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Redes de Colaboração Solidária:
Construindo uma Nova sociedade * .

Euclides André Mance
IFIL, março de 2000


1. As Redes de Colaboração Solidária atendem demandas imediatas e combatem o capitalismo.

A proposta das Redes de Colaboração Solidária foi elaborada na perspectiva da filosofia da libertação, partindo-se de diversas práticas de sócio-economia solidária realizadas em vários lugares do mundo. Depois de uma ampla reflexão sobre práticas diferentes de financiamento, produção, comercio e consumo solidários, foram retomados diversos aspectos bem sucedidos dessas propostas, construindo-se uma estratégia viável que permite a geração de trabalho e renda em sistemas de rede, que tem por sujeitos os segmentos atualmente excluídos pelo capitalismo e aqueles que lhes são solidários. O objetivo desta proposta prática é gerar trabalho e renda para as pessoas que estão desempregadas ou marginalizadas e para aqueles que não mais desejam ser explorados sob o capitalismo, melhorar o padrão de consumo de todos os seus participantes, combater toda forma de preconceito e discriminação, preservar o equilíbrio ecológico e construir uma nova sociedade em que não haja a exploração das pessoas ou a destruição da natureza.

A organização de uma Rede de Colaboração Solidária permite integrar ações não apenas de cooperativas e grupos de produtores e consumidores, mas também de associações de moradores, organizações eclesiais, sindicatos, movimentos populares e culturais e de outras organizações sociais como formas de difusão do consumo e do trabalho solidários, da preservação do equilíbrio ecológico e das lutas contra toda a forma de preconceito, discriminação e opressão, reafirmando o direito de todos à cidadania.

Quando uma rede de colaboração solidária é organizada, ela passa a atender demandas imediatas da população por trabalho, melhoria no consumo, educação, reafirmação da dignidade humana das pessoas e do seu direito ao bem viver, ao mesmo tempo em que combate as estruturas capitalistas de exploração e dominação responsáveis pela pobreza e exclusão, e começa a implantar um novo modo de produzir, consumir e conviver em que a solidariedade está no cerne da vida. As Redes de Colaboração Solidária portanto: a) permitem aglutinar diversos atores sociais em um movimento social orgânico com forte potencial transformador; b) atendem demandas imediatas desses atores por emprego de sua força de trabalho e por satisfação de suas demandas por consumo, entre outras; c) negam estruturas capitalistas de exploração do trabalho, de expropriação no consumo e de dominação política e cultural, e d) passam a implementar uma nova forma pós-capitalista de produzir e consumir, de organizar a vida coletiva afirmando o direito à diferença e à singularidade de cada pessoa, promovendo solidariamente as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.

 

2. O Consumo e a Produção Solidárias contribuem na transformação da sociedade.

Do ponto de vista econômico, o funcionamento de uma Rede de Colaboração Solidária depende apenas do consumo e do trabalho solidários. De fato, o consumo é o momento final do processo produtivo. Quando consumimos bens e serviços em cujo processo de produção pessoas foram exploradas e o meio ambiente degradado, nós também somos responsáveis por esses danos à humanidade, uma vez que ao consumir esses produtos e serviços nós contribuímos para o giro dessa produção e garantimos a reprodução dessa prática econômica lesiva à sociedade e ao meio ambiente. Contudo, se consumirmos produtos e serviços elaborados solidariamente, de maneira justa e ecologicamente sustentável, identificados pelas marcas das redes solidárias, além de garantirmos o nosso bem viver usufruindo de produtos e serviços de qualidade, possibilitamos também que esses empreendimentos vendam toda a sua produção, ampliando o excedente alcançado que será reinvestido na implantação de outros empreendimentos solidários que visam produzir outros bens e serviços ainda não disponibilizados nessas redes, permitindo a geração de novos postos de trabalho, a distribuição de renda pela incorporação de mais pessoas ao processo produtivo e a preservação do equilíbrio ecológico do meio ambiente. O ato de consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é também ético e político.

Assim compreendido, o consumo solidário significa selecionar os bens de consumo ou serviços que atendam nossas necessidades e desejos, visando realizar o nosso livre bem viver pessoal, promover o bem viver dos trabalhadores que elaboram aquele produto ou serviço, manter o equilíbrio dos ecossistemas e contribuir para a construção de uma nova sociedade justa e solidária.

 

3. A Rede integra consumidores e produtores. O excedente produzido permite expandir a Rede.

A Rede de Colaboração Solidária integra grupos de consumidores, de produtores e de prestadores de serviço em uma mesma organização. Todos se propõem a praticar o consumo solidário, isto é, comprar produtos e serviços da própria Rede para garantir trabalho e renda aos seus membros e para proteger o meio ambiente. Por outro lado, uma parte do excedente obtido pelos produtores e prestadores de serviços com a venda de seus produtos e serviços na rede é reinvestido na própria rede para gerar mais cooperativas, grupos de produção e microempresas, a fim de criar novos postos de trabalho e aumentar a oferta solidária de produtos e serviços. Isso permite incrementar o consumo de todos, ao mesmo tempo em que diminui volume e o número de itens que a rede ainda compra no mercado capitalista, evitando com isso que a riqueza produzida na Rede seja acumulada por capitalistas. O objetivo da Rede é produzir tudo o que as pessoas necessitam para realizar o bem viver de cada um.

Quando os consumidores praticam o consumo solidário, consumindo os produtos de uma empresa (uma padaria comunitária, p. ex.) que não explora os trabalhadores e protege o meio ambiente, essa empresa vende toda a sua produção e gera um excedente, que na lógica capitalista seria lucro. Esse excedente, entretanto, na lógica da solidariedade é reinvestido coletivamente na construção de novas empresas gerando novos postos de trabalho, diversificando a produção e melhorando o padrão de consumo de todos os que participam da Rede. Desse modo, quanto mais essas redes crescem distribuindo renda com a justa remuneração do trabalho solidário, maiores são o conjunto de pessoas que a elas se integra e a demanda de consumo por elas atendida, gerando novas oportunidades de trabalho e ampliando ainda mais a distribuição de renda.

 

4. Com solidariedade, autonomia e conhecimento as Redes podem ser iniciadas em qualquer lugar.

As famílias, comunidades eclesiais, vizinhanças ou sindicatos podem organizar, por exemplo, grupos de compras conjuntas. Com o desconto que esses grupos conseguem comprando no atacado, eles continuam comprando a mesma quantidade de produtos, mas podem organizar com o dinheiro poupado um fundo para montar as cooperativas de produção com a finalidade de atender a essas próprias demandas.

Assim, tudo o que esses grupos compram no mercado e que possa ser produzido pelas pessoas que integram a rede local, passa a ser produzido e comercializado na própria comunidade. Isso gera oportunidade de trabalho para as pessoas que estão desempregadas e que podem atender essas demandas (pães, doces, macarrão, sorvetes, frangos, ovos, verduras, sabão, água sanitária, roupas, cerveja caseira, geléia, confecções, reparos elétricos e hidráulicos, construção, cursos, aulas de informática e tudo o mais que possa ser feito). O excedente produzido nessas atividades, que seria considerado lucro na sociedade capitalista, é reinvestido para criar outras cooperativas populares gerando oportunidade de trabalho para mais pessoas e assim a rede vai crescendo.

Por exemplo. Imaginemos que duzentas famílias de um bairro decidam fazer compras solidárias. Ao invés de cada família ir comprar 5 quilos de macarrão em supermercados diferentes em sua compra do mês, todas juntas farão uma única compra direto no atacadista, adquirindo uma tonelada de macarrão! O volume da compra lhes trará um bom desconto. Assim, comprando juntas, as famílias pagarão mais barato. O mesmo acontece com todos os outros produtos da lista de compras. Então, entre aquelas famílias, são organizados grupos de produção para fabricar macarrão, produtos de limpeza e tudo o mais que seja possível produzir e que esteja nas listas de compras ou que sejam demandas de consumo dos demais membros da rede. Esses produtores receberão uma justa remuneração pelo seu trabalho, devendo os empreendimentos serem legalizados e os trabalhadores registrados. É fundamental que os produtos sejam de boa qualidade, para garantir o bem viver dos consumidores.

Por sua vez, para produzir-se qualquer bem ou serviço também é preciso comprar matérias-primas, material de reposição, etc. Se os produtores e prestadores de serviço em uma comunidade organizarem solidariamente seus empreendimentos em Rede, eles poderão comprar em conjunto os insumos, compartilhar equipamentos, instalações, etc, reduzindo seus custos e aumentando o excedente produzido. Uma parte do excedente é reinvestido na montagem de outros empreendimentos que atendam as suas próprias demandas. Por exemplo, se um conjunto de vendedores de cachorro quente começa uma Rede, eles poderão reinvestir coletivamente os excedentes gerados e montar uma padaria para produzir os pães, montar outra cooperativa para produzir batata frita, molho de tomate e outros itens que são vendidos nos carrinhos de cachorro-quente mas ainda adquiridos junto aos capitalistas.

Assim, considerando-se os insumos e outros materiais utilizados, criam-se outras cooperativas para atender essas demandas. Por exemplo as padarias comunitárias que fizessem parte da rede, que produzem pães para cachorro-quente, bolos, doces, etc, poderiam ser abastecidas de ovos por uma granja criada com o apoio da rede para atender produtores e consumidores solidários. Por sua vez, para atender as demandas das granjas na produção de aves e ovos, seria preciso organizar um empreendimento para produzir ração e assim por diante.

Para montar-se uma rede local pode-se convidar todas as cooperativas populares, clubes de mães, hortas comunitárias, grupos de produção e serviço e trabalhadores que atuam por conta própria na região, pessoas desempregadas, movimentos sociais e todos aqueles que desejam praticar o consumo solidário visando o bem viver de todos. Quanto mais pessoas participarem da rede como consumidores e produtores, e quanto maior for a diversidade de produtos e serviços comercializados na rede, maior é o crescimento da riqueza coletiva de todos.

Também é possível organizar-se armazéns solidários ou lojas que vendam os produtos da rede nos diversos bairros. Essas lojas, armazéns e minimercados solidários facilitariam o comércio de produtos feitos nas Redes Solidárias de regiões distintas, ampliando o bem viver de todos. Essas lojas além de vender os produtos da Rede, poderiam comprar no atacado os produtos que a rede ainda não fabrica e revendê-los com uma margem pequena de excedente que também seria reinvestida para ampliar a produção na Rede, visando produzir esses bens que ainda são comprados junto aos capitalistas. Assim para contribuir na expansão do bem viver de todos, bastaria comprar nas lojas, armazéns e minimercados da Rede de Colaboração Solidária.

 

5. Na Rede de Colaboração Solidária, quanto mais se reparte a riqueza, mais a riqueza aumenta !

O que gera a riqueza é o trabalho. Com o trabalho são feitos bens e serviços para atender as necessidades e desejos das pessoas. Após a comercialização solidária desses bens e serviços e o pagamento de todas as despesas, inclusive o pagamento da justa remuneração dos trabalhadores, sobra ainda um valor excedente. Ora, quanto mais se reparte essa riqueza excedente gerada pelo trabalho, tanto mais as pessoas podem comprar os produtos e serviços da Rede. E quanto mais elas compram solidariamente, mais oportunidade de trabalho elas geram para outras pessoas que ainda estão desempregadas. Assim, quanto mais se distribui a riqueza na Rede, mais os seus produtos são consumidos, mais oportunidades de trabalho que gera riqueza são criadas e um número maior de pessoas passa a integrar a rede como produtores e consumidores. Trata-se de um circulo virtuoso que integra consumo e produção! Uma das melhores maneiras de distribuir essa riqueza é criar novas cooperativas ou empreendimentos e remunerar mais trabalhadores, produzindo uma diversidade maior de produtos à disposição do bem viver de todos.

 

6. A Colaboração Solidária é uma alternativa justa e fraterna frente à exploração e exclusão capitalista.

Enquanto o capitalismo busca aumentar o lucro de alguns, provocando a aflição de muitos que ficam desempregados ou a estagnação daqueles que ganham baixos salários, as Redes de Colaboração Solidária compartilham de maneira justa e fraterna os excedentes, visando gerar novos postos de trabalho em um projeto de desenvolvimento ecologicamente e socialmente sustentável, distribuindo a riqueza, que amplia o consumo e aumenta a demanda por produção, o que, por sua vez, gera novas oportunidades de trabalho.

Quando a rede vai crescendo ela passa a integrar inúmeros produtores e vai completando as partes das cadeias produtivas que ela ainda não integra. Por exemplo. Se um grupo produz macarrão, ele precisa comprar ovos e farinha. Pode ocorrer que na rede não haja produtores desses bens e que esse grupo tenha que comprar esses insumos no mercado capitalista. Entretanto, assim que for possível montar uma nova cooperativa ou microempresa, será dado preferência a montar-se uma granja ou moinho para produzir-se os ovos ou a farinha de trigo que são usados para fazer o macarrão. Depois se organiza a produção de milho para fazer ração e alimentar as galinhas. E assim sucessivamente, até ir completando as cadeias produtivas. Desse modo, o lucro que os capitalistas acumulavam nas diversas etapas das cadeias produtivas e que era desembolsado pelo consumidor final, agora passa a financiar o surgimento de outras cooperativas ou microempresas em favor do bem viver de todos e não apenas do enriquecimento de alguns. Com isso, progressivamente, as Redes de Colaboração Solidária vão substituindo as relações de produção, comercialização e consumo de tipo capitalista e vão criando melhores condições para o exercício das liberdades públicas e privadas de todos.

Assim, os novos empreendimentos visam estrategicamente produzir aquilo que ainda é adquirido no mercado capitalista, sejam bens e serviços para consumo final ou insumos, materiais de manutenção e outros itens demandados no processo produtivo. Com isso evita-se que o consumo final e o consumo produtivo desaguem na acumulação privada fora das redes, mas que esse valor permaneça nas redes e possam nelas realimentar a produção e o consumo solidários, completando os segmentos das cadeias produtivas sobre os quais as redes ainda não tenham autonomia.

Conforme as redes forem crescendo, elas irão incorporando tecnologias mais sofisticadas, produzindo um excedente maior de riqueza, necessitando que as pessoas trabalhem menos. Entretanto, ao invés de provocar desemprego, isso vai possibilitar a redução da jornada de trabalho e o aumento do tempo livre das pessoas para o seu bem-viver. As pessoas trabalharão menos e poderão comprar mais e melhor, garantindo o seu bem viver e o bem viver de todos

Hoje, com as tecnologias já disponíveis que podem ser utilizadas nas cooperativas populares e empresas solidárias, é possível produzir os bens e serviços necessários para garantir o bem viver e a cidadania de todas as pessoas que estão excluídas. Se os trabalhadores, atualmente desempregados, organizarem redes de colaboração solidária e passarem a produzir riquezas com seu próprio trabalho, para satisfazer as demandas dos segmentos excluídos, usando as tecnologias disponíveis em suas comunidades, será possível atender a maior parte das demandas existentes, sem a necessidade de ter-se o domínio sobre as tecnologias mais avançadas. De fato, para melhorar o bem viver de toda a humanidade é necessário apenas compartilhar a riqueza existente e continuar a produzi-la de maneira sustentável.

 

7. Viver a solidariedade e promover o bem viver de todos.

Se nós colaborarmos uns com os outros, consumindo os produtos das Redes de Colaboração Solidária, nós contribuímos para aumentar o excedente nelas produzido, que é reinvestido na geração de novas oportunidades de trabalho e na melhoria do consumo de todos os que se disponham a trabalhar solidariamente.

Trabalhando e consumindo em Redes de Colaboração Solidária, nós garantimos um desenvolvimento sustentável, tanto ecologicamente quanto socialmente e asseguramos às pessoas as condições para o seu bem viver, para a livre realização da sua dignidade humana.

A colaboração solidária, por isso mesmo, vai além da dimensão econômica. Cultivar a solidariedade em todas as esferas de nossa vida enriquece o nosso bem viver, fortalece a amizade e a fraternidade entre as pessoas, suprimindo a discriminação e o preconceito, e promovendo a diversidade cultural e a criatividade humana que zelam pelas liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.

Eticamente, as redes de colaboração solidária promovem a solidariedade, isto é, o compromisso pelo bem viver de todos, o desejo do outro em sua valiosa diferença, para que cada pessoa possa usufruir, nas melhores condições possíveis, das liberdades públicas e privadas. Desejar a diferença significa acolher a diversidade, de etnias, de religiões e credos, de esperanças, de artes e linguagens, em suma, acolher as mais variadas formas de realização singular da liberdade humana que não neguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Promover as liberdades significa garantir às pessoas as condições materiais, políticas, informativas e educativas para uma existência ética, solidária. É esse o objetivo maior das Redes de Colaboração Solidária.

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Notas:

* Texto elaborado para distribuição ao público presente no seminário realizado pelo CEFURIA em 26 de Março de 2000, no CEPAT, em Curitiba. Enfatizamos aqui apenas alguns aspectos econômicos da proposta. Para uma versão mais simplificada e detalhada que esta veja-se o Texto de Apoio n. 1 "Rede de Colaboração Solidária", publicado pela Rede de Colaboração Solidária de Curitiba e Ponta Grossa. Para uma abordagem mais ampla e fundamentada, veja-se o livro "A Revolução das Redes", publicado pela Editora Vozes.


Redes de Colaboração Solidária - Construindo uma nova sociedade.
IFiL,Curitiba,  março de 2000
www.milenio.com.br/mance/redes1.htm


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