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Movimento Popular e Revolução Molecular

Euclides André Mance

Introdução.

O título deste pequeno texto é certamente mais pretensioso que seus limitados objetivos. A idéia de escrevê-lo surgiu no seminário promovido pelo Instituto Cajamar sobre o tema "Movimentos Sociais" que fazia parte do programa de Seminários Sobre Temas Estratégicos e os Anos 90. Naquele seminário, por várias vezes, foram feitas referências à dinâmica MOLECULAR dos movimentos populares, bem como ao papel de transformação cultural pertinente a tais movimentos. Notou-se que o termo "molecular" -- recuperado em certo quadro de referências marxista -- fora sobrecodificado distanciando-o de sua noção e conteúdo revolucionário micro e macro-político, servindo para argumentar uma certa concepção tática de movimento popular. Daí a necessidade de problematizarmos tal recuperação.

O termo molecular -- caracterizando processos de singularização, subjetivação -- surgiu fora da tradição marxista, embora a concepção de produção social, na qual se articula, dialogue, em várias situações com teses de Marx. A noção de "molecular" está vinculada à revolução do Capitalismo Mundial Integrado e de seus processos de "produção da subjetividade" ou "padronização e agenciamento de comportamentos", em especial através da mídia, como recurso de manipulação da massa, segundo os códigos que estabelece.

O que pretendemos com este pequeno texto é possibilitar que a mudança de discurso que vem se operando sobre o movimento popular incorporando novos termos, venha acompanhada de uma reflexão sobre a própria teoria já elaborada acerca do movimento popular, que produziu certas noções que se expressam sob tais termos.

Em razão do presente texto ter por finalidade a reflexão sobre o caráter molecular dos movimentos populares, não aprofundaremos aqui a dinâmica de embate de tais movimentos face às estruturas de exploração capitalistas na área de reprodução social bem como a dinâmica de embate com o Estado, apenas explicitando, entretanto, o caráter molecular de tais embates.

 

1. A Noção de "Molecular" e sua Utilização Analítica para a Compreensão da Ação Estratégica dos Movimentos Populares no Brasil.

1.1 Da Representação Ideológica à Produção da Subjetividade.

Nas sociedades em que os processos de comunicação de massa e informatização vão sendo sofisticados -- como o Brasil -- a cada dia as dinâmicas de dominação ideológica vão sendo aprimoradas e modificadas. Muito mais que universalizar uma certa compreensão do real produzida pela classe dominante que acoberte as contradições do capitalismo, passa a ocorrer a produção da subjetividade, mobilização de anseios, desejos e outros "sentimentos" com códigos que atingem o inconsciente das pessoas, fazendo com que as mesmas tenham comportamentos segundo os interesses das classes dominantes, e pior que isto, fazendo com que as próprias pessoas co-elaborem o discurso que justifique a sua ação alienada e alienante. Por outro lado, muitas pessoas sabem que são exploradas e, até mesmo, compreendem as contradições básicas do capitalismo mas não se mobilizam na transformação do sistema, porque sua subjetividade, de certa forma, é induzida a outras aspirações. De fato, a subjetividade consciente e inconsciente dos indivíduos é produzida em tramas de forças difusas por todas as relações de poder social, sejam políticas, pedagógicas, eróticas, religiosas, econômicas, etc, que podem passar por instituições como família, escola, igrejas, partidos, sindicatos, etc, potencializados ou não pelos meios massivos de comunicação. Nesta produção da subjetividade o capitalismo realiza uma sobrecodificação de todas as relações sociais fazendo com que o indivíduo constituído nessas tramas de forças assuma papéis dentro de regras ou códigos estabelecidos pelo próprio "sistema".

O processo que vai se desenvolvendo na modernidade em que o homem torna-se objeto de estudo possibilita o seu esquadrinhamento sob diversos campos de produção de saber. O SABER produzido sobre o homem vincula-se às dinâmicas de exercer sobre ele um PODER referido ao atingimento dos interesses de quem o exerce.

Assim, o desenvolvimento de tecnologias produtivas atinge a necessidade de produzir o indivíduo especializado que opera tecnicamente a PRODUÇÃO, bem como produzir o indivíduo -- recortado na sociedade de massa -- que se individualiza na medida em que CONSOME segundo os padrões que lhe são postos ou que assume a identidade que se lhe é apresentada para destacar-se dos demais, realizando com suas práticas, de fato, os interesses dos que comandam os processos produtivo e de consumo. Economia, psicologia, sociologia, antropologia e demais ciências humanas tornam-se instrumentos de produção de saber que possibilitam moldar o comportamento de produtores e consumidores, de produzi-los como tais, com estas ou aquelas competências, com estes ou aqueles desejos.

A rigor, na divisão social do trabalho, a designação dos indivíduos a certas funções ou postos de produção, não depende unicamente do sistema de remuneração monetária ou de coerções que os obriguem a assumir tal posto; embora a necessidade seja o fator preponderante na exigência de desenvolver alguma atividade que resulte na sua satisfação, a definição da atividade produtiva de grandes conjuntos da população depende, em muito, de técnicas de modelização de agenciamentos inconscientes, realizados por equipamentos sociais, por meios de comunicação, métodos psicológicos de adaptação, etc.

Por outro lado, na esfera do consumo, além de criação de novas necessidades culturais, há também -- mesmo em um país de pobres e miseráveis, como o é em grande parte o Brasil -- o agenciamento do desejo de consumir determinados produtos associados à fama, à vantagem, ao prazer, ao poder, etc, com apelos mais passionais que racionais, pois apenas visam mover o desejo do consumidor em adquiri-lo e não argumentar que o produto seja realmente de boa qualidade por tais e tais razões, explicando sua garantia técnica, com indicadores de qualidade, durabilidade, etc.

No processo de modelização da subjetividade, para se garantir o desempenho de produtor e consumidor e, em especial, a manutenção do capitalismo, sobrecodifica-se todas as relações de poder no cotidiano, conferindo-lhes uma dimensão de manutenção de todo o sistema. Assim, a discriminação sexual, por exemplo, que já existia antes do capitalismo, passa, com este, a vincular-se diretamente também na manutenção do interesse da classe dominante que legitima suas práticas de exploração do trabalho da mulher, pagando menores salários a ela que a um homem pelo mesmo serviço, argumentando teses preconceituosas presentes na cultura popular. Assim, as mais variadas formas de seduções, persuasões, coerções, agressões e violências que se dão nas relações políticas, pedagógicas, eróticas, religiosas, etc, no cotidiano, são sobrecodificadas, recebendo um novo sentido a partir das referências postas pelo capitalismo.

Deste modo, inúmeras formas de violência e discriminação contra negros, mulheres, deficientes, menores de rua, homossexuais, etc, -- que são expressão de todo um conjunto de forças difusas no campo popular que se exercem seguindo determinados padrões introjetados nas pessoas desde sua infância orientando seus comportamentos -- , são utilizadas pelo capitalismo para manter padrões e conceitos que equacionam tais conjuntos de forças à manutenção do sistema como um todo.

Por outro lado as referências de balizamento do comportamento de significativos setores da população são desfeitas e substituídas por novas referências impostas na cultura de massas pelas camadas dominantes. Tais referências éticas e estéticas nas esferas eróticas, políticas, religiosas e em outras regiões culturais, são assumidas pelas novas gerações em contradição com valores e costumes familiares e sociais da geração anterior, especialmente em se tratando dos filhos cujos pais migraram do campo para cidade a partir da década de sessenta.

Este misto de cultura popular que mantém relações micro-políticas de opressão -- como no caso do machismo e da discriminação racial, entre outras -- que é sobrecodificada pelo capitalismo e de cultura de massas, que destrói referências de comportamento inadequadas ao interesses do estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, resulta não apenas em uma certa maneira de compreender o mundo, mas fundamentalmente em um modo de se comportar face às inúmeras relações de poder vividas no cotidiano e em relação a estruturas maiores de poder no âmbito da sociedade civil e Estado, como sindicatos, entidades de movimento popular, partidos, governos, etc.

De fato, muitos são os fatores que regem os comportamentos individuais e coletivos, isto é, a práxis social como um todo. Alguns desses fatores são de ordem racional; outros de ordem passional. Daí o fato de que grupos sejam mobilizados passionalmente a agir contrariamente aos seus próprios interesses manifestos e contrariamente aos objetivos estratégicos da própria classe a que pertencem.

Tal modelização da subjetividade, que chega a este ponto, é realizada por uma intervenção sobre o inconsciente dos indivíduos influenciando diretamente sua dinâmica passional. Tal inconsciente é como um território aberto por todos os flancos a interações sociais, econômicas, políticas e de outras ordens específicas, que agenciam seu comportamento valendo-se das mais diversas semióticas e inúmeros jogos de poder. É nesse espaço que se entrelaçam, efetivamente, os motores da práxis. Tal espaço é anterior à oposição realidade-representação, e portanto, anterior ao âmbito das ideologias, anterior à consciência significadora.

Assim, na efetivação dos processos de dominação, os Equipamentos Coletivos, meios de comunicação e publicidade, entre outros, são usados intervindo nos níveis mais íntimos da vida subjetiva, orientando, inconscientemente o indivíduo à busca de determinada capacitação produtiva, a consumir determinados produtos, a aderir e eleger a determinados políticos -- que são propagandeados pela mídia como qualquer outro produto de comércio --, etc.

A partir deste estágio do desenvolvimento das forças produtivas e, em especial, pelo desenvolvimento dos equipamentos e saberes necessários para a intervenção sobre a dinâmica passional das massas e indivíduos pelas classes dominantes agenciando comportamentos em seu interesse de classe, a luta ideológica é recolocada em um novo nível que não apenas o da compreensão e representação do real, mas o da capacidade de reverter essas dinâmicas de agenciamento passional. Permanecer no âmbito da afirmação do discurso crítico é permanecer no âmbito da compreensão/representação, que não consegue intervir sobre a dinâmica de modelização da subjetividade como um todo, que não se restringe apenas à atividade cognitiva/racional tão enfatizada pelos pensadores modernos como a única forma dos indivíduos superarem a sua situação de alienação.

No atual estágio do capitalismo periférico brasileiro a dinâmica de superação da alienação das massas exige mais do que por às claras os processos de exploração do capitalismo, mas agenciar o desejo de construir uma nova sociedade, a utopia-concreta. Sem a desalienação dos desejos e a reconstrução de uma sensibilidade ética e política, não haverá como derrotar as classes dominantes.

1.2 A Noção de "Revolução Molecular" como "Processos de Subjetivação ou Singularização"

Como vimos, no atual estágio do desenvolvimento do capitalismo periférico -- com o desenvolvimento de altas tecnologias que possibilitam uma intervenção direta das classes dominantes sobre a dinâmica passional das massas --, ocorre processos de dominação que afetam profundamente as dinâmicas subjetivas para além das dinâmicas de compreensão e representação do real, nas quais se travam as batalhas ideológicas em sentido estrito.

O processo de dominação do capitalismo embora desenvolva dinâmicas que atingem a "massa", elaborem "cultura de massa" e não abram mão ciosamente de exercer controle efetivo sobre os "Meios de Comunicação de Massa", na realidade domina a massa porque a atomiza em indivíduos. Cada indivíduo é instigado a diferenciar-se da massa, distinguir-se dela, ser alguém especial, cultivar a sua individualidade, sua particularidade. Contudo, tal distinção, diferenciamento, individualidade se realiza segundo as referências postas pelo próprio sistema através de seus equipamentos e demais meios de modelizar a subjetividade. A busca da fama, do poder, do sucesso, materializada na riqueza e no status está vinculada, por outro lado, à necessidade de continuar havendo a propriedade privada daquela riqueza que se deseja, ou a manutenção de posições hierárquicas ou de destaque nas quais se exerce um poder que não é conferido a todos e às quais se galga pelo reconhecimento de que o indivíduo atingiu o grau do saber que o habilita a exercer certas atividades que perante a massa lhe conferem um determinado "status", como ocorre com alguns profissionais.

Face essa forma de dominação que sobrecodifica relações de dominação presentes nas dinâmicas de poder mantidas na cultura popular e que agencia comportamentos com seus aparelhos promovendo uma cultura de massas na qual propõe a ascensão do INDIVÍDUO que deve distinguir-se da massa, a revolução molecular significa os processos que se dão de liberação de fluxos de desejo fora dos padrões modelizados pelo sistema e fora dos padrões impostos na cultura popular tradicional. Tais desejos mobilizam os sujeitos a práticas que não seguem as regras e balizas propostas como referências para a individuação do sujeito de acordo com os interesses do sistema. Tal liberação da subjetividade das dinâmicas de dominação acima referidas, pode ser chamada de SINGULARIZAÇÃO .

A SINGULARIDADE, portanto, refere-se à efetivação de uma práxis que não é alienada, cujos fins que busca atingir não foram determinados por mecanismos de dominação passional, mas que, pelo contrário, são afirmados a partir de um desejo que se realiza quebrando tais padrões.

Se por um lado dar vazão a certos desejos levam a práticas que não realizam interesses das classes dominantes negando a lógica de produção e de consumo do sistema como fizeram os hippies e punks, por outro lado tais práticas podem ser neutralizadas pelo sistema e até construir padrões mais reacionários.

Assim, a revolução do capitalismo exige, hoje, dinâmicas que possam reverter o processo de dominação subjetiva e que instaurem, portanto, revoluções moleculares por toda a parte. Neste caso o desejo que foge à modelização do sistema é um profundo desejo de justiça que se vivência também na profunda indignação com o sofrimento do povo pobre, oprimido e marginalizado. É este desejo de que não haja mais exploração e dominação o que move a práxis de libertação. Nenhuma teoria crítica, por mais crítica que seja, será capaz de mover as massas se não for capaz de agenciar os seus desejos.

Portanto, processos de subjetivação ou de singularização são ações mobilizadas por desejos que não são agenciados e realizados segundo os códigos, padrões e referências do sistema. Podem, entretanto, levarem a práticas que não sejam necessariamente superadoras do sistema como um todo, como também, sendo mobilizada por desejos que somente se realizam com destruição do sistema -- por exemplo, acabar com a exploração dos trabalhadores, a injustiça e opressão que se exerce contra o povo pobre --, desenvolverá uma práxis que buscará destruir o sistema como um todo. Mais do que esse aspecto negativo de destruir o sistema capitalista, a subjetividade desalienada formula normalmente utopias que dizem respeito à cidade que queremos, à sociedade que queremos, às relações humanas que desejamos. Na medida em que tais utopias particulares são socializadas e se constróem as utopias coletivas há a tendência para o desencadeamento de processos que abalem as estruturas políticas e sociais mais amplas. Algo semelhante ocorreu no Leste Europeu, embora com motivações diversas e orientações ainda imprevisíveis.

1.3 O Caráter Molecular dos Movimentos Populares

O adjetivo MOLECULAR tem sido utilizado ultimamente com dois sentidos diversos que se atribuem aos movimentos populares.

Alguns incorporaram o termo "molecular" em um quadro mais amplo de referências marxistas. Nesses casos, "molecular" torna-se sinônimo de micro-social. Por caráter molecular entendem que os movimentos populares, basicamente, afetam conjunturas localizadas em áreas geográficas restritamente pequenas -- como a rua de um bairro, por exemplo --, ou que se restringem a grupos pequenos que não desenvolvem lutas mais amplas e de maior peso político para a superação do capitalismo, como por exemplo, um grupo de mulheres, um clube de mães, um grupo de negros, etc. Tais práticas não levariam a ações mais estratégicas de intervenção estrutural que afetassem as bases do modo de produção capitalista. Como os movimentos jamais afetariam as macro-estruturas sociais, o que somente seria possível pela ação do movimento sindical -- que enfrenta diretamente a contradição "Capital X Trabalho" (como se o movimento popular também não a enfrentasse) -- e pela ação dos partidos políticos, o movimento popular deve apenas ser espaço onde despontam lideranças para atuarem posteriormente no sindicato e no partido, devendo apoiar a luta sindical e partidária, bem como, levar à massa a ideologia do partido. Portanto, a partir dessa noção de molecularidade atribui-se um papel tático ao movimento popular.

O segundo sentido de molecular, que é seu sentido mais aberto, crítico e revolucionário -- que temos explicitado neste texto até agora --, significa a dimensão da práxis que consegue romper radicalmente com todos os padrões e códigos vigentes de exploração e de dominação que se travam nas políticas do cotidiano que envolvem relações pedagógicas, eróticas, econômicas, etc, rompendo com todos os condicionamentos impostos pela cultura de massas produzida pelo capitalismo, pelos padrões culturais opressores tradicionalistas. O caráter molecular do movimento popular aqui significa seu papel de transformar não apenas as estruturas de produção e reprodução social, mas as relações sociais do cotidiano na construção de uma nova sociedade, o que supõe a necessidade de realizar a superação do capitalismo. Seu caráter estratégico reside justamente na intervenção que fazem sobre a dinâmica de dominação subjetiva buscando a desalienação do sujeito como um todo e não apenas a pregação de ideologias. Os movimentos como o de negros, de mulheres, de homossexuais, de deficientes, têm um forte caráter molecular que normalmente não é bem compreendido. Mesmo alguns que defendem a concepção estratégica de movimento popular, após afirmarem que a luta principal desses movimentos é contra a discriminação e que, portanto, é uma luta contra a ideologia dominante, passam a afirmar que a luta contra a ideologia enfrenta principalmente o Estado, e assim, reduzem a luta desses movimentos a um embate que encontra seu alvo principal no Estado. Com isso não se dão conta do caráter estratégico de revolucionar a cultura popular e de massas como um todo, em especial, nesses aspectos em que as pessoas das camadas populares se oprimem nas políticas do cotidiano e na maneira como o capitalismo se aproveita disso.

Ocorre que as mais variadas formas de violência e discriminação contra negros, mulheres, deficientes, meninos de rua, homossexuais, etc, como dissemos, são expressão de todo um conjunto de forças difusas também no campo popular, que se exercem seguindo padrões que orientam as ações das pessoas que são formadas desde crianças para exercer tal comportamento. Não basta, entretanto, reprimir esse conjunto de forças, mas canalizá-lo para a construção de uma nova sociedade que é também a construção de novos sujeitos, o que exige a desalienação dos indivíduos que têm sua subjetividade modelada segundo os jogos de poder do capitalismo.

No campo ideológico, portanto, os movimentos populares que atuam numa perspectiva estratégica -- sejam ou não urbanos, atuem ou não na área de reprodução social --, desempenham um importante papel na transformação da sociedade brasileira e do capitalismo aqui instalado. O embate ideológico-cultural que desenvolvem desmascara tanto a exploração de classe na especulação imobiliária, do transporte , da saúde, da educação, etc, como desmascara também a ideologia machista, racista e as que discriminam velhos e deficientes.

Assim, segundo essa concepção estratégica de movimento popular, o enfrentamento das ideologias de exploração e de dominação é compreendido desde a produção da subjetividade do indivíduo e da constituição do poder popular a partir das políticas do cotidiano, travadas em inúmeras relações de poder. Fundado em tal concepção, o Movimento Popular embate-se contra o modelo capitalista de exploração da reprodução social e atua como elemento de revolução cultural pela elaboração de uma cultura popular subversiva ao capitalismo que sobrecodifica o machismo, o racismo e demais formas de discriminação e dominação a fim de compor essas dinâmicas de dominação com a manutenção do sistema como um todo.

 

2. O Socialismo Como Utopia-Concreta Elaborada e Efetivada Coletivamente.

Por colocar a questão do socialismo como um debate ideológico e "abstrato", as esquerdas dificilmente conseguem vinculá-lo diretamente à vivência cotidiana das pessoas e suas aspirações pessoais e coletivas. Pelo contrário, a questão do socialismo deve ser trabalhada a partir da situação real da população explorada e oprimida, que parcialmente se organiza na luta por melhores condições de vida e por respeito à sua dignidade humana.

De fato, quando um movimento grevista apresenta uma pauta de reivindicações, quando um movimento por moradia exige casas para a população de baixa renda, quando o movimento de mulheres exige direitos e respeito à dignidade da mulher -- e assim por diante --, tais conjuntos da população negam a realidade presente, mostrando que a sociedade, organizada como está, não realiza seus anseios mínimos, exigindo que ela seja transformada para que, de fato, realize essas aspirações populares.

Dito de outra forma, todos os movimentos sindicais e populares ao reivindicarem, exigirem, que a realidade seja diferente do que é, negam a topia estabelecida, isto é, negam a situação real, o estado atual das coisas, que não satisfaz seus interesses. Por outro lado, ao exigirem que todos tenham casa, que não haja discriminação da mulher, do negro, etc, tais movimentos formulam pequena utopias, fragmentadas, isoladas, pelas quais lutam, normalmente, separadamente.

Construir a partir dessas diversas utopias fragmentadas dos diversos movimentos específicos, utopias mais coletivas que articulem as diversas bandeiras de luta em torno de eixos mais estratégicos, visando transformações estruturais da sociedade capitalista, a partir da qual essas utopias fragmentadas emergem como sua negação parcial, é a dinâmica que vincula as lutas mais imediatas à construção do socialismo, desde que articulem com um mesmo peso estratégico as lutas que se dão na área de reprodução social, produção, no embate contra o Estado burguês e construção do poder popular a partir das práticas micro-políticas do cotidiano.

Contudo, se já existem essas utopias fragmentadas com esse potencial de ação estratégica, por outro lado é preciso compreender que cada ser humano também tem sua própria utopia, normalmente construída pela negação de sua condição de vida cotidiana, de sua realidade mais imediata, e formulada a partir de desejos, anseios, aspirações e demais intensidades e pulsões subjetivas.

Tendo consciência disso, as classes dominantes reafirmam, no processo de constituição de tais utopias particulares, a sua dinâmica de dominação do âmbito mais íntimo da vida privada das pessoas. O capitalismo que é responsável pela topia deplorável na qual vive a maioria da população, é ao mesmo tempo, o grande vendedor de ilusões e fantasias, o grande agenciador de utopias alienadas e alienantes dos insatisfeitos. O capitalismo apresenta um projeto de sociedade na qual todos podem ascender segundo seus méritos, qualidades e empenhos. Por isso, o pobre que não aceita viver na pobreza, deve ter como utopia particular subir na vida, realizar o que ainda não é real, mas que poderia ser. Poder, luxo, fama e riquezas são elementos que, em alguma medida, constituem as utopias veladas da massa alienada, modelizada para produzir e consumir, que se identifica com personagens fictícios e vitoriosos apresentados pela mídia como modelos de realização pessoal.

É fundamental esclarecer que essas utopias não são mera representação de uma realidade futura, mas a composição de um conjunto de anseios, desejos e aspirações que mobilizam a práxis efetiva em busca de realizar certos objetivos últimos que são formulados utopicamente e que, em última instância, sempre acabam favorecendo os interesses das classes dominantes. Assim, o sistema capitalista, ao mesmo tempo em que não tem como impedir a possibilidade dos indivíduos construírem suas próprias utopias particulares, por outro lado, modeliza a subjetividade de maneira tal que esses desejos, aspirações, anseios, sejam orientados a práticas que permaneçam dentro dos marcos, códigos e limites que o próprio sistema impõe.

Por isso o pobre que não aceita a sua situação de viver na pobreza, deverá lutar com todas as forças para subir de nível, respeitando, entretanto, os limites que devem valer para todos, ou seja, o direito de propriedade privada, o respeito à lei em geral, etc.

Portanto as utopias tanto podem ser potencialmente revolucionárias, como também conservadoras, embora emerjam sempre da negação da realidade imediata, cotidiana, das pessoas que as elaboram.

A debilidade na análise das utopias dos movimentos sindicais e populares tem dificultado a reflexão sobre a estratégia de superação do capitalismo no Brasil. De fato, os movimentos sociais ao buscarem a transformação da realidade possuem uma utopia que pode ou não se efetivar dentro dos marcos do capitalismo.

O sindicalismo de resultados, por exemplo, tem como utopia aumentar o poder aquisitivo dos trabalhadores para que esses possam elevar sua qualidade de consumo, o que significa também, em última instância, realizar aspirações coletivas agenciadas através da mídia e de equipamentos coletivos pelas classes dominantes.

Muitas lutas populares são mobilizadas por necessidades reais, como no caso de ocupações de terra. Neste processo em que a práxis é movida por uma necessidade imediata -- terreno e barraco para não mais pagar aluguel --, o movimento por moradia e a Associação de Moradores são instrumentos úteis para realizar esse aspecto daquela utopia individual que é possuir seu terreno. Contudo, após inúmeras idas à prefeitura, passeatas, negociações e conseqüentemente a conquista da terra, aqueles indivíduos não participam mais da Associação de Moradores, se "acomodam". Entretanto, continuam afirmando que "é preciso ir à luta" para melhorar de vida. Levantam cedo, põem a marmita na bolsa e vão "trabalhar para subir na vida"; furam a greve para não serem despedidos, fazem muro em volta de seu terreno; alguns chegam a colocar caco-de-vidro em cima do muro que cerca a sua propriedade privada; continuam sonhando em desfrutar da sociedade de consumo realizando seus desejos particulares, independentemente do fato de milhões de pessoas continuarem sem ter onde morar.

Isso ocorre porque, além de necessidades imediatas, a utopia particular desses indivíduos compõe desejos agenciados no sistema capitalista que jamais serão realizados pela participação do sujeito na Associação de Moradores, tais como ter o seu videocassete com "quatro cabeças, que anda prá frente e prá trás", o seu carro novo, vestir tal marca de roupa, ter o "relógio mais pontual do mundo", ter o seu aparelho de som da marca famosa, etc. A estratégia para conquistar tais objetivos é aquela aprendida desde a infância que supõe a manutenção das normas, regras e códigos impostos pelas classe dominante para normatizar a ação dos indivíduos nessa busca.

Por outro lado, quando -- a partir das práticas efetivas de luta -- os movimentos vão conseguindo colocar em crise essas utopias particulares construídas segundo os padrões do capitalismo, não apenas criticando o sistema pela não satisfação de certas necessidades específicas de parcelas da população, mas agenciando desejos de que todos tenham casa, que hajam boas escolas para todos, bons postos de saúde para todos, transporte eficiente e barato para todos, incluindo lazer, festas, novas relações pessoais, que se acabe as relações de exploração, injustiça e opressão na sociedade, então, concretamente avançamos do particular-individual para o coletivo-social.

Quando efetivamente, os movimentos populares e sindicais ampliarem suas utopias fragmentadas e parciais e tiverem a capacidade de compor uma utopia-coletiva que abarque todas as aspirações populares por terra, moradia, saúde, lazer, cidadania, distribuição de renda, fim da exploração do trabalhador, do consumidor, fim das discriminações e preconceitos e construção de novas relações pessoais, então damos um passo significativo para a construção do socialismo.

Contudo, se a formulação de uma utopia-coletiva, com a análise de tudo aquilo que desejamos -- a fim de nos libertarmos dos agenciamentos do capitalismo --, pode agenciar processos de subjetivação, de singularização, é no processo real de efetivação dessa utopia-coletiva que se afirma seu caráter revolucionário.

Assim, cada greve, cada ocupação de terra, cada luta específica, não será apenas uma maneira de resolver uma necessidade imediata, mas o momento de colocar em questão as utopias e desejos particulares constituídos aos moldes do capitalismo, momento de seguir na formulação de uma utopia-coletiva, o que significa sair do imediato e avançar para o histórico. A efetivação de tal utopia, em última instância, leva ao confronto com o capital organizado na exploração do trabalho na área de produção e prestação de serviços, na exploração das atividades na área de reprodução social e na espoliação urbana; leva ao confronto com o Estado defensor da ordem e da manutenção da sociedade de classes; leva a uma transformação nas relações de poder que se travam nas micro-políticas do cotidiano; leva, enfim, à superação do capitalismo e à construção de uma sociedade que tenha um modo de produção, circulação e consumo socialistas, na qual o complexo urbano é gestionado pelo população e se respeite o ser humano como tal, possibilitando a realização de sua singularidade.

Por outro lado, assumir concretamente essa utopia coletiva, significa, para cada um, por exemplo, lutar a todo momento contra o machismo, o racismo, a discriminação de deficientes e homossexuais; isto é, significa assumir as diversas lutas populares como momentos de um mesmo processo de construção da nova sociedade como um todo, pela qual cada indivíduo se sente responsável.

O espaço privilegiado de formulação coletiva dessa utopia são as lutas populares articuladas. Cabe aos partidos políticos serem acúmulo da formulação coletiva, serem expressão desse projeto construindo coletivamente a estratégia global da revolução; os partidos devem ser referências dessa utopia, mover desejos singularizantes e serem efetivamente u instrumentos de revolução pela direção e coordenação política de todos os seus militantes engajados nas frentes de luta.


Indicações Bibliográficas

GUATTARI, Félix. Revolução Molecular. São Paulo, Brasiliense, 1987.

GUATTARI, Félix. "Subjetivação Subversiva" in Teoria e Debate, (12):60-64 nov 1990 p. 64

GUATTARI, Félix e ROLNIK, Suely. Micropolítica - Cartografias do Desejo. São Paulo, Editora Vozes, 1986



Movimento Popular e Revolução Molecular
(in:) MANCE, Euclides André (Org.) Movimento Popular e Subjetividade - A Revolução do Cotidiano
Coleção Cadernos de Textos, N.10. CEFURIA, Curitiba, 1991. p. 3-19


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