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Redes de Trocas e Cadeias Produtivas
- Limites e Alternativas

Euclides André Mance
IFiL - Instituto de Filosofia da Libertação

Introdução

Apresentamos neste capítulo uma síntese da exposição realizada em detalhes em outra parte (1). As críticas e sugestões que apontamos aqui referem-se especificamente às redes de trocas e não às redes de economia solidária em geral, uma vez que há muitas outras formas de redes de economia solidária que não se organizam sob a forma de redes de trocas. Inicialmente apontamos sumariamente algumas debilidades estratégicas peculiares à essa prática, tomando por referência básica a Rede Global de Trocas, e em seguida, também sumariamente, apontamos algumas alternativas que visam - respeitando-se os princípios advogados nestas redes - sanar as debilidades percebidas. Por fim explicitamos como a remontagem solidária das cadeias produtivas, corrigindo fluxos de valores, viabiliza a expansão sustentável de uma economia pós-capitalista.

1. Alguns Limites e Debilidades das Redes de Trocas

As redes de trocas são uma forma eficiente para gerar renda complementar aos seus participantes e, em alguns casos, permite às pessoas sobreviverem com as atividades econômicas que nelas realizam. Contudo, as trocas simples - mesmo que multirecíprocas - mediadas por qualquer moeda, social ou não, não produzem valor.

A produção do valor é realizada pelo trabalho que gera produtos e serviços que se concluem no consumo. Na sociedade capitalista, os fluxos de valor realimentam o processo de concentração da riqueza produzida pelo trabalho nas mãos daqueles que detém o capital. Caso as redes não corrijam os fluxos de valor inerentes ao seu processo produtivo, elas acabam sendo subsumidas no movimento de acumulação capitalista.

A inviabilidade de cambiar a moeda social pela moeda oficial do país, conforme normatização da rede de trocas, implica em que todos os prossumidores necessitem de alguma atividade externa às redes de trocas ou de outra fonte de renda como forma de obter tais moedas para atender suas necessidades não cobertas por estas redes.

A impossibilidade de solidariamente acumular-se excedentes nas redes de troca inviabiliza um processo de reinvestimento, coletivamente gerenciado, que permita completar solidariamente as cadeias produtivas, evitando a acumulação capitalista dos valores nelas gerados quando da aquisição de insumos, maquinários, equipamentos, etc.

No processo de produção nas redes de trocas são utilizadas moedas não sociais como única condição de obtenção de insumos e de outros elementos demandados no processo produtivo que não estão disponíveis nas redes. Embora aparentemente não se permita cambiar as moedas sociais e não-sociais, no fluxo real de produção e circulação de valor, a integração ocorre com parcelas de valores produzidos na rede de trocas sendo acumulados fora dela em outros segmentos das cadeias produtivas não cobertos por ela mesma.

A introdução de moedas sociais que reimplantam trocas simples, visando reinserir empreendimentos no mercado formal, não é condição suficiente para enfrentar o problema da exclusão social e do submetimento dos trabalhadores a relações de produção injustas, sendo necessária uma estratégia que aponte para a conversão de todo o modo de produção e consumo para uma economia solidária (2).

A análise dos fluxos de valor mostra não apenas que no processo de produção as redes de trocas operam com dois tipos de moedas, a social e a oficial, embora nas trocas circule apenas a moeda social, como também que é possível reproduzir-se, com a moeda social, práticas injustas similares às existentes no mercado capitalista (3). O fato de a moeda social circular - em tese - somente dentro das redes de trocas cria a ilusão de que a riqueza nelas produzida se mantém dentro delas, quando de fato a maior parte desta riqueza, nelas produzida, continua sendo acumulada por empresários capitalistas, o que se percebe claramente ao fazer-se um diagnóstico do conjunto das cadeias produtivas nas quais essas redes estão inseridas como momentos parciais e sob o qual essas mesmas redes não têm autonomia e de como ocorre a concentração de capital nos diversos segmentos dessas cadeias produtivas sob o controle do capital.

Enfim, não é a adoção de um novo tipo de monetarismo ou a crença nos poderes das moedas - seja de que tipos forem - o que permitirá romper com os fluxos de acumulação de valor que operam sob a lógica do capitalismo.

Cabe avançar na colaboração solidária entre distintas redes, possibilitando tanto a superação de debilidades peculiares às diversas práticas de economia solidária quanto o compartilhamento de características e procedimentos que nelas contribuíram a bons resultados.

2. Possibilidades de Superação das Limitações Apontadas

Pretendemos aqui apontar algumas alternativas que permitam às redes de trocas corrigir seus fluxos reais de valor, organizando empreendimentos produtivos que paulatinamente reconstruam, sob práticas de economia solidária, as cadeias produtivas dos bens e serviços que elas produzem e consomem. Esta alternativa permitirá: a) a poupança de excedentes que possam ser reinvestidos coletivamente, mesmo com os prossumidores gastando o que recebem pelos produtos e serviços seus que nelas comercializam; b) a aquisição de máquinas, equipamentos e outros instrumentos de produção, geralmente não disponibilizados nessas redes de trocas - que poderão ser feitos com os créditos dos prossumidores, preservando-se o princípio de que os créditos não devem ser cambiados em moedas oficiais.

O modo de alcançar esses objetivos é a rede de trocas organizar uma Bolsa de Negócios, como uma das ferramentas de seu funcionamento, cujo papel é facilitar transações de compra e venda a prazo entre participantes da rede valendo-se de moeda social.

Suponhamos que uma participante da rede de trocas necessite comprar uma máquina de costura especial para acabamentos. Deverá fazê-lo no mercado, pois aquele meio de produção não está à venda na rede de trocas. Suponhamos que ela não tenha dinheiro necessário para pagá-la à vista. Terá, então de fazer um crediário por um ano, que elevará bastante o preço final da máquina em razão da taxa de juros cobrada no mercado.

Entretanto se aquela rede implantar uma Bolsa de Negócios, haveria uma outra alternativa. Ela apresentaria na Bolsa a sua demanda pela máquina, o valor total à vista, as condições e o número de parcelas em que fará o pagamento; por exemplo, 10 parcelas. Outros membros do clube, que dispõem de alguma poupança em dinheiro que permita adquirir a máquina à vista no mercado, poderão então fechar um negócio com essa pessoa, estabelecendo um certo volume de produtos ou serviços - preferencialmente oferecidos no clube - como forma de recebimento das 10 parcelas. Na prática as coisas funcionariam da seguinte forma. Uma pessoa compra a máquina no mercado à vista. Oferece-a no clube de trocas para a pessoa com quem já havia fechado o negócio a ser pago em dez parcelas. Durante 10 meses o comprador paga mensalmente as parcelas com os produtos que havia se comprometido a oferecer (seja produtos elaborados por ele mesmo ou por terceiros, sejam do clube ou de fora dele). Vendedor e comprador poderão negociar um valor pela máquina que seja satisfatório a ambos. Por exemplo. Se a máquina fosse comprada no mercado em prestações, o preço final subiria em 30%. Se o poupador deixasse seu dinheiro em uma caderneta bancária, teria 5% em rendimentos. Poderão estabelecer então que a máquina será vendida a prazo no clube de trocas 20% mais barato do que o seria no mercado à prazo e 10% mais caro do que o seria à vista. Assim, o comprador da máquina economiza 20% e o poupador que financiou a operação recebe 5% a mais do que receberia se deixasse o seu dinheiro no banco, alimentando a ciranda financeira. Um negócio vantajoso para ambos e para a rede, que permite incorporar novos meios de produção ao clube de trocas. A rigor, para manter-se o princípio de que não se negocia moeda a juros no interior da rede de trocas, o poupador poderia receber apenas a correção monetária referente à inflação do período, sem nenhum tipo de ganho por ter financiado essa operação.

Suponhamos que na Bolsa de Negócios um conjunto de produtores se reúna para comprar insumos em conjunto. Ao totalizar um grande volume conseguem comprar no mercado aqueles insumos com uma significativa margem de economia. Com isso menos valor, que havia sido gerado no interior da rede, dela escapará. Imaginemos que, em seguida, uma parte deles proponha na Bolsa a realização de um negócio visando montar um empreendimento que produza aquele insumo. Os poupadores interessados em investir nesse empreendimento poderão negociar do mesmo modo já indicado anteriormente. Nesse caso, o prazo de recebimento poderia ser dilatado, por exemplo, para 24 meses. Igualmente, as parcelas seriam pagas com produtos oferecidos no clube - nesse caso, entre outros, o próprio insumo a ser produzido no empreendimento instalado.

Empreendimentos desse tipo podem ser organizados visando não apenas produzir insumos e outros materiais de manutenção demandados no processo produtivo ou bens de consumo final, como também meios de produção demandados no interior do conjunto das redes solidárias, ampliando o seu grau de autopoiese.

No caso dos poupadores, essas operações - quando lhes geram algum excedente - podem ser consideradas como uma espécie de aplicação pré-fixada com resgate parcelado, recebida em produtos e serviços. Ou ainda como uma espécie de operação em mercado futuro, uma vez que estão antecipadamente comprando produtos que serão produzidos e recebidos futuramente. Essas operações, que são vantajosas a todos, permitem às redes de trocas remontar progressivamente as cadeias produtivas, corrigindo os fluxos de valor que deságuem na acumulação de empresas capitalistas. Por sua vez, os excedentes gerados nos empreendimentos podem ser integralmente investidos na Bolsa de Negócios visando financiar a montagem de outros empreendimentos, incorporação de novos meios de produção à rede, aquisição conjunta de insumos, etc.

Na medida em que as redes de trocas passassem a operar desse modo e volumes muito maiores de riqueza fossem comercializados em seu interior, ainda restaria o problema de que o único modo aparente de adquirir bens externos a elas seria com moedas oficiais e que portanto seria necessário também incrementar as vendas externas às redes como forma de obter tais moedas que possam ser poupadas e financiar a sua expansão. Contudo, tendo em vista que empresas capitalistas também começam a operar em redes de trocas com moedas próprias, nada impediria que esses empreendimentos solidários participassem taticamente dessas outras redes capitalistas permutando seus produtos e serviços por equipamentos, insumos e meios de produção nelas oferecidos, até que as próprias redes de trocas solidárias tenham a capacidade de produzi-los. O problema não está em permutar com empresas capitalistas, mas nos termos degradados de intercâmbio que desfavoreçam os empreendimentos solidários - pois do ponto de vista da circulação do capital não há diferença entre comprar à vista com dinheiro no mercado, ou permutar com mercadorias em uma rede capitalista. Em ambos os casos a questão é o valor que se oferta em relação ao valor do que se recebe e o prazo de conclusão da operação - que acaba imobilizado o valor econômico temporariamente nela aplicado - face a outros processos de sua possível valorização nesse período.

Seja como for, no contexto atual, a maioria das empresas solidárias que integrem redes de trocas não conseguiria sobreviver vendendo toda sua produção em troca de moedas sociais. Em sua estrutura de custos há uma série de itens que somente podem ser cobertos com moedas oficiais. Assim, ou os participantes das redes de trocas aceitariam comprar uma parte da produção das empresas solidárias em moedas oficiais para viabilizar o seu giro produtivo ou essas redes teriam de vender seus produtos nos mercados buscando tal volume de moedas. Novamente aqui, entretanto, o expediente da bolsa de negócios poderia funcionar. Um conjunto de poupadores que tenha moeda oficial poderia assumir o pagamento mensal das contas da empresa em troca do recebimento de produtos variados ofertados nas redes com alguma vantagem ou não.

Como se vê todos esses mecanismos permitem resolver algumas das debilidades apontadas das redes de trocas que se valem de moeda social. A prática de outras redes, que usam somente moedas oficiais em seus processos de comercialização, chega a esses resultados com percursos menos complicados. Seja como for, com essas interfaces torna-se possível conectar redes que usam moedas sociais com redes que não as usam (uma vez que empresas solidárias que não usam moedas sociais podem operar nessas bolsas de negócios das redes de trocas) e avançar de maneira estratégica em reinvestimentos coletivos que permitem remontar as cadeias produtivas e corrigir fluxos de valor, visando realimentar o próprio processo de produção e consumo no interior das redes solidárias.

3. Remontando Cadeias Produtivas e Corrigindo Fluxos de Valores

Quando os excedentes obtidos pelos produtores e prestadores de serviços com a venda de seus produtos e serviços nas redes é nelas reinvestido para gerar-se mais cooperativas, grupos de produção e microempresas, criam-se novos postos de trabalho e aumenta-se a oferta solidária de produtos e serviços em seu interior. Isso permite incrementar o consumo de todos, ao mesmo tempo em que diminui volume e o número de itens que as redes ainda compram no mercado capitalista, evitando com isso que a riqueza nelas produzida realimente a acumulação capitalista ao girar a produção do capital pela aquisição produtos e serviços capitalistas no mercado.

Na prática, quando os consumidores realizam o consumo solidário, consumindo os produtos de uma empresa solidária que não explora os trabalhadores e protege o meio ambiente, essa empresa vende toda a sua produção e gera um excedente, que na lógica capitalista seria lucro. Esse excedente, entretanto, na lógica da solidariedade é reinvestido na construção de novas empresas, gerando novos postos de trabalho, diversificando a produção e melhorando o padrão de consumo de todos os que participam da rede.

Por isso, em uma rede solidária que opera sob essa lógica - paradigma da abundância -, quanto mais se reparte a riqueza, mais a riqueza dos participantes aumenta. Como vimos, o que gera a riqueza é o trabalho. Com o trabalho são feitos bens e serviços para atender as necessidades e desejos das pessoas. Após a comercialização desses bens, obtém-se um valor excedente. Ora, quanto mais se reparte essa riqueza gerada pelo trabalho, tanto mais as pessoas podem comprar os produtos e serviços das redes. E quanto mais elas compram, mais oportunidade de trabalho elas geram para outras pessoas que ainda estão desempregadas. Assim, quanto mais se distribui a riqueza nas redes, mais os seus produtos são consumidos, mais oportunidades de trabalho que gera riqueza são criadas e um número maior de pessoas passa a integrar as redes como produtores e consumidores. Trata-se de um circulo virtuoso que integra consumo e produção sob parâmetros ecologicamente sustentáveis. Uma das melhores maneiras de distribuir essa riqueza é criar novos empreendimentos solidários e remunerar mais trabalhadores, produzindo uma diversidade maior de produtos à disposição do bem viver de todos.

Assim, conforme a rede vai crescendo ela vai integrando um número cada vez maior de produtores e vai remontando de maneira progressiva e solidária as partes das cadeias produtivas sobre as quais ela ainda não tem autonomia. Por exemplo. Se um grupo produz macarrão, ele precisa comprar ovos e farinha. Pode ocorrer que na rede não haja produtores desses bens e que esse grupo tenha que comprar esses insumos no mercado capitalista. Entretanto, assim que for possível montar uma nova cooperativa ou microempresa, será dado preferência a montar-se uma granja ou moinho para produzir-se os ovos ou a farinha de trigo que são usados para fazer o macarrão. Depois organiza-se a produção de milho para fazer ração e alimentar as galinhas. E assim sucessivamente, progressiva e tendencialmente, vão sendo completadas as cadeias produtivas. Desse modo, o lucro que os capitalistas acumulavam nas diversas etapas das cadeias produtivas, agora passa a financiar o surgimento de outras cooperativas ou microempresas em favor do bem viver de todos e não apenas do enriquecimento de alguns. Com isso, progressivamente, estas redes vão substituindo as relações de produção, comercialização e consumo de tipo capitalista e vão criando melhores condições para o exercício das liberdades públicas e privadas de todos.

Que ninguém, entretanto, se confunda com a simplicidade dos exemplos didaticamente escolhidos neste texto. As redes de economia solidária integram empresas que faturam anualmente milhões de dólares e que cobrem inúmeros setores das cadeias produtivas. A construção de interfaces que permitam conectar as diversas práticas de economia solidária em redes de colaboração avança rapidamente. O incremento dos fluxos de informação, valores, produtos e serviços entre elas, acompanhada de uma difusão massiva do consumo solidário - condição fundamental para o sucesso da economia solidária - possui um potencial de engendrar um forte movimento sinérgico de transformação estrutural da economia global que, considerado também em suas dimensões políticas e culturais, podemos corretamente denominar como revolução das redes.

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Notas

1. Cf. "Algumas Considerações Sobre Redes de Trocas" in Euclides André MANCE. Redes de Colaboração Solidária - Aspectos Econômico-Filosóficos: Complexidade e Libertação. Curitiba, 2001 - no prelo.

2. Sobre isso veja-se Euclides André MANCE. A Revolução das Redes - A colaboração Solidária como uma alternativa Pós-Capitalista à Globalização Atual. Petrópolis, Ed. Vozes, 1999

3. Veja-se José Luis CORAGGIO. Las Redes de Trueque como Institución de la Economia Popular. Mimeo, outubro de 1998, p. 10, onde se lê que a troca no interior da rede também pode ser injusta, pois: "...pode haver intercâmbio desigual (como quando alguém aproveita a extrema necessidade de outro para forçá-lo a aceitar proporções não eqüitativas de intercâmbio, ou ainda por falta de informação adequada a respeito do valor dos bens e serviços intercambiados) ou ser veículo de relações de exploração de classe, gênero ou geracional (nas relações de produção dos produtos intercambiados), de valores considerados negativos (droga, prostituição, etc.)". Recentemente a estratégia de trocas mediadas por moedas não oficiais - mas que também não podem ser consideradas sociais - deu origem a redes capitalistas entre empresas de grande porte, listadas entre as maiores do mundo. Duas grandes organizações que atuam desse modo, gerenciando redes de trocas entre multinacionais, são a Argent Atwood e a Tradaq. Veja-se: Adriana WILNER, "O Escambo Voltou", Carta Capital, Ano VIII, n. 159, 03 out 2001, p. 50. Pelo menos 100 entre as 500 maiores empresas do mundo participam de alguma rede de troca multirecíproca.


Redes de Trocas e Cadeias Produtivas - Limites e Alternativas
Publicado em: ARKEL, Henk van. Onde está o dinheiro?
Porto Alegre, Dacasa Editora, 2002, p.91-97
www.milenio.com.br/mance/trocas.htm


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