecto praxeológico,

"o homem não pode, ao mesmo tempo, pretender ter as vantagens decorrentes da colaboração pacífica em sociedade, sob a égide da divisão do trabalho, e permitir-se uma conduta que inevitavelmente terminará por desintegrar a sociedade. Tem necessariamente de escolher entre o respeito a certas regras que tornam a vida em sociedade possível ou a pobreza e a insegurança, se preferir viver ‘perigosamente’, num estado de guerra constante entre indivíduos independentes. Esta é uma lei tão exata na determinação do resultado da ação humana como um todo, quanto o são as leis da física." (6)

Segundo Mises, embora ambas as classes de leis sejam auto-impositivas, os efeitos de seu descumprimento são diferentes. Um homem que ingere veneno, prejudica a si próprio. Já um homem que rouba, prejudica a ordem social em seu todo, pois enquanto beneficia a si próprio no curto prazo, prejudica a toda a sociedade no longo prazo. Assim, "se a sociedade não obstar tal conduta, esta não tardará a se generalizar, pondo um fim à cooperação social e aos benefícios que daí derivam para todos." (7) O desrespeito às leis praxeológicas tende a levar à sociedade a uma situação de guerra de todos contra todos. Desse modo, para que se alcance a paz é necessário o "... estabelecimento de um sistema no qual o poder de recorrer à ação violenta é monopolizado por um aparato social de compulsão e coerção, e a aplicação deste poder em qualquer caso individual é regulada por um conjunto de regras - as leis feitas pelo homem, distintas tanto das leis da natureza como das leis da praxeologia." (8) A este aparato se denomina governo. Desde essa abordagem destaca o autor que

"os conceitos de liberdade e servidão só fazem sentido quando se referem à forma de funcionamento do governo. Seria impróprio e desorientador dizer que um homem não é livre porque, querendo permanecer vivo, não pode escolher livremente entre beber água e beber cianureto de potássio. Seria também inadequado dizer que um homem não é livre porque a lei impõe sanções ao seu desejo de matar um outro homem e porque a política e os tribunais são encarregados de aplicar estas sanções. Na medida em que o governo - o aparato social de compulsão e opressão - limita o emprego da violência e da ameaça de violência à supressão e prevenção de atividades anti-sociais, prevalece aquilo que, razoável e significativamente, pode ser chamado de liberdade. (...) Assim, podemos definir liberdade como o estado de coisas no qual a faculdade de o indivíduo escolher não é mais limitada pela violência do governo do que o seria, de qualquer forma, pela lei praxeológica.(...) É isso que deve ser entendido quando se define liberdade como a condição de um indivíduo no contexto de uma economia de mercado. Ele é livre no sentido em que as leis e o governo não o obrigam a renunciar à sua autonomia e autodeterminação em maior medida do que o obrigaria, inexoravelmente, a lei praxeológica. Priva-se apenas da liberdade animal de viver sem qualquer preocupação com os outros seres da sua própria espécie." (9)

Se enfatizarmos que um homem é livre na medida em que pode escolher os seus fins e os meios a empregar para atingi-los, teremos que concluir que Mises considera a liberdade como um atributo subjetivo. Em outras palavras a liberdade de um homem não significa poder realizar suas escolhas em seu relacionamento interhumano, mas tão somente escolher. O torturado, sob esse aspecto, é livre na medida em que pode escolher sair da prisão e viajar para um país longínquo em que possa viver com segurança, sem fornecer qualquer informação desejada pelo torturador. Embora possa escolher o fim (por-se a salvo) e o meio (viajar ao exterior), contudo, não o pode realizar.

Por outra parte, se enfatizarmos a possibilidade de escolher entre modos de ação alternativos teríamos que considerar que se não existem modos de ação alternativos possíveis para atingir um determinado fim o homem não seria livre em relação a tais propósitos. Não se pode escolher o que não é possível realizar. Nesse caso, viajar para um país distante não seria um modo de ação factível, não havendo a possibilidade de escolhê-lo. Restaria então a possibilidade de esperar que uma força externa intervenha na situação ou suicidar-se para abreviar o sofrimento. Assim, o problema da conceituação da liberdade implica em considerar o contexto em que ela se exerce e, portanto, restringir a escolha aos modos de ação alternativos que sejam possíveis em uma situação concreta. Mas se o que é ou não possível em uma relação interhumana depende das escolhas dos demais, então estamos na situação de que a liberdade de um somente pode ser exercida dependendo de como o outro exerce sua liberdade possibilitando que algum modo de ação alternativo possa ser ou não efetivado. Como os modos de ação dependem, em geral, de mediações materiais, têm-se que concluir que o modo como alguém dispõe de certas mediações materiais nas relações interhumanas promove ou nega a liberdade dos demais. Eis porque Mises destacará a necessidade das leis civis e da repressão aos que a descumprem, especialmente considerando o direito de propriedade.

Colocamos a definição de liberdade de Mises à prova nesta hipotética situação dramática de tortura para salientarmos a sua fragilidade. Qualquer das duas ênfases destacadas - tanto na escolha quanto nos modos de ação alternativos - se mostra incapaz de salvá-la. Se não se pode negar que a liberdade supõe uma dimensão subjetiva de avaliação e opção, por outra parte sem a possibilidade material de que as mediações escolhidas possam ser efetivadas tendo em vista atingir os propósitos eleitos, haverá pouca diferença entre liberdade e fantasia. Se o exercício da liberdade supõe a imaginação, que permite construir vários cenários sobre uma mesma situação, por outra parte ele necessita de mediações reais sem as quais qualquer projeto imaginariamente viável não passará de um simples devaneio. O problema da definição de Mises é considerar formalmente a liberdade como uma propriedade inerente aos sujeitos em suas relações interhumanas não considerando em que medida os indivíduos podem ser mais ou menos livres no próprio ato de escolher em razão do conjunto das mediações que tornam possível este ato e sobre o que este ato pode resultar em efetividade histórica.

Quanto à sua distinção entre leis naturais, praxeológicas e civis cumpre salientar alguns aspectos, uma vez que o autor raciocina dedutivamente sobre as leis da natureza para depois concluir, por analogia, princípios válidos para as leis praxeológicas que não deveriam ser contraditadas pelas leis civis. Este tema merece ainda especial atenção uma vez que, em seus ensaios econômicos, o autor se vale da praxeologia - uma espécie de lógica da ação humana - na forma de um método dedutivo necessário à elaboração desta ciência.

Mises parte do pressuposto formal e, filosoficamente, frágil de que o conhecimento cientificamente válido é o que resulta de um único modelo não contraditório e que, portanto, não permita ambivalências. Ele não aceita que modelos divergentes e contraditórios possam simultaneamente produzir conhecimentos válidos sobre um mesmo fenômeno. Esta suposição dará margem a considerar que somente um modelo de análise praxeológica é correto e que tudo o que o contradiga seja irracional. Os limites de seu modelo de análise podem ser considerados evidenciando-se a fragilidade de sua afirmação de que "a liberdade de um homem é rigidamente restringida pelas leis da natureza". Com efeito, a natureza possui propriedades que cientificamente são compreendidas a partir de modelos - em geral divergentes ou concorrentes - que permitem a formulação de leis. Entretanto não é a natureza que se submete a essas leis, são estas que buscam possibilitar a interferência humana sobre os eventos naturais. Assim, quanto mais o homem aprimora seus conhecimentos sobre a natureza, formulando hipóteses e leis que permitam interferir sobre ela com margens seguras de probalidade, mais a liberdade humana se amplia em poder interferir sobre ela ou escapar de suas interferências. Neste sentido, todas as leis naturais expressam momentos da compreensão humana sobre os eventos naturais e na medida em que essa compreensão se amplia - mesmo que por modelos divergentes - também as leis vão se modificando. Assim, é possível descrever adequadamente distintos fenômenos óticos considerando a luz ora como partícula, ora como onda. O fato de que sob esses modelos contraditórios se formulem leis válidas que compreendem certos aspectos de um mesmo fenômeno natural significa que as leis da natureza, em seu processo de aprimoramento, modificam-se constantemente sob o influxo de modelos divergentes permitindo-se a ampliação constante da liberdade humana sobre tal fenômeno. Mesmo autores liberais como Karl Popper afirmam que se uma teoria pretendidamente científica não apresentar suas condições de falseamento, isto é, condições em que possa ser falseada, ela , como tal, não será científica.

Contudo, se Mises pretende se referir a propriedades regulares da natureza quando fala em leis da natureza, então a sua posição torna-se mais frágil ainda. Se não existissem tais propriedades recorrentes na natureza, nenhuma escolha poderia levar-nos a qualquer fim esperado, uma vez que, se assim fosse, não se poderia prever o comportamento de mediação alguma. Desse modo, não se pode considerar as leis da natureza como sendo portadoras da capacidade de restringir as liberdades do homem, uma vez que são elas próprias que a instituem. Elas é que permitem - em razão da regularidade natural - a existência de organismos vivos e os exercícios destes em interferir sobre o ambiente externo. Desse modo, conhecer as propriedades recorrentes na natureza possibilita ao homem ampliar o universo das mediações que permitem ampliar a sua liberdade. Por outra parte, o homem pode exercer sua liberdade produzindo novas mediações que permitam operar sobre as limitações naturais que condicionam o que ele pode realizar. Assim, se escolher A implica em sofrer B como conseqüência, pode ocorrer que - sob um novo estágio de elaboração científica na compreensão de fenômenos naturais - o desenvolvimento de uma nova mediação C permita realizar A sem sofrer B. Também neste sentido, não se pode invocar leis naturais imutáveis como condicionantes que impeçam a realização de fins específicos escolhidos no exercício da liberdade, pois o que pode parecer uma lei natural imutável em um momento histórico, por exemplo, a rejeição de órgãos em transplantes cirúrgicos, pode vir a ser modificado em um momento seguinte, com o desenvolvimento de terapias genéticas que evitem a rejeição do órgão transplantado, no caso deste exemplo. Assim, se há cem anos atrás - considerando-se um outro exemplo - um homem quisesse saltar de um penhasco para sentir o prazer da queda livre (A), teria de arcar com as conseqüências do perigoso impacto de seu corpo nas águas no mar (B). Hoje, contudo, ele poderá saltar tranqüilamente de penhascos, prédios e aviões dispondo de um pára-quedas adequado (C). Desse modo, fins que possam ser contraditórios em um determinado momento ou que possam ter conseqüências contraditórias naquele período ou circunstância, considerando-se as mediações materiais então disponíveis, não o são por leis imutáveis, podendo deixar de ser fins contraditórios ou deixar de implicar em conseqüências contraditórias, uma vez que outras propriedades regulares da natureza passam a ser acionadas como mediação tendo por finalidade ampliar a liberdade das pessoas que desejam atingi-los.

O que interessa, entretanto, é a transposição feita por Mises, para o nível praxeológico, do mesmo raciocínio que desenvolveu sobre o nível da natureza. Ao falar em "leis da praxeologia", Mises pouco esclarece do que se trata. Se são leis formuladas por uma ciência que tem por objeto a práxis (uma logia da práxis), então ele incorre no problema de estabelecer um determinado modelo - produzido por alguns seres humanos, uma vez que seria uma ciência - como se fosse universalmente necessário em sua qualidade de restringir a liberdade humana em qualquer parte. Colocado desse modo, tratar-se-ia de um pensamento dogmático e insustentável porque pretende afirmar uma regularidade concebida em um modelo como sendo necessária a todo homem independente de sua cultura, contexto histórico ou de outros modelos (divergentes ou concorrentes) a partir dos quais também seja possível compreender e orientar a relação interhumana. De outro modo, se por "leis da praxeologia" o autor entende que as ações humanas necessariamente estão submetidas as certas regularidades - como no caso dos fenômenos da natureza - então não poderia haver casos particulares de discrepância de tais leis. Mas não é isso que ele próprio destaca, ao afirmar que determinadas condutas podem levar à decomposição da cooperação pacífica entre os membros de uma sociedade. Assim, o significado de "leis da praxeologia" não pode ser analogamente associado a nenhum dos dois significados possíveis de "lei da natureza" - embora Mises estabeleça a analogia relacionando a capacidade de tais leis em determinar o resultado da ação humana como um todo com a previsibilidade possível de fenômenos naturais a partir das leis da física. Se alguns fenômenos tendencialmente regulares no campo da economia podem ser invocados como leis praxeológicas, isto, contudo, nada garante sobre a validade das deduções que se pretendem justificar a partir do modelo adotado por Mises, uma vez que o aparente movimento regular do sol, da lua e das estrelas em torno da Terra poderia justificar um modelo geocêntrico de gravitação que é, como tal, insustentável. Não sendo pois leis nos dois sentidos que uma analogia com a física poderia permitir, parece mais adequado considerar as leis praxeológicas formuladas por Mises como sendo normas práticas de conduta, às quais se pretende empostar uma vigência universal. Ao refletir sobre o dever da ação prática em respeito da liberdade, o autor passa a desenvolver, em latu sensu, uma reflexão moral em que se contrapõe condutas voltadas somente ao interesse pessoal de curto prazo a condutas que no longo prazo promovam o bem social. Sendo assim, a partir de quais critérios, então, pode o autor estabelecer princípios morais universais que permitam a alguém inferir a correção dos comportamentos?

Ao invés de enfrentar este problema, Mises leva o leitor a pensar que essas leis, sendo necessárias (tais como as "leis da natureza"), não necessitam de um suporte argumentativo que as justifiquem. Contudo, destacará, por outro lado, a necessidade social da instituição de um poder que, estabelecendo leis civis e zelando pelo seu cumprimento, obrigue os cidadãos a viver sem contraditar a leis praxeológicas. A partir daí Mises passa a desenvolver raciocínios trabalhando com oposições, que seriam consequências necessárias de leis praxeológicas, sem necessitar considerar em que condições históricas e sociais tais oposições poderiam vigir. Por exemplo, ao afirmar que o homem "tem necessariamente de escolher entre o respeito a certas regras que tornam a vida em sociedade possível ou a pobreza e a insegurança", Mises apresenta uma disjunção como necessária em toda parte, descartando que seja possível ocorrer, conjuntivamente, tanto o respeito a certas regras sociais quanto o empobrecimento e o aumento da insegurança em uma dada sociedade, sendo que tal insegurança e empobrecimento pode afetar em maior medida, inclusive, os indivíduos que mais defendam o respeito a essas regras.

Este modo de proceder está presente na tecitura de grande parte dos raciocínios de Mises acerca da liberdade e do próprio liberalismo. O mesmo ocorre, por exemplo, ao afirmar que um homem que rouba, prejudica a ordem social em seu todo e que "se a sociedade não obstar tal conduta, esta não tardará a se generalizar, pondo um fim à cooperação social e aos benefícios que daí derivam para todos". Diferentemente de Kant que estabelece as condições transcendentais para a vigência de um imperativo categórico que - como lei prática da razão - poderia ser erigido sobre tal matéria ao universalizar a máxima de que ninguém deve roubar - considerando a dignidade humana como um fim em si mesma e a necessidade de promover-se, também, a justa felicidade alheia - Mises nada mais faz do que pretender legitimar a propriedade privada contrapondo o roubo que beneficia o indivíduo em particular e a cooperação social que traria benefícios a todos - uma vez que seu modelo de cooperação social é necessariamente o melhor e não pode ser falseado. Assim, do mesmo modo que não aceita considerar que o respeito às regras sociais possa provocar o empobrecimento de significativas parcelas da sociedade, também não caberia dizer que ao cooperar socialmente respeitando tais regras eles sejam beneficiados tornando-se ainda mais pobres; mas poderá concluir que se roubarem estarão prejudicando a sociedade como um todo. Diferentemente de uma cooperação política eticamente fundamentada que destacaria a necessidade de subordinar a economia aos contratos de organização social, Mises considera a cooperação econômica como sendo a base fundante da sociedade política, do contrato social, sendo a manutenção do livre mercado a condição moral necessária para a cooperação social em seu todo. Assim, o mercado aparecerá não apenas como o espaço da livre cooperação dos indivíduos, mas o livre mercado como única base sobre a qual seja possível erigir uma sociedade política que não contravenha as leis praxeológicas. Mises, desse modo, se desobriga de argumentar sobre a eticidade das relações desiguais no mercado, tratando de considerar que as leis praxeológicas indicam que a desigualdade é um bem social. Como vimos, contudo, tais "leis" são deduzidas de um modelo que Mises toma como sendo o único válido, embora essa sua pretensão não tenha consistência nem científica, nem filosófica.

A fim de estabelecer as leis civis e garantir que os indivíduos não as transgridam - para que ajam de acordo com as leis praxeológicas - estabelece-se então um governo com seu aparato de compulsão e opressão. Este, limitando a coerção e o emprego da violência à prevenção e supressão de atividades anti-sociais, faz prevalecer a liberdade. Esta agora é definida como "o estado de coisas no qual a faculdade de o indivíduo escolher não é mais limitada pela violência do governo do que o seria, de qualquer forma, pela lei praxeológica". Assim, a liberdade já não é mais uma faculdade de escolher meios de ação alternativos, mas se trata de um estado de coisas em que o governo limita a faculdade de escolha do indivíduo na mesma extensão que tal escolha seria limitada pela lei praxeológica. Isto entretanto - segundo Mises - não nega a autonomia e autodeterminação do indivíduo, senão na exata medida do que o obriga a lei praxeológica. A liberdade é, assim, um estado de relações interhumanas em que o governo oprime e coage os cidadãos a viverem de acordo com as tais leis praxeológicas que a rigor, como vimos, não são leis. Isso, enfatiza Mises, é a liberdade como "a condição de um indivíduo no contexto de uma economia de mercado". Eis aí todo o esforço do autor em justificar o livre mercado a partir dos elementos que já havia deduzido anteriormente.

A economia de mercado segue, conforme o Mises, todas as leis praxeológicas devendo, por isso mesmo, ser preservada de qualquer outro tipo de regulação que fira tais princípios. Seus arrazoados permitirão por fim chegar a conclusão que o papel do governo é basicamente garantir a propriedade, a liberdade e a paz (10):

"Nenhum governo e nenhuma lei civil podem garantir ou propiciar um clima de liberdade, a não ser pela defesa e sustentação das instituições fundamentais em que se baseia a economia de mercado. Governo significa sempre coerção e compulsão e, por necessidade, é o oposto de liberdade. O governo é um garantidor da liberdade e só é compatível com a liberdade se seu campo de ação é adequadamente restringido à preservação do que chamamos de liberdade econômica. Onde não há economia de mercado, as provisões constitucionais e legais, por melhor intencionadas que sejam, permanecem como letra morta." (11)

Vê-se portanto que para garantir a liberdade dos agentes econômicos, o autor argumenta a legitimidade de que o governo - que é o oposto da liberdade e simultaneamente o seu garantidor - intervenha coercitivamente fazendo cumprir as leis civis que, por sua vez, devem respeitar as leis praxeológicas, o que significa, especialmente, preservar a economia de mercado, isto é, o modelo de produção capitalista sob as diretrizes liberais.

O liberalismo se apresenta assim como um programa tanto negativo quanto positivo que se resume à defesa da propriedade privada dos meios de produção: "...o programa do liberalismo, se pudermos condensá-lo em uma única palavra, se resumiria no termo ‘propriedade’, isto é, a propriedade privada dos meios de produção (pois, no que se refere às mercadorias prontas para o consumo, a propriedade privada é um fato, e isto não é questionado pelos socialistas e comunistas). Todas as outras exigências do liberalismo resultam deste requisito fundamental." (12) Frente às críticas de que o liberalismo seja um programa predominantemente negativo, como resultaria "da própria natureza da liberdade, que somente se pode conceber como liberdade de alguma coisa, pois a exigência de liberdade consiste, essencialmente, na rejeição de algum tipo de reivindicação" (13), Mises destaca que "o programa liberal (uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção) não é menos positivo do que qualquer outro programa político concebível". E enfatiza: "O que é negativo no programa liberal é a negação, a rejeição e o combate a tudo o que se coloca em oposição a este programa positivo." (14) Além disso assevera que "não se pode ver o liberalismo como um partido de interesses, prerrogativas e privilégios especiais, porque a propriedade privada dos meios de produção não é um privilégio que redunda no exclusivo benefício do capitalista, mas uma instituição que age no interesse de toda a sociedade e, consequentemente, beneficia a todos." (15)

Embora Mises destaque que "o liberalismo não é uma doutrina completa nem um dogma imutável", mas pelo contrario "a aplicação dos ensinamentos da ciência à vida social do homem" (16), seu modo de legitimar as teses liberais invocando as leis praxeológicas que adviriam de uma análise científica da sociedade - que teriam a mesma precisão que as leis da física em antever as conseqüências de longo prazo das condutas humanas - não deixam margem a modificações nos elementos básicos do modelo. A partir deste modelo pode concluir um conjunto de posições com estatuto de necessidade, embora não passem de teses que demandariam justificações capazes de comprovar que elas ampliam os modos de ação alternativos à disposição das escolhas dos indivíduos, isto é, ampliam a liberdade dos mesmos.

Assim, Mises pode afirmar categoricamente certas posições como se fossem irrefutáveis:

"Há a opinião... de que o liberalismo se distingue de outros movimentos políticos pelo fato de que coloca os interesses de uma parte da sociedade - as classes abastadas, os capitalistas, os empresários - acima dos interesses de outras classes. Essa afirmação é totalmente errônea. O liberalismo sempre teve em vista o bem de todos, e não o de qualquer grupo em especial." (17)

"O liberalismo não é uma política que age no interesse de qualquer grupo em particular, mas uma política que age no interesse de toda a humanidade. É, portanto, incorreto afirmar-se que os empresários têm algum interesse especial em sustentar o liberalismo..." (18)

"...uma ordem social, organizada sob princípios genuinamente liberais, é assim constituída, por deixar aos empresários e capitalistas apenas um único caminho para a riqueza, isto é, melhor prover os seus semelhantes com aquilo de que imaginam eles próprios necessitar." (19)

"Que haja carência e miséria no mundo não é... um argumento contra o liberalismo. É exatamente a carência e a miséria que o liberalismo busca abolir e considera que os meios que propõe utilizar são os únicos apropriados para a consecução desse fim" (20)

"... a raiz da oposição ao liberalismo não pode ser compreendida lançando-se mão do método da razão. Tal oposição não se origina da razão, mas de uma atitude mental patológica - isto é, do ressentimento e de uma condição neurastênica que se poderia chamar de ‘complexo de Fourier’(...). Trata-se de uma doença séria do sistema nervoso, uma neurose, que é mais propriamente uma preocupação do psicólogo do que do legislador." (21)

Cada uma dessas afirmações, entre tantas outras, demandaria argumentações justificadoras que não recorressem à falácia das leis praxeológicas, necessárias e imutáveis. Assim, como explicar que nas sociedades em que o neoliberalismo se implanta a riqueza se concentra em segmentos cada vez menores e o número de pobres e excluídos torna-se cada vez maior? Se os empresários não têm interesse especial em sustentar o liberalismo, porque partiu deles a iniciativa de exigir dos governos europeus a constituição de um bloco econômico naquele continente que fosse regido por princípios liberais? Não terão os grandes empresários do mundo interesse especial na liberalização das economias, tornando mais fácil ampliar seus lucros agindo também em outros mercados? A liberalização dos mercados - especialmente os mercados financeiros - e a especulação com ações, taxas de juros e câmbio não possibilitam que capitalistas enriqueçam sem satisfazer "necessidades sociais" ? Se o liberalismo procura abolir a miséria e a pobreza no mundo, porque não promove políticas de distribuição do excedente acumulado que já não pode mais ser reinvestido na produção de bens finais, uma vez que os mercados estão saturados no mundo todo? Afinal, quem produz a riqueza acumulada pelo capitalista e porque ele tem o direito de acumulá-la? Com que bases teóricas se pode afirmar que qualquer oposição a um determinado modelo de organização social seja fruto de uma atitude mental patológica?

Interessa-nos aqui, entretanto, considerar as reflexões de Mises sobre a valoração positiva que faz das desigualdades de riqueza e renda nas sociedades de mercado, a relação que estabelece entre propriedade privada e ética, bem como, algumas ponderações sobre governo e democracia.

Conforme destaca o autor, "em nenhum ponto fica mais claro e mais fácil demonstrar a diferença entre o raciocínio do velho liberalismo e o do neoliberalismo do que no tratamento do problema da igualdade." (22) O velho liberalismo do século XVIII era guiado por idéias de lei natural e dos iluministas que "... exigiam para todos a igualdade nos direitos políticos e civis, porque pressupunham serem iguais todos os homens.(...) No entanto, nada mais infundada do que a afirmação da suposta igualdade de todos os membros da raça humana. Os homens são totalmente desiguais." (23) Contudo, mesmo sendo desiguais, o liberalismo propõe que todos tenham tratamento igual perante a lei por dois motivos básicos: a) porque somente quando o trabalhador é livre e recebe os frutos de seu trabalho na forma de salário ele se empenha ao máximo no serviço, atingindo-se a mais alta produtividade possível no trabalho humano; b) porque é necessária à manutenção da paz social, evitando-se perturbações no desenvolvimento pacífico da divisão do trabalho. Enfatiza Mises que "todo poder humano seria incapaz de tornar os homens realmente iguais. Os homens são e permanecerão sempre desiguais. São considerações sensatas e úteis, tais como as que aqui apresentamos, que constituem o argumento em favor da igualdade de todos os homens perante a lei. O liberalismo nunca almejou algo além disso, nem exigiu mais que isso." (24)

Frente às críticas de que o arranjo institucional legalizado pelo Estado mantém privilégios para uma certa classe, garantindo a apropriação desigual das riquezas produzidas na sociedade, Mises responde que

"para se determinar se um arranjo institucional deva ser considerado como privilégio especial de um indivíduo ou de uma classe, a pergunta a se fazer não é se o privilégio beneficia este ou aquele indivíduo, ou esta ou aquela classe, mas se é benéfico ao público de um modo geral. Se chegarmos à conclusão de que apenas a propriedade privada dos meios de produção torna possível a prosperidade da sociedade humana, é claro que isso equivale a dizer que a propriedade privada não constitui privilégio de seu proprietário, mas uma situação social para o bem de todos, muito embora possa, ao mesmo tempo, ser especialmente agradável e vantajosa para alguns."

"Não é em nome dos proprietários que o liberalismo propõe a preservação da instituição da propriedade privada. Não é porque a abolição desta instituição violaria o direito de propriedade que os liberais desejam preservá-la. Se achassem que sua abolição fosse de interesse geral, os liberais lutariam por sua abolição, não importa o quão prejudicial isso pudesse ser aos interesses dos proprietários. Entretanto a preservação desta instituição é do interesse de todos os estratos da sociedade. Mesmo os pobres, que nada possuem de si próprios, vivem incomparavelmente melhor, em nossa sociedade, do que viveriam em uma sociedade que não fosse capaz de produzir nem mesmo uma parte do que se produz hoje." (25)

Ao elaborar seu argumento, Mises afirma que a defesa liberal da manutenção de uma sociedade centrada na propriedade privada dos meios produtivos resulta de uma conclusão sobre os benefícios gerais que ela provoca a todos, independentemente de que alguma classe em particular acabe sendo mais beneficiada que as outras, enfatizando que os liberais a aboliriam se isso fosse do interesse geral. Contudo, se a liberdade em uma sociedade - como afirma Mises em uma argumentação que já analisamos - somente pode se manter se o governo preservar uma economia de mercado, então o autor tergiversa sobre o tema, uma vez que se os liberais decidissem suprimir a propriedade privada dos meios de produção extinguir-se-ia a economia de mercado e portanto a liberdade humana acabaria sendo restringida. Sua argumentação recairá novamente sobre o teor das leis praxeológicas desde as quais ele deduz a necessidade de os governos garantirem o funcionamento dos mercados como condição de preservar a liberdade humana. Além do mais, como os liberais poderão concluir o que é ou não do interesse geral, senão recorrendo a esse mesmo expediente ? Se é correto afirmar que o desenvolvimento econômico necessita do reinvestimento de uma parcela do excedente produzido e que, portanto, tal parcela não pode ser simplesmente consumida em produtos finais pelos que atuam no processo produtivo, por outra parte qual será o interesse geral sobre a outra parcela desse excedente que é apropriada privadamente pelo proprietário dos meios produtivos ? Se ela fosse igualmente repartida entre todos, especialmente entre os empobrecidos, em programas que os envolvessem em atividades de estudo e trabalho, ainda assim haveria crescimento econômico sustentável, acompanhado de significativa distribuição de renda. Se repartir os lucros desse modo é de interesse geral, porque os liberais atuam contrariamente à introdução de programas de renda mínima que possuem, inclusive, esse caráter não-assistencialista? Por fim, ressalte-se que o aumento de produtividade não se deve ao fato de que o lucro líquido seja apropriado privadamente pelos proprietários dos meios produtivos mas em razão de que uma parcela desse lucro seja reinvestido no processo produtivo, incorporando a este um desenvolvimento científico e tecnológico que é produzido por uma cooperação social que extrapola os limites do mercado.

Mises necessitará, então, esclarecer por quais motivos a desigualdade de riquezas e de renda é um bem para o conjunto da sociedade. Com esse objetivo desenvolve duas argumentações. Consideremos a primeira. Conforme o autor é

"simplesmente pelo fato de a desigualdade da riqueza ser possível em nossa ordem social, simplesmente pelo fato de estimular a que todos produzam o máximo que possam, é que a humanidade hoje conta com toda a riqueza anual de que dispõe para o consumo. Fosse tal incentivo destruído, a produtividade seria de tal forma reduzida, que a porção dada a cada indivíduo, por uma distribuição igual, seria bem menor do que aquilo que hoje recebe mesmo o mais pobre." (26)

Esse argumento de caráter psicológico parte de uma estranha suposição implícita, considerando que os indivíduos em seu conjunto prefeririam viver todos juntos na pobreza a viver todos juntos na riqueza. Em outras palavras, se a parcela do lucro que não for reinvestida no processo produtivo for distribuída igualmente entre os indivíduos, todos eles se tornarão mais ricos. Entretanto, como todos enriqueceriam igualmente, eles não mais quereriam enriquecer e, em razão disso, todos eles começariam a empobreceriam juntos. Não é o fato de que haja uma distribuição desigual da riqueza o que faz com que a humanidade tenha toda a riqueza que dispõe para o consumo - embora grande parte dos excluídos não possa dela desfrutar. O que gera cada vez mais riqueza produzida socialmente é o fato de que uma parcela do lucro - que não se confunde com capital de giro - é reinvestida no processo produtivo, ampliando e diversificando a produção de bens de consumo, seja pela instalação de novas unidades produtivas, seja pela incorporação de mais trabalhadores ao processo produtivo nas unidades em funcionamento, seja pelo desenvolvimento e incorporação de novas tecnologias produtivas às unidades já instaladas. Se os trabalhadores se tornam mais ricos e passam a consumir mais aumenta-se a demanda por produtos, provocando-se um aumento da produção. É estranho considerar como esse movimento progressivo de distribuição social de riqueza que visa suprimir as desigualdades sociais poderia levar a um empobrecimento generalizado de toda a sociedade.

O segundo argumento de Mises, entretanto, é mais curioso. Conforme o autor,

"a desigualdade na distribuição de renda, contudo, tem ainda uma segunda função tão importante quanto a primeira: torna possível o luxo dos ricos."

"(...) Muitas das coisas que nos parecem constituir necessidades hoje em dia foram, alguma vez, consideradas coisa de luxo.(...) Este é o curso da história econômica. O luxo de hoje é a necessidade de amanhã. Cada avanço, primeiro, surge como um luxo de poucos ricos, para, daí a pouco, tornar-se uma necessidade por todos julgada indispensável. O consumo de luxo dá à indústria o estímulo para descobrir e introduzir novas coisas. É um dos fatores dinâmicos da nossa economia. A ele devemos as progressivas inovações, por meio das quais o padrão de vida de todos os estratos da população se têm elevado gradativamente."

"A maioria de nós não tem qualquer simpatia pelo rico ocioso, que passa sua vida gozando os prazeres, sem ter trabalho algum. Mas até este cumpre uma função na vida do organismo social. Dá um exemplo de luxo que faz despertar, na multidão, a consciência de novas necessidades, e dá à indústria um incentivo para satisfazê-las." (27)

Todo avanço científico e tecnológico que permite a produção de bens que ampliam - como mediações materiais - a liberdade humana, é socialmente valioso e economicamente dispendioso. Como a produção de bens em pequena escala tende a resultar em produtos finais com um valor de custo que é maior do que ocorreria se a produção de tais bens fosse realizada em grande escala, um produto cuja invenção seja recente tende a ser inicialmente mais caro, pois sua produção é feita em pequena escala e em seu preço também é embutida a despesa realizada com as pesquisas que o tornaram projetualmente possível. O seu custo de produção, entretanto, tende a diminuir na medida em que seja produzido em escalas maiores e com tecnologias mais aperfeiçoadas, o que pode implicar na redução do seu preço. Sendo assim, não é o luxo dos ricos o que faz progredir a economia, mas a invenção de novas mediações que são socialmente incorporadas ao uso cotidiano das pessoas. São inicialmente caras não apenas porque o capitalista busca recuperar com a venda inicial tudo o que investiu em pesquisa e desenvolvimento para chegar a produzir aquele bem, mas porque não havendo concorrência naquele segmento de mercado, ele pode elevar as suas taxas de lucro em um patamar que não iniba a demanda. Na medida em que o preço inibir uma demanda maior e em que a produção for tecnologicamente aprimorada e realizada em escalas maiores baixando-se o valor das mercadorias, o preço tenderá a cair e o consumo daquele bem a generalizar-se para os que possam pagar o preço praticado no mercado. Assim, contrariamente ao que argumenta Mises, mesmo havendo uma distribuição social da riqueza, o fato de uma parcela do excedente produzido continuar a ser investido em pesquisa e desenvolvimento permite dar continuidade ao incremento tecnólogico e à invenção de novos bens que ampliem ainda mais a liberdade do conjunto da sociedade. Cabe ainda destacar que a partir das leis praxeológicas de Mises é possível, como vimos, justificar que a atitude de um rico ocioso que consome bens luxos desfrutando os prazeres da vida é, no longo prazo, benéfica à sociedade como um todo, ao passo que a atitude de distribuir socialmente uma parte do excedente produzido, garantindo-se que os excluídos possam viver com dignidade, resultaria, no longo prazo, em suprimir a liberdade do conjunto da sociedade.

Necessitamos, assim, analisar a relação que o autor estabelece entre ética e propriedade privada, pois - como ele próprio destaca - "ao procurarmos demonstrar a função social e a necessidade da propriedade privada dos meios de produção e a conseqüente desigualdade da distribuição da renda e da riqueza, estaremos, ao mesmo tempo, fornecendo a prova de justificação moral da propriedade privada e da ordem social capitalista nela baseada." (28)

A argumentação de Mises neste aspecto é breve e genérica contrapondo o interesse particular e bem social, seguindo o mesmo estilo de suas "leis praxeológicas". Afirma o autor que

"como membro da sociedade, um homem tem de considerar, em tudo que faz, não apenas sua própria vantagem imediata, mas também a necessidade, em cada ação sua, da afirmação da sociedade como tal, porque a vida do indivíduo em sociedade só é possível por meio da cooperação social, e todo indivíduo seria seriamente prejudicado, se a organização social da vida e da produção entrasse em colapso.(...) Aquele que abre mão de uma vantagem momentânea, para evitar colocar em perigo a existência da sociedade, sacrifica um ganho menor por um ganho maior."

(...) Tudo o que sirva para preservar a ordem social é moral; tudo o que venha em detrimento dela é imoral. Do mesmo modo, quando concluímos que uma instituição é benéfica à sociedade, ninguém pode objetar que a considera imoral. É possível haver divergência de opinião entre considerar-se socialmente benéfica ou prejudicial uma determinada instituição. Mas uma vez julgada benéfica, ninguém pode mais argumentar que, por alguma razão inexplicável, deva ser considerada imoral." (29)

Colocado o problema nesses termos, tanto o rico ocioso quanto os empobrecidos - aos quais se refere Mises - não devem buscar apenas suas vantagens imediatas, mas a manutenção da organização social da vida e da produção capitalistas. Promover a distribuição de renda, embora pudesse beneficiar imediatamente os pobres, no longo prazo prejudicaria a sociedade como um todo, alterando-se a organização social da vida que dever ser regulada, segundo o autor, a partir do mercado. E como tudo o que venha em detrimento da ordem social baseada no livre mercado é imoral, esta conduta não é moralmente correta. Embora Mises destaque a possiblidade de haver divergências sobre o caráter benéfico ou prejudicial de uma dada instituição social, afirma que ela não pode ser considerada imoral uma vez que tenha sido considerada socialmente benéfica. E como, a partir de suas leis praxeológicas, já concluiu a necessidade do livre mercado e da desigualdade de riquezas e de renda como um bem social que favorece a todos, então não se pode afirmar que tais instituições sejam imorais. Para o autor, embora possa haver divergência se o livre mercado é ou não uma instituição benéfica ao conjunto da sociedade, tão logo venha a ser julgada afirmativamente como tal a partir das leis praxeológicas, ninguém poderá mais argumentar que seja imoral. Mas a partir de quais modelos de racionalidade se poderá decidir o que é ou não imoral ? Se as leis praxeológicas não são leis em nenhum dos dois sentidos que a analogia feita por Mises com as leis da física permite depreender, elas nada mais são do que princípios éticos travestidos de leis necessárias. Sendo assim, temos a situação de que certos princípios éticos - dados como necessários - são tomados como critérios para avaliar se uma instituição social é benéfica ou não ao conjunto da sociedade. Tudo o que segue tais princípios é considerado razoável. Tudo que não os siga, terá razões inexplicáveis, que não podem ser explicadas a partir deles. Colocar em questão tais critérios seria para Mises como colocar em questão as leis da física, algo que poderia ser associado a uma patologia mental. Como o modelo de racionalidade adotado por ele jamais pode ser posto em questão, uma instituição social considerada benéfica a partir de tal modelo jamais poderá ser considerada, por isso mesmo, imoral. Tal instituição haverá de existir por toda a eternidade como conseqüência de tais leis praxeológicas.

A partir daí, pode-se afirmar o papel que caberá ao Estado na preservação das instituições sociais que são, desse modo, consideradas morais:

"O liberal compreende perfeitamente que, sem recurso da coerção, a existência da sociedade correria perigo e que, por trás das regras de conduta, cuja observância é necessária para assegurar a cooperação humana pacífica, deve pairar a ameaça da força, se todo o edifício da sociedade não deve ficar à mercê de qualquer de seus membros. Alguém tem de estar em condições de exigir da pessoa que não respeita a vida, a saúde, a liberdade pessoal ou a propriedade privada de outros, que obedeça as regras da vida em sociedade. É esta a função que a doutrina liberal atribui ao Estado: a proteção à propriedade, a liberdade e a paz." (30)

Contudo, historicamente, destaca o autor, que o Estado em nome da maioria acaba oprimindo aqueles que promovem inovações. Em razão disso assevera que "a sociedade não pode passar sem o aparato do Estado, mas [que] todo o progresso da humanidade teve de ser alcançado, contra a resistência e a oposição do Estado e seu poder de coerção." (31) A fim de garantir uma ordem social que mantenha o Estado no papel que lhe cabe, assegurando a manutenção da propriedade privada e da paz, pois na ausência desta "...os benefícios da propriedade privada não podem ser colhidos" (32), Mises defenderá a democracia liberal como a melhor forma de governo: "a democracia é a forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos desejos dos governados, sem lutas violentas." (33)

A adaptação do governo aos desejos dos governados deve respeitar, da melhor maneira, as leis praxeológicas para que medidas populistas, que atendam demandas imediatas, não venham a trazer prejuízos futuros a toda a sociedade. Pelo contrário o governo pode mesmo adotar medidas impopulares quando estas, no longo prazo, tragam benefícios ao conjunto da sociedade.

Enfim concluirá o autor que o liberalismo "busca, unicamente, dar uma coisa aos homens: o desenvolvimento pacífico e imperturbável do bem-estar material para todos, com a finalidade de, a partir disso, protegê-los das causas externas de dor e sofrimento, na medida em que isso esteja ao alcance das instituições sociais. Diminuir o sofrimento e aumentar a felicidade: eis o seu propósito." (34) Mais do que isso, chega mesmo a afirmar que "na sua meta mais alta e fundamental, liberalismo e socialismo estão de acordo. Diferem precisamente quanto ao que julgam o mais conveniente meio para atingir essa meta: para o liberalismo é a propriedade privada dos meios de produção, enquanto que para o socialismo é a propriedade pública o meio mais adequado." (35)

Quando se afirma em promover o desenvolvimento pacífico e imperturbável do bem estar material para todos, atendendo-se aos interesses de toda a sociedade, deve-se ressalvar que o modo pelo qual cada pessoa pode participar desse bem estar, conforme o autor, é através do mercado, agindo sob as leis civis que normatizam a compra e venda de mercadorias, inclusive da força de trabalho, uma vez que comprar e vender "... é uma transação movida pelo interesse de ambas as partes" (36) que se satisfazem reciprocamente pela mesma ação. Aqueles que têm um poder de compra reduzido, devem competir em busca de uma melhor inserção no mercado de trabalho e de consumo, a fim de melhor participar do bem estar material produzido pelo capitalismo. Desse modo, para Mises, a competição está na base da liberdade de cada um em participar do bem estar material: "a liberdade do homem no regime capitalista é fruto da competição" (37). Mas como um trabalhador poderá participar do bem estar proporcionado pelo mercado se por ventura ele perde o seu emprego ? Argumenta o autor que sob o modelo neoliberal "o trabalhador não depende das boas graças de um empregador. Se o empregador o dispensa, ele encontra outro emprego." (38) O que efetivamente vem ocorrendo, entretanto, é que milhões de operários estão ficando desempregados no mundo todo, especialmente nos países que adotam o modelo neoliberal, e que uma significativa parcela deles não tem mais esperança de recuperar um emprego com um nível de recebimento que possa manter o padrão de vida que possuía sob a lógica do mercado, mesmo sendo trabalhadores qualificados e com elevado nível de educação. O número de excluídos da riqueza socialmente produzida é cada vez maior ao passo que um volume maior de riqueza se concentra nas mãos de um reduzido número de pessoas e de grupos privados. Isso, para os neoliberais, em geral, e para Ludwig von Mises, em particular, não pode ser considerado imoral ou um malefício para a sociedade em seu conjunto. Por fim, sob o jogo das leis do mercado, buscando produzir com menores custos para vencer a concorrência seguindo as leis praxeológicas de Mises, o capitalismo vem destruindo os ecossistemas, pois adotar procedimentos que os preservem implica no encarecimento do produto final e na perda da concorrência no mercado. Seria tal destruição, sob a lógica das leis do mercado, igualmente um bem social, tanto quanto a concentração de renda, ou torna-se necessário estabelecer outros padrões de desenvolvimento que sejam ecologicamente sustentáveis e que promovam a distribuição de renda, elevando os índices de desenvolvimento humano em todo o planeta, respeitando-se a diversidade das culturas ?

 

2. Sobre as Condições de Possibilidade do Exercício Histórico da Liberdade

Se tomarmos a liberdade como a categoria analítica mais simples, a partir dela podemos analisar e explicar as contradições históricas nas esferas da produção econômica, da reprodução social, da organização política e da cultura. Em outras palavras, a elaboração conceitual sobre o caráter histórico dos meios produtivos, dos meios que possibilitam a reprodução social, dos referenciais ético-morais das sociedades e de seus projetos políticos, deve considerar como tais elementos operam para a ampliação ou restrição das liberdades pública e privada de cada coletividade ou sujeito social. Assim procedendo, por exemplo, podemos compreender abstratamente que se os seres humanos trabalham, o fazem tanto para satisfazer suas necessidades biológico-sociais - o que significa assegurar uma determinada extensão do exercício da liberdade frente a elas - quanto para expandir ou ampliar os próprios limites de realização de sua liberdade. Contudo, no cerne da esfera produtiva, a riqueza que possibilitaria ampliar a liberdade de todos é apropriada de modo desigual, possibilitando apenas a ampliação extensiva do exercício da liberdade dos que detém o controle do capital, ao passo que, em razão inversa, restringe o exercício da liberdade daqueles que vendem sua força de trabalho, que são "livres", assim, para se submeterem ao processo de exploração ou extração de mais-valia em diferenciados patamares. Por outra parte aqueles que não conseguem vender sua força de trabalho - quando não encontram capitalista que a queira empregar - não possuem sequer a liberdade de utilizá-la de modo satisfatoriamente produtivo, pois lhes faltam os meios materiais - equipamentos, máquinas, matérias-primas, ferramentas, etc - para levarem a bom termo sua atividade.

Trata-se, pois, de caracterizar a liberdade enquanto categoria abstrata e destacar as mediações que possibilitam a sua realização histórica concreta, a fim de posteriormente considerarmos sua realização sob o capitalismo globalizado.

O exercício da liberdade, abstratamente considerado em sua dimensão mais simples, é marcado por um devir subjetivo, um tornar-se sujeito, uma subjetivação. A subjetividade realiza-se como uma dinâmica complexa envolvendo necessidades, desejos, afetos, paixões, imaginação e razão interconectadas a todas as formações de poder como um nó de fluxos materiais, fisio-quimicamente ordenados, biológica e antropologicamente organizados, sob múltiplas interações semióticas que complexificam-se ao nível da antropossemiose em processos econômicos, políticos, religiosos, familiares, pedagógicos, etc. A subjetividade é sempre processo e ao mesmo tempo resultante: resultado mutante de fluxos quânticos e de tramas sígnicas, modelizada sob os diversos jogos semióticos do capital - mediação de jogos efetivos e virtuais de poder - e dos agenciamentos moleculares de subversão. Não há pois, nesse nível, como cindir a subjetividade como se houvesse um dentro (sub-jeto) e um fora (ob-jeto), pois em sua realidade material mais simples, cada ser humano é um campo integrado de partículas dialeticamente organizadas sob semioses contínuas e mutantes - fisiossemioses, biossemioses, zoossemioses e antropossemioses.

Contudo, no exercício de liberdade situada ou condicionada, os seres humanos se auto-produzem em processos coletivos em que se interpenetram as esferas econômicas, políticas e culturais - que somente podem ser analisadas separadamente como momento metodológico para a elaboração conceitual conseqüente que as integre no conceito concreto que não pretende ser um espelho fiel da realidade, mas um mapa seguro que nos permita uma práxis transformadora. Sendo imanentes à história e sob sua constante tensão, subjetividade e objetividade, liberdade e não-liberdade se realizam em níveis diferenciados, somente podendo ser pensadas desde a contradição e cindidas deste modo, apenas para a ordenação conceitual que exige, em seu momento analítico, a compreensão delimitante da realização histórica de ambas que, enquanto efetividade, é uma certa configuração da realização do possível, negada por este mesmo devir do movimento da liberdade. Temos, assim, que por mais que a liberdade seja negada há ainda uma parcela de liberdade inerente ao sujeito que não pode ser totalmente aniquilada - possibilitando o movimento histórico da luta por ampliá-la, ou, que por mais que venha a ser realizada em sua amplitude e intensidade, jamais será plena - pois historicamente situado, o homem sempre está determinado por elementos que exigem e suportam seu ultrapassamento ou superação.

Neste movimento histórico da liberdade, nada escapa à ação dos signos. Não apenas não há pontos externos ao fluxo das transformações, como também não há movimentos "progressivos" que presidam os seus rumos contraditórios. O movimento complexo da história é um movimento de modelizações dominantes e de singularizações, subjetivações criativas que vão sendo constantemente recapturadas nos jogos semióticos dominantes. A criatividade supõe seu próprio contexto, mas é capaz de transversalizá-lo, recapturá-lo, ressignificá-lo, subvertê-lo ou revolucioná-lo. Sendo a subjetivação ou singularização movimentos de produção de subjetividade que se articulam necessariamente a movimentos de socialização coletiva - pois a identidade de cada qual é fruto de tramas sígnicas, transpessoais, permeadas de processos esquizos ou de modelizações - ela é movimento de subversão dos códigos modelizantes estabelecidos pelas semioses hegemônicas, com seus signos éticos, estéticos, políticos, econômicos, pedagógicos, etc, do capitalismo, do machismo, do racismo, e de todos os padrões que impedem o ultrapassamento humano de seus próprios limites em busca de sua realização singular. Este movimento de ultrapassamento caracterizável como revolução exige, portanto, a transformação do que tradicionalmente - e, na maioria das vezes, redutora e esquematicamente - categorizou-se como estruturas produtivas, políticas e culturais ou como modo de produção capitalista, transformação essa que se implementa com a finalidade de ampliar os processos de subjetivação e socialização - que são as duas faces de uma mesma ocorrência.

Percebe-se claramente que qualquer exercício de liberdade possui duas faces - a pública e a privada. A antropossemiose que nos perpassa e que nos constitui como sujeitos humanos e não apenas como animais é uma das faces da história da liberdade pública e de sua negação, como condição de nossa humanidade pessoal, e por suposto, de potencialização de nossa liberdade privada. Todas as mediações materiais, políticas e culturais, socialmente produzidas possibilitam a ampliação da extensão realizadora da liberdade privada. Por outro lado, as singularidades emergentes do exercício da liberdade de cada pessoa em sua particularidade, bem como toda e qualquer ação realizadora que produza bens tangíveis ou intangíveis, de objetos a valores ou signos, gera mediações que possibilitam ampliar os horizontes de exercício das liberdades públicas e privadas.

Essas duas faces da liberdade podem se potencializar mutuamente quando o exercício da liberdade privada tem por objetivo promover a liberdade pública e o exercício da liberdade pública promove tal exercício de liberdade privada. Contudo, quando a maior parte das mediações materiais, políticas e culturais são colocadas apenas a serviço da realização da liberdade privada de uma pequena parcela da sociedade, então têm-se a negação da realização da liberdade pública na exata medida da disposição de tais recursos para a realização daquela liberdade privada - que por negar a liberdade pública não pode ser considerada como ética.

Frente a esse movimento de negação da liberdade pública, a libertação vai sendo construída em movimentos moleculares e molares (39) de subversão geral; contudo, também aquilo que esses movimentos geram pode ser recapturado em jogos de dominação. Mesmo os instrumentos históricos de "luta de classe" como os sindicatos, as greves e partidos políticos de esquerda, podem ser modelizados sob a lógica do capital - por exemplo: o sindicato como aparelho de realização de interesses privados da diretoria que trai a categoria junto ao patronato; a greve como mediação para ampliar o nível de consumo alienado do operário; o partido político como espaço para a realização dos interesses particulares da burocracia, de parlamentares, etc. Mesmo o signo do protesto político da juventude pelas ruas, em defesa das liberdades públicas, pode ser recuperado como signo publicitário para a venda das mercadorias. Assim, a história é um movimento constante de transformação dos códigos dominantes que são aprimorados ou subvertidos em um processo de tensões que não rumam necessariamente para configurações qualitativamente superiores ao exercício da liberdade do conjunto dos sujeitos sociais.

Compreendendo deste modo a liberdade, podemos agora considerar as condições históricas de libertação, isto é, da ampliação da realização da liberdade, agrupando-as sobre quatro aspectos já citados: materiais, políticos, informativo-educacionais e éticos.

Sem os recursos materiais que garantam a realização das nossas escolhas, a liberdade fica restrita a um movimento subjetivo que não pode realizar-se historicamente. Algumas dessas condições materiais tornam-se necessidade ao modo de vida de uma determinada sociedade em uma determinada época, segundo seu modo de organizar a produção econômica, a política e a cultura. Outras condições, aparentemente necessárias, reduzem-se a desejos agenciados, de modo constante, sob diversas semióticas. Assim, quando ocorreu a invenção da eletricidade ou do telefone, a maioria das pessoas não tinha necessidade de utilizar tais mediações para realizar os seus propósitos cotidianos. Hoje, entretanto, em nossa sociedade, todos nós necessitamos da energia elétrica a cada instante, e a maioria de nós também necessita do telefone, pois sem ele não conseguiríamos atingir, com facilidade, certos objetivos que estabelecemos em nossa rotina. Por outro lado, é perfeitamente possível viver sem tomar Coca-Cola ou Pepsi-Cola, substituindo-as pela ingestão de água, de outro refrigerante ou de qualquer líquido potável. Objetivamente outro líquido, nestas condições, pode cumprir a mediação digestiva ou hidratante desempenhada por esses dois produtos. Entretanto objetivamente seria bem mais difícil substituir um telefonema por uma carta ou uma visita, ou prescindir da energia elétrica. Certos desejos, contudo, podem se transformar em necessidades virtuais - como a necessidade de um adolescente brasileiro de classe média possuir um boné importado para receber o reconhecimento social de seu grupo de amigos, ou a necessidade de uma estudante secundarista japonesa em consumir roupas de grife pelo mesmo motivo.

Ora, as novas tecnologias, ao mesmo tempo em que ampliam virtualmente nossa possibilidade de exercer a liberdade - mediatizando novas possibilidades de realização do humano -, acabam gerando novas necessidades sociais em razão da reorganização da vida coletiva e privada a partir delas. Se inegavelmente, por um lado, elas ampliam o campo de possibilidade da realização humana, provocam uma ampliação virtual de nossa liberdade, por outro lado, objetivamente, tal ampliação não se realiza para as maiorias, pois tais mediações materiais para o seu exercício não são socializadas, repartidas ou compartilhadas.

Podemos inclusive afirmar que o desenvolvimento tecnológico cai no mesmo círculo analisado por Adorno e Horkheimer em Dialética do Esclarecimento (40). A tecnologia que possibilitaria emancipar cada vez mais o conjunto da humanidade, ampliando seus exercícios de liberdade, cria de fato novas formas de dominação mais refinadas - como as de produção de subjetividade que analisamos anteriormente.

Sob o aspecto das condições materiais, a ampliação do exercício da liberdade das maiorias exige a práxis concreta de combate a toda forma de exploração do trabalho, expropriação dos consumidores e espoliação urbana ou rural. Esta exigência é básica, pois sem as devidas mediações materiais que possibilitem a sua realização histórica, o exercício da liberdade não passa de figura de retórica neoliberal. Para ampliar a liberdade de todos, portanto, é necessário distribuir a riqueza produzida socialmente de maneira mais eqüitativa, para garantir a todos equânimes condições de realizar a sua humanidade, efetivando potencialidades as mais diversas.

Outra condição histórica da liberdade é a democratização do poder e a garantia das condições políticas para que cada qual o exerça com autonomia. Isto significa que é necessário preservar a autonomia de cada pessoa, isto é, o direito de cada qual decidir livremente sobre sua vida privada - desde que sua conduta não negue a possibilidade de realização da liberdade pública -, bem como o de tentar influenciar democraticamente a organização da vida coletiva. Para bem analisar esta interface do exercício político da autonomia pública - a decisão coletiva sobre as condutas públicas e suas interfaces com as condutas privadas - com as mediações econômicas do exercício da liberdade, não basta construir simbolicamente modelos teóricos abstratos e desprezar os índices de realidade que tais modelos não comportam. Exemplos de tais modelos se encontram na teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas ou na teoria da práxis de libertação em Enrique Dussel, que tenta superar os limites da primeira.

Não basta afirmar, como Habermas, que a ação instrumental se volta a um interesse técnico - visando o sucesso no domínio, transformação e recriação da natureza - e que a ação comunicativa teria por interesse prático a emancipação dos seres humanos - uma vez que todos tenderiam a um acordo no uso da linguagem -, devendo-se, portanto, ampliar-se os espaços de ação comunicativa sobre o correto uso social das tecnologias, determinando-se, assim, o interesse técnico pelo emancipatório, e por extensão, a economia pela política. A tese de uma comunidade universal de comunicação - elemento central nesta teoria da ação comunicativa - induz a pensar que a socialização da palavra e do conhecimento, levariam a novos patamares de acordos morais e poderiam nos trazer uma socialização das condições materiais da liberdade. Ora, se a posição de Habermas refuta, a seu modo, o ceticismo - uma vez que qualquer cético, ao argumentar, aceita que existe uma comunidade de comunicação e portanto uma instância coletiva de acordo comunicativo -, não consegue entretanto um grau suficiente de criticidade que permita perceber - nos quadros reais da globalização - que o cínico (41), movido por interesses não-emancipatórios, mas meramente privados de ampliação de sua liberdade individual e de seu poder, poderá argumentar invocando a correção ética de sua conduta, por exemplo, na defesa de privatizações que o beneficiarão ou empenhando-se em aprovar uma lei de patentes - envolvendo softwares e códigos genéticos - que coloque o Terceiro Mundo na dependência de grandes oligopólios e dos países de capitalismo avançado, ou apregoando que o receituário neoliberal trará benefícios sociais nos países em que é implantado.

Frente a esta proposta de ação comunicativa - que não tem como sanar tal debilidade de fundo - alguns questionamentos podem ser formulados. Como poderão os sujeitos excluídos pela globalização vencer a batalha argumentativa ou pactuar em condições que lhes sejam favoráveis nas reais esferas políticas institucionais - onde, segundo Habermas, se pratica a ação comunicativa - se não têm acesso material ao conhecimento, à informação, às linguagens e ao que satisfaça a sua fome e outras necessidades elementares? E como terão acesso ao conhecimento, à informação, às linguagens e à satisfação de sua fome e de outras necessidades elementares, se a comunidade de comunicação hegemônica não se dispõe a mudar a lógica da globalização, preferindo desmontar as estruturas políticas para facilitar a livre circulação de mercadorias e de trabalho e o livre acúmulo de capital ? Imaginar que a democracia liberal - pressuposto da ação comunicativa na esfera política conforme o pensamento de Habermas - seja a mediação da transformação das estruturas econômicas - gerando a sua socialização - é desconhecer que os equipamentos coletivos de produção de subjetividade podem modelizar os anseios das massas, articulando-os virtualmente aos objetivos das elites que parecem realizar os objetivos populares, quando na verdade distanciam-se deles. A política liberal de privatização de setores estratégicos, em economias periféricas, em nome da ampliação de serviços do estado na área social é um exemplo claro disso. O Estado perde cada vez mais o papel de coordenador da economia, ao passo que seus serviços na área social também se deterioram. Tais acordos - sob protestos populares nas ruas - são não apenas fruto de um acordo comunicativo, mas expressão de uma racionalidade cínica que restringe os exercícios das liberdades públicas, ampliando o exercício da liberdade de certos grupos privados que detém vultosas somas de capital.

Se a posição habermasiana acerca das mediações políticas do exercício da liberdade é inadequada, Dussel por sua vez, embora critique as limitações da teoria emancipatória de Habermas, permanece ele próprio limitado a uma elaboração metafísica sobre o processo de libertação que também não compreende adequadamente a produção de subjetividade pelas semióticas do capital, em meio a trama de poderes difusa por toda a sociedade contemporânea. Dussel - tanto quanto Habermas - não considerou adequadamente as reflexões de Deleuze e Foucault que nos alertaram sobre como nas práticas, discursivas e não discursivas, das massas frente ao fascismo imbricavam-se elementos de interesse, desejo e poder (42). Frente às semioses agenciadas em movimentos de produção de subjetividade no capitalismo globalizado, a reflexão de Dussel revela-se frágil quando consideramos que, em geral, a palavra interpelante do outro é modelizada numa teia real de poder, onde é agenciada em meio a desejos e interesses. A sua tentativa de uma investigação metafísica sobre a ação ética des-inter-essada (que segue os mesmos rumos de Emmanuel Lévinas em Autrement qu’être ou au-delà de l’essence (43)) tende a levar-nos a posições éticas que - embora formalmente consistentes - desconsideram as mediações reais de toda ética como exercício de poder, vinculadas a desejos e interesses humanos tramados em uma semiose histórica que é a sua própria possibilidade de exercício.

Se ao invés de considerarmos o exercício da liberdade a partir dos modelos abstratos de uma "comunidade universal de comunicação" ou de uma "exterioridade metafísica des-inter-essada", o fizermos a partir da análise do atual processo de globalização - isto é, operarmos a partir do momento mais complexo de substancialização da categoria mais simples de liberdade -, perceberemos que este modelo de globalização que vai se configurando restringe cada vez mais o controle político sobre as mediações materiais que poderiam assegurar a liberdade coletiva. Por outro lado, nesta mesma configuração atual da globalização invoca-se o papel repressivo do Estado como mantenedor do direito - isto é, dos contratos comunicativamente estabelecidos nas instâncias políticas da democracia liberal - sobre a propriedade, para que a parcela que detém o controle dos meios - que poderiam mediatizar o exercício da liberdade coletiva - possam deles dispor privadamente como lhes bem aprouver em proveito de sua exclusiva liberdade.

Face a esses determinantes complexos, o processo de produção de subjetividades pode desenrolar-se de maneira subversiva, quando molecularmente os grupos rearticulam seus poderes e avançam para enfrentamentos globais não apenas da configuração atual da globalização, mas do próprio modelo capitalista, subvertendo seus códigos, signos e jogos estratégicos, seduzindo e agenciando práticas moleculares geradoras de movimentos de interferência global nas esferas de sua atuação. Isto supõe uma posição coletiva de classe e uma abertura à emergência das diversas singularidades que criativamente desabrocham nos processos de transformação, de modo que as alternativas políticas sejam gestadas criativamente na práxis histórica voltada à ampliação dos exercícios de liberdade pública de cada pessoa, enfrentando também a recaptura semiótica capitalística dos signos que mediatizam a consciência, paixões e condutas de implementação deste novo projeto coletivo, para que tais elementos sígnicos não percam sua qualidade agenciadora de novos processos moleculares e molares.

Além de assegurar as condições para que a sociedade civil possa se organizar em grupos, associações e movimentos autônomos, gerando partidos e outras entidades, trata-se especialmente de garantir que as organizações populares da sociedade civil participem, com poder, da administração do Estado e da condução de suas políticas com vistas à realização cada vez mais ampliada das liberdades pública e privada. Sem a efetiva participação dos setores populares da sociedade-civil-organizada na administração da coisa pública, na definição das leis e na fiscalização do seu cumprimento, não haverá ampliação das liberdades populares. No capitalismo - em qualquer uma de suas conformações históricas - o Estado, aparentemente democrático em suas formalidades, atua na reprodução de desigualdades e injustiças - e justamente por isso, não democratiza a elaboração das políticas, a gestão dos orçamentos, dos bancos de dados, etc.

Assim, para que o exercício da liberdade possa se ampliar é necessário garantir mecanismos democráticos que realmente universalizem o direito de todos exercerem o poder quanto à definição do modo público de organização da sociedade, especialmente com a democratização de todas as formas de mídias. Sem a superação das formas autoritárias de exercício do poder, na vida pública e privada, a liberdade coletiva não pode expandir-se. Sem a construção do poder popular, a garantia política da liberdade permanecerá um enredo virtual de manutenção de direitos que jamais se alcançam (44). Do mesmo modo é preciso que no cotidiano da vida privada sejam promovidas as autonomias individuais que não sejam contraditórias ao exercício público da liberdade, a fim de assegurar também nas micro-políticas a democratização do exercício do poder.

O terceiro aspecto do exercício da liberdade diz respeito à informação e educação. Não exerceremos satisfatoriamente a nossa liberdade se, mesmo tendo as condições políticas e materiais para concretizar nossas escolhas, não dispusermos de informações suficientes e de qualidade para as nossas decisões ou não soubermos como refletir adequadamente sobre as informações de que dispomos. Portanto, sem a democratização da educação e da informação não há expansão da liberdade, pois embora exista sempre alguma liberdade no ato de escolher, as escolhas acabam sendo induzidas por aqueles que selecionam e fornecem algumas informações e não outras. Além de fazer circular a informação e desenvolver mecanismos intelectuais de sua compreensão, é indispensável ressingularizar os interpretantes afetivos e energéticos frente aos signos (45).

Mais do que a quantidade, importa a suficiência e qualidade da informação para a decisão que devemos tomar - uma vez que todo signo sempre se refere apenas parcialmente ao seu objeto, sendo possível gerar infinitas informações sobre um mesmo objeto. Certas informações sobre um objeto geram certos interpretantes; outras informações sobre o mesmo objeto podem gerar outros interpretantes. Assim, a geração dos interpretantes é tão fundamental quanto o acesso à informação. As experiências de interação coletivas singularizadoras dos interpretantes geram a criatividade na abordagem dos objetos e a capacidade de compô-los sob variados aspectos. Isso é condição para a passagem das representações fragmentadas a uma conceituação abrangente, sem o que, toda opção política resultará de uma adesão cuja aparente autonomia não passa de um simulacro agenciado em algum jogo de poder. O acesso à diversidade das culturas, a habilidade em deslizar sob padrões estéticos diversos captando a riqueza dos eventos sob inúmeros códigos interpretativos, o desenvolvimento da sensibilidade ética frente ao mistério do humano em devir são mediações necessárias para que a formação cultural avance na realização da liberdade e a informação não seja saturante, embora disponível em larga escala.

Por fim, o exercício da liberdade com caráter democrático supõe condições éticas que perpassam a vida privada e pública. A moral dominante e o direito capitalista impõem padrões para o comportamento pessoal e social que negam, à maioria das pessoas, a realização de sua liberdade, seja dificultando o desabrochar de sua condição feminina, homossexual, negra, indígena, infantil, etc, ou reproduzindo privações sociais em nome da manutenção do direito de propriedade privada sobre os meios produtivos, por exemplo. A  análise de classes sociais permite  perceber nitidamente essa ocorrência de modo estrutural. A realização sempre mais ampliada da liberdade exige o combate das morais autoritárias dominantes e do direito capitalista - isto é, que privilegia o direito de propriedade privada do capital, em suas diversas formas, acima do direito público de realização da liberdade e dignidade humana - afirmando-se uma nova ética tanto na vida privada quanto no trato da coisa pública. O sentido último desta ética é a própria realização universal da liberdade humana. Geradora de interpretantes energéticos e afetivos, esta ética se assenta no desejo do outro em sua liberdade. Desejá-lo em sua liberdade significa desejar que ele disponha dos meios materiais, políticos e culturais que garantam o desabrochar de sua humanidade livre, de sua própria liberdade - desde que ela seja eticamente exercida, isto é, que se realize desejando também a liberdade dos demais. Por isso, a liberdade eticamente exercida exige que a riqueza seja repartida, que preconceitos e discriminações - de que são vítimas mulheres, negros, homossexuais, portadores de deficiência, imigrantes e outros grupos marginalizados - sejam superados, que a informação e a cultura sejam democratizados e que a dignidade e a liberdade humanas estejam acima de qualquer preço. Em uma palavra, esta ética exige que as condições históricas para a realização da liberdade de cada pessoa sejam asseguradas.

 

2.1 Globalização, Ética e Liberdade

Após esta rápida categorização do que significa exercício da liberdade, podemos considerar o capitalismo globalizado a partir dos vários aspectos mencionados como mediação de tal exercício. Em outras palavras, consideraremos agora a liberdade, concretamente situada em nossa sociedade contemporânea sob os influxos do capitalismo globalizado, analisando-a como um exercício determinado situacionalmente sob condições materiais, políticas, informativo-educacionais e éticas.

 

2.1.1 As Condições Materiais do Exercício da Liberdade

Como vimos as condições materiais são a base fundamental para que a liberdade seja realizadora. Ora, considerando a descrição que fizemos do capitalismo globalizado na primeira parte deste trabalho, podemos afirmar que a riqueza acumulada por uma reduzida quantidade de pessoas no mundo, lhes garante as condições materiais para a realização de sua liberdade aos mais extremos limites, caprichos e fantasias. A propriedade privada da maior parte de tal riqueza por algumas parcelas das sociedades - propriedade essa reassegurada sob a lógica do neoliberalismo - é o que provoca as privações da maioria que está privada de realizar a sua liberdade mais elementar: a liberdade de comer, morar ou vestir de modo dignamente humano - pois lhes falta as condições materiais para tal exercício, isto é, comida, a moradia ou o agasalho, ampliando-se, portanto, a fome, a prostituição, o nível de degradação cultural, etc. Considerando neste quadro o efeito das mediações tecnológicas que atualmente estão sendo introduzidas no processo produtivo, percebe-se que a produção de novos bens de consumo - inexistentes até bem pouco tempo - bem como a exclusão de significativas parcelas do processo produtivo formal, amplia para uma parcela da humanidade as possibilidades de exercício de sua liberdade, pois esta detém mais recursos para realizar seus desejos, fantasias, caprichos, necessidades e interesses, ao mesmo tempo em que se reduz a possibilidade real de exercício da liberdade de uma outra grande parcela que, em razão do desemprego de sua força de trabalho, sofre uma dramática redução do nível de recursos materiais que dispõem para reproduzir humanamente sua própria vida - embora virtualmente tal parcela possa vir se beneficiar desta tecnologia, se esta for socializada.

A atual fase do processo de globalização tem provocado o aumento da pobreza no mundo, acirrado o drama do desemprego, a marginalização urbana, a degradação ambiental e a decomposição do tecido social. Podemos destacar que tais fenômenos de exclusão são estruturais ao sistema econômico capitalista vigente desde o século XVI e não apenas uma disfunção localizada de atraso de algumas de suas conformações em certas regiões do mundo em relação a um pretenso processo de desenvolvimento e modernização - modernização essa propagandeada midiaticamente em defesa de programas de ajustes econômicos sob o receituário do Consenso de Washington. A dinâmica de negar o exercício da liberdade de muitos para ampliar o exercício da liberdade de alguns é a característica essencial do capitalismo. É em razão disto que em todas as sociedades capitalistas se verifica, em graus diferenciados, a exploração do trabalho, a expropriação no consumo, a dominação política e a reprodução de uma moral e de um direito anti-libertários. Para garantir-se a liberdade privada de alguns nega-se sistematicamente a extensão das liberdades públicas. Qualquer reforma que se faça desse regime não extinguirá essa contradição. Frente ao modelo de globalização capitalista há que gerar-se uma alternativa socialista, com o objetivo de universalizar as condições do exercício da liberdade, anteriormente destacadas.

Para ampliar-se pois o exercício das liberdades coletivas é necessário socializar-se, entre outras, as suas condições materiais. A liberdade humana tem que estar acima do copyright, da propriedade privada do capital - objetivo ou virtual. É um absurdo que quanto mais volumosa seja a concentração do capital, menos ele possa ser investido na produção, pois falta mercado consumidor que lhe possibilite ampliar o lucro - isto é, pessoas com dinheiro - para adquirir tantos produtos. Como o capital não tem por objeto ampliar a realização da liberdade de todos, ele se desloca da esfera produtiva para um setor especulativo da esfera virtual, ocorrendo então a sua multiplicação por mediações semióticas de taxas de juros - pagas com a ampliação ainda maior das carência das maiorias, que ficam desassistidas de políticas sociais em razão da ciranda de emissão e resgate de títulos públicos, pressionando a ampliação das dívidas externa e interna de tais países. Portanto, é de fundamental importância socializar o controle dos meios produtivos e do capital virtual, para que possam ser empregados com vistas a realizar a emancipação social, a realização da liberdade pública e não apenas o enriquecimento de uma parcela de agentes privados.

 

2.1.2 As condições Políticas do Exercício da Liberdade

De outra parte, a real democratização da política, isto é, a garantia do exercício da autonomia pessoal e coletiva - eticamente assumidas - é também condição chave da realização da liberdade. Não basta assegurar as condições materiais para que a liberdade seja expandida. Sendo assim, a decisão sobre o que fazer das mediações materiais e virtuais em uma sociedade, isto é, o exercício da política considerando os interesses públicos e privados, necessita ser estendido o máximo possível, assegurando-se o controle popular na condução das políticas públicas.

O fenômeno da expansão do regime globalitário de condução da política evidencia a negação da autonomia pública substancialmente democrática pela afirmação de processos de agenciamento de subjetividades modelizadas midiaticamente. O Brasil é um exemplo sintomático do exercício formal da democracia em que se elege corruptos como se fossem pessoas íntegras, apoia-se cegamente planos econômicos cujos reais mecanismos são desconhecidos pela população, etc. No mundo todo, a política torna-se cada vez mais virtual e os Estados são enfraquecidos em sua capacidade de assegurar as elementares mediações materiais, políticas e culturais da liberdade pública, tais como, garantir o abastecimento alimentar, políticas adequadas de saúde e educação ou assegurar a soberania do país frente ao volume de capitais voláteis internacionais. As privatizações, os mega-mercados, o sucateamento dos serviços públicos, entre outros aspectos, evidenciam que a globalização caminha no sentido contrário de assegurar as liberdades públicas, ao passo que amplia a liberdade privada de uma pequena parcela que detém o grande capital.

Exemplos típicos do Estado posto ao serviço privado são as leis de patentes sobre biotecnologia, os direitos de cópia, os royalties, entre outros mecanismos de concentração de capital virtual, que se sustentam sob o mesmo princípio do direito sobre a propriedade privada: a maioria dos cidadãos fica privada de poder utilizar tais produtos, serviços ou signos, exceto pagando algo em troca. Assim, a política - do ponto de vista dos que detém o controle do capital - cumpre o papel que lhe cabe em uma sociedade de classes: restringir a liberdade da maioria para promover a liberdade de apropriação privada da riqueza pela minoria que detém direitos sobre ela; o Estado, contudo, afirma assegurar os mesmos direitos igualmente a todos - sendo que a maioria, entretanto, não os tem garantidos, porque objetivamente não possui as propriedades materiais que possam mediatizar o seu trabalho produtivo, a sua reprodução social ou o sua emancipação cultural. Trata-se, portanto, de uma garantia virtual : o dia em que tiverem a propriedade, o estado a assegurará do mesmo modo. Mas como os mecanismos reconhecidos como legítimos pelo estado para que todas as pessoas adquiram tal propriedade impede, de fato, que elas a alcancem, temos que a função do estado neste modelo globalizado não é promover a realização das liberdades públicas, mas garantir interesses privados das parcelas que o controlam a partir das transações e movimentos de capital, convertendo tal capital em signos, publicidades, investimentos vistosos, etc, que garantam a certos grupos políticos - com uma mesma posição de classe - a permanência no poder. Somente a transformação da democracia liberal em democracia socialista pode conferir ao exercício da macropolítica um caráter de ampliação das liberdades públicas e privadas eticamente orientadas.

O neoliberalismo - sob as suas variadas configurações - é a expressão política maior do capitalismo globalizado. As atuais políticas de ajustes econômicos e a restruturação do processo produtivo penalizam amplas maiorias enquanto beneficiam enormemente pequenas parcelas de agentes econômicos que conduzem a opinião pública pela mediação da produção de subjetividades modelizadas através de publicidades políticas - a defesa por segmentos populares de medidas do Consenso de Washington, na esperança de dias melhores depois dos "ajustes estruturais", é apenas mais um exemplo desta produção de livres-escolhas formalmente democráticas. A adesão popular ao toque de recolher para a juventude em cidades norte-americanas é outro triste exemplo disso. Este modelo não propõe algum tipo de política compensatória ao desemprego, contrapartida aos movimentos dos capitais especulativos, propostas de descentralização e democratização real dos orçamentos, gestão popular dos planejamentos, auditorias de dívidas externas e internas, a proteção à produção cultural local, ao meio ambiente ou a democratização dos bancos de dados. O projeto político neoliberal não visa garantir liberdades públicas, mas apenas interesses privados. Se visasse garantir liberdades públicas apontaria claramente para a socialização das condições materiais necessárias à realização da liberdade de cada pessoa, a começar pela comida, pelo emprego, pela moradia, pelo acesso à saúde, à educação e ao lazer. Tudo o que faz é prometer que o futuro será melhor que o presente porque a competição entre os agentes econômicos provocaria desenvolvimento e geração de riqueza. O que notamos, entretanto, é que o desenvolvimento tecnológico e a geração de riquezas sob a lógica da acumulação privada tem gerado um número cada vez maior de excluídos e miseráveis, desmentindo-se tais promessas - seja analisando-se indicadores macroeconômicos internacionais, seja considerando-se a situação local das metrópoles e megalópoles com suas contradições e carências.

Somente um projeto político que inverta as prioridades do desenvolvimento econômico, que promova a desconcentração da riqueza, do poder político, do domínio dos canais de mídia e socialize a cultura; que não tenha por objetivo garantir o acúmulo privado de riqueza por agentes econômicos, mas ao invés disso, a superação das privações da maioria para o exercício de sua liberdade, isto é, garantir politicamente que todos tenham acesso às mediações materiais para realizar a sua liberdade com a dignidade humana exigida, somente tal projeto pode ser uma alternativa política real ao atual processo de globalização mundial. Este projeto, que se chama socialismo democrático, necessita ser reinventado a partir de cada realidade histórica - como já o reinventam, cotidianamente, muitos partidos e movimentos socialistas e ecológicos no mundo todo - com a contribuição de todos os que não concordam com a lógica da negação da liberdade promovida pelo modelo neoliberal.

Assim, a ampliação das garantias políticas do exercício das liberdades pública e privada tem como contraface o exercício da liberdade política dos cidadãos em posicionarem-se frente às contradições que perpassam as relações sociais, pois mesmo que as liberdades políticas estejam amplamente cerceadas - como nos períodos de ditadura - ou extremamente formalizadas - como sob os regimes globalitários - mesmo assim é possível optar-se pela resistência e pela proposição de um modo distinto de organizar-se a sociedade em suas múltiplas dimensões, em especial no que tange aos conflitos sociais nas esferas produtiva, reprodutiva e cultural. Assumir uma posição política que visa promover o exercício das liberdades pública e privada eticamente orientadas significa assumir uma posição de combater a exploração do trabalho, a expropriação em atividades de reprodução social da vida, bem como, toda forma de dominação cultural e da exclusão sofrida por amplos segmentos, aos quais não se permite participar das mediações que possam garantir a sua realização humana.

 

2.1.3 Informação e Educação como Condições do Exercício da Liberdade.

Consideremos ainda que este modelo capitalista de globalização nega a liberdade pública porque ao concentrar as mídias de massa nas mãos de grupos que possuem a mesma posição de classe  não possibilita que tenhamos acesso às informações suficientes e qualitativamente relevantes para o exercício de nossas autonomias subjetivas de reflexão e decisão. Em geral temos acesso a certas informações relevantes a certos exercícios de liberdade apenas quando decisões irreversíveis já foram tomadas e o seu posterior conhecimento não tem mais um significativo peso na alteração de tendências históricas. O domínio das linguagens - publicitárias, econômicas, informáticas, políticas, etc - é precário para as maiorias que - sob a lógica da disputa por mercado - são influenciadas por elas em razão dos movimentos do capital.

Sob o aspecto cultural, o processo de globalização vem trazendo perdas irreparáveis para a humanidade. A imensa diversidade de sabedorias, sensibilidades, poesias, maneiras, modelos e padrões diferentes de se experimentar a existência humana, de se compreender a história, a realidade e o que nos transcende está sendo irremediavelmente perdido. As línguas naturais, principal repositório e fonte para a criativa transformação das culturas, vem sendo vítimas de um extermínio implacável. Em 1884 havia 8.064 línguas vivas, entre as quais 787 eram praticadas na Europa. Atualmente este número baixou para aproximadamente 3.500. Toda a rica diversidade cultural fervilhante em mais de 4 mil línguas vivas, morreu em nosso século. A língua materna mais falada atualmente no mundo, o mandarim - praticado por mais de 950 milhões de pessoas - é tão morta na Internet quanto o latim (46).

Este fenômeno de laminação da cultura, em que o extermínio das línguas naturais é uma perda irreparável, prossegue, inibindo a geração de certos interpretantes criativos nas diversas culturas e impondo padrões de racionalidade e de condutas sob o capitalismo globalizado como sistema semiótico modelizante geral. Sob a perspectiva estética - isto é, da sensibilidade humana - a indiferença frente ao sofrimento alheio é cada vez maior com a saturação da informação, desterritorializada e produzida como simulacro, que tende a levar a um sentimento de impotência frente à adversidade global. É comum, para espectadores de classes médias, girar o seletor de canais de TV - possibilitando que sua subjetividade seja atingida, em dez segundos, por fragmentos de publicidades, jogos, imagens de pessoas sendo chacinadas, comerciais de shampoos, guerras no leste Europeu, sem-terras nas ruas, comerciais de loterias, etc - e após esse breve giro sintonizar-se em algum filme de aventuras e saborear-se uma cerveja. Isto evidencia que o sentimento de dignidade humana vai sendo perdido, juntamente com os interpretantes afetivos que singularizam a existência. A reação frente aos acontecimentos históricos é similar à reação frente às imagens do noticiário: passa-se à condição de espectador, pois os interpretantes energéticos - a reação subjetiva de agir objetivamente - também são modelizados sob os jogos de poder dominantes e canalizados para alguma atitude virtual. O que nos deve mover - sob a lógica da globalização - não é o sofrimento das crianças que morrem desnutridas e com diarréia no Terceiro Mundo, em nosso país, em nossa cidade, nas favelas ou cortiços que avistamos todos os dias, onde moram os catadores de papelão que vemos pela cidade. O que nos deve mover, em tal estratégia, é a beleza e emoção da peça publicitária que nos faça consumir o signo e girar o capital, promover o lucro e evadir a um mundo virtual, produzido semioticamente.

Assim, condição para ampliar o exercício da liberdade é também singularizar nossos interpretantes afetivos e energéticos; é recuperar nossa sensibilidade mutilada, desumanizada por essa lógica do capital que transforma a tragédia humana em índices de audiência de telejornal para vender inserções publicitárias a cada 4 minutos. Para ampliar a liberdade é preciso libertar nosso sentimento e nossa paixão, recuperar o gesto da ternura e do carinho, solidarizar-nos com os excluídos e marginalizados - com os Condenados da Terra. Não exerce humanamente e eticamente a liberdade quem não reage à aviltação de qualquer ser humano, quem aceita a existência da miséria como contrapartida da riqueza daqueles a quem inveja.

Para ampliar-se, pois, a realização da liberdade de todos, neste aspecto, é preciso disponibilizar, em todos os níveis, informações em quantidade suficiente e em qualidade adequada para a tomada de posição dos sujeitos frente aos conflitos sociais, para que possam decidir em sua vida privada e pública, por aquilo que lhes pareça mais adequado, bem como, socializar, através da educação, a habilidade de articular informações e interpretantes para um exercício adequado das autonomias. Contudo, aqueles que dispõem dos canais para tal circulação de massa da informação, selecionam, desde sua posição de classe, o ângulo do que convém divulgar sob os imperativos econômicos do acúmulo do capital e da manutenção de continuidade de seu poder. Assim, percebemos que este terceiro aspecto está diretamente relacionado com o primeiro: é necessário equalizar os meios materiais de circulação de mensagem de massa, ou dito de outro modo, é indispensável democratizar a distribuição de mensagem pelas mídias de massa, criando a possibilidade de manifestação dos diversos segmentos sociais. Justamente porque a mídia tem papel fundamental na manutenção da organização capitalista da sociedade é que os governos cuidam tanto da concessão de canal, evitando que eles possam ser operados pelos segmentos da sociedade que são contrários à manutenção do capitalismo e que poderiam operá-los desde uma posição de classe divergente.

Por outra parte, assegurar a educação pública, gratuita, universal e de qualidade é condição indispensável para ampliar o exercício da liberdade de cada pessoa que, desenvolvendo sua capacidade de pesquisa, abstração e síntese poderá exercer de maneira consciente e criteriosa a sua liberdade. Sob a lógica da globalização, contudo, a educação é reduzida a uma mediação instrumental do processo produtivo - uma vez que o conhecimento se converteu em mercadoria ou insumo produtivo. Mesmo os sentimentos e outras intensidades subjetivas podem ser pedagogicamente orientados no desenvolvimento de uma "inteligência emocional" que contribua para ampliar a produtividade das empresas. Vê-se, portanto, que sob a lógica da globalização também a educação fica debilitada como elemento essencial da expansão do exercício de liberdade para se tornar mais uma mediação de acúmulo de capital.

 

2.1.4 As Condições Éticas do Exercício da Liberdade

Por fim, desde o ponto de vista ético, a globalização capitalista é passível de consideráveis críticas. A organização dos blocos econômicos, a implantação das políticas neoliberais, os processos de produção de subjetividade, a lógica da reprodução social nos espaços urbanos, os critérios de intervenção militar internacional, o caráter de organismos internacionais como a OMC, FMI, entre outros muitos aspectos que poderíamos enumerar, carecem do princípio ético da universalização da liberdade. Sob tal lógica, não se trata de desenvolver políticas que visem a ampliação da liberdade de todas as pessoas, estendendo ao máximo os horizontes de sua realização possível, mas de garantir hegemonias econômicas aos mega-conglomerados e aos países de capitalismo avançado que se articulam e se justificam, sob variados conjuntos de representações aplicados à economia, à geopolítica, etc. A degradação da vida de milhões de pessoas no mundo todo é considerada apenas como um desdobramento passageiro dos ajustes macroeconômicos necessários à retomada do crescimento produtivo mediado por novas tecnologias mais flexíveis e emancipadoras dos trabalhos duros e repetitivos - tecnologias que levariam pelo menos 30 anos para se massificar, gerando então uma nova onda econômica positiva. Um estudo mais detalhado, entretanto, nos mostra o caráter simplista destas afirmações que nada possuem de conceitual se pretendem induzir a crer que o crescimento produtivo do atual modelo signifique desconcentração de riqueza e o fim da exclusão social. Os produtos não se barateiam na mesma proporção em que se escasseiam os recursos dos mais pobres, que ficam excluídos do processo produtivo formal.

O discurso moralista de que os marginalizados ou empobrecidos devem sofrer agora, pagando o necessário preço para que os ajustes econômicos possam trazer a prosperidade depois, é uma negação da ética da realização da liberdade humana. Sob a mesma lógica observada a partir das duas grandes revoluções tecnológicas anteriores subsumidas na espiral do capitalismo, ocorre uma expansão desmesurada das possibilidades de exercício da liberdade dos que a controlam, acompanhada de uma assimilação social dessas mediações que, embora ampliem as possibilidades de exercício social da liberdade, produzem novas necessidades às quais todos têm que se submeter e que possibilitam ampliar o sucessivo movimento de acumulação do capital. Se todo o capital virtual existente fosse investido em processos produtivos gerando emprego e subsidiando o consumo das pessoas que não tem recursos, seria possível atender as demandas do mundo todo e sobraria ainda muito capital para desenvolver-se pesquisas de inovações científicas e tecnológicas. Contudo, a moral burguesa do acúmulo privado, que amplia a liberdade de seu possuidor, é o que está na base legitimadora deste discurso moralista que acusa os pobres de serem incompetentes e atrasados, culpados pela sua própria desgraça - lavando-se as mãos da responsabilidade ética frente ao modelo econômico estrutural que generaliza o empobrecimento das massas no mundo todo.

A ética a que nos referimos também não está presente no movimento de produção de subjetividades que se realiza com vistas a inserção de tais subjetividades em processos produtivos flexibilizados em que os trabalhadores são considerados "colaboradores", chamados a serem "críticos" ou viverem um espírito "fraterno" de equipe. O que importa, de fato, é a ampliação ou manutenção do volume de lucro da empresa, bater o concorrente, expandir seu mercado. E para tanto, mesmo o empregado "colaborador", "crítico" e "fraterno" será demitido quando a restruturação organizacional se fizer necessária. Sob a semiótica do acúmulo de capital tais adjetivos ganham novos interpretantes - produtividade, eficiência e lucro.

O mesmo ocorre quando analisamos o movimento de produção de subjetividades com vistas a promoção do consumo. Captura-se, por exemplo, os interpretantes da família feliz, reunida em torno da mesa no café da manhã, para modelizar a marca da margarina; captura-se o carinho pelas crianças para transformá-lo em interpretante de uma certa marca de leite; modeliza-se o reconhecimento social de um jovem em seu grupo de amigos para vender a marca do tênis; e assim por diante. O que importa mesmo é vender a marca da margarina, do leite ou do tênis. Tudo tornou-se valor de troca ou é modelizado por ele. Mesmo o sofrimento da família que vê seu barraco arder em chamas ou da mãe que recebe a notícia da morte de seus filhos pode ser capturada na lógica do lucro: a câmera do telejornal tem que perseguir o olhar para exibir a lágrima que rola e a pergunta tem que ser feita para que a voz seja registrada, embargada e com soluços - assim se conquista alguns pontos a mais de audiência, que tornam também alguns percentuais mais caro o preço das inserções do comercial. É aviltante esta imoralidade do espetáculo sobre a desgraça ou a manipulação da ternura para gerar o lucro.

Vemos portanto que este modelo de capitalismo globalizado - como ademais as outras configurações desse sistema econômico - nega as quatro condições históricas essenciais da realização da liberdade pública, bem como, da liberdade privada da maior parte da população das nações por ele afetadas. A superação de tal modelo implica a ação histórica daqueles que desejam ampliar a realização das liberdades públicas e privadas assumindo a ética apontada como alicerce de uma nova sociedade. Assumir esta ética significa, simultaneamente, assumir uma posição de classe frente às contradições do processo produtivo, de reprodução social e no campo da cultura. Isto significa, assumir a construção coletiva de um projeto político alternativo, democrático e popular que avance seguramente para a socialização da riqueza, do poder e da cultura - que seja ao mesmo tempo a singularização de nossa própria sensibilidade e a recuperação dos interpretantes afetivos de nossa experiência de humanidade.

 

Considerações Finais

Se considerarmos que o objetivo maior da ética é orientar a conduta humana tendo em vista ampliar as liberdades públicas e privadas a fim de promover o bem viver, podemos afirmar que as forças econômicas que animam a globalização estão muito distantes de uma conduta ética. Contrariamente do que escreveu Von Mises acerca das leis praxeológicas, as leis do mercado - sob os influxos da nova revolução tecnológica - conduzem a maior parte da humanidade a uma exclusão e desumanização crescentes.

Em suas bases fundantes, o neoliberalismo, como vimos, é inconsistente. Contudo, boa parte dos economistas e políticos que o difundem atualmente não problematizaram adequadamente os seus pressupostos. O neoliberalismo opera assim como uma forte ideologia, capaz de justificar os interesses de uma parcela de agentes econômicos que detém um significativo volume de capital em busca de mercados e aplicações lucrativas, independentemente dos efeitos que esses movimentos de capitais possam ocasionar, no que se refere à negação da cidadania e do bem viver coletivo.

Diferentemente, quando consideramos as condições de realização histórica da liberdade podemos formular outros critérios que servem para nortear as condutas humanas em meio ao novo cenário peculiar à globalização. Por somente considerar eticamente defensável a conduta que promova as liberdades publicas e privadas eticamente orientadas, os atores sociais que defendem a democracia substantiva reafirmam a necessidade de que as mediações materiais, políticas, educativas e informacionais sejam compartilhadas socialmente, a fim de que cada ser humano possa desenvolver suas valiosas qualidades, realizando-se a si mesmo como pessoa e contribuindo para a expansão das liberdades públicas e privadas. Isto requer, sob uma perspectiva histórica, a efetivação de um outro modelo de sociedade, em que a economia seja determinada a partir da política, subordinando assim as transações no mercado ao bem viver, eticamente orientado, de toda a humanidade.

 

 

NOTAS:

1. Fonte: ONU. Human Development  Report 1998 - Changing today’s consumption patterns — for tomorrow’s human development -  "Overview" http://www.undp.org/undp/hdro/e98over.htm

2. "Os números da ONU". Folha de São Paulo, 16 jul 96, p. 1-8, São Paulo.

3. Nascido na cidade austro-húngara de Lemberg em1881, Mises ingressou, aos 19 anos, na Universidade de Viena, onde recebeu seu doutorado aos 27 anos. Em 1973, ele faleceu em Nova Yorque. Entre seus livros estão The Theory of Money and Credit (1912) e Human Action (1949). Há uma tradução ao português deste volume. Outra tradução, apenas de uma parte sua, foi publicada no Brasil com o título O Mercado.

4. Ludwig von MISES. O Mercado. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987, p.58

5. Ibidem, p. 58

6. Ibidem, p. 59

7. Ibidem, p. 59

8. Ibidem, p. 60

9. Ibidem, p. 60

10. Ludwig von MISES. Liberalismo - Segundo a Tradição Clássica. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987, p. 22

11. Ludwig von MISES. O Mercado., p. 67

12. Ludwig von MISES. Liberalismo - Segundo a Tradição Clássica. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987, p.22

13. Ludwig von MISES. Liberalismo - Segundo a Tradição Clássica. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987, p.135

14. Ibidem, p. 135

15. Ibidem, p. 181

16. Ibidem, p. 5

17. Ibidem, p. 9

18. Ibidem, p. 14

19. Ibidem, p. 13

20. Ibidem, p. 11

21. Ibidem, p. 15 e 16

22. Ibidem, p. 30

23. Ibidem, p. 30

24. Ibidem, p. 31

25. Ibidem, p. 32-33

26. Ibidem, p. 33-34

27. Ibidem, p. 34-35

28. Ibidem, p. 35

29. Ibidem, p. 36

30. Ibidem, p. 39

31. Ibidem, p. 59

32. Ibidem, p. 41

33. Ibidem, p. 43

34. Ibidem, p. 190

35. Ludwig von MISES. Uma Crítica ao Intervencionismo. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica e Instituto Liberal, 1987, p. 82

36. Ludwig von MISES. O Mercado, p. 67

37. Ibidem, p. 67

38. Ibidem, p. 67

39. Veja-se Felix GUATTARI. Revolução Molecular, ed. Brasiliense, São Paulo, 1987

40. Theodor ADORNO e Max HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

41. Utilizamos essa expressão com o sentido filosófico a ela emprestado no trabalho de Enrique DUSSEL, "Del Esceptico Ao Cinico ( Del oponente de la 'Etica del Discurso' al de la 'Filosofia de la Liberacion')". Libertação-Liberación 3(1):36-47 Jan Dez 1993, Campo Grande, CEFIL.

42. Em certa passagem da Microfísica do Poder , Gilles Deleuze, abordando a questão das relações entre interesse, desejo e poder, afirma que "... talvez em termos de investimentos, tanto econômicos quanto inconscientes, o interesse não seja a última palavra; há investimentos de desejo que explicam que se possa desejar, não contra seu interesse - visto que o interesse é sempre uma decorrência e se encontra onde o desejo o coloca - mas desejar de alguma forma mais profunda e mais difusa do que seu interesse... Há investimentos de desejo que modelam o poder e o difundem..." E lembra a afirmação de Reich sobre as massas e o fascismo, dizendo que as massas não foram enganadas, de fato elas desejaram o fascismo. Retomando esta questão, Foucault complementa: "... as relações entre desejo, poder e interesse são mais complexas do que geralmente se acredita... Acontece que as massas, no momento do fascismo, desejam que alguns exerçam o poder, alguns que, no entanto, não se confundem com elas, visto que o poder se exercerá sobre elas e em detrimento delas, até a morte, o sacrifício e o massacre delas; e, no entanto, elas desejam este poder, desejam que este poder seja exercido. Esta relação entre o desejo, o poder e o interesse é ainda pouco conhecida. Foi preciso muito tempo para saber o que era a exploração. E o desejo foi e ainda é um grande desconhecido". Michel FOUCAULT, Microfísica do Poder , Rio de Janeiro, Graal, 1979, p.76 e 77. Félix Guattari avançou significativamente esta reflexão em Revolução Molecular, Editora Brasiliense, São Paulo, 1987

43. Emmanuel LEVINAS, De otro modo que ser, o mas alla de la essencia. Editora Sigueme, Salamanca,1987

44. Sobre este aspecto ver "O Discurso Jurídico e a Realidade Virtual", em "Realidade Virtual - Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político". Revista Lumen 2(4):75-135 jun 1996. FAI, São Paulo. Aqui, pp. 102 a 106.

45. Como vimos, toda semiose pode ser analisada considerando-se a relação entre o objeto dinâmico (o que provoca o signo), o objeto imediato (o signo ou representamem do objeto dinâmico) e o interpretante (reação intelectual, afetiva ou energética ao objeto dinâmico provocada pelo objeto imediato, que nos possibilita estabelecer um sentido ou significado ao objeto dinâmico). Assim o acionamento dos interpretantes da informação é um elementos básico para a realização da semiose. Ocorre que a reação energética - no caso, mobilização de ação corporal frente ao signo - ou a reação afetiva - no caso, mobilização de sentimentos frente ao signo - são cada vez menos fortes em se tratando de índices de desumanidade. Há um aumento da indiferença, tanto afetiva quanto de conduta, frente ao sofrimento humano percebido por alguma mediação sígnica indicial; tal indiferença vem acompanhada, cada vez mais, da geração de interpretantes intelectuais que justifiquem a omissão. É necessário pois ressingularizar os interpretantes a partir dos quais nos posicionamos frentes a índices de desumanidade, interpretantes esses que são elementos imprescindíveis a uma práxis ética e um compromisso social.

46. Cf. "A língua franca varre tudo". Revista Veja Especial - Computador, o Micro chega às casas. Abril, 1995. p. 123

 

Referências Bibliográficas

"A língua franca varre tudo". Revista Veja Especial - Computador, o Micro chega às casas. Abril, 1995. p. 123

"Os números da ONU". Folha de São Paulo, 16 jul 96, p. 1-8, São Paulo.

ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.

DUSSEL, Enrique. "Del Esceptico Ao Cinico (Del oponente de la 'Etica del Discurso' al de la 'Filosofia de la Liberacion')". Libertação-Liberación 3(1):36-47 Jan Dez 1993, Campo Grande, CEFIL.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1979

GUATTARI, Felix. Revolução Molecular. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987

LEVINAS, Emmanuel. De otro modo que ser, o mas alla de la essencia. Editora Sigueme, Salamanca,1987

MANCE, Euclides André. "Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político". Revista Lumen 2(4):75-135 jun 1996. FAI, São Paulo

MISES, Ludwig von. Liberalismo - Segundo a Tradição Clássica. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987

________. Uma Crítica ao Intervencionismo. Rio de Janeiro, Editorial Nórdica e Instituto Liberal, 1987

________. O Mercado. Rio de Janeiro, José Olympio Ed. e Instituto Liberal, 1987

ONU. Human Development  Report 1998 - Changing today’s consumption patterns — for tomorrow’s human development -  "Overview". http://www.undp.org/undp/hdro/e98over.htm


Questões Éticas no Mundo Globalizado
Minicurso na Semana Filosófica da UFES
São Mateus,  Espírito Santo, 24 e 25 de novembro de 1998
www.milenio.com.br/mance/questoes.htm


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