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Dialética e Exterioridade
Euclides André Mance
Novembro de 19941. A relação entre exterioridade e dialética na filosofia dusseliana - A abordagem do tema.
Analisar a dialética dusseliana é uma atividade que requer paciência e perspicácia. É preciso distinguir a análise que Dussel realiza das dialéticas desenvolvidas por diversos pensadores com suas peculiaridades próprias em seus momentos históricos, por vezes exaustivamente trabalhadas, da dialética elaborada pelo próprio Dussel como superação das dialéticas que analisa. Como em toda dialética pós-fichteana em que a superação é, ao mesmo tempo, negação e incorporação, encontram-se na dialética dusseliana elementos originados em diversos autores. Tais elementos, entretanto, possuem uma articulação teórica distinta das formulações originárias.
Cabe, pois, distinguir o que é a sua dialética em meio as análises que faz das diversas dialéticas. A dialética como tal já foi analisada como movimento real, físico e biológico da constituição e desenvolvimento da natureza; como movimento praxístico-histórico, cultural; como metodologia de compreensão do sentido de ser da realidade; como metodologia de intervenção humana nos processos naturais e históricos. Poderíamos, assim, optar por estudar a relação entre dialética e exterioridade em Dussel analisando-a a partir de vários aspectos: dos processos naturais e da práxis em suas diversas formas, bem como, tomando a dialética enquanto lógica, ontologia e enquanto método de efetivação do real. Claro está que a práxis, no sentido dialético hegeliano e marxista, é mediação da ontologia e da efetivação do real. Contudo, a mesmo tempo em que esta imbricação é afirmada por uns como a superação das dialéticas anteriores que tratavam do conhecimento do ser e suas manifestações desvinculadas da práxis histórica, é considerada por outros como seu calcanhar de Aquiles, por transitar do ideal/abstrato ao real/concreto sem as devidas precauções que impediriam o equívoco de hipostasiar relações lógicas e ontológicas(1). Entretanto, estabelecer de antemão estes níveis de abordagem para o estudo em questão poderia dificultar a análise da dialética dusseliana, falseando nossos resultados, uma vez que ela pode não ser dialética no sentido hegeliano ou marxista, e assim perderíamos sua pretendida novidade.
Se frisamos que lógica, ontologia e metodologia se imbricaram reciprocamente na dinâmica da práxis a partir do século XIX, é para destacar que a pretendida superação da ontologia necessita portanto refundar o sentido da metodologia e da lógica. Assim, tratando dessa mútua imbricação face à exterioridade, temos a mobilidade necessária para analisar a filosofia dusseliana da libertação em seu marco fundamental que é ser uma filosofia da práxis no sentido amplo. Desenvolveremos pois o estudo da relação entre exterioridade e dialética face à dinâmica da práxis, tratando das várias formulações e reformulações de método que acompanham a pretendida superação metafísica dos horizontes ontológicos e, posteriormente, a afirmação da exterioridade como fonte anterior às exigências transcendentais apelianas. Por isso preferimos analisar a articulação das categorias em seus diversos momentos de elaboração, problematizando -- em um momento à parte -- aquilo que nos parece mais oportuno.
1.1 Dialética e Exterioridade - O Eixo Temático da Filosofia de Dussel
Quando Dussel propõe -- nos anos oitenta -- que sua filosofia seja considerada também como um meta-discurso filosófico ele apenas dá continuidade a uma dinâmica característica de seu pensamento já implícita no período emergente da filosofia da libertação. Em 1970 a caracterização que faz da dialética é, por si mesma, um meta-discurso filosófico que possibilita colocar em crise várias dialéticas antigas e modernas que não eram redutíveis umas às outras em seus próprios termos. Já estava ao nível de meta-discurso a crítica da dialética ontológica, que possibilitava -- desde a afirmação de um âmbito de exterioridade -- por em crise diversos discursos dialéticos específicos dos mais diversos períodos.
Contudo, mais do que uma crítica de filosofias, Dussel buscava uma filosofia articulada à práxis efetiva de libertação. Justamente para melhor compreender essa práxis e contribuir com sua efetividade é que voltava-se à des-construção das diversas dialéticas. Nesse trajeto acabou considerando como alternativa de superação da totalidade ontológica o caminho proposto por Lévinas de abertura à alteridade e sua palavra interpelante. Afirmava-se como exigência ética abrir o projeto de qualquer totalidade desde o diálogo com o outro negado. Contudo a tentativa dusseliana de estabelecer um método preciso com tal abertura à exterioridade que possibilitasse a crítica das totalidades e uma práxis de libertação que não redundasse em novos totalitarismos, acabou encontrando muitos desafios e, em certa medida, formulando algumas incoerências (2).
Ao tratarmos da questão de método na filosofia de Enrique Dussel, seguramente explicitamos a questão fundamental que perpassa toda sua obra, desde a Dialética Hegeliana (1970) até seus estudos sobre Marx e o debate com a pragmática transcendental nos anos 80 e 90. Tal questão pode ser enunciada de maneira simples, embora seu desenvolvimento nos remeta a uma intrincada reflexão sobre teorias, categorias e métodos(3).
O enunciado simples pode ser formulado nos seguintes termos: "A partir da categoria de exterioridade, Enrique Dussel formula a crítica do processo de totalização das ontologias que fundaram as mais diferentes formas de negação da alteridade -- negação essa que se efetiva movida por uma vontade de poder -- e suportaram as mais diversas ideologias justificadoras do exercício autoritário deste mesmo poder. Para desenvolver tal crítica não basta, contudo, a dialética da totalidade fechada em si mesma, que remete o sentido dos entes ao fundamento ontológico, mas é necessária uma dialética que possibilite uma abertura da totalidade à provocação da exterioridade metafísica que relança a totalidade a um novo fundamento, agora transontológico, pois aberto à alteridade. Desde essa abertura, a disposição do Eu frente a o Outro é de res-ponsabilidade. Tal abertura deve estar presente na origem e na dinâmica própria de toda práxis libertadora ". Contudo, o que a princípio parecia simples, isto é, distinguir uma "dialética de dominação" ou "dialética de totalidade", de uma "dialética analógica da exterioridade" ou "dialética alterativa" -- elaborando uma dialética aberta à exterioridade --, acabou vertendo-se nos rumos de categorização de diversos métodos e momentos de método (4), revelando-se um trabalho extremamente penoso e complicado, que ensaiou vários caminhos sem chegar acabadamente a uma formulação isenta de ambigüidades.
As ponderações críticas que faremos em várias passagens devem ser consideradas como problematizações e hipóteses de investigação a serem aprofundadas. Trata-se de uma tentativa de diálogo que ao considerar limites e insuficiências destas elaborações de Dussel não deixa de reconhecer a capacidade crítica e importância da obra filosófica em questão em seus marcos gerais.
2. Os Desafios e Escopo do Método
No final dos anos 60, como uma alternativa à dialética, ou como seu complemento, Enrique Dussel e Juan Carlos Scannone, entre outros, propuseram uma nova metodologia que denominaram analética. A rigor, o termo já havia sido formulado anteriormente por B. Lakebrink(5), mas nada tinha a ver com a filosofia da libertação. Ao que parece, o primeiro a sugerir o termo explicitando a abertura da totalidade à alteridade foi Juan Carlos Scannone: "a um tal processo, mais que dialético -- para distingui-lo da dialética hegeliana -- eu o chamo analético..."(6). Identificando a dialética hegeliana com a marxista, buscava-se também uma alternativa ao marxismo como tal.
A analética, como método da ética possibilitaria a superação do pensamento heideggeriano, buscando realizar -- nas palavras de Cerutti -- o "projeto de fazer a ética que Heidegger não pode fazer"(7). Isto seria possível pela "afirmação da existência de um âmbito antropológico alterativo mais além da Identidade da Totalidade, mais além da dialética ontológica de onde se abriria a possibilidade de uma analética que refunda todo o 'fundamento', o qual, por isso mesmo, deixa de ser tal para destacar-se como o fundado"(8).
Segundo Dussel, seu método parte de Lévinas mas vai mais além desde a realidade latino-americana. A princípio foi formulado como método de uma ética da libertação latino-americana, mas ao compreender-se depois a ética como filosofia primeira, a analética tornar-se-ia em Dussel, o método apropriado a uma filosofia latino-americana de libertação.
A rigor Dussel, inicialmente, encontra em Heidegger a necessária fundamentação ontológica existenciária da cotidianidade que torna possível a elaboração de uma totalidade compreensiva do mundo. Contudo, ao mesmo tempo, compreendia como necessária uma crítica metafísica da ontologia do mesmo a partir da palavra que vem de mais-além, da exterioridade metafísica como propusera Lévinas em Totalité et Infini-- cujos termos, para Dussel, pareciam poéticos e ambíguos(9). Além disso era necessário que tal filosofia brotasse das exigências da práxis de libertação dos oprimidos. Tratava-se pois de elaborar um método apto a ouvir a voz do outro e colocar em crise o sentido da totalidade fechada, abrindo-a ao outro como outro, comprometendo-se eticamente o interpelado em responder à palavra interpelante. Eis o sentido inicial do método analético: ponto de partida e complemento do método dialético que teria por finalidade implementar as mediações de resposta praxística da palavra ouvida.
2.1. A Dialética Meta-física - 1970(10)
Em 1970, na obra Dialética Hegeliana Dussel empreende -- com um meta-discurso filosófico-analítico -- um estudo da dialética que desemboca na questão da tensão entre "totalidade" e "exterioridade" a partir do momento e situação histórica latino-americana(11). Trata-se de "reformular conceitual e latino-americanamente uma certa visão pensada da totalidade fluente que nos rodeia". Em sua reflexão filosófica com um caráter meta-discursivo, Dussel investiga a reformulação conceitual da dialética moderna desde seus antecedentes cartesianos até às críticas levinasianas às totalidades ontológicas. Tomando como ponto de partida as reflexões aristotélicas sobre a dialética e a analogia, tratará da dialética considerando a relação entre "totalidade" e "alteridade" ou "exterioridade".
De princípio distingue a dialética em três níveis: natural, histórica e metódica. A primeira é o próprio movimento dialético físico-real de constituição e evolução dos seres vivos, em especial, do homem (12) . A segunda é a dialética do acontecer histórico e de sua compreensão existencial (13) . Em terceiro tem-se a dialética como método, como caminho do pensar, posterior à dialética natural e existencial. O método dialético é um caminho introdutório ao que as coisas são. Seu movimento tanto pode partir do factum realizando uma involução imanentista para o mais-aqui da subjetividade que põe o ser, como também partindo do factum pode ir mais-além dele ao ser que se impõe é a transcendência da exterioridade. Dussel salienta que a teoria nunca dá conta, ao todo, do real, que não se pode igualar o pensar ao ser. Indica, entretanto, a distinção entre um método dialético ôntico que estabelece o sentido do ente a partir da dedução do ser fundamental, e um método dialético meta-físico, que ao partir da finitude como exterioridade do absoluto totalizado - afirma a abertura da totalidade à alteridade - implicando em opor à ontologia emanatista do ser como "o visto" uma metafísica criacionista do ser como "o ouvido", pois ao que se ouve não se pode incluir dentro de uma totalidade totalizada. O método dialético do pensar, início originário do filosofar, permite a passagem da cotidianidade à descoberta do fundamento, tendo os momentos negativo e positivo como essenciais (14).
Negativamente por negar a aparente segurança do óbvio cotidiano por negar a coisa em sua significação cotidiana determinada por uma tradição inautêntica, encoberta e encobridora pondo em dúvida a faticidade do ser-no-mundo; neste momento dialético há a conversão a outro âmbito, pois a coisa é tratada negativamente ao ser referida ao horizonte a partir do qual deverá ser compreendida. O mesmo acontece com os horizontes que são negados até chegar-se ao âmbito dos horizontes originários do pensar, restando sempre uma infinita exterioridade. O ser como horizonte último do mundo pode ser conciliado tanto com a aceitação da finitude da exterioridade cósmico real quanto da exterioridade do outro como liberdade histórica que expressa mistério pela palavra (15).
Positivamente, vai-se compreendendo o que é englobado pelos horizontes fugidios/fluentes que vão sendo desdobrados no pensar. O âmbito dos últimos horizontes, entretanto, não pode ser pensado em seus conteúdos, mas apenas formalmente como ser, limite ou horizonte transcendental ontológico, e não como este meu ser compreendido efetivamente ao nível existencial, histórico. Parte-se aqui das opiniões transmitidas no seio da cultura (tà éndoxa) para ir à verdade do ser não em um processo de involução, mas na implantação do cotidiano num todo ontológico, que por ser um pensar a partir da finitude supõe uma infinita exterioridade. Face a tal exterioridade infinita o todo nunca é totalmente totalizado, mas submetido a um processo de totalização que sempre se relança como reimplantação do todo conceitualizado no todo englobante preconceitual pois faz parte de um todo prático, isto é, "meu-ser-histórico-no-mundo" que, por ser histórico, está remetido ao futuro e que, por ser no mundo como totalidade, reporta-se à compreensão.
Em seu processo, o método dialético engloba os momentos negativo e positivo em uma unidade totalizadora e sempre intotalizada em um movimento que tende à exterioridade sem, contudo, jamais abarcá-la. Tal método é apenas um momento da realidade dialética em constante processo que, como mediação, é a morte a um momento superado da finitude que tende a instalar-se como se fosse um todo-total(16).
A atitude dialética que se refere ao outro que exige justiça como pólo face-a-face a partir do qual se abre o horizonte ontológico à novidade total, é o motor da história relançando o processo, é critica libertadora.
Após referir-se à "dialética da natureza", a "dialética histórica", ao "método dialético como ontologia fundamental", ao "método dialético ôntico" e ao "método dialético meta-físico da totalidade aberta a alteridade", Enrique Dussel se pergunta pelo sentido de tudo isto na América Latina. A importância da dialética em nosso continente coloca-se em dois níveis: como práxis latino-americana (história existencial) e como método (conceituação interpretativa, existenciária, teórica). No primeiro nível tem-se o processo dialético da constituição histórica da realidade cultural latino-americana que desdobrou-se por vários momentos seja o do "mundo amerindio" que na colonização se chocou com o "mundo hispano" resultando na cristandade colonial que entra em crise no século XIX, desaparecendo em nossos dias. Tem-se aqui também o processo dialético-existencial do homem ameríndio, que após a conquista cumpre a função de "escravo", ao passo que o espanhol a de "senhor"; "senhor" que foi desalojado em 1809-1810 pelo oligarca crioulo na incipiente "revolução burguesa" latino-americana; chegando ao período atual (1970) que parece ser o da revolução da libertação popular. Essa realidade latino-americana, essa dialética como práxis é o "a priori" da reflexão que põe em crise a "metafísica do sujeito" - suporte ideológico da burguesia neocolonial sub-opressora e da dominação norte-atlântica - buscando a supressão da "dialética da dominação" nesta fase do processo de libertação latino-americano.
Face à dialética enquanto método existe na América Latina: a) aqueles que não se valendo de método algum não colocaram em crise a sua cotidianidade, interpretando-a de maneira tal que acabam defendendo o status quo; b) outros valendo-se do método dialético buscam interpretar adequadamente a mudança revolucionária, sem entretanto usá-lo com um sentido histórico, não colocando claramente as condições de possibilidade do exercício de tal método na América Latina que são três: 1) profundo conhecimento da cotidianidade latino-americana; 2) conhecimento adequado dos "socialistas utópicos"; 3) o discernimento entre a intenção existencial e histórica de Marx e a formulação conceitual hegeliana que ele utiliza, possibilitando a reformulação do esquema interpretativo sem cair na imitação; c) por fim, há também aqueles que - cumprindo as exigências anteriores - em uma atitude dialética estudam destrutivamente a América Latina, desmontando e analisando sua estrutura, ponderando sua realidade dependente, considerando que ela é a práxis desde a qual surge o pensar que a ela se volta como esclarecimento. Partindo portanto, da compreensão cotidiana, existencial e histórica e filosofia como pensar ontológico ou dialético surge desde a práxis tendo como vocação estar-na-verdade. Tal filosofia é latino-americana e está na possibilidade de pensar no movimento dialético de libertação: libertar no homem - em todos os níveis culturais - seu ser negado. Para tanto é necessária uma sustentação ontológica, cabendo ao filósofo formulá-la. A correta formulação conceitual - afirma Dussel em 70 - não é o marxismo, pois ao apenas "inverter" a dialética Marx não a superou ontologicamente, embora esta talvez fosse sua intenção(17).
2.2. Dialética Analógica da Alteridade - 1971
Em 1971 Dussel contrapõe a lógica da ontologia da totalidade fechada à constituição da ontologia negativa ou meta-física da alteridade. Distingue duas dialéticas: a "dialética analógica da alteridade" ou "dialética alterativa" e a "dialética de totalidade" ou "dialética da dominação", estabelecendo a oposição entre a "dialética do 'mesmo' e do 'outro'"(18) .
A exposição embora pareça simples é extremamente complexa exigindo distinções sutis. A "dialética de totalidade" constitui-se em uma ontologia da totalidade na qual o ser em si é o originário e a partir do qual aparece a diferença, que sob a perspectiva da dialética "luz-olho-visto", determina o outro que irrompe no horizonte como "visto", que aparece sob o prisma de não ser igual ao mesmo. A totalidade ontológica oprime o outro ao negar o seu nada enquanto ente do mundo, afirmando-lhe um sentido a partir do mesmo que exerce, como totalidade pretensamente neutra, sua vontade de domínio sobre o outro enquanto exterioridade. A dialética da totalidade é portanto dialética de dominação. Assim, ontologias da totalidade são eticamente totalitárias, possuindo heróis que matam o outro enquanto exterioridade (19) .
No movimento de eterno retorno ao mesmo, a totalidade se volta e se fecha sobre si mesma -- afirmando-se a totalidade do mesmo, negando-se a alteridade do outro -- reduzindo o outro enquanto exterioridade a um ente do próprio mundo. Assim, o mesmo originário se diferencia internamente à totalidade como mesmo e como outro. Na totalidade, portanto, não há nada de novo, e a partir dela, em um movimento prático se estabelece a nadificação de outro que se torna coisa com um sentido determinado na subsunção ao mesmo, à totalidade.
Na totalidade da mesmidade, onde se estabelece a dialética do mesmo e do outro, não há liberdade, pois na bipolaridade da ontologia a guerra é o originário que estabelece o outro como diferente movida por uma vontade de poder que supõe a morte do outro reduzido a um ente do mundo, negando portanto o outro como novidade, a partir do mesmo. Essa totalidade é unidimensional porque é única, estabelecendo a partir de si a identidade e a diferença torna-se o fim do discurso pois impossibilita o diálogo com a alteridade, pois o sábio da totalidade afirma compreender a totalidade mesma e a partir do mesmo nadifica o outro pondo que este nada vale.
Esta atitude que nega o nada do outro dando-lhe um sentido a partir do qual nadifica o outro enquanto exterioridade, é uma atitude eticamente má, é o não-ao-outro. O não-ao-outro nadifica o outro negando sua negatividade como ente do mundo, dando-lhe um sentido como diferença do mesmo a partir da totalidade, o que estabelece não só o fim do discurso, mas a morte, a opressão, a dominação, a alienação, a aversão do outro, bem como a perversão do mesmo que se enterra na totalidade.
A libertação, considerada na dialética bipolar da totalidade que não está aberta a um novo âmbito mais-além, é o processo de negação da diferença e afirmação da mesma identidade à totalidade. Em outras palavras, há uma bipolaridade que se funda na identidade e diferença estabelecidas como momento em tensão no seio da totalidade. A libertação é suprimir as diferenças afirmando-se a mesma igualdade de identidade na totalidade.
A "dialética analógica da alteridade", por sua vez, coloca em crise a dialética do mesmo e do outro a partir do face-a-face, experiência originária hebraica e não grega. O rosto do outro se manifesta no mundo do mesmo como um ente, mas o outro, mais além, é exterioridade infinita que não se esgota no ente no mundo (20) . No face-a-face não há razão, fantasia ou palavra. A abertura ao outro é o desejo, pelo amor de justiça, amor gratuito. A partir do face-a-face e do "quem és" encontra-se o sentido de abertura ante o mistério, superação do horizonte ontológico. Assim, o outro é nada no mundo do mesmo, porque não se pode estabelecer-lhe nenhum sentido que o esgote a partir da totalidade. O outro, portanto, não é um modo de compreensão, mas de incompreensão. A compreensão termina em seu rosto que vemos, e que o afirma como outro que não conhecemos. Somente a palavra que ouvimos pode revelá-lo.
A "dialética analógica da alteridade" propõe a abertura da totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos do mesmo. O logos permanece no mundo e não pode avançar mais além; o logos que transcende é aná-logos, mais além do logos, analogia que se articula na dialética "voz-ouvido-ouvir, ouvir a voz". Assim, o logos chega ao seu limite, e confia no que ouve do outro pela fé metafísica, pois sem a confiança no outro, não se pode escutar sua voz. Meta-física aqui significa ir mais além do horizonte da fysis, ir mais além do horizonte da ontologia do mesmo, afirmando a ontologia da negatividade, isto é, a ontologia negativa do mesmo, pois o outro não se origina no idêntico, é distinto; irrompe como o ouvido, é âmbito ao qual a totalidade pode abrir-se, e ao abrir-se muda de estatuto, tornando-se ontologia negativa(21)
Assim, o início da crítica dialética analógica alterativa é a crítica à totalidade fechada, exigindo a abertura ao outro até ao infinito. O supremo do espírito é abrir-se ao outro e amá-lo como livre e não como meu; impedindo a alienação. A alienação ocorre quando, de fato, o outro não é considerado como outro por alguém centrado sobre si mesmo como totalidade, possuindo o outro como coisa. Em contra-partida, a libertação considerada na "dialética analógica da alteridade", aberta ao âmbito mais além, consiste, portanto, no processo que afirma a distinção, a passagem de alguém feito onticamente coisa, sob o domínio da totalidade, ao outro a quem se ama respeitosamente como livre na liberdade mesma. A libertação é o movimento de reconstituição da alteridade do oprimido em função do novo aberto à revelação futura que exige a abertura da totalidade, mas que não inclui, de princípio, a morte dos opressores, mas sim a con-versão deles ao novo da alteridade. Contudo ao sofrer a violência o oprimido poderá fazer a guerra ao opressor. Tal guerra entretanto fica justificada pela atitude de fechamento da totalidade que vai matando este outro que agora se defende.
Por sua vez, o homem supremo da alteridade abre-se ao outro, é capaz de considerar sua totalidade e abrir-se mais além dela, é o que experimenta em outro um outro e que anuncia o novo que se revela na experiência da alteridade, e que após abrir-se ao outro, coloca-se perante a totalidade para criticá-la com a busca essencial de que ela se con-verta ao outro, início de processo de libertação que leva à conciliação.
Embora as pessoas possam constituir uma unidade dialética erótica, pedagógica, política sem o fechamento da totalidade, é preciso ainda considerar que o outro se oculta duplamente: aberta a possibilidade do diálogo constitui-se imediatamente uma nova totalidade, pois a revelação do outro que se deposita dentro do mundo como ente não o esgota em seu âmbito de exterioridade no processo da história, uma vez que o outro não é compreensível, e o que o revela já não é, uma vez que se retirou ao futuro. Assim, afirma-se o nada do outro como liberdade a partir do qual surge o novo no mundo; esta novidade é pro-criação fecunda. O outro, portanto, além de ser negativamente outro no mundo, é possibilidade de história, futuro real, novidade da criação (22) .
2.3. O Método Analético - 1972
Continuando sua reflexão sobre a superação das totalidades ontológicas a partir da abertura à alteridade, afirma Dussel que tal superação se dará com a "metafísica". Meta-física" é tomada aqui no seguinte sentido: "... a physis significa a totalidade ou o fundamento no sentido dos gregos e metà- significa o que está 'mais além'. O método meta-físico, que não é somente ontológico, opera de outra maneira. Esta outra maneira é o descobrir um mais-além do mundo, que é dado quando o outro provoca e... sua palavra vem de 'mais além' do horizonte do mundo. Em grego, 'mais além' e 'mais alto' se expressam por aná, e a 'palavra' por lógos; de tal maneira que aná-lógos significa (em seu sentido etimológico, no sentido radical: 'ana-lógico') 'a palavra que irrompe no mundo desde mais além do mundo'; mais além do fundamento. O método ontológico-dialético chega até o fundamento do mundo; ainda como futuro porém, se detém ante o Outro como um rosto de mistério e liberdade, de história 'dis-tinta' e não 'di-ferente'".(23) Ambos os termos possuem significados que se deve esclarecer. É nos entes da totalidade que a identidade se diferencia. Ao passo que a distinção, por sua vez, se refere àquilo que sempre é outro e que, na sua alteridade, jamais co-habita a totalidade, não podendo, assim, diferir. "Diferir é o que, havendo estado unido, é levado à dualidade; por se dar um momento de unidade primigênia é possível o retorno à unidade, e o retorno é o princípio da totalidade. Em troca, se o Outro é originariamente distinto, não há diferença, nem retorno; há história, há crise; é uma questão totalmente diversa. Desta maneira, o Outro é originariamente dis-tinto e sua palavra é ana-lógica, no sentido de que seu lógos irrompe interpelante desde mais além de minha compreensão; vem ao meu encontro".(24)
O método analético -- que é a denominação dada por Dussel ao método meta-físico (25) -- é distinto do método dialético. "Este último vai de um horizonte a outro até chegar no primeiro, de onde esclarece o seu pensar; dialético é um 'a-través-de'. Em troca, ana-lético quer significar que o lógos 'vem de mais-além'; isto é, que há um primeiro momento no qual surge uma palavra interpelante, mais além do mundo, que é o ponto de apoio do método dialético porque passa da ordem antiga à ordem nova. Esse movimento de uma ordem a outra é dialético, porém é o Outro como oprimido o ponto de partida.(...) O método ana-lético surge desde o Outro e avança dialeticamente; há uma descontinuidade que surge da liberdade do Outro. Este método tem em conta a palavra do Outro como outro, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra, se compromete pela fé na palavra histórica e de todos esses passos esperando o dia distante em que possa viver com o Outro e pensar sua palavra, é o método ana-lético. Método de libertação, pedagógica analética de libertação"(26)
2.4. Os Momentos do Método Analético - 1974
Tratamos neste item de dois trabalhos de Dussel: "Superação da Ontologia Dialética - A Filosofia da Libertação Latino-americana" e " A Questão Dialética e Analética no Processo de Libertação Latino-americana"(27) A analética aqui é destacada, também, como práxis que visa responder à palavra interpelante do outro que emerge no mundo do mesmo como um rosto(28) . Tal práxis perpassa todas as esferas da cotidianidade. Assim, a analética antropológica é uma econômica, uma erótica e uma política, que exigem um serviço ao outro que "... nunca é 'um só', mas, fugentemente, também é sempre 'vós'. Cada rosto no face-a-face é igualmente a epifania de uma família, de uma classe, de um povo, de uma época da humanidade e da própria humanidade como um todo, e ainda mais, do outro absoluto"(29). A palavra do outro me interpela a uma práxis histórica maior que apenas uma relação intersubjetiva com quem interpela.
Na reformulação da dialética a partir desta perspectiva metafísica Dussel, em 1974, ora usa a expressão terminológica "Método Analético", ora "Momento Analético". O método analético parte da palavra do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade(30) . Vai mais além que o dialético que é o caminho que a totalidade realiza em si mesma: dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes(31). O método analético passa da totalidade ao outro para servi-lo faticamente. Esta passagem ao outro, que trará uma nova fundamentação de si mesma, é dia-lética. Esta dialética é verdadeira, tem um ponto de apoio analético; é um movimento ana-dia-lético. A falsa dialética não se apoia na analética(32) .
O método analético tem cinco momentos: 1) Parte, dialética e ontologicamente, da cotidianidade para o fundamento(33) ; 2) De-monstra cientificamente os entes como possibilidades existenciais - relação fundante do ontológico sobre o ôntico(34) ; 3) Passagem analética da totalidade ontológica ao outro enquanto outro(35) ; 4) Revelação do outro que cria um novo âmbito fundamental ontológico aberto ao ético(36) ; 5) O nível ôntico é julgado a partir do fundamento ético em função de uma práxis analética como serviço ao outro(37).
2.5. O Momento Analético do Método Dialético Positivo - 1977
Em 1977, Dussel publica Filosofia de la Liberación. A primeira edição mexicana, posteriormente traduzida ao português, torna-se a grande difusora da filosofia da libertação no Brasil. O quinto capítulo desta obra é dedicado ao tema: "Da ciência à filosofia da libertação", pretendendo propor um modelo do discurso crítico. Dussel analisa, então, o método das ciências; o método dialético; o método analético; o método poiético; as ciências do homem; os métodos ideológicos; os métodos críticos; e a filosofia da libertação.(38)
Não encontramos nesta obra os pressupostos que levaram Dussel à formulação desse método anadialético, da maneira como ele os expõe nos dois textos anteriores. Pelo contrário, como em toda obra de síntese, alguns conceitos ficam meio vagos. Aqui Dussel faz referência a sete colocações de método que envolvem a dialética e a analética: 1) Método dialético em âmbito próprio(39) , 2) Método dialético no nível semântico(40), 3) Método dialético negativo(41) , 4) Método dialético positivo ou anadialética(42) , 5) Método dialético metafísico ou Analético, do qual a analética é um momento(43) , 6) Momento analético(44), 7) Método analético(45) . Assim a analética é tomada aqui ora como método, ora como momento do método.
Assim, o momento analético que tem por princípio a distinção, é o ponto de partida para um discurso metódico ou ponto de apoio a novos desdobramentos; abre o sujeito ao âmbito meta-físico referindo-se semanticamente ao outro homem, grupo ou povo para além da totalidade, tendo por categoria própria esta exterioridade do outro que, ao ser afirmada, supera a totalidade sustentando a inovação do sistema. Este momento é somatória da seqüência de quatro outros: 1) A totalidade é questionada pela interpelação do outro; 2) A escuta da palavra como conseqüência ética; 3) Aceitação respeitosa da palavra por impossibilidade de interpretá-la adequadamente; 4) O lançar-se do interpelado à práxis do oprimido. Portanto, o momento analético é crítico e superador do método dialético-negativo, assumindo-o e completando-o; é a afirmação da exterioridade, não somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade.
De outra parte o método analético é um método cujo ponto de partida é uma opção ética e uma práxis histórico-concreta. Contudo, o método teórico-analético é especulativo, ocupa-se do âmbito ôntico, ontológico e metafísico; não é operativo ou produtivo, não é intrinsicamente prático nem poiético embora esteja condicionado por ambos. Tem por ponto de partida a opção ético-política em favor do oprimido da periferia: respeito pela exterioridade do outro, geopolítica e socialmente considerada ao escutar a sua palavra. É o método da filosofia da libertação, sendo entretanto, que a filosofia da libertação é uma pedagogia analética da libertação.
Seja como momento ou como método, a passagem analética é o que possibilita a superação meta-física da totalidade desde a exterioridade. Buscando desfazer possíveis equívocos Dussel explicita a categoria exterioridade como transcendentalidade interior à totalidade: não se deve pensar que " ... o que está 'além' do horizonte do ser do sistema o é de maneira total, absoluta e sem nenhuma participação no interior do sistema. Para evitar este mal-entendido dever-se-ia compreender a exterioridade como transcendentalidade interior à totalidade. Nenhuma pessoa enquanto tal, é absolutamente ou só parte do sistema(46). Todas, mesmo no caso das pessoas membros de uma classe opressora, têm uma transcendentalidade com relação ao sistema, interior ao mesmo.(...) Esta transcendentalidade interna é a exterioridade do outro como outro; não como parte do sistema."(47)
2.6. O Método Anadialético - 1980(48)
Nesta exposição Dussel aceita o método dialético (ou ontológico) para descobrir o sentido das partes funcionais do sistema, dando particular importância ao momento analético deste método dialético; pois a passagem dialética da "parte" ao "todo" ou de um todo ao todo concreto que o compreende não se dá somente pela negação do negado na totalidade e nem somente pela afirmação da totalidade sem Aufhebung metafísica, mas sim pela afirmação da exterioridade. Assim, o momento analético do método ana-dialético, que é um método pedagógico, prioriza ao projeto de libertação o outro como novo, como distinto; momento que se funda na anterioridade absoluta da exterioridade sobre a totalidade, pois para além do ser há realidade; futuro utópico: exterioridade antropológica ou o absoluto(49). A partir da exterioridade real do outro, pode-se criticar o Ser (sentido da totalidade ontológica) e transformá-lo num mero ente, deixando de ser a totalidade pretensamente última, transformando-se numa totalidade entre as possíveis.
2.7. O Momento Analético do Método Dialético - 1982
Em um breve artigo, Dussel retoma algumas perguntas que lhe haviam sido formuladas a partir de diversos contextos em torno de seis temas, visando esclarecer suas posições. No quinto tópico trata da Filosofia da Libertação e Marx e no sexto aborda o Momento Analético do Método Dialético(50).
Após 1975, com o exílio no México, Dussel começa uma leitura atenta de Marx que agora se lhe revelava como um " pensamento fino, preciso e deslumbrante", exatamente o contrário daquele materialismo objetivista e economicista que lhe era anteriormente associado(51). O que nos interessa aqui, é que Dussel afirma ter descoberto em Marx algumas das intuições fundamentais da filosofia da libertação, como por exemplo, a categoria de exterioridade. Em outras palavras, a dialética de Marx, não seria a mesma de Hegel, mas consideraria a dinâmica da exterioridade. Dussel afirma isto recuperando um fragmento dos Manuscritos de 44 onde escreve Marx que: " A Economia Política não conhece o trabalhador que não trabalha, o homem do trabalho, na medida em que se encontra fora (ausser) desta relação laboral... São fantasmas que ficam fora de seu reino... (Por isso) o homem de trabalho pode diariamente precipitar-se de seu pleno nada no nada absoluto, em sua inexistência social que é sua real inexistência"(52)Assim, no final dos anos 70 Dussel começa trabalhar sob a hipótese de recuperar o jogo categorial de Marx evidenciando a abertura da totalidade à exterioridade, equacionando de maneira satisfatória a relação entre dialética e analética na dinâmica da práxis.
Ao considerar o momento analético do método dialético, Dussel situa a sua importância afirmando que tanto o marxismo ortodoxo, como a Escola de Frankfurt, Ernst Bloch e mesmo Jean-Paul Sartre em sua Crítica da Razão Dialética usavam como método uma dialética negativa, ontológica que acaba afirmando o sistema, mesmo que fosse em sua potencialidade futura, utópica, realizando assim, a afirmação potencial da mesmidade(53).
Contrariamente, afirma Dussel, os sandinistas arriscaram a vida não apenas para negar o somozismo, mas para afirmar o homem e o povo nicaragüenses que possuíam e possuem práticas, valores e vida " ...fora (ausser), mais-além( em grego: anó, aná-) da ordem somozista. Como indicava Marx -- continua Dussel -- nos Manuscritos de 44, 'fora' do sistema, fora do ser, 'mais além' da identidade, existia a atualidade de uma vida nicaragüense não incluída porque desprezada, nada para o somozismo, para o capitalismo. Um trabalhador que não trabalha, mais além da atualidade do assalariado, é nada para a valorização do capital"(54). Assim, pois, a negação da negação só é possível pela afirmação da exterioridade real que ocorre na práxis cotidiana do povo nicaragüense -- no caso deste exemplo. Portanto, o nada, desprezado, ignorado e não incluído no sistema ao afirmar sua exterioridade nega a totalidade. A partir deste nada se estabelece a ana-lética: "O nada como liberdade do Outro ( âmbito de incondicionalidade para o sistema); nada para o Ser e o Fundamento do sistema como realidade do Outro. Isto é, a Realidade mais além do Ser indica a questão do momento analético do método dialético(55). Este mais além do ser é o que Dussel denomina exterioridade analética que equivaleria, segundo o autor, ao conceito de "transcendentalidade interna" formulado por Franz Hinkelammert.
Tendo assim explicitado o que compreende por analético, Dussel passa a analisar as modificações que operou na segunda edição de sua obra Filosofia da Libertação, em 1980. Na primeira edição (1977) -- como também na sua Ética -- falava-se de um Método Analético:
" Queria-se sublinhar o fato de que o método começa pela afirmação da exterioridade, do mais além do Ser do sistema, do Outro, do pobre, do oprimido. O escutar sua voz... era o arranque inicial, meta-físico ( aqui 'metá' em grego, significa mais além: mais-além-da- ontologia ou do horizonte ontológico do Ser do sistema vigente)." (56).
Já em 1980, contudo, substitui-se a palavra "método" por "momento" analético :
" Agora, afirma Dussel, com maior precisão mas sem variação de fundo, a afirmação da exterioridade é um momento, o primeiro e originário de uma dialética não somente negativa, mas positiva. O método dialético afirma primeiro a exterioridade, a partir dela nega a negação, e empreende a passagem da totalidade dada à totalidade futura. Porém, a totalidade futura agora é nova; era impossível para a antiga totalidade. O Outro, a exterioridade, veio a fecundar analogicamente a totalidade opressora e constituiu uma nova totalidade ( utopia impossível para a antiga totalidade) com momentos nunca incluídos no antigo sistema ( analéticos) e com outros nele incluídos. Em algo 'semelhante' (a continuidade com o passado) em algo 'distinto' ( o novo analético - o novo sistema histórico não é unívoco): o totalitarismo da mesmidade foi superado." (57)
Interessantemente, em 1982, Dussel invoca um texto de Marx para explicitar o movimento dialético que não desconsidera a exterioridade, explicitando em tal análise seu conceito de momento analético. De outra parte aceita também a afirmação de uma transcendentalidade interna à totalidade como exterioridade analética que se manifesta através da palavra. Nos anos que seguem Dussel aprofundará a temática da exterioridade na dialética de Marx e dos a priori transcendentais na interação comunicativa.
2.8. O Método Dialético em " Filosofia da Libertação" - 1985
Na terceira edição desta obra -- que confrontamos com a tradução brasileira que teve por base a primeira versão publicada em 1977(58)--, Dussel dialoga com a dialética de Marx que possuiria uma abertura à exterioridade.
O trabalhador livre é exterioridade ao capital quando não vende sua capacidade de trabalho e igualmente quando desocupado pelo capital torna-se pauper, expulso do "mundo". Como pleno nada, o trabalhador é não capital, não está subsumido na totalidade do capital: " É 'nada (nichts)' , tanto para Marx como para nossa metafísica da libertação", afirma Dussel(59). Assim, para Dussel, " o povo é exterior e anterior ao capitalismo, por exemplo, enquanto massas empobrecidas pela dissolução de seus modos de apropriação antigos; é exterior no presente por uma economia 'submersa' e oculta de subsistência... São os pobres que não podem ser subsumidos pelo capital: 'fantasmas de outro reino' - como dizia Marx"(60). Na relação capital e trabalho, a um nível essencial, Dussel também afirma a existência de uma contradição absoluta: " ... o trabalho será sempre, enquanto sujeito livre (trabalhador), o outro que o capital, exterioridade subsumida, temporalmente mas não naturalmente, historicamente, mas não 'eternamente'. O trabalhador não tem valor ( se valor é, no capitalismo, a 'produtualidade-intercambiável' da mercadoria, ou o caráter de 'intercambiabilidade-produzida' do produto do capital), porque é a fonte criadora de tal valor: é a exterioridade essencial a todo sistema econômico de exploração."(61). Nesta dialética do sujeito livre de trabalho e do capital, aquele potencialmente pode não mais vender o seu trabalho, constituindo-se assim não mais na contradição absoluta da totalidade, mas em sujeito de um outro sistema, de um outro "mundo", podendo constituir uma comunidade de homens livres em que a vida humana que se objetiva na mediação do produto pode ser subjetivada na justiça(62).
Assim, a dialética que Dussel repudiava por estabelecer uma bipolaridade na totalidade, ele agora assume -- pois senão não há como desvendar a contradição absoluta -- porém compreende tal contradição passível de superação desde a afirmação de uma exterioridade ana-lética. Em função dessa transformação, o título da seção 5.2 que na primeira edição era Dialética agora é substituída por Dialética Negativa. Afirma Dussel: "Chamamos dialética 'negativa' o método ou movimento metódico que surge desde a negação do negado na totalidade, e por isso sua limitação estriba em ter na própria totalidade a fonte de sua mobilidade crítica." (63). Frente a esta limitação o momento analético possibilita a abertura ao âmbito metafísico. Assim, " o saber pensar, por exemplo, desde o fato do pauperismo ( o pauper como efeito da diminuição do tempo necessário para que o trabalhador reproduza sua força de trabalho, pelo aumento da produtividade), desde a dignidade do 'expulso' fora (na exterioridade...) do capital um sistema utópico viável futuro mais justo, é uma questão analética."(64). Nesta perspectiva concluirá Dussel em outra parte que " o próprio Marx, tendo sempre ante os olhos a utopia ( o 'Reino da liberdade', a 'associação de homens livres', etc.), abre um âmbito de referência analética a partir do qual pode desarmar criticamente a ciência econômica de um Smith, Ricardo, Malthus, etc. Sem esse âmbito de exterioridade era impossível uma 'crítica da economia política', ou, o que é o mesmo, uma 'economia política' crítica." (65)
2.9. A Exterioridade na Dialética de Marx - 1985
O segundo apêndice da tradução brasileira de Método Para Uma Filosofia da Libertação tem por título Os Grundrisse e a Filosofia da Libertação. Comentando textos de Marx Dussel desvenda a presença de conceitos que poderiam ser compreendidos sob a categoria de exterioridade como ausser ( como exterior, à margem), pauper (como pobre), jenseit ( como 'mais-além' do sistema), como nada pleno, etc. Por isso, de início, apresenta a abrangência da categoria de exterioridade.
"A categoria de 'exterioridade (Äuberlichkeit)' tem um sentido espacial (o caráter de algo 'estar-fora-de'). Desejamos neste trabalho dar-lhe um sentido metafísico -- se por metafísico entendermos o que se situa para além do horizonte ontológico de um sistema, como por exemplo do capitalismo como totalidade). O 'mais-além' (jenseit) do sistema (do 'ser' ou fundamento do sistema, nesse caso do capital) pode sê-lo de diversas maneiras. [1] Pode ser um 'mais-além' ou 'fora' do sistema como anterioridade histórica: o suposto de sua existência no tempo, aquilo que por dissolução deu origem ao sistema (ao capital, por exemplo). [2] Pode ser um 'mais-além' ou 'fora' por sua própria natureza: exterioridade propriamente dita, metafísica, como o trabalho vivo é o outro do capital, sempre, sincronicamente ( e de qualquer forma é plenamente outro antes do intercâmbio entre capital-trabalho, ante rem). [3] Em terceiro lugar, a exterioridade pode se realizar post festum ( como o trabalhador pauper, desempregado que, pela redução do tempo necessário de trabalho, ficou 'fora': sem-trabalho). [4] Desde esta múltipla 'exterioridade' o trabalhador avança 'ante' , 'frente' ao capital ( o capitalista, a classe capitalista, a nação capitalista) numa experiência tão curta quanto abissal, abismal: o 'face-a-face' daquele que, como 'nudez absoluta', enfrenta outro homem 'possuidor do dinheiro'." (66).
Retomando a tese de que sua filosofia é um meta-discurso, afirma Dussel que as categorias básicas que apresentou em Filosofia da Libertação são categorias de categorias. Em razão disso passa a modelizar os textos de Marx sob tais categorias.
A exterioridade como anterioridade histórica refere-se ao servo emancipado, membro de formas econômicas pré-capitalistas, que com a dissolução da relação vigente entre o homem e a terra, os instrumentos e os meios de consumo, necessitará vender sua capacidade de trabalho: "esta exterioridade é prévia à constituição do sistema, à constituição da totalidade. Prévia ao surgimento do ser do capital."(67).
A exterioridade essencial abstrata ou propriamente metafísica é a que se estabelece "entre o capital originado e o trabalho vivo" (68). O trabalho vivo é o trabalhador, a classe trabalhadora, a nação periférica como outro em relação, respectivamente, ao capital, à classe capitalista, à nação capitalista ( então Inglaterra, França, etc). A exterioridade é alteridade distinta da totalidade dominadora, do capital, que existe a partir de si e por si. O outro é "nada pleno" por não ter sentido ou valor. Sua corporalidade e sensibilidade que estão fora são colocadas à venda. A objetividade deste outro do capital coincide com sua imediata corporalidade (leiblichkeit), com sua pele. "Essa pele do outro é ainda exterior ao capital, como o 'absolutamente contraditório'." (69)
A exterioridade como pauper refere-se ao trabalhador que mesmo vendido e alienado não deixa de ser " potencialmente ou atualmente de novo o outro do capital"(70) . Na medida em que vai sendo posto à margem das condições de viver por diminuição do trabalho necessário o trabalhador vai sendo transformado em outro do capital, sendo posto fora da relação capital-trabalho, tornando-se um desocupado.
No enfrentamento face-a-face entre o trabalhador livre e o capitalista " ... no momento anterior à proposta de salário ou da disponibilidade de alienar a capacidade de trabalho..." o trabalhador é exterioridade: "A partir do ser do capital, o trabalhador que o enfrenta, face-a-face, é o não-ser..." (71). Escreve Marx que " o primeiro suposto consiste em que de um lado esteja o capital e do outro o trabalho, ambos como figuras autônomas e em contradição; ambos, pois, também como reciprocamente alheios."(72). Após este momento -- que possui uma dimensão ética -- , estabelecido o contrato desde o capital, a relação pessoa-pessoa se transforma em relação coisa ante coisa. Trata-se pois da reposição da totalidade.
2.10. A exterioridade no Diálogo Norte-Sul - 1992
Em 1992 Dussel assume "rupturas" em relação ao seu trabalho anterior(73). Após um estudo da obra de Marx trabalhando também com textos pouco conhecidos da maioria dos marxistas, afirma Dussel que este estudo " ... determinou uma mudança na arquitetônica categorial de nossa Filosofia da Libertação" (74).
Recuperando Lévinas, afirma Dussel que este "... situa a 'Exterioridade' como em um âmbito trans-ontológico de onde irrompe 'o Outro (Autri)', como origem da interpelação ética, como 'pobre'. Porém, neste caso, a contradição Exterioridade-Totalidade é absolutamente abstrata, com respeito a todo 'sistema' possível, incluindo o 'mundo' (no sentido fenomênico hegeliano ou existencial heideggeriano). Desde 'mais-além' do horizonte do 'mundo', o Outro irrompe 'no mundo' exigindo justiça. É a posição ética por excelência, o 'face-a-face' " (75).
Já Marx, em um nível mais concreto, " ... situava o 'trabalho vivo (lebendige Arbeit)' como o 'Nicht-Kapital' , como o Nada (Nichts) fora do capital, anterior ao contrato. Lemos nos Manuscritos de 44: ' a existência abstrata do homem como um puro homem de trabalho, que por isso pode diariamente precipitar-se desde seu pleno nada (Nichts) no nada absoluto (absolute Nichts), em sua inexistência social que é sua real inexistência."(76).
Dussel então passa a explicitar o significado da " transcendentalidade da Exterioridade com respeito à Totalidade". Essa transcendentalidade não teria um sentido kantiano ou apeliano. É, para Dussel, a " ... 'trans-ontologicidade do situado 'mais-além' do horizonte do mundo, do sistema: o Outro como livre, incondicionado. A 'transcendentalidade' da alteridade ou exterioridade pode também aplicar-se no plano empírico. Esta meta-categoria serve à 'Filosofia da Libertação' como negatividade radical com respeito a todo 'sistema' transcendental (no sentido kantiano ou apeliano) ou empírico: desde esta posição... pode descobrir-se a dominação, a exclusão, a negação do Outro. Desde este Outro negado parte a práxis de libertação como 'afirmação' da Exterioridade e como origem do movimento da negação da negação."(77).
Contudo afirma Dussel neste trabalho que é preciso tomar a sério a categoria Totalidade, como toda a ontologia bem como a institucionalização das mediações tecnológicas, científicas ou cotidianas, pois a filosofia da libertação " ... não pode negar o lugar determinante da 'racionalidade'". Salienta, entretanto, que " a 'Totalidade' desde Aristóteles (tò hólon), Toms (sic!) (ordo), Hegel (Totalitaet), Marx, Heidegger (Ganzheit) até Lukács, ponto de partida de toda ontologia, é posta em questão primeiramente por Schelling, e posteriormente desde a 'proximidade' ou 'exterioridade' de Lévinas, posição que posteriormente radicaliza a Filosofia da Libertação."(78). Trata-se pois de criticar a totalidade desde a exterioridade que é a fonte da crítica e não o seu fundamento(79) . A afirmação da exterioridade é superação da negação da negação na totalidade: "A este movimento mais além da mera 'dialética negativa' denominamos, salienta Dussel, o 'momento analético' do movimento dialético -- essencial e próprio da libertação como afirmação de uma 'nova' ordem, e não meramente como negação da 'antiga'."(80). A afirmação da nova ordem supõe a afirmação da utopia dos que não-tem-lugar ( ouk-topos) na Totalidade dominadora: os explorados, excluídos e dominados, o não-ser que, contudo, são reais. Trata-se pois não de criar projetos fantasiosos de futuro, mas de " ... saber descobrir na Exterioridade transcendental do oprimido a 'presença' vigente da utopia como realidade atual do impossível, sem o auxílio do Outro, impossível para o sistema de dominação. Daí o sentido da 'analogia' da nova ordem de libertação futura; daí deriva-se o sentido específico do 'pro-jeto de libertação'."(81)
2.11. A Exterioridade no Diálogo Norte-Sul - 1993
No quarto Encontro do Diálogo Norte-Sul realizado em São Leopoldo em 1993, Dussel retoma o debate acerca do ponto de partida da Ética da Libertação(82), distinguindo-a do que denominou éticas ontológicas da autenticidade, elaboradas especialmente na América do Norte por pensadores como Ch. Taylor , A. MacIntyre entre outros; a Ética do Discurso, composta por éticas formais da universalidade elaboradas desde a Europa por Apel e Habermas, entre outros; e a proposta de um novo ponto de partida para a filosofia latino-americana apresentada na filosofia da libertação de Scannone.
Trabalhando a partir de um relato vivencial de Rigoberta Menchú(83), reitera Dussel que o ponto de partida da Ética da Libertação " ... acontece mais-lém da ontologia, do mundo e do ser vigente ou dominador ou da comunidade de comunicação hegemônica. O ponto de partida é o Outro, mas não simplesmente como outra 'pessoa-igual' na comunidade argumentativa, mas ética e inevitavelmente (apoditicamente) desde o Outro em algum aspecto dominado (principium oppressionis) e afetado-excluído (principium exclusionis), desde a experiência ética da 'exposição' no face-a-face: 'Chamo-me Rigoberta Menchú', ou o 'Eis-me aqui!' de Lévinas".(84)
Retomando os três níveis de exterioridade levantados em Marx, Dussel estabelece como ponto de partida de sua ética o afetado, o dominado e o excluído. O afetado é o que sofre os efeitos de um acordo válido alcançado. Ter consciência que é afetado é já resultado de um processo de libertação. Assim, o ponto de partida radical é "... a situação na qual o/a afetado/a não tem consciência de ser afetado/a. Tal é o escravo que acredita ser por 'natureza' escravo."(85). O dominado é o afetado intra-sistêmico, como a mulher sob o machismo, a classe operária sob o capitalismo. O excluído: " Por último há afetados que estritamente estão ou não em relação de dominação, e que são excluídos ( há, efetivamente, graus de exterioridade e subsunção)"(86), como o pobre que não tem condições de reproduzir sua vida.
Comenta Dussel que a análise ontológica deve ser aplicada ao mundo do afetado, do dominado ou excluído, mas que não se deve vê-lo somente como negatividade pura ou exterioridade formal, sendo necessário prestar uma atenção positiva, à sua realidade. Portanto a elaboração de Heidegger, Taylor ou Scannone tem sentido, pois em sua exterioridade cultural, o Outro deve ser autêntico(87). Contudo esse momento deve ser ultrapassado por uma "afirmação analética" pela passagem à "razão ética originária". Explicitando esse último conceito afirma Dussel: " É evidente que 'ética' (ethische) aqui não quer ser uma referência à 'eticidade' (Sittlichkeit) concreta, como indicaria Habermas, mas, muito pelo contrário, é o uso originário da razão desde onde a própria razão 'moral' (moralisch) universal ou discursiva é deduzida. Por isso agregaremos sempre 'originária' à denominação 'razão ética'." (88).
Em seu relato Rigoberta afirma que em um dado momento de sua vida começou a analisar sua infância, relacioná-la com a vida dos filhos de famílias ricas -- servidos com alimentação farta e que educavam seus animais para reconhecê-los --, mas não sabia como ordenar e compartilhar suas idéias. Quando começou a ter amigos de outra comunidade pode posteriormente compreender que sua própria experiência era a situação geral de todo o povo, explorado no trabalho e discriminado na condição de indígena. Para Dussel, esse momento de relação com pessoas de outra comunidade foi o momento fundamental, na vida de Rigoberta, do " 'face-a-face' da comunidade na Exterioridade do sistema. Esta intuição -- afirma Dussel -- quisemos expressar ... com a proposta de que o Outro, os pobres, constituem comunidades empíricas fora do sistema, onde experimentam eticamente relações humanas que lhes são negadas no sistema. É a partir dessa utopia (ouk-topos: o que não-tem-lugar-no sistema) desde onde a 'razão ética' começa seu trabalho".(89)
A relação com o Outro enquanto outro, ainda em sua exterioridade, abriria assim um tipo específico de racionalidade que é a razão ética originária, distinta da razão discursiva, estratégica, instrumental, emancipatória, hermenêutica, etc.(90).
Esta razão ética originária é o momento racional primeiro, a res-ponsabilidade a priori pelo Outro, pressuposta na expressão lingüística proposicional ou argumentativa, em toda comunicação ou práxis, momento ilocucionário na origem de todo ato-de-fala, intenção constitutiva anterior ao ato-de-trabalho, a toda pretensão de serviço ao Outro ou a toda divisão do trabalho: " É o 'Dizer (Dire)' antes de todo 'o dito (le dit)'...; é um 'estar-exposto' na própria pele ante-o-Outro o momento primeiro da 'razão ética originária', na qual consiste 'a racionalidade mesma da razão'"(91). Para Dussel, a razão discursiva se funda e se deduz desta razão ética originária: " ... a razão discursiva é um momento fundado na 'razão ética originária' (o 'para-o-Outro' da razão prática como fonte primeira, anterior a todo argumento e a toda comunicação)."(92). Como anterioridade, a razão ética originária abre a possibilidade da ação comunicativa e da argumentação a partir da capacidade de estabelecer o encontro com o Outro; ela re-conhece o rosto como pessoa, como " ... Sujeito possível do processo de 'libertação' para chegar a ser 'livre', participante pleno da nova comunidade de comunicação real, possível, futura. A afirmação analética -- continua Dussel -- (mais além do horizonte do mundo e da comunidade de comunicação hegemônicos) é fruto da 'razão ética originária' , cujo primeiro sujeito é o Outro mesmo dominado ou excluído, que se reconhece comunitariamente como o Outro afetado..."(93).
Assim, a constituição de uma nova comunidade de comunicação possui três momentos: afirmação, negação e superação: "À 'afirmação' (sabedoria popular afirmada, tomada-de-consciência, organização, interpelação à comunidade de comunicação vigente, hegemônica) segue a negação da negação, como des-construção prática... do sistema, que se supera pela 'passagem' (Uebergang) dialético-positiva"(94). Comentando esse processo, escreve Dussel: "Se a afirmação é do que está 'mais além' da Totalidade (anó-); e a negação da negação é subsunção (Subsumtion) também do necessário para a construção do novo sistema; a passagem (Uebergang) (dia-) mais além da Totalidade 1 (-logon) para a Totalidade 2 (nova comunidade de comunicação) é: ana-dia-lética. A pura 'dialética negativa' não é suficiente. 'O Outro' é já sempre apriori a utopia real (não a 'fantasia' ou a criação estética de Marcuse ou Adorno desde o sistema). Trata-se, pelo contrário, de uma 'dialética positiva': desde a positividade afirmada do Outro 'fonte' do movimento dia-lético (ana [affirmatio] - dia [negatio] - lético [eminentia]'." (95).
Citando Rigoberta, Dussel analisa o momento de negação da negação, ou da práxis des-construtiva da libertação, quando ela e seus companheiros buscam novas formas de luta, visando des-truir o sistema almejando a construção de um novo, em razão da impossibilidade do antigo responder aos afetados-dominados-excluídos em suas exigências de justiça. Cada sistema possui muitos subsistemas que efetivam diversas exclusões, havendo portanto muitos sujeitos de práxis e processos des-construtivos em cada momento desses, possibilitando a afirmação da diversidade da pluralidade e das distinções.
Por fim, a passagem a um novo sistema se realiza como práxis construtiva de libertação. A des-construção não basta, sendo necessário construir um novo sistema, resultado de uma razão ético-discursiva, estratégica e instrumental que se articulam respeitando a autonomia e funções próprias de cada qual. É o momento da criação de instituições. Insiste Dussel que " ... a participação dos não-participantes não se efetua por simples 'inclusão' na mesma comunidade, mas por criação da nova, onde os antigos 'afetados-dominados-excluídos' são agora parte plena (...) Por isso não se trata nem de mera afirmação ontológica da Lebenwelt (seja hegemônica como em Taylor, seja popular como em Scannone), nem de mera transcendentalidade (Apel) ou universalidade (Habermas) do dado, que é afirmação reflexiva do 'Mesmo', mas da afirmação da exterioridade (do afetado-dominado-excluído) na relação com o sistema que o nega, e, desde a potência dessa afirmação do Outro, a negação da negação (ana-lética), para culminar na superação a uma nova situação de justiça e igualdade (eminentia ana-dialética)." (96)
3. Dialética e Exterioridade - As dificuldades metodológicas na filosofia de Dussel.
3.1. Síntese Geral das Abordagens
Acompanhando as diversas exposições, podemos sintetizá-las em seus aspectos principais, a fim de proceder um exame cuidadoso das mudanças conceituais e de sua estratégia de articulação categorial.
Em 1970 Dussel distingue a dialética em três níveis: natural, histórica e metódica. O movimento do método dialético partindo do factum pode desdobrar-se por involução imanentista à subjetividade que põe o ser ou pode ir mais além do factum abrindo-se à transcendência da exterioridade, do ser que se im-põe. O método dialético ôntico estabelece o sentido do ente a partir da dedução do ser fundamental ao passo que o método dialético-metafísico parte da finitude como exterioridade do absoluto totalizado e tende a ela sem jamais abarcá-la. Opõem-se, assim, a ontologia do ser como "o visto" à metafísica do ser como " o ouvido". O método dialético permite a passagem da cotidianidade à descoberta do fundamento, englobando os momentos negativo e positivo como essenciais, em uma unidade totalizadora e sempre intotalizada em movimento que tende à exterioridade sem jamais abarcá-la.
Temos em 1971 temos a "dialética de totalidade" ou "dialética de dominação" em oposição à "dialética analógica da alteridade" ou "dialética alterativa" , isto é, a contraposição entre a dialética do mesmo e do outro. A partir da dialética da totalidade, ontológica e unidimensional, nega-se o nada do outro enquanto ente do mundo, afirmando-lhe um sentido como diferença da identidade do mesmo. Desenvolve-se, então, o movimento prático de negação da alteridade do Outro desencadeado por uma vontade de poder. Trata-se de uma dialética bipolar que promove o fim do discurso, alienação, opressão e morte do outro. Sob a dialética da totalidade a libertação consiste em negar a diferença afirmando a mesma identidade da totalidade. Por outro lado, a dialética analógica abre a totalidade à alteridade, transcendendo o âmbito do logos do mesmo abrindo-se ao ana-logos, à palavra da alteridade, confiando no que se ouve por uma fé metafísica. Com essa abertura o estatuto da totalidade advém-se como ontologia negativa. Aqui a libertação exige a afirmação da distinção. Sob esta dialética afirma-se o nada do outro como liberdade, que além de ser negativamente outro no mundo é possibilidade de história, futuro real, novidade da criação.
Em 1972, Dussel propõe um "Método Analético" que supera o Método Dialético, mas que em contra-partida é ponto de apoio ao Método dialético. Ambos assim se complementam. O método analético recebe a palavra que "vem de mais-além", e que passando de uma ordem a outra possui um movimento dialético, que tem o "outro" (oprimido) como ponto de partida. O método dialético, por sua vez, é mediação da ação que busca responder a palavra interpelante, isto é, implementa dialeticamente todas as mediações necessárias para responder a essa palavra.
Já em 1974, Dussel ora usa a expressão "Método Analético", ora "Momento Analético". O método analético parte da palavra do outro enquanto livre, como além do sistema da totalidade. Vai mais além que o dialético que é o caminho que a totalidade realiza em si mesma: dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes. O método analético passa da totalidade ao outro para servi-lo faticamente. Esta passagem ao outro, que trará uma nova fundamentação de si mesma, é dia-lética. Esta dialética é verdadeira, tem um ponto de apoio analético; é um movimento ana-dia-lético. A falsa dialética não se apoia na analética.
O momento analético tem cinco momentos: 1) Parte, dialética e ontologicamente, da cotidianidade para o fundamento; 2) De-monstra cientificamente os entes como possibilidades existenciais -- relação fundante do ontológico sobre o ôntico; 3) Passagem analética da totalidade ontológica ao outro enquanto outro; 4) Revelação do outro que cria um novo âmbito fundamental ontológico aberto ao ético; 5) O nível ôntico é julgado a partir do fundamento ético em função de uma práxis analética como serviço ao outro.
Posteriormente Dussel chamará este método de "Método Dialético Positivo", compreendendo o "Momento Analético" como o terceiro momento deste método, que possui um movimento ana-dialético.
Em 1977, a Analética é tomada ora como método, ora como momento do método. O momento analético que tem por princípio a distinção, é o ponto de partida para um discurso metódico ou ponto de apoio a novos desdobramentos; abre o sujeito ao âmbito meta-físico referindo-se semanticamente ao outro homem, grupo ou povo para além da totalidade, tendo por categoria própria esta exterioridade do outro que, ao ser afirmada, supera a totalidade sustentando a inovação do sistema. Este momento é somatória da seqüência de quatro outros: 1) A totalidade é questionada pela interpelação do outro; 2) A escuta da palavra como conseqüência ética; 3) Aceitação respeitosa da palavra por impossibilidade de interpretá-la adequadamente; 4) O lançar-se do interpelado à práxis do oprimido. O momento analético é crítico e superador do método dialético-negativo, assumindo-o e completando-o; é a afirmação da exterioridade, não somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade.
Por outro lado, o método analético é um método cujo ponto de partida é uma opção ética e uma práxis histórico-concreta. O método teórico-analético é especulativo, ocupa-se do âmbito ôntico, ontológico e metafísico; não é operativo ou produtivo, não é intrinsicamente prático nem poiético embora esteja condicionado por ambos. Tem por ponto de partida a opção ético-política em favor do oprimido da periferia: respeito pela exterioridade do outro, geopolítica e socialmente, ao escutar a sua palavra. É o método da filosofia da libertação, sendo entretanto, que a filosofia da libertação é uma pedagogia analética da libertação.
Na exposição em 1980 temos o seguinte: Dussel aceita o método dialético (ou ontológico) para descobrir o sentido das partes funcionais do sistema, dando particular importância ao momento analético deste método dialético; pois a passagem dialética da "parte" ao "todo" ou de um todo ao todo concreto que o compreende não se dá somente pela negação do negado na totalidade e nem somente pela afirmação da totalidade sem Aufhebung metafísica, mas sim pela afirmação da exterioridade. Assim o momento analético do método ana-dialético, que é um método pedagógico, prioriza ao projeto de libertação o outro como novo, como distinto; momento que se funda na anterioridade absoluta da exterioridade sobre a totalidade, pois para além do ser há realidade e futuro utópico: exterioridade antropológica ou o absoluto. A partir da exterioridade real do outro, pode-se criticar o Ser (sentido da totalidade ontológica) e transformá-lo num mero ente, deixando de ser a totalidade pretensamente última, transformando-se numa totalidade entre as possíveis.
Já em 1982 Dussel afirma ser preciso considerar o momento analético do método dialético para superar a dialética negativa, ontológica que acaba afirmando o sistema mesmo como potencialidade futura, utópica, da mesmidade. Fora do sistema, do ser, mais-além da identidade existe a atualidade não incluída porque desprezada: o nada como liberdade do outro; nada como realidade do Outro para o Ser e o Fundamento do sistema. A negação da negação só é possível pela afirmação da exterioridade real, o que ocorre na práxis: o nada não incluído no sistema ao afirmar sua exterioridade nega a totalidade. A questão do momento analético do método dialético é indicada pela Realidade mais além do fundamento do Ser, exterioridade analética ou transcendentalidade interna. Esclarece Dussel que em 1977 seu método analético sublinhava que o método começava pela afirmação da exterioridade, do mais além do Ser do sistema: escutar a voz do Outro era o arranque inicial metafísico. A substituição pelo momento analético destaca que a afirmação da exterioridade é o momento primeiro e originário da dialética positiva. Afirmando primeiramente a exterioridade o método dialético parte dela para negar a negação empreendendo a passagem da antiga totalidade à totalidade nova, futura, incluindo momentos analéticos nunca incluídos no antigo sistema e outros já anteriormente incluídos: a nova totalidade é em algo semelhante e em algo distinto à antiga totalidade.
Em 1985, em Filosofia da Libertação afirma-se que a dialética de Marx possuiria uma abertura à exterioridade. O trabalhador livre é exterioridade ao capital quando não vende sua capacidade de trabalho, quando torna-se pauper e quando, como pleno nada, não mais está subsumido na totalidade. Na relação capital e trabalho, em um nível essencial existe uma contradição absoluta: o trabalhador será enquanto sujeito livre exterioridade subsumida temporalmente, historicamente. Como fonte criadora de todo valor é exterioridade essencial a todo sistema econômico de exploração. Contudo, o sujeito livre de Trabalho pode não mais vender o seu trabalho constituindo-se não mais na contradição absoluta da totalidade, podendo constituir uma comunidade de homens livres em que a vida humana objetivada no produto possa ser subjetivada justamente. Assim, a contradição absoluta é passível de ser superada desde a afirmação de uma exterioridade ana-lética. Diferentemente da dialética negativa que é o método ou movimento metódico que surge da negação do negado na totalidade encontrando na totalidade a fonte de sua mobilidade crítica, o momento analético possibilita a abertura ao âmbito metafísico: saber pensar um sistema viável futuro desde o pauper, da dignidade do que foi posto fora do capital, é uma questão analética. Consonante a esta posição, Marx, considerando o Reino da Liberdade, abre um âmbito de referência analética desde o qual pode desarmar criticamente a ciência econômica. Sem o âmbito da exterioridade seria impossível uma crítica da economia política.
Ainda em 1985, no comentário aos Grundrisse, a categoria de exterioridade é afirmada em seu sentido metafísico. O mais-além do sistema capitalista o pode ser de diversas maneiras: como anterioridade histórica (aquilo que por dissolução deu origem ao sistema); fora por sua própria natureza metafísica (outro antes do intercâmbio capital-trabalho); post-festum ( como o trabalhador pauper ou desempregado). No enfrentamento face-a-face anterior à proposta de salário o trabalhador é exterioridade: o primeiro suposto é o capital e o trabalho como figuras autônomas e em contradição, reciprocamente alheios. Comentando o modo de suas categorias em sua própria obra afirma Dussel que as categorias que apresentara em Filosofia da Libertação são categorias de categorias, possibilitando pois subsumir conceitos sob um meta-discurso.
Em 1992 a exterioridade é situada, a partir de Lévinas, como em um âmbito transontológico do qual irrompe o Outro, origem da interpelação ética. Aqui, a contradição Exterioridade-Totalidade é absolutamente abstrata. O Outro irrompe no mundo, desde um horizonte mais-além do mundo, exigindo justiça: o face-a-face é a posição ética por excelência. Em um nível mais concreto têm-se em Marx o trabalho vivo, anterior ao contrato, como o nada fora capital. De outra parte, o conceito de transcendentalidade da exterioridade nada teria de apeliano ou kantiano, referindo-se à transontologicidade do Outro como livre, incondicionado, que está situado mais-além do sistema, do horizonte do mundo. A transcendentalidade da alteridade pode ser aplicada como negatividade radical a respeito de todo sistema transcendental -- em sentido de Kant ou Apel -- ou empírico. A partir dela pode-se descobrir a dominação exclusão ou negação do Outro, do qual parte a práxis de libertação como afirmação da Exterioridade e negação da negação. Nesta nova equação da relação entre dialética e exterioridade deve-se tomar a sério a categoria de totalidade, a ontologia e a institucionalização das mediações. Contudo a totalidade é posta em questão partindo da proximidade ou exterioridade, sendo esta a fonte de crítica à totalidade e não o fundamento de tal crítica. Afirmando-se a exterioridade, supera-se a negação da negação na totalidade: o momento analético do movimento dialético como afirmação da nova ordem e não apenas negação da antiga é a denominação do movimento mais além da dialética negativa. A afirmação da nova ordem é a afirmação do-que-não-tem-lugar em meio à totalidade dominadora: o não ser que é contudo real. O movimento do método visa pois, descobrir a vigência da utopia na Exterioridade transcendental.
Por fim, em 1993, afirma-se como ponto de partida o Outro, em algum aspecto dominado, afetado ou excluído. É ponto de partida desde a experiência ética na exposição do face-a-face. Aplica-se ao mundo do afetado, dominado ou excluído a análise ontológica, mas não se deve vê-lo apenas como negatividade pura ou exterioridade formal, devendo prestar-se atenção positiva à sua realidade. O momento ontológico deve ser ultrapassado por uma afirmação analética à razão ética originária. A ética é o uso originário da razão de onde é deduzida a razão moral universal ou discursiva. Assim, o momento fundamental é o do face-a-face da comunidade na Exterioridade do sistema. Fora do sistema, comunidades empíricas estariam constituídas pelos pobres que nelas experimentam eticamente relações humanas que lhe são negadas ao âmbito do sistema. Desde essa utopia a razão ética se desdobra.
A relação ética com o Outro como outro abre um tipo específico de racionalidade que é a razão ética originária, momento racional primeiro, responsabilidade a priori pelo Outro, pressuposta em toda comunicação ou práxis. A razão discursiva se funda e se deduz desta razão ética originária, na qual consiste a racionalidade mesma da razão. Como anterioridade abre a possibilidade da ação comunicativa e da argumentação a partir da capacidade de estabelecer o encontro com o outro, reconhecendo o rosto como pessoa, sujeito possível do processo de libertação, que avança para a sua livre participação plena em uma nova comunidade de comunicação real, possível ou futura. A afirmação analética é apresentada aqui como fruto da razão ética originária, cujo primeiro sujeito é Outro -- dominado ou excluído -- que, comunitariamente, se reconhece como o Outro afetado.
A constituição de uma nova comunidade de comunicação passa por três momentos: a afirmação -- em que além da afirmação da sabedoria popular ocorre a tomada-de-consciência, a organização dos afetados, excluídos e dominados bem como a interpelação por estes da comunidade de comunicação vigente, hegemônica -- , a negação da negação -- desconstrução política do sistema impossibilitado de responder aos afetados-dominados-excluídos em suas exigências de justiça -- que se supera pela passagem dialético-positiva. A passagem mais além da Totalidade antiga para a Totalidade nova é ana-dia-lética. Não basta a dialética negativa, pois o Outro é sempre, a priori, utopia real. Assim, necessita-se de uma dialética positiva: " desde a positividade afirmada do Outro 'fonte' do movimento dia-lético (ana [affirmatio] - dia [negatio] - lético [eminentia]". A passagem a um novo sistema se realiza como práxis construtiva de libertação, que exige a criação de novas instituições, pois a participação dos não-participantes não é a sua inclusão na comunidade antigamente existente. Não se trata pois de afirmação ontológica, de mera transcendentalidade ou universalidade do dado, mas " ... da afirmação da exterioridade... na relação com o sistema que o nega, e, desde a potência dessa afirmação do Outro, a negação da negação (ana-lética), para culminar na superação a uma nova situação de justiça e igualdade (eminentia ana-dialetica)".
3.2. Confronto das abordagens
- Ressignificação das Categorias e alterações da sua estratégia de armação
Fazendo um breve confronto destas explicitações da relação entre exterioridade e dialética, observamos que o processo de evolução do pensamento de Dussel vai ampliando os horizontes do método que propõe à filosofia da libertação. Em todas as suas reformulações mantém-se viva a intuição primeira levinasiana do respeito e responsabilidade face à interpelação da alteridade. Fica patente o desejo de elaborar um método consistente que torne essa abertura à exterioridade uma mediação eficaz ao processo de libertação latino-americano; mas também fica patente as dificuldades em tal empresa e as limitações das diversas formulações propostas.
Comparando os cortes sincrônicos que fizemos percebemos que até 1971 Dussel operava com as categorias de "dialética metafísica" ou "dialética analógica" visando superar o "método dialético ôntico" ou a "dialética da totalidade". Tal superação era uma alternativa ao estabelecimento da contradição identidade-diferença, possibilitando uma abertura ana-lógica à exterioridade e a ressignificação do sentido do ser da totalidade, tendo como desdobramento a dedução de novos sentidos aos entes da totalidade, agora aberta à exterioridade. A introdução em 1972 da categoria "analética" visa superar de maneira inequívoca este novo método. Contudo, enquanto em 1972 o método analético parte da recepção da palavra do outro, colocando o método dialético como mediação que busca responder a essa palavra, em 1974 Dussel começa afirmando a mesma coisa, que o método analético parte da palavra do outro, porém, quando explicita os cinco momentos do método ele parte da cotidianidade num movimento dialético ontológico, quando então, somente num terceiro momento, aí sim, se dá a passagem analética da totalidade ontológica ao outro enquanto outro, e é na práxis analética como serviço que se responde ao apelo ético, e não como em 1972, onde a práxis se valia das mediações dialéticas. Essa reformulação advém da exigência que na ação que implementa as mediações em resposta à palavra interpelante haja um sentido transontológico afirmado aos entes do mundo. O problema contudo é que na práxis, ao significar os entes como mediação de um projeto, a passagem que vai do fundamento aos entes é dialética, mesmo que o fundamento tenha sido superado desde a exterioridade. Em razão disso, o analético não poderia ser apenas um método de recepção de palavra mas sua potencialidade de afirmar novos sentidos desde a abertura à exterioridade deveria atualizar-se em todos os momentos da práxis.
Embora Dussel o chame método analético, poderíamos dizer que esse método de cinco momentos (1974) vai se configurando como um "Método Dialético Positivo" que tem por terceiro momento o momento analético (1977) e possui em seu procedimento um movimento ana-dia-lético. Assim na passagem de um horizonte a outro ocorre a afirmação de um sentido ana-lógico. A práxis meta-física passa a ser concebida pois como movimento anadialético que é recebimento da palavra do outro que está além da totalidade e questiona os fundamentos ontológicos daquele que é interpelado pela palavra que vem da exterioridade e que na sua práxis implementa mediações com um sentido transontológico.
Porém, em 1977 as coisas novamente se complicam. Abordamos aqui a referência que Dussel faz a um "Momento Analético", "Método Analético", "Método teórico-analético", "Dialética Metafísica" e "Dialética em sentido positivo".
Em primeiro lugar é preciso afirmar que na terminologia dusseliana metafísica significa o que está para além da totalidade (1972). Neste sentido é perfeitamente cabível a expressão dialética metafísica, que em sua abertura à exterioridade -- que a impede de totalizar-se em si mesma -- implementa mediações no intuito de responder a essa palavra, tornando-se assim a dialética em sentido positivo. A dificuldade que queremos levantar aqui é outra.
O momento analético (1977) é a somatória de uma seqüência de quatro outros momentos, e parece ser enxertável no terceiro momento do método analético explicitado em 1974. Não vemos problema em que um momento de um método, em sua circunscrição de momento, possa ter um método próprio em função de receber a palavra do outro. Porém o quarto momento do momento analético (1977) parece se somar ao quinto momento do método analético (1974), fazendo ambos referência à práxis do interpelado. Em 1974 a práxis é dita como anadialética, em 1977 apenas como práxis. Em 1977 ainda, o método analético é afirmado como um método cujo ponto de partida é uma opção ética e uma práxis histórico concreta. Confirma-se assim o caráter praxístico do método, surgindo um outro problema. O método da filosofia e por extensão da filosofia da libertação é o método teórico-analético, que não é intrinsicamente prático nem poiético, não é operativo nem produtivo, mas sim teórico ou especulativo que tem por tema "omnitudo realitatis", ocupando-se dos âmbitos ôntico, ontológico e metafísico; seu ponto de partida é uma opção ético-política em favor do oprimido da periferia, em respeito à exterioridade do outro e escuta de sua palavra. Ora, a teorização é um dos momentos da dinâmica da práxis, portanto não há contradição em um método possuir um caráter primordialmente especulativo e ao mesmo tempo ser um método praxístico. O problema aqui é que, se o método teórico analético se ocupa dos âmbitos ôntico e ontológico, ele não necessita mais da dialética para esse fim; porém, como ele transitaria de um fundamento a outro se o próprio Dussel afirma que esse movimento é dialético ? O próprio Dussel explicitara que esse movimento é dialético ao referir-se aos primeiro e segundo momentos do método analético em 1974. Se, entretanto, esse movimento é desempenhado graças ao método dialético em âmbito próprio, cabe ao momento analético ser somente o momento de abertura do movimento dialético à palavra que vem da exterioridade podendo, inclusive, possuir um método próprio para esse fim. Se, então, o método analético nada mais é do que um momento do método dialético metafísico, acolhedor da palavra que vem da exterioridade, cai por terra também o quinto momento analético (1974), momento praxístico do método que se somava também ao quarto momento, praxístico, de seu momento analético exposto em 1977.
Por outro lado, se pudéramos anteriormente afirmar que em 1974 o "método dialético positivo tem por terceiro momento o momento analético e possui em seu procedimento um movimento ana-dia-lético", podemos continuar afirmando que em 1977 tal método se chama método dialético metafísico. Porém, agora, em 1977, a dialética em seu sentido positivo é também tomada como anadialética.
Já em 1980, afirma-se o momento analético do método dialético que, a partir da exterioridade real, pode transformar o ser da totalidade num mero ente, encontrando um novo sentido para a totalidade que, de pretensamente última, torna-se uma totalidade entre possíveis totalidades. Contudo, Dussel afirma em 1980 não mais a existência de um movimento anadialético, como fizera em 1977, mas um método dialético que é um método didático.
Assim, se o método dialético positivo (1974) tem por terceiro o momento analético (1977) e na práxis um movimento ana-dialético, entretanto, o método anadialético (1980) é um método pedagógico e não praxístico, no sentido de implementar mediações que respondam faticamente a interpelação que vem da exterioridade, a menos que a interpelação seja somente em nível pedagógico. Se tal fosse, o método anadialético teria validade para os níveis político, econômico, erótico, anti-fetichista, onde também é necessária a crítica filosófica? Limitar-se-ia, por outro lado, apenas à crítica filosófica -- em uma interação pedagógica -- incapaz de contribuir para a transformação concreta da realidade criticada ?
Fato é que em Dussel a práxis tem como característica encurtar a espacialidade e instaurar a proximidade. Assim, se os métodos pedagógicos deveriam ser anadialéticos, pois a pedagogia sem respeito a alteridade é totalitária, isso não significa, entretanto, que o método anadialético deva se reduzir exclusivamente a um método pedagógico. Se na filosofia da libertação a relação mestre-discípulo é pedagógica, o ouvir a palavra do outro que permite reformular o sentido da totalidade pela abertura metafísica, se dá num momento analético. Ao que parece, ouvir o outro e refundar o sentido das mediações do mundo seria uma espécie de aprendizado e por isso tal processo seria pedagógico. Mas para Dussel contudo a práxis pedagógica não se confudirá com a erótica ou a política, por exemplo. Será em face aos muitos questionamentos sobre as limitações de sua proposta de um método analético, que Dussel se voltará ao estudo da dialética de Marx.
Ao voltar-se aos textos de Marx, Dussel afirma em 1985 que a dialética ali encontrada equacionava o movimento dialético da elaboração da totalidade com a necessária abertura à exterioridade. Contudo ao afirmar -- em Filosofia da Libertação -- a existência de uma "contradição absoluta" entre o capital e o trabalho abre-se um novo leque de problemas. Se a contradição é absoluta, ela abrange o todo em questão e é condição de possibilidade da existência dos pólos contraditórios. Nenhum aspecto de cada pólo da contradição pode lhe escapar, do contrário não seria mais absoluta. É por isso que o trabalhador livre, ao assumir o contrato de venda de sua capacidade de trabalho, é negado em sua condição de trabalhador livre, pois sua própria liberdade é subsumida pelo capital. Entretanto Dussel afirmara anteriormente que a exterioridade jamais pode ser subsumida totalmente; sua liberdade é insubsumível pois é a qualidade de um ser distinto e não diferente. Não apenas a categoria de contradição ontológica é um complicador se for introduzida ao jogo categorial anterior de Dussel -- que afirmava apenas o princípio de distinção como elemento válido para a construção da transontologia e o conceito de mediação a partir de um fundamento como elemento da ontologia a ser superada metafisicamente --, mas pior ainda em se tratando de uma contradição absoluta, pois se o metafísico é um âmbito maior que o absoluto -- transcendendo o horizonte ontológico em que se estabelece tal contradição -- , então estabelecemos a impossibilidade das unidades de inteligibilidade e só haverá dispersividade, tornando-se impossível qualquer dialética, pois todas supõem âmbitos de passagem e um limite formal que é um horizonte absoluto em que a particularidade é subsumida em uma unidade.
Não menos problemática é a afirmação da exterioridade na dialética de Marx. Ao considerar a exterioridade como anterioridade histórica, afirmam-se a existência de elementos que não haviam sido subsumidos pelo capital, como o trabalhador livre que era anteriormente servo sob o sistema feudal. Ora, esses elementos já eram momentos de uma outra totalidade(97). Se a exterioridade é sua corporalidade, é possível que algum desses homens tenha reproduzido sua própria corporalidade na exterioridade de qualquer sistema econômico ? A passagem da ditadura de Somoza para o governo da Frente Sandinista não é uma passagem de uma totalidade a outra ?
Na afirmação de que a exterioridade essencial abstrata ou propriamente metafísica é a que se estabelece "entre o capital originado e o trabalho vivo", encontramos outro problema. Ora, se o capital é a totalidade e o trabalho vivo a exterioridade, temos que a exterioridade essencial abstrata se estabelece entre a totalidade e a exterioridade. Se Dussel for capaz de cindir a corporalidade de um âmbito metafísico e pretender que esse âmbito metafísico seja a mediação entre a totalidade ontológica e a corporalidade enquanto pessoa singular ele cai em erro, pois a totalidade não será mais ontológica, mas transontológica. É justamente por essa impossibilidade que a contradição entre o trabalho vivo e o capital é absoluta.
Considerando a exterioridade enquanto pauper, afirma Dussel que na medida em que vai sendo posto à margem das condições de viver por diminuição do trabalho necessário o trabalhador vai sendo transformado em outro do capital, sendo posto fora da relação capital-trabalho, tornando-se um desocupado. Se assim é, se o outro que era exterioridade e foi negado pelo capital que o empregou tem essa sua negação negada pelo próprio capital que o desemprega, afirmando-se novamente sua exterioridade como pauper, então a negação da negação desde a totalidade pode resultar na afirmação da exterioridade. Se é a totalidade que o torna realmente pauper e se ser pauper é ser exterioridade, então a totalidade põe o outro enquanto exterioridade. Esse raciocínio de graus de subsunção e exterioridade retornará posteriormente, dando margem a novos problemas que destacaremos a frente.
Dussel afirma que " a partir do ser do capital, o trabalhador que o enfrenta, face-a-face, é o não-ser..."(98). Ora, o ser do capital não tem face, somente o ente do capital (o capitalista) a tem. Não é um homem concreto em seu mundo da vida o ser do capital. Em outras palavras sob o ser do capital empregador e empregado são momentos de uma mesma totalidade contraditória.
Em 1992, no Diálogo Norte-Sul, novamente aparecem problemas. Recuperando a posição de Lévinas Dussel aceita que a Exterioridade não é o Outro, mas situa-se em um âmbito transontológico desde onde irrompe o Outro como origem da interpelação ética. Ora, se a exterioridade é também um âmbito externo de onde irrompe o Outro, jamais pode ser subsumida. Não há graus de subsunção formal ou real, pois do contrário o Outro não mais poderia irromper desde a exterioridade. Por outro lado, o outro quando é subsumido não está no âmbito da exterioridade. A adjetivação do âmbito em que se situa a Exterioridade como trans-ontológico não resolve o problema. Trans, como prefixo latino, significa "movimento para além de", "através de", "posição para além de", "posição ou movimento de través", "in-tensidade". Ou Dussel aceita que trans-ontológico é o que está fora do horizonte ontológico -- e portanto o outro enquanto outro será sempre exterioridade -- ou que é um movimento que passa pelo ontológico em direção a fora dele -- e se assim for a totalidade põe a exterioridade, ainda que negativamente. Frente a esse dilema o caminho dusseliano é sempre transitar do que há realmente para o que é ontologicamente. Daí porque sua exterioridade é, em certas passagens uma pessoa, e, em outras passagens um âmbito, podendo em outras passagens distinguir ambos: o Outro e a exterioridade. Pior ainda, trata-se do Outro com o "O" maiúsculo, que significa o outro real -- enquanto Outro --, e não o outro com o "o" minúsculo, que significa o outro como ente -- enquanto posição conceitual pelo mesmo da idéia do outro em seu próprio mundo. Para Dussel, em geral, trans-ontológico significa âmbito aberto à exterioridade, ou nível meta-físico, que possui uma abertura aná-lógica.
Se o outro é realmente pessoa, subjetividade, corporeidade, atividade, trabalho vivo, ele há em um mundo real -- e não é em um âmbito meta-físico. Dussel cuida tanto em distinguir "a idéia que tenho do outro" do "Outro cuja idéia estabeleço" que acaba frente ao dilema de ter de afirmar o Outro como seu corpo e sua subjetividade mas metafisicamente como negação da idéia que temos de seu corpo e de sua subjetividade. No momento em que Dussel afirma a exterioridade, como âmbito meta-físico desde onde o outro irrompe, ele já supôs a totalidade e as passagens dialéticas dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes. Só há sentido em falar em abertura à exterioridade se já tivermos suposto a totalidade. Assim, frente ao Outro, Dussel já supôs o conceito. Mas o movimento correto seria o inverso. O real precede o conceito que eu formulo, embora possa ser posterior ao conceito elaborado por outro homem que através de sua práxis o efetiva. Mas como não existe nenhum Espírito Absoluto do qual sejamos momento, o real sempre precede a idéia -- que pode surgir como sua negação -- em cada homem particular. Somente há sentido em falar de exterioridade como limite de totalização conceitual e da alteridade como singularidade humana que é sempre irredutível aos conceitos e que pode ressignificá-los "infinitamente" no prazo de sua vida. A relação entre duas singularidades humanas jamais será satisfatoriamente mediada por conceitos, pela dança, pelo toque ou por qualquer outra forma de manifestação, porque o humano é real, a complexificação de todos os seus sentidos e nexos e impossível.
Totalidade e exterioridade são categorias dialéticas, concebíveis porque estabelecemos relações que somente são possíveis porque formalmente operamos com a idéia de unidade, isto é, estabelecendo relação entre ambas para afirmar ou negar vínculos, identidades, diferenças e distinções. O mito hegeliano foi pensar a síntese absoluta do auto-conhecimento total do Espírito(99). Tender à unidade não significa aniquilar as singularidades. Mas as próprias singularidades somente se afirmam nas relações e sínteses que promovemos.
Nos gráficos de Dussel a exterioridade é representada por um semi-círculo. Mas os limites de uma página são os horizontes que suportam um semi-círculo. Se realmente a exterioridade é infinita, o que isto significa? Ou será que para Dussel a exterioridade é só metafisicamente infinita ? Supor a exterioridade como um círculo aberto frente a círculo fechado é como imaginar que uma esfera no meio do espaço infinito seja a totalidade e o espaço infinito que ela não ocupa seja a exterioridade que a envolve. Mas se esse mesmo é também metafisicamente exterioridade, o que acontece com a esfera ? Ora, quando dizemos in-finito, temos um conceito negativo. Temos a noção do que é o fim porque estabelecemos uma unidade que possui, portanto, um limite. Quando dizemos in-finito, que algo não tem fim, simplesmente dizemos que nossa unidade é incapaz de abarcar o que supomos, mas que já supomos e expressamos por esse conceito que opera em nosso raciocínio por negatividade, por falta de limite.
A exterioridade, portanto, não é um limite. É justamente a negação da absolutidade dos limites da totalidade, porque a unidade é incapaz de abarcar o infinito, embora formalmente possa concebê-lo por negatividade: o infinito é o que não tem fim. Estamos na tautologia, que não é afirmação do poder do conceito, mas de sua própria fraqueza.
Em 1993 a exposição de Dussel é bem mais complexa e parece melhor articulada. Muitas das arestas parecem ter sido aparadas. Permanecem, contudo, vários flancos de fragilidade.
Ao falar do excluído, Dussel afirma que existem "graus de exterioridade e de subsunção". Ora, se há graus de exterioridade, não se trata mais de uma condição metafísica, pois se algo não é imanente não pode ser menos ou mais não-imanente. Se há graus de subsunção da exterioridade, podemos imaginar que no grau mínimo não haveria mais exterioridade. Contudo se como Lévinas afirma, e Dussel aceita, a exterioridade é infinita, jamais poderá ser totalmente subsumida e portanto será sempre exterioridade infinita e se é infinita não pode ser graduada. Se considerarmos a exterioridade como um âmbito de onde irrompe o Outro a situação fica ainda pior, pois o outro irromperia desde um âmbito que poderia estar já quase totalmente subsumido pela totalidade.
De outra parte, a afirmação de que " a 'ética' é o uso originário da razão desde onde a própria razão 'moral' universal ou discursiva é deduzida " é também problemática. Ora podemos entender uso da razão como o exercício de uma faculdade ou a aplicação de um complexo identificador que desvenda/afirma relações considerando os elementos com os quais opera. Podemos também entender a razão moral universal ou discursiva como o exercício de estabelecer/identificar normas de relações entre os sujeitos, tidas como válidas para os membros de todo o coletivo humano ou de uma comunidade de comunicação. Contudo, não há como deduzir normas morais de um uso da razão. Pode-se deduzi-las da própria razão, respeitando os limites que lhe atribuímos -- como fez Kant --, mas não há como deduzi-las de um uso da razão. Por outro lado, se é dessa razão originária que deduzimos a normas éticas, há que se perguntar se o próprio procedimento de dedução que não é estabelecido pela razão originária -- uma vez que ela é anterior a todo procedimento conceitual sob o horizonte de uma totalidade -- já não significa afirmar desde um âmbito transcendental -- no sentido kantiano como exigência da razão pura do mesmo, com caráter de universalidade -- a anterioridade da vigência da dedução frente ao que Dussel denomina "razão ética originária".
Nesta mesma linha argumentativa, " o 'por-o-Outro' da razão prática como fonte primeira, anterior a todo argumento e a toda comunicação" pode ser questionado. Primeiro porque não há a possibilidade de pormos o Outro, porque o Outro -- como exterioridade -- se im-põe independentemente de nossa consciência, e se o pomos outro -- como ente imanente ao âmbito ontológico -- já não pode ser fonte primeira. Para que possa por o outro é preciso que esteja posto aquele que põe. Assim, para que possa por o outro é preciso que tenha posto primeiramente a mim, pois sou eu a fonte da posição do outro, pois senão não há como pô-lo. A dedução supõe a razão que deduz. Lévinas não tem essa dificuldade pois opera com outro conceito de razão pré-originária, como proximidade. A proximidade -- relação Eu-Outro -- é a condição histórica necessária anterior ao argumento e à comunicação. A proximidade é a afirmação simultaneamente de dois seres como fonte numa relação de assimetria ou curvatura do espaço intersubjetivo em pleno des-inter-esse no ser-para-o-outro, sem compromisso ou exigência de reciprocidade. A realização histórica da proximidade não depende de uma posição transcendental; depende de um Desejo do Invisível que leva à sua realização como razão pré-originária.
O método de libertação, como afirma Dussel em 1972, é uma pedagógica analética de libertação. Seria o momento analético o momento do aprendizado com outro que me ensina e daí, portanto, o caráter pedagógico do método ? Contudo, o método de libertação e o método da filosofia da libertação seriam distintos? Para Dussel -- como ele enfatiza no período emergente da Filosofia da Libertação -- não cabe ao filósofo elaborar metodologias de revolução ou estratégias políticas, mas criticar todo o processo e qualquer situação em que a alteridade seja negada, e é nesta crítica que ele busca colaborar com a libertação. Mas seria o método que formula, visando à abertura à exterioridade, potente para tratar das dinâmicas do ser, do conhecer e do efetivar articuladas à práxis dos sujeitos em processo de libertação ? Inegavelmente Dussel avançou muito nesta direção. Contudo, a sua progressiva aproximação da pragmática transcendental poderia parecer-nos um enigma frente as exigências de uma dialética histórica. Ao que percebemos, Dussel sabe onde quer chegar: a uma transontologia resultante de um processo dialógico, reconstruindo o sentido do mundo a partir da abertura das totalidades, transontologia essa que será respeitada e tomada como referência para a transformação de todas as realidades nas quais a alteridade esteja sendo negada em sua condição de exterioridade. Contudo, quando se trata de explicitar o método para tal transformação da realidade efetiva e do mundo de cada humano a exposição torna-se confusa. Dussel foi se dando conta que a pragmática transcendental, como a formulada por Apel, poderia dar parâmetros mais precisos ao que em 1974 definia como momento analético -- abertura a uma palavra analógica que não se interpreta adequadamente e que se aceita por fé antropológica. Haveria agora que aceitar as condições transcendentais da comunidade de comunicação para que a interpelação seja fundamentada. De outra parte, Dussel ressignificou o momento analético quase que como realização de proximidade, um momento ilocucionário, em que se afirma a razão ética originária, da qual pretende deduzir a própria razão discursiva. Do contrário, sem uma prévia abertura ética à exterioridade a participação na comunidade transcendental de comunicação poderia reduzir-se a um discurso cínico.
Há pois uma coerência na trajetória de Dussel tentando demonstrar que o conceito de exterioridade já estava presente em Marx e por outro lado estreitando seu diálogo com a pragmática transcendental. Nos dois caminhos tenta solucionar a relação entre dialética e exterioridade. No primeiro caso descobrindo a abertura à alteridade como intrínseca à dialética marxiana e no segundo retomando as condições de possibilidade da dinâmica dialógica e seus critérios de procedimento para que se efetive com consistência. Nos dois caminhos, entretanto, emergem as dificuldades aqui levantadas.
4. Algumas Ponderações Finais
Convém finalmente salientar alguns aspectos quanto às categorias do método anadialético ou dialético positivo e aos desdobramentos de seu escopo inicial.
As categorias dusselianas aplicam-se analogicamente a qualquer relação humana, possibilitando um discurso crítico sobre processos de dominação e libertação, bem como ao estabelecimento de parâmetros éticos para a convivência. Entretanto quando utilizadas em um trabalho hermenêutico tornam-se meta-categorias, possibilitando um meta-discurso. É necessário pois distinguir as suas categorias quando aplicadas às realidades efetivas, do conteúdo dos conceitos e categorias que analisa com suas próprias categorias quando se refere por exemplo a Heidegger ou a Marx, pois do contrário correríamos o risco de transitar despercebidamente de um conceito de mediação heideggeriano que não supõe a contradição marxista para o conceito marxista de mediação que não supõe o ser-no-mundo como o ser-da-verdade, para explicar a situação simultânea de dominação machista e de exploração de uma mulher operária que recebe menor salário que um homem pelo mesmo serviço realizado.
Ocorre que o conceito de totalidade em Dussel, até meados dos anos 80, não se apoia na tradição hegeliana nem marxista, porque prescinde da categoria de contradição como fica evidente em sua obra "Filosofia da Libertação" publicada em 1977. A partir dos anos 80, contudo, Dussel começa incorporar análises e conceitos de Marx em seus trabalhos mas ao articulá-los com categorias anteriores que não supunham o princípio dialético marxiano da contradição seu jogo categorial em algumas circunstâncias acaba perdendo a coerência. Assim, a categoria de totalidade como âmbito ontológico estabelecido desde um fundamento, ora oscila em desvendar o sentido dos entes a partir de uma contradição absoluta, ora a partir de um projeto fundamental do ser-no-mundo que não se desdobra necessariamente em contradições dialéticas na abordagem de Marx -- estando nos dois casos no mesmo nível ontológico. Isto faz com que a categoria de mediação -- caracterizada por Dussel em Filosofia da Libertação -- ora opere como na dialética de Marx , ora opere como na dialética de Heidegger.
Convém salientar que a dialética dusseliana ainda mantém uma dinâmica similar à da dialética aristotélica -- explicitada pelo próprio Dussel em Método Para Uma Filosofia da Libertação -- quanto ao seu movimento que, partindo do factum, volta-se ao "Ser" que se im-põe, contrariamente à dialética moderna em que o "Sujeito" põe o ser. Esta abertura ao ser que se impõe é levada à últimas conseqüências de ruptura da totalidade exigidas por Lévinas e Zubiri que salientam a temporalidade na manifestação da exterioridade e a impossibilidade de reduzi-la a conceitos acabados. Sob esse aspecto Dussel retoma, na melhor tradição aristotélico-tomista, a dinâmica da analogia, tomando-a como necessária para superação do lógos da totalidade, afirmando a existência de um Deus criador do cosmos como exterioridade absoluta.
Assim, as categorias de totalidade, mediação, alienação elaboradas por Dussel são distintas das mesmas categorias no pensamento de Marx, o que significa que resgatar a categoria de exterioridade em Marx não resolve insuficiências particulares da filosofia peculiar de Dussel.
Por fim tratemos do escopo original dessa filosofia e de seus desdobramentos posteriores. A Filosofia da libertação surgiu trabalhando particularmente as temáticas vinculadas ao práxis de libertação. Contudo, em nossa opinião, uma das grandes limitações da vertente dusseliana está no tratamento das dinâmicas efetivas do exercício do poder. Faz-se, normalmente a crítica ética da sua totalização que nega a alteridade quando lhe afirma um sentido a partir do mesmo, da totalidade e o efetiva faticamente desde uma vontade de poder. A questão do poder em Dussel é recolocada a partir das dinâmicas da analogia, do recebimento da palavra do outro que não pode ser reduzido ao logos do mesmo. Isto decorre da apropriação de Lévinas feita por Dussel.
Segundo Lévinas, o conhecimento não toca nada mais além do mesmo; apenas o desejo morde o real. É a partir do Desejo do Invisível, que ele critica a ontologia e seu lógos. Contudo os diversos iniciadores da filosofia da libertação que se fascinaram com a metafísica de Lévinas, pretenderam superar o seu discurso que lhes parecia um tanto obscuro referindo-se a Desejo do Invisível, Desejo do Infinito, etc. O fundamental para eles era que a crítica elaborada por Lévinas às totalidades ontológicas mostrara que a razão encontrara o seu limite quando colocada frente ao outro enquanto tal, pois como forma de conhecimento não podia realmente tocá-lo, apenas afirmava o mesmo, reduzindo o outro a um ente em seu mundo. O ser-para-o-outro des-inter-essadamente era estabelecido, segundo Lévinas, pelo Desejo que movia o mesmo a uma atitude de atenção à palavra do outro e de serviço como resposta.
Enrique Dussel acabou por repetir o mesmo trajeto da crítica levinasiana às totalidades ontológicas afirmando que a razão, frente o outro, encontrava o seu limite, mas diferentemente apontava que somente com a fé antropológica era possível estabelecer-se a atitude de acolhimento da palavra e de serviço como resposta. Em 1974 Dussel escreve que o désir em Lévinas é uma " expressão afetiva que intelectualmente corresponde à fé"(100) . Com isso ele deslocava o problema da dinâmica afetiva do Desejo para o tema intelectual da analogia do outro e de sua palavra incompreensível adequadamente, que exige a fé racional. Dussel desenvolve o tema da analogia, considerando que o logos chegava ao seu limite. A revelação do outro -- na vertente do pensamento hebraico resgatado por Dussel -- estabelece no mundo do mesmo um ente análogo ao outro distinto, diferentemente da vertente grega em que o aparecimento do outro, estabelece no mundo do mesmo um ente diferente do próprio mesmo. Não seria a mesma coisa tomar o outro como distinto ou como diferente. Tomá-lo como diferente afirmando-lhe um sentido a partir do mesmo é violar a ética, pois resulta praticamente em nadificar o outro. Tomá-lo como distinto, entretanto, afirmando-lhe um sentido análogo a partir do próprio outro é o que possibilitaria praticamente a ação de servir ao outro como outro. Assim, em Dussel, somente a analogia tornava possível a formulação da ética.
Se o discurso analógico resultou em uma ética que critica a totalização do mesmo e afirma o outro como distinto, o tratamento da dinâmica do desejo -- que Dussel não avançou -- resultaria em uma filosofia política com a capacidade de esclarecer a dinâmica dos jogos de poder, das relações de força, perspectiva que nem o próprio Lévinas desenvolveu, pois não percebeu que efetivamente o desejo não toca o real, não morde o real(101). Ele mobiliza o sujeito em busca da percepção de satisfação. Tal percepção, como afirma Freud, tanto pode provir da realidade como da alucinação. Para morder o real o homem usa a sua força em busca de realizar o que deseja. Quando exerce força, sob a estratégia e as táticas que considera as mais adequadas, e consegue manipular e mobilizar o que é exterior a si próprio a fim de realizar seus desejos, seus objetivos, pode-se dizer que exerce poder sobre tal realidade. Assim, para morder o real não basta o desejo; é necessária a força que, quando efetiva o que deseja, é exercício de poder.
Interessantemente, a razão pré-originária que em Lévinas tem o seu momento na proximidade do ser-para-o-outro que se realiza movida pelo Desejo do Invisível é reformulada por Dussel como "razão ética originária", que embora seja um momento ilocucionário é momento supremamente racional da afirmação da razão. Contudo, para Dussel os seres humanos são movidos a proximidade por uma pulsão de alteridade, por um amor de justiça ou desejo de alteridade. Aceitaria Dussel que sua ética em última instância estaria fundada em um Desejo do Invisível, em um Desejo do Infinito ? Não estaria Dussel retornando em 1994 ao caminho que ele recusou em suas primeiras críticas a Lévinas ? A critica ao cínico não é justamente a crítica ao outro que argumenta mas que não reconhece o seu interlocutor como exterioridade porque não o Deseja como alteridade ? Não seria pois o conflito "Desejo do Invisível X Desejo de Poder" o conflito real do poder que move o conflito entre o filósofo da libertação e o cínico, que se estabelece a nível teórico como a contradição entre a "Metafísica da Alteridade X Ontologia da Totalidade" ?
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NOTAS:
1 Wolfgang Röd analisou a dialética como lógica, ontologia e metodologia. Nenhum dialético, entretanto, aceitaria dissociar tais elementos, pois lógica, ontologia e metodologia estão intrinsecamente vinculadas, podendo ser analisadas separadamente apenas em um processo de abstração que, para chegar a bom termo, necessita retornar à síntese na qual esses elementos unem-se mediatamente em uma estratégia teórica em que cada aspecto desses tem sentido pela sua relação intrínseca com os demais. Wolfgang Röd, contudo, numa perspectiva criticista neokantiana analisou exaustivamente a dialética moderna dissociando esses três aspectos, afirmando fundar-se a dialética em um erro filosófico de hipostasiar relações lógicas e ontológicas. Wolfgang RÖD, Filosofia Dialética Moderna, Brasília, Ed. da UNB, 1984.
2 É compreensível a dificuldade de João Francisco de SOUZA na elaboração de "Uma Pedagogia da Revolução" (São Paulo, Editora Cortez, 1987) que ao propor o método do qual se vale fala do "método analético"(p. 190) que "parece mais adequado denominar de anadialético"(p. 190), afirmando a exigência do caráter analético da dialética"(p.192) para que ela não se torne uma "metafísica às avessas"(192), citando Gramsci para explicitar o método anadialético, dizendo encontrar neste autor o "pensamento anadialético qualificado" (p. 190), ou caracterizando a analética algumas vezes como a dialética que "adquire o rosto do explorado" (p. 190; 30) e como sendo o único método que dá conta de todas as exigências da classe expropriada (p. 30). As diversas variações de Dussel dão margem a esses problemas conceituais.
3 Neste trabalho, explicitaremos a questão de método no pensamento filosófico dusseliano em diversos momentos de seu desenvolvimento. Estes cortes serão feitos a partir das obras de cada momento em questão, evitando-se, assim, confundir a exposição do desenvolvimento do pensamento do filósofo, o que seguramente ocorreria se esclarecêssemos proposições suas de 1970 à luz de textos de 1993, bem como se esclarecêssemos proposições ulteriores de seu pensamento melhor desenvolvido a partir de teses que o próprio autor não mais afirma por ter reformulado seu pensamento. As obras selecionadas para este estudo foram: a) 1970: "La Cuestion Dialectica en America Latina" em La Dialectica Hegeliana - Supuestos y Superación o del Inicio Originario del Filosofar. Mendoza, Editorial Ser y Tiempo, 1972, pp. 151-161; b) 1971: Conferência em San Miguel - "Para una Fundamentacion Dialectica de la Liberacion Latinoamericana" em Stromata, 28(1-2)53-105 jan jun 1972; c) 1972: Conferência em Rio Negro - "El Método del Pensar Latinoamericano; la Analéctica como 'Ruptura Teórica'" em Introduccion a una Filosofia de la Liberacion Latinoamericana, México D.F., 1977, pp.117-138; d) 1972/3: Conferência em Brasília - "El Metodo Analectico y la Filosofia Latinoamericana" em Para Uma Ética da Libertação vol. II, pp. 193-217, São Paulo, Ed. Loyola e Nuevo Mundo 3(1):116-135 jan-jun 73, e America Latina: Dependência e Liberación, Fernando Garcia Cambeiro, 1973; e) 1974: "La Cuestión Dialéctica y Analéctica en el Proceso de la Liberación Latinoamericana", e "Superación de la Ontologia Dialéctica - A Filosofía de la Liberación Latinoamericana" em Método para una Filosofia de la Liberación - Superación Analéctica de la Dialéctica Hegeliana, Salamanca, Ediciones Sígueme, 1974, respectivamente pp.195-204 e pp.175-195; f) 1977: Filosofia da Libertação na América Latina, São Paulo, Ed. Loyola, 1980; g) 1980: Conferência em Filadélfia - "Filosofia e Práxis" em Filosofia da Libertação na América Latina, op. cit. p. 239-257; h) 1982: "Momento analéctico del Método Dialéctico" em "Respondiendo Algunas Preguntas y Objeciones sobre Filosofia de la Liberación" em Reflexão 8(26)-15-24 mai-ago 83; i) 1985:Filosofia de la Liberacion - 2ª Edição corrigida e ampliada, Buenos Aires, Ed. La Aurora, 1985; j) 1985: "Os Grundrisse e a Filosofia da Libertação" em Método para uma Filosofia da Libertação, São Paulo, Loyola, 1986, pp.255-287; k) 1992: "Filosofia de la Liberacion y Praxis. Categorias y Metodo" em Apel, Ricoeur, Rorty y la Filosofia de la Liberacion, México D.F., mimeo, 1992, pp. 12-13; l) 1993: "Ética de la Liberación" em Vários. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação - Modelos Complementares, São Leopoldo, Unisinos, 1994, pp.145-170. Em alguns casos, a passagem de um momento a outro implica uma ruptura no pensamento de Dussel; em outros a manutenção das mesmas teses com categorias diversas; em outras ainda, ocorrem compilações de textos em que se alteram alguns vocábulos e parágrafos, merecendo contudo a advertência do autor de que, embora as correções sejam pequenas, trata-se de uma obra marcadamente nova. Há momentos em que é mantido basicamente o mesmo jogo categorial alterando-se a estratégia em que é armado; em outros momentos altera-se o jogo categorial mantendo-se contudo, basicamente a mesma articulação estratégica. Face a todas estas sutilezas tomaremos o cuidado de apresentar e problematizar a questão de método de maneira sincrônica, com o significado que este termo possui no estruturalismo. Cuidaremos por não repetir em análises seqüentes o que já tenha sido explicitado em momentos anteriores, a menos quando necessário, em especial no que se refere a compilações feitas de praxe pelo próprio Dussel. Ao confrontar todas as exposições o leitor terá salientando as incongruências da questão de método em Dussel.
Os textos metafísicos de Dussel são, às vezes, de difícil compreensão. Em certas passagens Dussel joga com o artigo determinativo masculino "el" e com o artigo determinativo do gênero neutro "lo", em espanhol. Nas passagens que traduziremos, especialmente dos textos da primeira fase (até 1976), adotamos o seguinte critério quanto ao caso neutro: "lo mismo" e "lo otro" traduzimos por somente "mesmo" e "outro" e, apenas em alguns casos -- para melhor concordância -- como "o mesmo" e "o outro", acrescentando o artigo definido o; já "el mismo" fica como "o mesmo" e "El Todo" como "O Todo". No caso de "el otro" preferiu-se "outrem", uma vez que outrem procede do latim alteri, sendo pronome que equivale a "outra(s) pessoa (s)", ao passo que "outro" procede de alteru, "outro em dois" que sendo adjetivo qualifica ser "diverso do primeiro". Tal critério contudo não foi assumido quando implicasse alguma estranheza gramatical. Outro detalhe que foi a princípio importante, é a diferença de grafia freqüente entre outro e Outro, e esporádica entre todo e Todo. Sobre uma hipótese de trabalho hermenêutico podemos dizer que até 1974 Dussel cuida em distinguir o outro enquanto ente do mundo e Outro, enquanto exterioridade. Esta hipótese é mais correta que supor que outro seja o outro histórico-antropológico que pode ser manifestação de um Outro metafísico humano ou divino. É mais correta porque, embora Outro às vezes refere-se a Deus, não há para Dussel, como dissociar o antropológico do metafísico, dado o conceito de bazar. É curioso notar, entretanto, que a partir de Método Para Uma Filosofia da Libertação, Dussel parece suprimir a distinção entre Outro com maiúscula e outro com minúscula. Tal distinção buscava resguardar a diferença entre o real e o conceito, a exterioridade e a ontologia. O próprio Dussel foi criticado por confundir ambas as esferas, parecendo pois que ao desmontar-se uma totalidade ontológica ocorria uma transformação da Totalidade efetiva. Contudo, ao que parece, refletindo sobre a superação meta-física da ontologia, Dussel se deu conta que todo conceito está aberto à exterioridade, não havendo mais a necessidade destas distinções de grafia que apenas recortavam o outro enquanto mesmo (ente no mundo do mesmo que não é o mesmo enquanto tal) e o outro enquanto outro (a alteridade exterior ao mundo do mesmo).
4 Como momentos dessa elaboração podemos citar as seguintes formulações como o "método analético", "momento analético", "método dialético em âmbito próprio", "método dialético ao nível semântico", "método dialético positivo", "método dialético negativo", "movimento anadialético", "método anadialético" e "método dialético metafísico". Por fim, Dussel preferiu tratar de explicitar o conceito de exterioridade nos próprios textos de Marx, tentando afirmar que a dialética de Marx já seria, uma "dialética alterativa", se podemos assim dizer, retomando a primeira distinção que Dussel faz indicando a dialética aberta à exterioridade.
5 O termo analética foi usado por B. Lakebrink em sua obra intitulada Hegels Dialetische Ontologie und die thomistische Analektik, publicada em Köeln no ano de 1955. Conforme Scannone, está subjacente à formulação desse método uma releitura da analogia tomista desde a perspectiva de um processo dialético, como desenvolvera L. Bruno Puntel em Analogia und Geschitlichkeit I, Friburgo, 1969, ou da abordagem de H. Chavannes em L'analogie entre Dieu et le monde, Paris 1969
6 Juan Carlos SCANNONE "El Itinerario Filosofico Hacia el Dios Vivo", Stromata, 30(3): 231-256 jul set 1974, aqui p. 256
7 Horacio CERUTTI GULDBERG, Filosofía de la liberación latinoamericana, México D.F., Fondo de Cultura Económica, 1983, p. 232
8 Ibidem, p. 236, no texto: "... analéctica que refunda todo el ‘fundamento’ el cual, por lo mismo, deja de ser tal para advertir-se como lo fundado".
9 A metafísica formulada por Dussel segue uma trajetória que passa por Jollif, Lévinas e Zubiri. Trata-se de uma metafísica dinâmica que não aceita a possibilidade de, no processo do conhecimento, reduzir-se a alteridade a um conceito.
Jolif afirma que " A Metafísica não introduz uma linguagem, não funda a retenção de nenhum conteúdo positivo; ela quer, muito mais, impor à reflexão o manter-se em estado de abertura, de confrontar-se, sem renegá-lo jamais ao que não pode ser circunscrito e nomeado como o são todos os objetos da experiência. Ela é a salvaguarda de um mais-além do sentido e de um inefável que impulsiona a sobrepassar todas as significações... o que significa que nenhuma significação é humana se não se situa dentro deste movimento de superação". J.Y. JOLIF, "Comprendre l'Homme. I. Introduction à une anthropologie philosophique" , E. du Cerf, Paris, 1967, p. 147, apud Anibal FORNARI, "Política Liberadora, Educación y Filosofia" , in: Nuevo Mundo, 3(1):136-162 jan jun 73, aqui p. 153.
Por sua vez, Emmanuel Lévinas, após a segunda guerra mundial perseguirá o tema da crítica às totalidades ontológicas que politicamente redundaram sempre em formas totalitárias e opressoras do exercício do poder. Em "Totalidade e Infinito - Ensaio sobre a Exterioridade", escrito em 1961, afirma que o outro enquanto outro escapa à fenomenologia do olhar, pois a fenomenologia reduz aquilo que se vê a um ente no mundo com um sentido dado a partir do projeto fundamental: "A visão não é transcendência. Outorga uma significação pela relação que faz possível. Não abre nada... mais além do mesmo..." [Emmanuel LÉVINAS, Totalidade e Infinito, Salamanca, Ediciones Sigueme, p. 205 ]. A transcendência da totalidade ontológica, do Eu ao Outro, se daria pela abertura à palavra do outro. O outro se revela outro em seu rosto, que aparece no mundo do mesmo, mas somente pela sua palavra manifesta-se o seu ser infinitamente outro . Dessa forma, não se pode negar a infinitude do outro reduzindo-o a um mero ente do mundo, significando-o a partir da totalidade. O outro é sempre exterioridade ao eu, e a linguagem se torna o espaço do encontro do Eu com o Outro. "A linguagem não é mera experiência, nem um meio de conhecimento de outrem, mas o lugar do reencontro com o Outro, com o estranho e desconhecido do Outro." [François POIRIE, Emmanuel Lévinas - Qui êtes-vous?, Lion, La Manufacture, 1987, p. 21] . Assim, no diálogo, o sentido da palavra interpelante do Outro sempre escapa à hermenêutica do Eu. Nesta relação de face-a-face entre o Eu e o Outro se estabelece a proximidade. O sentido da proximidade é a responsabilidade do Eu pelo Outro, sem exigência de reciprocidade, é a subjetividade do sujeito constituída a partir do ser-para-o-outro. "Esta fenomenologia da proximidade - diz Lévinas - toca uma esfera que, na subjetividade, precede a intencionalidade, tendo uma trama... anterior à consciência..." pois o primeiro movimento do homem não é a significação do mundo, mas o desejo.. O que nos move à proximidade, ao face-a-face, é um Desejo do outro, um Desejo do invisível - pois o outro enquanto outro o Eu não pode ver -, um Desejo do infinito - pois o outro enquanto outro não se reduz aos limites de nosso conceito. Tal Desejo Lévinas o denomina Desejo metafísico, que "deseja o que está além de tudo o que possa simplesmente completá-lo. É como a bondade: o desejado não satisfaz o desejo, pelo contrário o aprofunda. A metafísica - afirma - deseja o outro mais além das satisfações". Tal metafísica é questionamento profundo à ontologia: "a ontologia que retorna o Outro ao Mesmo... renuncia o Desejo metafísico, à maravilha da exterioridade, da qual vive este Desejo", mais que isto, acoberta relações de injustiça: "a filosofia do poder, a ontologia, como filosofia primeira que não questiona o Mesmo, é uma filosofia da injustiça"..
Por sua vez, a metafísica de Xavier Zubiri também terá marcados desdobramentos na obra de Dussel que, a partir dela, refunda a dialética de Aristóteles em novas bases. Na Metafísica Aristóteles afirma que as formas são imutáveis, que elas não estão sujeitas ao devir. Zubiri defende, entretanto, que na gênese essencial ocorre um processo trans-formal, uma transformação da própria forma. Analisando o processo biológico evolutivo, ele afirma que toda essência possui a qualidade de ser tanto constitutivo de uma substantividade, como uma potencialidade genético-essencial de produzir outra essência. Explicitando Zubiri, Dussel tenta esclarecer a "dia-lética biológica". Haveria um "esquema constitutivo" que todo ser vivo transmitiria, no ato da geração, ao novo ser originado. Ocorre evolução quando "no 'esquema' constitutivo houver novas características que não apenas originam um novo indivíduo distinto, mas um novo phylum ou espécie..." [Enrique DUSSEL, Método para uma filosofia da libertação, S. P. Loyola, 1986, p. 181] . Como a essência é o conjunto de características constitutivas de uma coisa, sendo intrinsecamente individual, conhecer todas as notas é uma tarefa que não se pode realizar, pois além da definição de gênero e diferença específica existem indefinidas características que escapam à descrição feita. A partir disto Zubiri criticará Heidegger. Para além da significação dos entes na totalidade do mundo a "coisa-real", em sua própria estrutura, possui qualidades que escapam à compreensão, não havendo portanto identidade entre a coisa real e o sentido de ser que se lhe atribui. Explicita Dussel: "a realidade, a omnitudo realitatis manifesta-se assim à filosofia da finitude como uma exterioridade a partir da qual o ser se im-põe como sua mostração" [ Ibidem, p. 182] . A identidade entre o ser e o pensar - na explicitação da metafísica de Zubiri feita por Dussel - não se pode alcançar por dois motivos.Por um lado a evolução das coisas que vemos faz que o avanço de nossa compreensão não dê conta do que escapa nesse processo de transformação e que permanece não compreendido no ato do conhecimento; por outro lado jamais o homem esgotará o conhecimento de alguma coisa pois a "essência individual é incompreensível como totalidade conhecida" .
10 Em outubro de 1970 Dussel proferiu um curso na Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional de Cuyo sobre dialética, curso esse que foi publicado em 1972 sob o título "La Dialética Hegeliana" [Editorial Ser y Tiempo, Mendoza]. É este trabalho que analisaremos agora, destacando sua conclusão "La Cuestion Dialetica en America Latina" pp. 151-163
11Busca o autor "... indicar um caminho dialético a percorrer em nossa América Latina, por um pensar que pretenda ser real, que assuma nosso presente e que se imponha um plano de trabalho que desemboque não só em um ver a história mas em ser um fator interpretativo de sua efetiva progressão". Nesta circunstância, " a 'totalidade' e a 'alteridade' na qual vivemos para ser pensada exige um método e com isto fica colocada toda a questão dialética. Esse método permitirá desentranhar a 'totalidade' e a 'alteridade' histórica como processo que está se cumprindo ainda que não o pensemos. Este pensar o já compreendido existencialmente é tarefa filosófica e geracional que devemos cumprir." Enrique DUSSEL, op. cit., p. 151 e p. 8
12 Em primeiro lugar tem-se a dialética da natureza, "cuja mais elevada manifestação é a evolução animal. O próprio homem aparece nesta dialética fisico-real como sendo uma espécie entre os primatas superiores. A vida foi abrindo caminho desde (ex-) formas mais simples até a enorme complexidade do sistema nervoso humano..." Ibidem, p. 152
13 " ... A dialética histórica, que se funda no Outro como exterioridade livre e sempre em alguma medida incondicionado, deve ser analisada a partir do caminho aberto por Lévinas. Não se trata da ciência histórica (...historie), mas do acontecer histórico, do existencial (Geschite, que deriva de geschehen: acontecer)". Ibidem, p. 152
14 Já na introdução afirma Dussel que a dialética é um método, um movimento ao que as coisas são. " Distintas são as dialéticas porque distintas são as épocas em que foram formuladas na história do pensar. Contudo, e de todos os modos, todas as dialéticas partem de um factum (de um fato), de um limite ex quo ou ponto de partida. Desde esse factum a dialética partirá para uma ou outra direção, segundo o sentido do ser (o sentido determina a direção) e por isso será muito diferente o ponto de chegada, o para onde (ad quem) do movimento dialético... O ponto de partida (contudo) é sempre o mesmo: para alguns se chama "consciência natural" (por exemplo Hegel ou Husserl: Natürlich e Bewusstsein) ou "atitude natural (a fenomenologia); para outros "opinião transmitida" (tá éndoxa em Aristóteles) ou o meramente opinável (doxá platônica); por último 'compreensão existencial' (o nível ôntico ou existencial em Heidegger), para citar alguns exemplos" Ibidem, p. 10
Ao estabelecer os conceitos de factum, ponto de chegada e sentido do movimento dialético, Dussel pode dar um mesmo tratamento analítico às diversas dialéticas e inclusive salientar a dialeticidade da reflexão de certos pensadores que não receberam ênfase enquanto objeto de estudo por muitos pesquisadores da dialética. É neste estabelecimento de categorias e tratamento analítico que se nota a característica de meta-discurso de sua reflexão, que pode, por isso, estabelecer aproximações e distinções entre as diversas dialéticas. Ibidem p. 10
15 "O método dialético como caminho do pensar é posterior à dialética natural e à existencial ou prática. A teoria segue e nunca dá conta, ao todo, do real: do cósmico e biológico; o prático existencial não somente não é idêntico ao pensar. Ambos jamais se adequarão totalmente.(...) Contra Hegel não podemos igualar o pensar ao ser, nem o método dialético à dialética da natureza ou da com-preensão existencial ou prática. Poder-se-ia, entretanto, indicar um método dialético ôntico ou dedutivo (do ser ao ente) ou meta-físico (da totalidade aberta à alteridade)". Ibidem, p.153 Assim, no nível do método dialético metafísico devemos "... partir da finitude, como o que é-aí (Da-sein), exterioridade do absoluto totalizado, isto é, como exteriores por essência, e sem possibilidade, nem sequer como limite, de uma coincidência acabada: por natureza o homem está na impossibilidade de ser totalidade totalizada." Ibidem, p. 153 Partir da finitude como exterioridade do absoluto totalizado implica em opor à ontologia emanatista do ser como "o visto", uma metafísica criacionista do ser como "ouvido", pois não se pode incluir dentro de uma totalidade fechada aquele que se ouve.
16 O método dialético do pensar é o início originário do filosofar porque mostra como se devem dar os primeiros passos desde a cotidianidade até o descobrimento do fundamento. Tem dois momentos essenciais:
a) "Negativamente, o início originário é dialético porque nega a aparente segurança do óbvio cotidiano: a faticidade do ser em meu mundo é posta em dúvida, negada; é a crise, a morte à cotidianidade, e a conversão a outro âmbito." Ibidem, p. 155. Deve-se negar a coisa em sua significação cotidiana, pois esta significação é determinada por uma tradição inautêntica ou encoberta e encobridora. "A coisa deve ser tratada negativamente quando a referimos ao horizonte a partir do qual deverá ser compreendida. Este horizonte por sua vez deverá ser negado até alcançarmos o âmbito dos horizontes originários do pensar, tendo consciência clara de que restará uma infinita exterioridade: o ser como horizonte último do mundo pode, então, ser conciliado com a concomitante aceitação da finitude de uma exterioridade cósmico-real e de uma exterioridade sempre imprevisível e intransponível do Outro como liberdade histórica que expressa seu mistério por meio da palavra que deve ser ouvida." Ibidem, p. 154-155.
b) O método dialético, positivamente, é "... um ir compreendendo o que é englobado pelos fugidios horizontes compreensivos que se deve saber desdobrar no pensar. O âmbito dos últimos horizontes pode ser pensado formalmente, porém não em seus conteúdos (assim a luz pode ser pensada formalmente; o ser pode ser pensado como manifestação e limite ou horizonte transcendental ontológico, porém não como este meu ser que como projeto último e compreendido real, prática e efetivamente no nível existencial ou histórico)." Ibidem, p. 155. Nesta dialética enquanto método, retoma-se o intento aristotélico de "... partir de tá éndoxa para ir ao des-cobrimento (verdade) do ser..." p. 155. Não se trata agora de ir ao ser num processo de involução, mas sim na "... implantação do cotidiano em um todo ontológico englobante que, por ser um pensar da finitude, supõe uma infinita exterioridade: o Todo nunca é totalizado, mas é movimento dialético de totalização. O momento dialético é a re-im-plantação perfurante ou como transcendência do todo conceitualizado no todo englobante pre-conceitual, com-preendido e futuro (já que existencialmente se encontra como 'parte' de um 'todo' prático: meu-ser-histórico-no-mundo). O método dialético é um processo de totalização que engloba os momentos distintos (diferenciação conceitual) e que, depois de havê-los compreendido a partir de uma unidade totalizadora -- sempre intotalizada para a finitude -- se relança para uma nova totalidade (alteridade histórica do crescimento essencialmente aberto [inclauso sic!], que tende à exterioridade sem jamais abarcá-la). O método do pensar dialético é apenas um momento da realidade dialética (como compreensão existencial ou histórica dialética que se desdobra sobre o movimento evolutivo dialético, cósmico-biológico). O processo é mediação; a mediação é morte a um momento superado da finitude que tende a "se instalar" em uma parte como se fosse um todo-total. A atitude dialética relança o processo e é o motor da história como crítica libertadora. Essa crítica se refere ao Outro, como pólo sempre 'face-a-face' que abre o horizonte ontológico à novidade total; ele é de onde parte a crítica ao exigir justiça." (155-6)
17 Este texto, La dialectica Hegeliana será posteriormente compilado em Método Para Uma Filosofia da Libertação Latino-americana, sofrendo algumas modificações. Tais alterações estão citadas, no presente estudo, na primeira nota do item "Os Momentos do Método Analético - 1974".
18 Enrique DUSSEL, "Para una Fundamentación Dialectica de la Liberación Latinoamericana" Stromata 28(1-2):53-105 jan jun 1972. Trata-se de uma conferência proferida em San Miguel, Agosto de 1971.
19 "Desde a cristandade colonial há uma experiência da totalidade; o outrem, que é o índio, é nada; logo quando o crioulo aristocrata, o que faz a revolução de 1809-1810, se situa como sub-dominador, há um Outro que será nada. Martin Fierro exclamará 'em minha ignorância sei que nada valho'. É nada, esse nada é na verdade a 'nadificação' de Outrem como outro, na Totalidade.(...) Esta totalidade é a que se impõe como modernidade e como cristandade colonial". Ibidem, op. cit, p.64 A experiência originária do pensar que possibilita colocar em crise esta dialética do mesmo e do outro é o face-a-face (Pnim-el pnim) hebreu, tão bem expresso em textos bíblicos, aos quais a filosofia, conforme Dussel, pode recorrer como o faz com textos de Homero, de Tlamaltine no México, ou como Martin Fierro.
20 "O 'face-a-face' indica a imediatez da experiência e por isso Buber com uma linguagem poética diz que no face-a-face no há razão, não há fantasia, no há palavra, não há algo, porque efetivamente no face-a-face todavia não há mediações." Ibidem, p. 65-66. Segundo Dussel, essa experiência concreta de no face-a-face perguntar a alguém "quem és?" seria o sentido da "abertura ante o mistério", "serenidade ante as coisas", superação do horizonte ontológico, que Heidegger queria descrever.
21 "Esta experiência, como 'vai mais além', a denominaremos meta, e como vai mais além do horizonte da fysis a chamaremos meta-física: porém, meta-física, agora, não tem nada que ver com a metafísica da modernidade... Meta-física significa ontologia da negatividade, ontologia negativa do 'mesmo'. Por que? Porque o logos se mantém no meu mundo e não pode nunca avançar mais além; o logos, que transcende será análogos, isto é, é um 'mais além do logos', analogia. Mas não identidade, porque a identidade se estabelece com a diferença, na totalidade; em troca, ao Outro não o posso chamar 'diferente' mas... 'distinto'... O dis-tinto é o Outro como pessoa, o que enquanto livre não se origina no idêntico..." Pessoa vem do latim per-sonare, é o que emite som " ... e o que soa, é a voz e a irrupção do Outro em nós; não irrompe como 'o visto', mas como 'o ouvido'. Deveremos não já privilegiar o visto, mas o ouvido. A dialética voz-ouvido-ouvir, ouvir-a-voz é muito distinta de luz-olho-visto... Trata-se de outra experiência de ser,... relação do Outro com o outro, totalidade aberta... E como o logos chega a seus limites, podemos pôr-lhe um nome, e creio que não haja outro, a não ser a fé. A fé, não é a 'fé racional' de Kant com respeito ao noumenon, nem a fé teológica, nem a fé de Jaspers. Esta é uma fé metafísica, isto é, é um domínio que exerce a razão sobre si mesma, quando sabe que chegou ao seu limite, que lhe permite con-fiar no outro, já que se não se tem con-fiança não se pode escutar sua voz. Cum-fide é justamente saber que seu logos se cumpriu, mas ao mesmo tempo é um abrir-se ao outro. Esta abertura é o 'desejo', pelo 'amor-de-justiça'... é o amor gratuito ao Outro como outro. O que ama o amor de justiça é o bem do Outro e não o meu; esta possibilidade de abertura ao Outro como outro é o supremo do espírito... O supremo do espírito não é que o homem 'conheça todas as coisas' que ta ónta venham a ser compreendidas pelo logos; o supremo do espírito é poder abrir-se a outro espírito como outro e amá-lo como Livre e não como meu.(...) O outro não é um modo de compreensão. É um modo de incompreensão. A compreensão pára em seu rosto. Porém, a sua liberdade como futuro não a poderei jamais captar. Que, então, posso fazer? Abrir-me. A abertura da totalidade tem agora um âmbito ao que pode abrir-se; a totalidade deixa de ser totalidade fechada... ao abrir-se muda ela mesma totalmente de estatuto". Ibidem, p. 66-67
22 "Esse Outro como outro é 'nada' para meu mundo; é nada porque nenhum sentido tem ele como outro, porque se tivesse algum, o conheceria e então já não seria "o Outro", mas já o haveria incorporando à minha totalidade de sentido... O nada que se diz negativamente em um respeito,... se diz afirmativamente em outro. O nada é a liberdade do outro, afirmando nele (sic!) e como nada do outro. Assim irrompe em meu mundo o novo; o novo pode somente surgir do nada, do Outro como nada.(...) A essência do tomismo... é a novidade da criação, e isto, antropologicamente é a questão da liberdade... Irromper do nada em outro como novidade é pro-criação". Ibidem, p. 68 Assim, podem surgir como novos a mulher, o filho, o irmão e a América Latina, na qual poderia também surgir como novo, por sua vez, um um povo que está oprimido.
23 Enrique DUSSEL, "El Método de Pensar Latinoamericano; la Analéctica como 'Ruptura Teórica'", conferência proferida em Novembro de 1972, em Introduccion a Una Filosofia de la Liberación latinoamericana, México D.F., Ed. Extemporâneos, 1977, pp. 117 a 138, aqui p. 126
24 Ibidem, p. 126
25 Meta-fisica aqui, como denominação de método, contempla o que o próprio Dussel lhe confere. Veja-se: Ibidem, p. 127. Podemos dizer que o método dialético está para a ontologia assim como o método analético está para a metafísica.
26 DUSSEL, op. cit., p. 127-128. Dussel chega a esse método numa vertente que começa em Schelling. Schelling lançou Hegel à vida universitária e lhe deu as premissas com as quais este formulou a idéia de que a totalidade é o ser como saber absoluto. Após a morte de Hegel, Schelling que avançara muito em suas reflexões, formulou importantes críticas a Hegel. Afirma que as coisas são cognoscíveis e verificáveis sensivelmente, isto é, há algo fora da totalidade hegeliana da razão. A manifestação desse algo exterior se dá pela revelação; e o próprio Schelling escreveu uma obra intitulada Filosofia da Revelação em que trata de tais questões. Segundo Dussel, Schelling afirma que "... quando alguém se revela, manifesta uma verdade que está mais além das possibilidades da razão, o que não significa que essa verdade seja irracional, mas sim que é supremamente racional, porque indica a origem a qual a própria razão não pode chegar. A razão chega até o fundamento, porém jamais pode chegar até onde o Outro se revela; até sua liberdade". Ibidem, p. 128-129
Tanto para Schelling quanto para Kierkegaard, entretanto, o outro é o absoluto. Diz Kierkegaard: "O objeto da fé é a realidade do outro..." Esta fé porém é teológica e não antropológica.
Na perspectiva da crítica à totalidade racional hegeliana e da totalidade existencial heideggeriana surge Lévinas, "... acusando-os de somente afirmar a totalidade, mais além da qual está, todavia, o outro. Entretanto, continua Dussel, o outro de Lévinas é ainda um outro abstrato, passivo; um outro que não chega a ser mulher livre; ele pensa todavia o filho do pai pela mediação da mulher. Parecia, pois, por alguns textos que esse filho está destinado a ser o mesmo que o pai. Lévinas tem, às meias, uma pedagogia e carece de uma política; nunca imaginou que o outro possa ser um índio, um africano ou um asiático. Isto é, se seu método se esgota muito ao começo. Há que ir mais além de Lévinas e, por suposto, mais além que Hegel e Heidegger; mais além que estes por serem ontólogos e mais além que Lévinas por este permanecer todavia numa metafísica da passividade e numa alteridade equívoca". Enrique DUSSEL Introduccion a una filosofía de la liberación, México D.F., Editorial Extemporaneos, 1977, p. 130
27 Estes dois textos que compõem o quinto capítulo e as conclusões gerais de "Método Para Una Filosofia de la Liberaccion", Salamanca, Sigueme, 1974, são compilações de "O Método Analético e a Filosofia Latino-americana", Nuevo Mundo, 3(1):116-135 jan-jun 1973 e "A Questão Dialética na América Latina", que fazia parte de "Dialética Hegeliana". Neste último trabalho são feitas algumas alterações peculiares. Assim, não se afirma mais o método dialético do pensar como o "início originário" do filosofar mas como o "início ontológico do filosofar..." p. 201; são destacados níveis dialéticos e analéticos: substitui-se a dialética histórica [p. 152] pelo " processo real histórico ou humano, ético, [que] se desenrola segundo um movimento analético..." [p. 200]. São suprimidas referências ao método dialético ôntico ou dedutivo ou metafísico [p.153]. Suprimiu-se também o primeiro nível que tratava da dialética como práxis latino-americana bem como suprimiram-se parágrafos que destacavam a importância do estudo dos socialistas utópicos como condição para poder exercer corretamente o método dialético na América Latina. Apresenta-se o momento analético como um quarto nível complementar aos três já enunciados: 1) dialética da natureza, 2) dialética histórica, 3) método dialético ontológico, 4) momento analético. Interessantemente a passagem em que a alteridade histórica é referida como um certo tipo de totalidade, em Dialética Hegeliana, na página p. 156, é mantida na página 202 de Método. Outro detalhe interessante é que na edição brasileira de Método..., Ed. Loyola, 1986, modifica-se o título do parágrafo 26 "El Método Analético" para "O Método Dialético Positivo. O Momento Analético". Percebe-se que não se trata de pequenas mudanças, mas da própria reconstrução categorial e estratégica -- no sentido de articulação das categorias -- do pensamento dusseliano que não consegue solucionar, entretanto, a composição da dialética com a exterioridade, mesmo referindo-se à alteridade como totalidade histórica aberta e à analética como um momento da dialética.
28 A analética considera o rosto sensível do outro antropológico, bem expresso pela noção hebraica de basar, "carne", que indica o ser do homem unitário inteligível e sensível, sem cair no dualismo de corpo e alma, e exige o colocar-se faticamente a "serviço" do outro com um trabalho criador. O rosto do outro, da alteridade, é sempre o dizer em pessoa, um aná-logos; palavra primeira e suprema: "... é o gesto significante essencial, é o conteúdo de toda significação possível em ato. A significação antropológica, econômica, política e latino-americana do rosto é nossa tarefa e nossa originalidade". Ibidem, p. 182
29 Ibidem, p. 182
30A palavra do outro, exterior à totalidade, só é interpretável analeticamente. O eu interpreta a palavra do outro a partir da totalidade da própria experiência do eu. Entretanto essa palavra do outro que transcende o próprio fundamento do eu, é palavra histórica que o eu não pode interpretar adequadamente, porque seu fundamento não é razão suficiente para explicar um conteúdo que, provindo do outro, escapa à história do eu, pois é história do outro. Daí decorre que na busca da interpretação da palavra do outro, o eu deve ascender até o âmbito do outro, tendo que crer por fé no que lhe é dito e julgando-se sob esta palavra que ouve. Porém, é na história que essa palavra histórica vai se verificando. Somente o fato de crer numa palavra que não interpretamos totalmente e o compromisso que radicamos nessa fé, é o que nos permite verificá-la a posteriori. Tal verificação a posteriori muito difere do que ocorre no método ontológico, que remete aquilo que pensa ao seu fundamento a priori para conhecê-lo.
31"O método... ana-lético, vai mais além, mais acima, vem de um nível mais alto (aná-) que o do mero método dia-lético". Ibidem, p. 182
32O método da falsa dialética é o próprio caminho realizado pela totalidade sobre si mesma que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes; é a expansão dominadora da totalidade desde si como transição da potência ao ato de "o mesmo". O método analético entretanto, "... parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da totalidade;... parte, então, de sua palavra, desde a revelação do outro e que con-fiando em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria... O método analético é a passagem ao justo crescimento da totalidade desde o outro e para 'servi-lo' (ao outro) criativamente. A passagem da totalidade a um novo momento de si mesma é sempre dia-lética; tinha porém razão Feuerbach ao dizer que 'a verdadeira dialética' (há pois uma falsa) parte do diá-logo do outro e não do 'pensador solitário consigo mesmo'. A verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-dia-lético); enquanto a falsa, a dominadora e imoral dialética é simplesmente um movimento conquistador: dia-lético". p. 182
33 "... Em primeiro lugar, o discurso filosófico parte da cotidianidade ôntica e dirige-se dia-lética e ontologicamente para o fundamento." Ibidem, p. 183.
34 "Em segundo lugar, de-monstra cientificamente (epistemática ou apo-diticamente) os entes como possibilidades existenciais. É a filosofia como ciência, relação fundante do ontológico sobre o ôntico." Ibidem, p. 183
35 "Em terceiro lugar, entre os entes há um que é irredutível a uma de-dução ou de-monstração a partir do fundamento: o 'rosto' ôntico do outro que, em sua visibilidade, permanece presente como o trans-ontológico, meta-físico, ético. A passagem da totalidade ontológica ao outro como outro é aná-lética: discurso negativo a partir da totalidade, porque pensa a impossibilidade de pensar o outro positivamente partindo da própria totalidade; discurso positivo da totalidade, quando pensa a possibilidade de interpretar a revelação do outro a partir do outro." Ibidem, p. 183
36 "Essa revelação do outro já é um quarto momento, porque a negatividade primeira do outro questionou o nível ontológico que, agora é criado, com base num novo âmbito. O discurso se faz ético e o nível fundamental ontológico descobre-se como não originário, como aberto a partir do ético, que se revela depois (ordo cognoscendi a posteriori) como o que era antes (o prius da ordo realitatis)." Ibidem, p. 183
37 "Em quinto lugar o próprio nível ôntico das possibilidades fica julgado e relançado a partir de um fundamento eticamente estabelecido, e estas possibilidades como práxis analética transpassam a ordem ontológica e se adiantam como 'serviço' na justiça". Ibidem, p. 183
38 Enrique DUSSEL, "Da Ciência à Filosofia da Libertação", in Filosofia da Libertação, São Paulo, Loyola, 1980, pp. 159-185
39 Afirma Dussel que "o âmbito próprio da dialética é o ontológico, isto é, a passagem de um horizonte de entes a outro até seu fundamento." Ibidem, p.162. Neste âmbito metódico-demonstrativo a "... dialética é um atravessar (diá-) diversos horizontes ônticos para chegar de totalidade em totalidade até a fundamental". Consoante esta acepção é para Marx o "movimento que se eleva do abstrato ao concreto... até chegar à mais simples categoria..., que não é senão o fundamento da totalidade". Ibidem, p.162. "O método dialético pode ser usado em todo tipo de discurso, seja político, erótico, pedagógico ou anti-fetichista, ou no esclarecimento das ciências da natureza, semiótica, econômica ou tecnológico-estéticas." Ibidem, p.163. O método dialético corresponde ao " método ontológico em filosofia. Cada horizonte é o ser que funda todo o compreendido em tal âmbito." Ibidem, p.163, sendo " um método crítico com relação ao método científico..." Ibidem, p.163. É " ... o método dialético [que] permite aceder ao fundamento do próprio pensamento científico..." Ibidem, p.183.
40 "No nível semântico [ a dialética ] refere-se a sistemas concretos tendo por ponto de partida (ou de chegada se quisermos) o mundo cotidiano em seu nível acrítico." Ibidem, p.162
41 O método dialético negativo tem por âmbito o nível ontológico. Conforme Dussel, ele não é suficiente para "indicar o fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo ou povo, se situa sempre 'além' (anó-) do horizonte da totalidade". Ibidem, p. 163. É portanto "... ingênuo com relação a criticidade positiva da utopia da exterioridade..." Ibidem, p. 164. Desta forma, "o método ontológico ou dialético-negativo não é suficiente e, além do mais, quando é suposto como aquele da filosofia primeira, justifica o sistema e funda toda a ideologia." Ibidem, p. 174
42 "A dialética em seu sentido positivo ou a 'anadialética' permite abrir-nos a métodos que não só não são científicos, mas que nem sequer são teóricos..." Ibidem, p. 165. Tal dialética extrapolaria os horizontes da totalidade fechada a partir da exterioridade. "Se só se toma a totalidade dialética como último horizonte, a crítica só pode em última análise afirmar o projeto do sistema. Pelo contrário, se se parte da interpretação de justiça da exterioridade, a própria totalidade funcional é posta em questão por exigências e com vistas à construção de uma nova ordem, futura, utópica, mas já projeto atual no povo." Ibidem, p. 173
43 Seu "... exercício e desenvolvimento concreto é prático, poiético ou científico-crítico ao nível das ciências humanas (mas não no nível das ciências fático-naturais onde não há exterioridade metafísica mas somente substantividade física)". Ibidem, p. 164
44 Conforme Dussel "analético quer indicar o fato real humano pelo qual todo homem, todo grupo ou povo, se situa sempre 'além' (anó-) do horizonte da totalidade. (...) O momento analético é o ponto de apoio de novos desdobramentos." Entretanto, "... o ponto de partida de seu discurso metódico (método mais científico que dialético positivo) é a exterioridade do outro." Como uma alternativa à dialética que trabalha sob a contradição identidade e diferença, "seu princípio não é o de identidade, mas da separação, distinção. (...) O momento analético do método dialético metafísico... segue uma seqüência..." : " [ 1 ] A totalidade é posta em questão pela interpelação provocativa... do outro. (...) [ 2 ] Escutar sua palavra é ter consciência ética. (...) [ 3 ] Aceitá-la [ a palavra interpelante ] por respeito à pessoa que fala; pois não pode interpretá-la adequadamente. (...) [ 4 ] "Lançar-se à práxis do oprimido." Enrique DUSSEL, op. cit., p. 163-164
"Na analética -- segundo Dussel --, visto que é necessária aceitação ética da interpretação do oprimido e a mediação da práxis, tal práxis é seu constitutivo primordial, primeiro, condição de possibilidade da compreensão e do esclarecimento que é o fruto de ter efetiva e realmente acedido à exterioridade (único âmbito adequado para o exercício da consciência crítica)."
Sem o momento analético "... todo método é somente científico, o científico se reduz ao fático natural, o fático natural se reduz... ao lógico ou matemático e este, por fim, se degrada no... perigoso cientificismo". "O momento analético é a afirmação da exterioridade: não é somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade. É a superação da totalidade... desde a transcendentalidade interna ou da exterioridade, o que nunca esteve dentro." "O momento analético é por isso crítico e superação do método dialético negativo, não o nega, como a dialética não nega a ciência, simplesmente o assume, o completa, lhe dá seu justo e real valor" , abrindo-o à afirmação da exterioridade. "Afirmar a exterioridade é realizar o impossível para o sistema..., é realizar 'o novo', o imprevisível para a totalidade, o que surge a partir da liberdade incondicionada, revolucionária, inovadora." Enrique DUSSEL, op. cit., p. 164-165.
45 Conforme Dussel, " ... a analética é um método cujo ponto de partida é uma opção ética e uma práxis histórico concreta." Ibidem, p. 165. Assim, desde a posição da filosofia da libertação, "o método da filosofia é o teórico analético; não intrinsicamente prático nem poiético, embora esteja condicionado por ambos". Ibidem, p. 174. O método da filosofia da libertação " ... não é operativo nem produtivo, é teórico ou especulativo; ao contrário das ciências fáticas formais, não só se ocupa do âmbito ôntico, mas também do ontológico; ao contrário do método dialético negativo, ocupa-se também do âmbito metafísico ou da exterioridade. Seu tema, portanto, é a omnitudo realitatis: tudo. Seu ponto de partida é uma opção ético-política em favor do oprimido da periferia: respeito pela exterioridade do outro, geopolítica e socialmente falando, escuta de sua palavra". Ibidem, p. 179. A filosofia da libertação "é uma pedagógica analética da libertação". Ibidem, p. 182
46 Na terceira edição lê-se "es absolutamente y sólo parte del sistema". Pode ter ocorrido algum equívoco na tradução brasileira da primeira versão.
47 Ibidem, p. 53. Esta transcendentalidade opera semanticamente como transcendência: a " ...negatividade interna, é atualidade e exigência de transcendência no interior do sistema injusto..." Ibidem, p. 54
48 No ensaio "Filosofia e Práxis" apresentado na conferência de Filadélfia em 1980, Dussel dedica uma seção ao método anadialético. Esta seção recebe, no apêndice à obra Filosofia da Libertação, o título "Com Respeito ao Método e às Categorias", pp. 251-253, e comporta não mais que duas páginas. Priorizamos aqui, a consideração sobre o método.
49 Desta forma, "o momento analético do método didático (método anadialético), dá prioridade absoluta ao projeto de libertação ao outro como novo, como outro, como distinto (e não somente na Identidade da totalidade)". E. DUSSEL, op. cit., p. 252. Mas onde se funda este momento analético da dialética? A estão questão Dussel responde: "... o momento analético da dialética se funda na anterioridade absoluta da exterioridade sobre a totalidade, até afirmar a prioridade do outro como origem criadora sobre a criação como obra, como totalidade finita e por isso mesmo perfectível. A metafísica da criação é o último fundamento da libertação histórico-política (as revoluções sociais), da libertação erótica da mulher, da libertação pedagógica do filho e do mundo. Porque 'além' do ser (se por Sein se entende o horizonte da totalidade), há realidade, encontra-se a Realidade em seu âmbito mais consistente, futuro utópico: exterioridade antropológica (o outro: o pobre) ou absoluto (o outro: o Criador que interpela pela epifania do pobre o sistema quando se aquieta numa normalização fetichista antidialética)". Ibidem, p. 252-253
50 "Momento analéctico del Método Dialéctico" em "Respondiendo Algunas preguntas y objeciones sobre Filosofia de la Liberación" em Reflexão 8(26)-15-24 mai-ago 83. Os outros tópicos eram: 1) Filosofia Latino-americana ou Filosofia da Libertação; 2)Filosofia da Libertação e Práxis Popular Latino-americana, 3) Discurso Filosófico e Linguagem Popular, 4) Filosofia e Aparatos Anti-hegemônicos.
51 A partir de suas pesquisas Dussel afirma que em Marx, " a relação pessoa-pessoa ou relação prática, ética, se encontra à base de toda sua reflexão econômica. Seu materialismo não é cosmológico ou ontológico... mas produtivo: o sujeito de trabalho constitui a natureza como matéria. A 'matéria' é um momento constituído pelo sujeito produtor". Ibidem, p. 19
52 MEW, EB I, 523 - 525, apud, Enrique DUSSEL, op. cit., p. 19-20. Salienta o autor, entretanto, que a filosofia da libertação vincula-se às diversas formas de práxis de libertação, como as lutas da mulher contra o machismo, e que neste caso, Marx não tem muito a dizer. Por outro lado, muitos marxistas de maneira dogmática se articulam à práxis de caráter burocrático, deixando de ser filosofia da libertação, na medida em que contribuem para a manutenção de totalidades opressivas.
53 Comenta Dussel: " 'O mesmo' ( tó autó, que tanto havíamos trabalhado em nossa Ética) vinha subrepticiamente impor-se novamente em nome da crítica, da revolução, etc." " A ontologia, o lógos sobre o ser, o pensar da totalidade, a filosofia que compreende o sistema em seu fundamento, em sua identidade, na origem da diferença, tal ontologia pode mover-se ao fim do mesmo para o mesmo, e, em casos mais críticos, por negação da negação. Porém, o negado no sistema é negado desde o mesmo fundamento do sistema. E por isso a mera negação do negado não pode aportar novidade real." Ibidem, p. 20
54 Ibidem, p. 21
55 Retomando uma discussão com outros pensadores em Tegucigalpa em 1978, recorda Dussel que " ali pode ver-se que a dialética puramente negativa, que tem por último horizonte a totalidade ( como realidade e categoria) e por isso a negação da negação como motor dialético ao fim caia na tautologia. Pelo contrário, se o motor do processo dialético ( que é um passar de uma totalidade dada a outra totalidade que a compreende, fundamenta e explica) é a afirmação da exterioridade, pode-se negar a negação desde tal afirmação." Ibidem, p. 21
56 Ibidem, p. 22
57 Ibidem, p. 22
58 A segunda edição, já com algumas correções é a de USTA, Bogotá, 1980. Trabalhamos aqui com a publicação de Ediciones La Aurora, Buenos Aires, 1985.
59 Enrique DUSSEL, Filosofia de Liberación, Buenos Aires, Ed. La Aurora, 1985, item 2.4.6.4, veja-se também 2.4.2.4
60 Ibidem, item 3.1.3.2
61 Ibidem, item 4.4.4.4
62 Ibidem, itens 2.5.2.4 e 2.6.9.5
63 Ibidem, p. 5.2.5
64 Ibidem, item 5.3.1
65 Ibidem, item 5.8.1
66 Enrique DUSSEL, Método para uma filosofia da libertação, São Paulo, Edições Loyola, 1986, p. 257
67 Ibidem, p. 258. Conforme Marx, " na primeira aparição os supostos mesmos apresentaram-se de fora, como provenientes da circulação, como supostos exteriores (aussere) para o surgimento do capital". Marx compreende o surgimento do capital da seguinte forma: "a historia de sua formação [ do capital ]... corresponde a seus supostos passados, aos supostos de sua origem, abolidos em sua existência. As condições e supostos da origem (Werdens), da gênese do capital, supõem precisamente que o capital ainda não é, mas que chega a ser (wird)." Grundrisse, citado por DUSSEL, op. cit., p. 257 e 264
68 DUSSEL, Ibidem, p. 258
69 DUSSEL, Ibidem, p. 259. Escreve Marx: " O trabalho posto como não-capital enquanto tal, é: 1) trabalho não objetivado... despojamento total, desnudamento de toda objetividade, existência puramente subjetiva... pobreza absoluta... 2) Trabalho não-objetivado... existência subjetiva... fonte viva do valor... possibilidade universal da riqueza... como este absolutamente contraditório em relação ao capital." Grundrisse, citado por DUSSEL, op. cit., p. 258
70 DUSSEL, Ibidem, p. 259. Escreve Marx: " No conceito de trabalhador livre está implícito que ele mesmo é pauper ( diz Marx em latim: pobre): pauper virtual... Se ocorrer que o capitalista não necessite do plus-valor do operário, este não pode realizar seu trabalho necessário, produzir seus meios de subsistência. Então... obtê-los-á somente pela esmola... Portanto, virtualiter (escreve Marx em latim: virtualmente) é um pauper." Grundrisse, citado por DUSSEL, op. cit., p. 259
71DUSSEL, op. cit., p. 260
72 Karl MARX, Grundrisse, apud DUSSEL, op. cit., p. 260-261
73 Cf. DUSSEL, Apel, Ricoeur, Rorty y la Filosofia de la Liberación, México, Mimeo, 1992. Dussel revê temas polêmicos e aceita, sob responsabilidade ética, a prática do aborto, do homossexualismo, etc. Afirma também rever sua filosofia desde os estudos de Marx.
74 DUSSEL, "Hermenêutica y Liberación" em op. cit., p. 74. O retorno a Marx começado ao final da década de 70 deveu-se a três fatos, conforme o autor: " Em primeiro lugar a crescente miséria do continente latino-americano ( que não cessou de empobrecer...). Em segundo lugar para poder efetuar uma crítica do capitalismo, que aparentemente triunfando no Norte ( mais ainda a partir de novembro de 1989) fracassa claramente em 75% da Humanidade: no Sul (África, Ásia e América Latina). Em terceiro lugar porque a Filosofia da Libertação devia construir uma econômica e política firme -- para posteriormente afiançar também a pragmática, como subsunção da analítica..." Ibidem, p. 73
75 DUSSEL, " Hacia un Dialogo Filosofico Norte-Sur" em Op. Cit., p. 25
76 Ibidem, p. 25. Percebemos que o escopo dessa categoria exterioridade fica cada vez mais complexo. Explicando como Marx opera com categorias que podem ser meta-discursivamente compreendidas sob a categoria de exterioridade afirma Dussel: "Esse 'Outro' radical com respeito ao capital é o 'trabalho vivo' como 'pobreza absoluta' (absolute Armut); a pessoa, a subjetividade como 'Tatigkeit' [ atividade ], como 'Leiblichkeit' [ corporeidade ] do trabalhador. Neste sentido, sumamente abstrato, em sua essência, o capital é um sistema aparentemente auto-referente e autopoiético, porque, na realidade, 'subsume' ( a 'Subsuntion' é o ato pelo qual a 'Exterioridade' se incorpora à 'Totalidade' ou ao 'sistema' do capital em abstrato), formal ou realmente, ao 'trabalho vivo' como 'fonte criadora de seu próprio valor desde o nada' do próprio capital (momento hetero-referente e hetero-poiético)... a 'Totalidade' não foi a categoria geradora e primeira de Marx, mas a Exterioridade do 'trabalho vivo' (que não é a ' força de trabalho (Arbeitkraft)." Ibidem, p.26
77 Ibidem, p. 26
78 Ibidem, p. 12
79 "Como Schelling não se partirá desde 'o Outro que a razão', mas desde 'o Outro' que a razão dominadora, opressora, totalizada totalitariamente. Isto é, não se partirá do momento dominador de tal totalidade. Ademais, quando a 'crítica' parte da 'Exterioridade' do 'pobre' explorado e excluído (excluído da distribuição da vida), da 'mulher' objeto sexual, etc. (isto é, da 'positividade' da realidade do Outro que para o sistema é o 'Não-ser', o que se nega), tal crítica, e a práxis que a antecede e consequentemente segue, não é só negação da negação (dialética negativa), mas é a afirmação da Exterioridade do Outro, 'fonte (Quelle)' - e não o 'fundamento (Grund)' - 'desde-onde' se parte, (do 'trabalho-vivo' ante o capital em Marx; desde a subjetividade ativa da corporalidade feminina como constitutiva do éros e não como 'objeto'; como subjetividade do Édipo, da juventude, da cultura popular como criadores de 'nova' ideologia, etc.). Desde a 'positividade' de tal afirmação é que se pode 'negar a negação' . A Filosofia da Libertação, neste sentido, é uma filosofia positiva." DUSSEL, Ibidem, p. 13
80 Ibidem, p. 16
81 Ibidem, p. 13
82Enrique DUSSEL, Ética da Libertação em VÁRIOS, Ética do Discurso e Filosofia da Libertação - Modelos Complementares. São Leopoldo, Unisinos, pp. 145-170.
83Texto elaborado por Elizabeth BURGOS, Me llamo Rigoberta Menchú y así me nació la conciencia, Siglo XXI, México, 1981
84 Ibidem, p. 154-155. Conforme DUSSEL, " A ética ontológica parte do já sempre do mundo pressuposto; a Ética do Discurso parte da já sempre pressuposta comunidade de comunicação; a filosofia latino-americana do 'nós estamos' [ Scannone ] parte de uma cultura sapiencial popular afirmada e analisada desde uma interpretação hermenêutica. A Ética da Libertação tem por ponto de partida, em troca, a 'exterioridade' do horizonte ontológico ('realidade' mais além da 'com-preensão do ser'), o mais além da comunidade de comunicação ou de uma mera sabedoria afirmada ingenuamente como autônoma ('estando' concreta e historicamente reprimida, destruída em seu núcleo criador, sendo marginal e dificilmente reproduzível, ignorar estes fatos é cair em uma 'ilusão')." Ibidem, p. 155
85 Ibidem, p. 155
86 Ibidem, p. 155
87 Citando vários capítulos do relato de Rigoberta comenta Dussel que recuperar todo o conteúdo deste momento primeiro é necessário pois "... o Outro oprimido e excluído não é uma realidade formal vazia: é um mundo pleno de sentido, uma memória, uma cultura, uma comunidade, o 'nós-estamos-sendo' como realidade 'resistente'." Dussel afirma, contudo, que é preciso ir além desse momento de Scannone.
88 Ibidem, p. 168, nota 52
89 Ibidem, p. 168
90 A definição desta razão, Dussel a recupera de Lévinas: "A proximidade indica então uma razão anterior à tematização da significação do sujeito pensante, anterior ao referir-se a termos no presente, uma razão pré-originária não procedendo de nenhuma iniciativa do sujeito, uma razão an-árquica. Uma razão anterior ao começo, anterior a todo presente, pois minha responsabilidade pelo Outro me move antes que toda decisão, antes que toda deliberação [...] Entretanto, a razão da justiça, do Estado, da tematização, da sincronização, da representação do lógos e do ser não chega a absorver em sua coerência a inteligibilidade da proximidade na qual ela se desdobra". Emmanuel Lévinas, Autrement qu'être ou aud-delà de l'essence, p. 212-213, apud, DUSSEL, op. cit., p. 157
91 Ibidem, p. 158
92 Ibidem, p. 158
93 Ibidem, p. 159
94 Ibidem, p. 161
95 Ibidem, p. 170
96 Ibidem, p. 163
97 Poderíamos afirmar que os escravos do período colonial brasileiro quando foram libertados politicamente deixaram de ser mediação de um modelo de produção escravista e constituíram-se exterioridade frente ao modelo de produção agrário assalariado e de arrendamento que não lhes subsumia ? E que agora trabalhando nas terras do mesmo senhor pagando-lhe o arrendamento com produtos estão novamente subsumidos na totalidade ? A própria liberdade política não é já uma mediação no interior de um sistema ?
98 DUSSEL, op. cit., p. 260
99 Esta pretensão resulta de uma exorbitância teológica, já perceptível em Das Leben Jesu: " A razão pura, incapaz de qualquer limitação, é a divindade mesma. O plano cósmico está ordenado, pois, em conformidade com a razão; é ela que ensina ao homem conhecer seu destino, a finalidade incondicionada de sua vida; ainda que com freqüência tenha estado obscurecida, nunca se extinguiu por completo e até nas trevas conservou-se um tênue resplendor seu." HEGEL, G.W.F. História de Jesus, Madri, Taurus, 1987, p. 27
100 Enrique DUSSEL, Método para uma filosofia da libertação, São Paulo, Edições Loyola, 1986, p. 196
101 Sobre a dinâmica do desejo alterativo na práxis, veja-se nosso trabalho "Práxis de Libertação e Subjetividade" em Filosofia 7(6):81-109 jun 1993 Curitiba, PUC-Pr.
Dialética e Exterioridade
Curitiba, 1994
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