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Socieconomia Solidária : Considerar as Pessoas
- Entrevista ao CEPAT

Euclides André Mance
Curitiba, dezembro de 2001

Cepat Informa: Quais foram os avanços da socioeconomia solidária em 2001?

Euclides Mance: Os avanços foram gigantescos. Sob o aspecto internacional, centenas de organizações passaram a atuar de maneira mais articulada e coordenada. Isso se refletiu em importantes eventos, tais como o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro, o Fórum Social Mundial de Pádua, em abril, o II Encontro Internacional Sobre Globalização da Solidariedade, realizado em Quebec, em outubro. Nesses espaços estiveram lado a lado organizações solidárias que atuam nos campos de financiamento, produção, comercialização e consumo, debatendo como integrar suas ações sob uma estratégia que visa a colaboração solidária entre elas. No FSM em janeiro tivemos o lançamento da Rede Global de Socioeconomia Solidária-RGSES com a participação de organização de 21 países; em Quebec foi organizado o Comitê de Enlaces, que foi aprovado em uma plenária com mais de 400 representantes de organizações de economia solidária da Europa, América Latina, América do Norte, África e Ásia. O principal avanço é a difusão de uma consciência coletiva em setores cada vez maiores de que a economia solidária pode converter-se em uma alternativa sistêmica ao capitalismo. Neste sentido, vem merecendo atenção especial as reflexões sobre como conectar em redes solidárias o conjunto das organizações remontando as cadeias produtivas, integrando processos de financiamento, produção comercialização e consumo buscando alcançar maior autonomia frente às organizações capitalistas. Na Carta de Lançamento da Rede Global de Socioeconomia Solidária afirma-se que se considera como critérios mínimos para a participação nesta rede os seguintes: "a) que nas iniciativas que formem parte da rede, não exista nenhum tipo de exploração; b) que se busque preservar o equilíbrio ecológico dos ecossistemas... c) que estejam dispostas a compartilhar significativas parcelas de seus excedentes para a expansão da Rede, favorecendo a viabilidade de novas iniciativas econômicas, reconstruindo de forma solidária e ecológica as cadeias produtivas, gerando postos de trabalho e distribuindo a renda, com o objetivo de garantir as condições econômicas para o exercício das liberdades públicas e individuais com base em uma ética solidária". Por sua vez, no Documento Final do Encontro de Quebec, na seção 5 intitulada "Coordenar em nível internacional nossos esforços para sustentar as redes de economia social e solidária", apontam-se os seguintes encaminhamentos: "...Queremos crear una comisión internacional de enlace formada de cuatro (4) personas animadoras de las redes en cada uno de los continentes (America Latina y el Caribe, América del Norte, Europa, África, Asia y Oceanía). Esta comisión descentralizada velará a la implementación de las prioridades que hemos definido y permitirá la articulación entre las redes continentales." Entre as prioridades estão: "[1] La difusión de los debates, experiencias, 'saber hacer' de las empresas de economía social y solidaria; [2] Tender puentes entre estas experiencias y las redes que las llevan a cabo; [3] El apoyo a la construccíon de redes de empresas y de redes de economía social y solidaria; [4] El inventario des redes y el apoyo a las redes nacionales; [5] La contribución con la lucha ideológica en favor de la economía social y solidaria, en particular por la presencia de la economía social y solidaria en foros internacionales; [6] En la continuidad de los encuentros de Lima y Quebec, ser la clave del 3 er Encuentro Internacional sobre la Globalización de la Solidaridad, (...)"

Sob o aspecto nacional tivemos a consolidação e o avanço de organizações como RBSES, ADS, ANTEAG, Rede de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, entre outras, em atividades de colaboração e parceria em seminários, feiras, encontros e em diversos espaços. Avançamos no mapeamento nacional de organizações, produtos e serviços, estruturou-se um sistema de busca via web e serviços de E-commerce foram disponibilizados. A circulação de informação através de fóruns eletrônicos, periódicos de circulação nacional, o intercâmbio de tecnologias e o compartilhamento de materiais pedagógicos e analíticos contribuíram muito para o avanço das práticas em diversas regiões do país.

Do ponto de vista regional e estadual, foram organizados redes, fóruns e GTs em diversos estados como RS, SC, PR, RJ e CE, realizando feiras, organizando lojas, promovendo cursos, etc. Iniciou-se o debate sobre logística de distribuição a partir de práticas concretas já existentes. O debate sobre o "corredor sul" integrando em um sistema de distribuição cidades dos Estados de RS, SC, PR e SP está avançando, uma vez que atualmente produtos do MST do RS e SC são comercializados no PR e produtos orgânicos do RS são comercializados solidariamente em SP. A implantação deste corredor, quando concluída, permitirá a circulação de produtos entre organizações de economia solidária dos 4 estados referidos.

Do ponto de vista local, há uma multiplicação de empreendimentos de economia solidária com soluções inovadoras: como os cartões de crédito solidário Palma Card e Credsol em Fortaleza, que atendem a população de baixa renda; como a organização de cooperativas de consumidores em cidades do RS que, como no caso de Passo Fundo, poupando uma parte das economias alcançadas, já planeja montar novos empreendimentos, financiando processos produtivos a partir da organização do consumo; como o sistema de E-commerce e tele-atendimento organizado em Curitiba pela Rede Sol - em fase de testes, operando em escala reduzida - que entrega na casa do cliente produtos orgânicos e solidários; como a instituição do Fundo de Desenvolvimento Solidário, aprovado em assembléia da Rede Sol em Curitiba que, estatutariamente, recebe recursos das organizações de consumo, produtores, prestadores de serviço e demais sócios integrados nesta rede local; como a introdução de moedas sociais em sistemas de trocas em algumas cidades das regiões sul, sudeste e nordeste; como a Rede Viva-Rio, integrando diversas organizações de morros cariocas; como a Rede Solidariedade em Curitiba, integrando diversos sindicatos; como o Shopping da Economia Popular e Solidária em Santa Maria, RS, agora com instalações maiores. Multiplicam-se lojas, feiras, cursos, seminários, coletivos de formação e entidades que, com essa finalidade, vão sendo organizadas. Nessas redes, quando bem estruturadas, os produtores recebem mais pelos seus produtos e os consumidores pagam menos, pois, suprimindo-se os atravessadores e remontando-se as cadeias produtivas, as redes reduzem sobremaneira os custos de insumos e produtos finais.

Outro avanço importante foi o reconhecimento da estratégia de rede para o desenvolvimento local sustentado. O estado do RS, cujo governo apostou nessa estratégia, colhe hoje um crescimento econômico acima da média nacional. As práticas de economia solidária foram sistematizadas e reformuladas em propostas de políticas públicas, integrando-se-as sob um projeto economicamente viável, socialmente justo e ecologicamente sustentável.

Poderíamos falar horas e horas descrevendo os avanços da socioeconomia solidária em 2001. E seguramente omitiríamos muita coisa que desconhecemos e que está acontecendo, agora, em diversos lugares.

Cepat Informa: O que é novo nessa "humano-economia"?

Euclides Mance: Trata-se de uma nova abordagem de tudo o que está envolvido nos processos econômicos. O seu objetivo não é o acúmulo de lucro privado, mas a produção e o compartilhamento sustentável dos recursos para o bem viver das pessoas e a manutenção do equilíbrio dos ecossistemas. No caso das organizações que operam em rede, é a partir dos acordos em função do bem viver de produtores e consumidores que se definem os preços, abandonando o mercado como regulador de preços sob o paradigma da escassez e substituindo-o pela solidariedade praticada em rede sob o paradigma da abundância. Eu vou discorrer profundamente sobre isso no meu próximo livro, que já está em fase de revisão. Em um sistema de rede, quanto mais se distribui a riqueza, mais a riqueza de todos aumenta, uma vez que se incrementa o consumo em qualidade e diversidade, de maneira ecologicamente sustentável.

Mas o que há de novo nesse aspecto humano é considerar as pessoas - em todas as suas dimensões, afetivas, imaginativas, cognitivas, em suas necessidades e desejos - não apenas como consumidores ou produtores, mas como sujeitos que estão em relação solidária uns com os outros. Para garantir-se o bem viver das pessoas, não basta consumir e produzir. É necessários sermos acolhidos como seres humanos, respeitados em nossa diferença e singularidade. É a proximidade entre as pessoas em uma relação ética, desejando o outro em sua liberdade, o que está na base desse projeto solidário. E, se eu desejo a liberdade da outra pessoa, desejo que ela tenha tudo aquilo que precisa para realizar-se eticamente em sua alteridade, compartilhando-se democraticamente as condições materiais, políticas, educativas e informativas para tal realização humana.

Cepat Informa: O que é consumo ético?

Euclides Mance:  A esquerda dos séculos XIX e XX deixou-nos uma grande herança na reflexão e organização sobre o trabalho. Na última década do século passado, entretanto, surgiram algumas redes e organizações propondo - com uma elaboração bem articulada - a organização do consumo como forma de pressão econômica no enfrentamento de empresas capitalistas. Movimentos de boicote e de consumo crítico foram aprimorados e organizados internacionalmente e mostraram-se capazes de modificar o comportamento de empresas capitalistas. Por sua vez, o movimento ecológico difundiu uma necessária crítica sobre os padrões insustentáveis de consumo difundidos como ideal de consumo pelo capitalismo e suas conseqüências nefastas não apenas para o ecossistema ambiental, mas para o ecossistema social e para a saúde mental das pessoas. É nesse movimento prático, mediado por diversas reflexões, que surgem expressões como consumo crítico, consumo ético e consumo sustentável. Recentemente cunhamos a expressão "consumo solidário" para caracterizar um tipo de consumo final e produtivo capaz de sustentar o bem-viver de consumidores e produtores, integrando-se harmoniosamente os ecossistemas ambiental, social e subjetivo - como propusera Félix Guattari em "As Três Ecologias". A idéia básica, aqui, é que: quando você consome produtos e serviços de empresas capitalistas que exploram os trabalhadores e prejudicam o meio ambiente, você também é responsável por esses danos à humanidade; mas se você consome produtos e serviços de empreendimentos econômicos solidários então você contribui para expandir uma economia pós-capitalista, centrada na promoção do bem viver do conjunto das pessoas. Nisto reside o caráter ético e político de cada ato de consumo que realizamos ao longo de nossos dias, ao longo de nossa vida. Do ponto de vista econômico, se os/as consumidores/as praticam o consumo solidário, os empreendimentos solidários vendem toda a sua produção e os excedentes gerados podem ser reinvestidos, montando-se outras cooperativas, gerando-se novos postos de trabalho, distribuindo renda e diversificando a produção, ampliando-se as condições de possibilidade para assegurar-se o bem viver do conjunto das pessoas. Assim, o consumo solidário é uma forma ética, crítica, responsável e sustentável de consumir, considerando-se o bem viver dos consumidores que o praticam, dos produtores que elaboram os produtos e serviços que são consumidos e dos ecossistemas locais e planetário.

Cepat Informa: Você não acha que o mercado está de olho na economia solidária? Não poderá usá-la em benefício próprio?

Euclides Mance: Uma das características do capitalismo é a sua capacidade de recuperar na lógica do lucro elementos de tudo aquilo que tenta subvertê-lo. Práticas e valores dos movimentos de contra-cultura dos anos 60, formas anteriores de cooperativismo e outras práticas subversivas foram neutralizadas no que tinham de potencial transformador e reproduzidas pelo próprio sistema. Você encontra butiques punk em Shopping Centers; a imagem do Che Guevara já foi usada até para vender detergentes; e muitas cooperativas nada mais são do que formas de melhor submeter o trabalho aos interesses do capital.

A economia solidária, por sua vez, é hoje uma alternativa de geração de trabalho e renda para milhões de pessoas em todo o mundo que foram, progressivamente, sendo excluídas pelo capital. Esta economia tem o potencial de subverter o capitalismo quando se organiza em rede, remontando de maneira solidária as cadeias produtivas e corrigindo os fluxos de valor, visando impedir que a riqueza gerada no interior das redes venha a ser acumulada por empresas capitalistas que atuariam como fornecedoras de insumos, meios de produção, financiamento, etc.

Já é claramente perceptível, entretanto, uma disputa em que empresas capitalistas tentam apresentar-se como se fossem empresas de responsabilidade social, promovendo campanhas em prol de organizações filantrópicas; afirmando compartilhar uma parte do lucro obtido em favor de alguma organização social escolhida pelo cliente; inserindo suas logomarcas em sistemas de marketing em que doações são feitas para campanhas contra a fome, pela educação de crianças e jovens, etc. Há shoppings, por exemplo, que ao invés de sortear um carro entre os consumidores, prefere sensibilizá-los ao consumo dizendo que uma parte dos lucros, correspondente ao valor daquele veículo, será doada a uma instituição de caridade. A "solidariedade" aqui começa a operar como uma espécie de diferencial de mercado. As empresas capitalistas começam a fazer isso porque a difusão da solidariedade como um valor social está crescendo. Em outros casos, grandes empresas capitalistas começam a adotar algumas práticas que surgiram inicialmente no campo da economia solidária. Pelo menos 100, entre as 500 maiores empresas do mundo - como noticiou a revista Carta Capital, 3-10-01, p.50 - já integram algum sistema de trocas, valendo-se de moedas não oficiais. Do ponto de vista da técnica de permuta, de troca multirecíproca, elas operam como se integrassem um LETS ou um Clube de Trocas. Os seus objetivos entretanto nada tem a ver com a solidariedade. Por sua vez, algumas organizações financeiras descobriram que a inadimplência do micro-crédito é mínima e passam a operar também junto às populações muito pobres, com taxas de juros nada solidárias. Gostaria novamente de enfatizar que somente organizando redes que remontem solidariamente as cadeias produtivas, corrigindo os fluxos de valores para que estes circulem no interior das redes, realimentando a produção e o consumo solidários, é que a economia solidária poderá expandir-se, consolidando níveis de independência cada vez maiores frente ao capitalismo, evitando-se assim que a riqueza produzida pelo trabalho em práticas solidárias acabe, pela porta do consumo, transitando para a acumulação capitalista por empresas que lhes sejam fornecedoras de crédito, insumos, bens de produção e serviços variados. Além disso é preciso fortalecer o trabalho de educação dos consumidores para que percebam o sentido mais profundo da solidariedade, para que não sejam ludibriados em campanhas de marketing.

Cepat Informa: Como contribuir com o autêntico fortalecimento da socioeconomia solidária?

Euclides Mance: A socioeconomia solidária considera o ser humano em sua integralidade, em todas as suas dimensões. Trata-se de promover o bem viver das pessoas e a sustentabilidade dos ecossistemas em primeiro lugar, respeitando a singularidade de cada ser humano, de cada cultura. Assim, existem inúmeras maneiras de fortalecermos a socioeconomia solidária. Mas em síntese diria que, sob o aspecto econômico, precisamos organizar melhor o consumo. O potencial de consumo das populações organizadas em sindicatos, movimentos populares, eclesiais e culturais é gigantesco. O consumo solidário é uma forma de luta anti-capitalista a ser praticado cotidianamente. A organização e difusão desse consumo é fundamental, tanto quanto o reinvestimento coletivo dos excedentes alcançados pelos empreendimentos solidários. Esses reinvestimentos são fundamentais para criar-se novas empresas e remontar-se as cadeias produtivas.

Sob o aspecto político, é preciso pressionar o Estado e propor políticas públicas favoráveis à expansão e consolidação da economia solidária. É importante que os partidos de esquerda atualizem suas agendas incluindo em suas pautas uma reflexão sobre a economia solidária não apenas para a proposição de políticas públicas, como também para uma atualização das estratégias de transformação estrutural das relações de produção, considerando a emergência - a olhos vistos - de uma classe social em que os trabalhadores são donos dos meios de produção, e que somente cresce enquanto classe na medida em que solidariamente se entreapoiam enfrentando as corporações capitalistas e consolidando práticas solidárias de autogestão e intercooperação.

Por fim, sob o aspecto cultural - e para considerar apenas um elemento neste campo -, todos nós podemos reelaborar nossas sensibilidades e imaginários sobre o consumo e a produção, praticando e divulgando a socioeconomia solidária em todos os espaços sociais em que atuamos.


Socieconomia Solidária : Considerar as Pessoas - Entrevista ao CEPAT
Cepat Informa - Ano 7, Número 79, dez 2001, p.75-82
Curitiba, Dezembro de 2001
www.milenio.com.br/mance/balanco2001.htm


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