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Arturo Andrés Roig
e a Filosofia da Libertação na Década de Setenta
(1)

Euclides André Mance
Curitiba, dezembro de 1994


A concepção de filosofia da libertação desenvolvida por Arturo Andrés Roig, já nos anos setenta, possui traços peculiares que a distinguem das demais vertentes em elaboração naquele período. Tais peculiaridades se evidenciam em sua proposta de história das idéias, na metodologia que propõe para desenvolvê-la e na afirmação de uma filosofia latino-americana sincrônica. Após seu afastamento do movimento da filosofia da libertação, ocorrido na segunda metade da década de 70 - em que a criticou de maneira pertinente, segundo uns, equivocada, segundo outros - registrou-se no final dos anos oitenta uma reaproximação que evidenciou-se em sua participação no IV Encontro do Diálogo Norte-Sul com uma empostação própria sobre a Ética Emergente. Resgatamos neste texto algumas peculiaridades do pensamento de Roig no período inicial dos anos 70, apontamos algumas críticas que faz à filosofia da libertação, bem como sua posterior reaproximação a esta vertente ampla.

 

1. A História da Filosofia como História das Idéias

Ao ampliar a história da filosofia como história das idéias, Roig afirma que é válido começar este trabalho historiográfico pela pré-história do pensamento americano - incluindo aí, os mitos indígenas -, e continuá-lo tratando da história do pensamento americano - incluindo neste âmbito também as ideologias, enquanto forma de saber a-crítico. Assim poderíamos acompanhar o processo histórico do "por-se-para-si-como-valioso" do homem latino-americano, que incluiu modos de alienação que, enquanto tais, devem ser compreendidos como etapa do processo histórico doloroso em busca da desalienação. Em tal compreensão deve-se explicitar a conexão histórica, econômico-político-social entre o filosófico e o extra-filosófico que há nos modos de alienação. Assim, o pré-filosófico dos filosofemas e o pára-filosófico das ideologias tornam-se campos de trabalho para a história das idéias. Esclarece Horácio Cerutti que, para Roig, "a história da filosofia latino-americana, se bem que possua um começo na metade do século passado, 'começa' nos mitos do pré-colombiano e recomeça sempre outra vez. Sempre que exista sincronia, isto é, plena consciência de pôr-se para si." (2).

Em seu trabalho Acerca del Comienzo de la Filosofia Americana - publicado em 1971 - Roig afirma que a filosofia latino-americana, como toda filosofia, possui duas condições de possibilidade. Uma é a libertação política, isto é, a vigência de sociedades com constituição. A outra é a libertação ontológica, que ocorre "quando o objeto da filosofia, o absoluto, já não é expresso como representação (Vorstellung), mas como conceito (Begriff)". (3). Considerando tais parâmetros, a filosofia latino-americana teria começado a existir após as guerras de independência, quando nascem os estados e os cidadãos latino-americanos.

Assumindo inicialmente essas teses hegelianas sobre a história da filosofia, Roig considera o surgimento dos estados latino-americanos como o momento em que emerge a possibilidade do autêntico filosofar entre nós. Posteriormente, contudo, Roig reformula sua posição frente a Hegel. Afirma que a filosofia da libertação deve possuir um modelo anti-hegeliano; problematiza a luta ideológica afirmando a práxis como seu momento central e como ponto de partida do filosofar.

A partir daí, a filosofia como reflexão articulada ao processo de libertação se contrapõe à filosofia como teoria da liberdade. A filosofia já foi muitas vezes pensada como "teoria da liberdade". Propôs-se inclusive, a coincidência da história da liberdade com a história da filosofia. Contudo, "a partir do momento em que entra em crise a 'filosofia do sujeito', na qual a essência tinha prioridade sobre a existência, o sujeito sobre o objeto e o conceito sobre a representação, se produz necessariamente o abandono da filosofia como 'teoria da liberdade', e surge com força algo radicalmente distinto e inclusive contraposto, a 'filosofia como libertação'". (4).

Como a liberdade política não se reduz à liberdade de pensamento, a filosofia como libertação compartilha com as ideologias dos oprimidos seu estatuto epistemológico; estabelece a prioridade ontológica do objeto sobre o sujeito, levanta suspeita à consciência quanto as funções de integração e ruptura do conceito; incorpora - como categoria básica do pensamento filosófico - o elemento econômico, bem como, partindo da "consciência da alteridade" e tendo-a como elemento mobilizador da atitude libertadora, incorpora os diversos níveis de alteridade à totalização em processo (5) .

Segundo Roig, frente ao modelo do filosofar europeu, cabe "filosofar sem mais..." : "...devemos filosofar, não para fazer 'filosofia latino-americana', mas simplesmente para 'filosofar', mas um filosofar autêntico, isto é, que reúna dialeticamente o universal com o particular, o concreto, que não é outra coisa que o nosso [nossa realidade] enquanto objeto preeminente, por onde tal filosofar virá a ser americano." (6). Assim, é o conteúdo latino-americano que determinará o caráter do filosofar e não seu método, como defendiam outros pensadores, entre eles Enrique Dussel.

Afirma-se, então, que a filosofia da libertação surge das ideologias dos movimentos sociais-populares somada à herança de certo saber das cátedras, elaborado nas universidades. Isto é, a filosofia como libertação, na Argentina, recolhe tanto a ideologia dos oprimidos quanto a reflexão de pensadores acadêmicos daquele país.

Assim, Roig concebe a filosofia autêntica como filosofia de integração, afirmando o movimento de ruptura das totalidades dialéticas para que elas abarquem os setores marginalizados ideológica ou politicamente. A filosofia, neste processo, é movida pela consciência da alteridade, "consciência moral que leva a abrir-se à realidade e às situações de opressão" (7).

São tarefas da filosofia como libertação, entre outras, denunciar a normalização filosófica e as formas acadêmicas de saber fundadas no modelo europeu que renegam a realidade latino-americana ou a mistificam.

 

2. A Filosofia Latino-americana da Libertação como Pensamento Sincrônico

Em seu primeiro estágio, a filosofia latino-americana emerge, conforme Roig, a partir da ideologia presente e articulada ao processo de libertação colonial. A atitude de repúdio e de protesto à realidade concreta de dominação colonial, implicou na situação do homem latino-americano por-se-para-si como valioso. Ao por-se-para-si o homem tem por valioso o conhecer-se por si mesmo, pensar ele mesmo a si próprio. O pensamento se volta, desta maneira, à realidade histórica. Contudo, a relação do pensar com a realidade histórica, tanto pode ser sincrônica, quanto assincrônica.

O pensamento sincrônico surge do estar posto para si plenamente. O ser para si não é só fruto da espada, nas lutas de libertação, mas também do próprio pensamento, como advertia Juan Batista Alberdi. Nas lutas de independência há o despontar do para si, e do ter por valioso o conhecer-se por si mesmo. Explicita Cerutti que a "sincronia surge do 'modo de relação do pensar com a realidade histórica' sempre que essa realidade histórica seja 'assumida como aquela realidade a partir da qual o homem americano afirma a sua individualidade desde o plano de sua universalidade que é o dialeticamente consubstancial’". (8).

A assincronia, por sua vez, é o modo de relação do pensar com a realidade histórica sempre que outra realidade, a metrópole por exemplo, acabe sendo assumida como aquela realidade a partir da qual o americano afirma a sua individualidade. Daí se conclui que somente a partir do conhecer-se por si mesmo haveria de começar a filosofia americana em busca da sincronia.

 

3. Uma Metodologia Histórica para a Filosofia da Libertação

Arturo Andrés Roig, coerente com sua posição de que uma filosofia de libertação pode ser resgatada a partir do estudo das ideologias presentes nas lutas populares pela libertação de nossos povos desde o período colonial, elaborará uma metodologia apropriada a tal reflexão. Amadurecendo esta posição, defende que a filosofia latino-americana deve constituir-se contrapondo-se ao modelo de filosofia do sujeito, proposta por Hegel. Esse anti-modelo ao hegelianismo teria como antecedentes, segundo Cerutti, as "filosofias de denúncia" do século passado, os discursos pós-hegelianos de Marx, Nietzsche e Freud.

A metodologia elaborada por Roig propõe tratar as ideologias juntamente com as filosofias acadêmicas em uma história crítica das idéias. Ao tratar no mesmo campo epistêmico os conceitos e os filosofemas, torna-se possível tratar na história das idéias tanto a filosofia quanto as ideologias. Assim, partindo das ideologias políticas pode-se considerar as relações entre filosofemas e formas conceituais, num acesso correlativo ao discurso político e filosófico.

Nesta história das idéias, da mesma forma em que se poderia explicitar a relação entre filosofias acadêmicas e ideologias que sustentaram e sustentam sistemas de dominação, propõem-se pesquisar a relação entre as ideologias dos oprimidos e as filosofias de libertação no processo de desalienação.

Como as filosofias e ideologias possuem elementos comuns não isolados e estruturados que permitem considerá-las sob um estatuto epistemológico comum, tanto as filosofias quanto as ideologias - que medeiam a práxis de opressores e oprimidos - podem ser compreendidas em uma mesma história das idéias. Ocorre que tanto na conceituação filosófica como na representação ideológica acontece uma ruptura entre a forma ideal e o conteúdo essencial, ruptura essa que não é apenas a interposição entre consciência e objeto. "A ruptura - explica Cerutti, comentando Roig - está indicando, ao nível da representação, uma suspeita que recai sobre a própria consciência. A consciência toma posição frente ao objeto e neste tomar posição o mostra encobrindo-o" (9).

Reformula-se também a concepção integradora do conceito. Fica claro, segundo Roig, o sentido equívoco da função de integração considerando-se que "... o conceito, quando se constitui como 'universal ideológico', oculta ou dissimula uma ruptura no seio mesmo de sua pretensão integradora manifesta" (10), como por exemplo, nas "lições de Filosofia da História Universal" de Hegel, quando se afirma como requisito de um verdadeiro Estado manter as diferenças de classe.

A partir dessas premissas avança Roig sobre a necessidade "de uma 'autocrítica da consciência' que descubra os modos de 'ocultar-manifestar'. A filosofia será, portanto, crítica, na medida em que seja autocrítica"(11). Entretanto, este processo de crítica não é apenas uma questão gnosiológica. Com este aprofundamento da noção de ruptura, "... o problema das funções de ruptura e integração enquanto próprias, ambas, do conceito, já não é um problema gnosiológico, mas um problema moral, somente visível a partir do despertar da consciência da alteridade dentro da estrutura da consciência social". (12).

Assim, na questão de método Roig busca desenvolver um modo de se explorar o sistema de conexões entre o discurso político e o filosófico, sistema esse que o pensador argentino retoma das reflexões de Hegel, para o qual "... a 'liberdade de pensamento' não é, nem pode ser, estranha à 'liberdade política', a tal ponto que a primeira surge historicamente quando ocorre, por sua vez, o florescimento da segunda. Filosofia e política - conclui - aparecem pois desde suas próprias origens instaladas em um sistema de conexões"(13).

Para Roig o discurso político aparece como a reformulação de uma "demanda social" justificada pela filosofia. Salienta Cerutti que as ciências sociais podem abordar a demanda, mas que "a reformulação é o próprio da dimensão política e a justificação desta reformulação e tarefa da filosofia." (14).

É justamente entre demanda, reformulação e justificação, que se joga o problema ideológico. Cabe, pois, detectar os "graus da presença do ideológico" no discurso filosófico. "Estes graus - explicita Cerutti - podem ser relacionados por meio de um estudo estrutural comparativo mediante o qual a lógica se conecta com a axiologia e esta com o discurso filosófico implícito no discurso político..." (15).

Assim, ampliando a história da filosofia como história das idéias, Arturo Andrés Roig analisará a relação entre as demandas sociais, os discursos filosóficos e políticos, bem como sobre o papel de seus sujeitos. Conforme o autor, a formulação da demanda social encontra no povo o seu sujeito; tal formulação é reformulada pelo "político", que se apresenta como intérprete do povo. Contudo, em tal reformulação da demanda social, o político leva em consideração a sua própria demanda, que é formulada pela classe social ou grupo do qual faz parte. O discurso filosófico, por sua vez, se desdobra inserido no discurso político que se configura como reformulação da demanda social, justificando tal reformulação.

É na reformulação da demanda que se joga o problema da ideologia : a "não-coincidência entre o sujeito da formulação da demanda social irruptora e o sujeito de sua reformulação, manifesta-se na estrutura mesma do discurso político opressor" (16). Tal procedimento de ocultamento não é voluntário nem premeditado, mas encobre a relação entre o povo e "homem-político". Cabe ao filósofo a crítica e autocrítica nesse processo, desde a sua abertura moral à alteridade, negada no processo de reformulação política das demandas sociais.

 

4. Arturo Andrés Roig - Três Fases Frente à Filosofia da Libertação.

Até os primeiros anos da década de setenta, Roig tem alta estima por toda a contribuição produzida pelo movimento global da filosofia da libertação, no qual, digamos, a sua contribuição merece destaque. Nesta primeira fase lhe é caro "o abandono da filosofia como teoria da liberdade" e a emergência de "algo radicalmente distinto e inclusive contraposto, a filosofia como libertação" (17).

A partir de então, contudo, distancia-se do movimento dirigindo-lhe críticas incisivas. Em 1984, Roig esclarece sua posição frente ao movimento global da filosofia da libertação. " Nossa posição pessoal - afirma Roig - foi a de apoio ao movimento, estando, porém, fora dele". Destaca Sirio López Velasco(18) que Roig critica principalmente o caráter messiânico do movimento, "suas 'atitudes abertamente irracionais' , seu modo de funcionar 'quase como uma igreja', seu caráter de filosofia 'feita desde cima... e enunciada pela voz de um mestre', traços dos quais, para Roig, a ação de Kusch... é um exemplo".

Embora reconheça Roig que a partir de 1976 diversos integrantes do movimento que estavam no exílio passem a ter posições mais avançadas e progressistas, salienta também que não houve a superação do "populismo inicial, mesmo quando este tenha sido reformulado a partir de posições atenuadas e em certa medida, críticas". Considera também justificadas "as impugnações à 'Filosofia da Libertação' que se fundam no 'rechaço da categoria povo', como também das posições 'terceiristas'"(19), propondo que se evite o uso da categoria povo, aderindo ao conceito classe.

Afirma Roig que com uma "filosofia que se ponha como tarefa central a libertação - deixando já definitivamente de lado a militância dentro de uma 'filosofia da libertação' - poder-se-á, com a humildade do caso, incorporando-se à práxis social e política dos oprimidos (que não são uma categoria ontológica)... contribuir neste longo e doloroso caminho de nossos países para a instalação e construção do socialismo"(20).

Por fim, desde o início dos anos 90, entretanto, a receptividade de Roig ao diálogo Norte-Sul e sua posterior participação no mesmo reaviva o interesse recíproco entre sua elaboração sobre a Ética Emergente e a filosofia da libertação. Com certeza a orientação teórica de seu trabalho permite compreendê-lo, atualmente, como um dos filósofos latino-americanos que estabelece como peculiaridade de sua filosofia contribuir com a práxis de libertação de cada ser humano.

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Notas:

1 Texto utilizado como subsídio para o curso "América Latina - Filosofia e Libertação", promovido pelo CEFIL e UFMS, ministrado em Campo Grande - MS, em janeiro de 1995.

2 Horacio CERUTTI-GULDBERG, Filosofia de la Liberación Latino-americana, Fondo de Cultura Economia, Cidade do México, 1983, p. 221

3 Quanto a postura hegeliana aqui assumida por Roig, veja-se CERUTTI, op. cit. p. 218.

4 Roig, citado por CERUTTI-GULDBERG, op. cit. p. 284

5Analisando este estudo comenta Cerutti que para Nímio de Anquin trata-se de aceder a um modo de alteridade que não escapa à consciência, não exigindo ato de fé, não exigindo a passagem a uma consciência sobrenatural. Com isto a abertura a alteridade permaneceria distinta da elaboração feita por Dussel, Scannone e outros. Cf. Arturo Andrés ROIG, "El Problema de la 'Alteridad' en la Ontologia de Nímio de Anquin" in: Nuevo Mundo, 3(1):202-220 jan jun 73; sobre as análises de Cerutti veja-se CERUTTI-GULDBERG, op. cit., p.240-244

6 ROIG, citado por CERUTTI-GULDBERG, op. cit

7 CERUTTI-GULDBERG, op. cit p. 287

8 Ibidem, p. 219

9 CERUTTI-GULDBERG, op. cit., p. 242

10 Arturo A. ROIG, Bases Metodologicas para el tratamiento de las Ideologias, in: Hacia una Filosofia de la Liberación Latinoamericana (Enfoques Latinoamericanos 2). Buenos Aires, Bonun, 1973 p. 217-244, aqui p.228, citado por CERUTTI GULDBERG, op. cit. p. 242

11 Ibidem, p. 242

12 ROIG citado por CERUTTI GULDBERG, op. cit., p.242-3

13 Ibidem, p. 243

14 CERUTTI-GULDBERG, op. cit. , p. 243

15 Ibidem, p. 244

16 ROIG, Bases Metodológicas..., citado por CERUTTI-GULDBERG, op. cit. p. 265

17 Arturo Andrés ROIG, Teoria y Crítica del Pensamiento Latinoamericano, Fondo de Cultura Económica, México, 1979, p. 101.

18 Cf. Sirio LÓPEZ VELASCO, Reflexões Sobre a Filosofia da Libertação, Campo Grande, CEFIL, 1991, p. 68.

19 Ibidem, p. 68

20 Arturo Andrés ROIG, "Cuatro Tomas de Posición a esta Altura de los Tiempos" in Nuestra América, 4(11):55-59, Centro Coordinador y Difusor de Estudios Latinoamericanos, México, p. 58s, citado por LOPEZ VELASCO, op. cit. p.69


Arturo Andrés Roig e a Filosofia da Libertação na Década de Setenta
Curitiba, dezembro de 1994


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