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A Cidade e os Cidadãos

Euclides André Mance
Instituto de Filosofia da Libertação

Toda cidade tem uma história.

A história das cidades brasileiras inscreve-se sob um movimento de colonização e desenvolvimento capitalistas que lhes conferem suas características principais. Avançando da costa do Atlântico em direção ao centro do continente, a colonização foi gerando uma teia de cidades interligadas. O posterior desenvolvimento capitalista, com pólos centrais de industrialização próximos à costa, provocou uma ocupação extremamente desigual do território.

Com efeito, sob a lógica do mercado, o movimento de industrialização e urbanização capitalistas se concentra em algumas regiões que disponham, inicialmente, de boa infra-estrutura e mercados de trabalho e de consumo. As pessoas, buscando melhores condições de vida e emprego, deslocam-se para essas regiões. Por sua vez, as empresas, na disputa pelo mercado consumidor que aí se concentra, também se instalam nessas áreas. Esse círculo vicioso leva a uma ocupação extremamente desigual do território e à segregação de regiões inteiras em que não há investimentos dos agentes privados, ficando relegadas à pobreza, o que leva à migração de seus habitantes em direção aos grandes centros, que se conformam, assim, como sociedades de massa.

No caso brasileiro, essa lógica capitalista de desenvolvimento fez a população urbana crescer de 36% em 1950 para 76% em 1990, gerando um acentuado êxodo rural e graves distorções regionais. Atualmente, a região mais industrializada e urbanizada no país vai da Grande São Paulo ao Grande Rio, formando uma megalópole que abarca apenas 0,5% do território nacional. Esta pequena área, contudo, abriga 22% da população brasileira, sendo responsável por mais de 60% da produção industrial do país. Conectada a esta megalópole estão as metrópoles regionais. Apenas nos 12 maiores municípios do Brasil - algumas capitais e cidades com mais de um milhão de habitantes - moram cerca de 30 milhões de pessoas, aproximadamente 21% dos habitantes do país. Esses municípios e suas regiões metropolitanas, formam gigantescas cidades com problemas interligados. Conectadas a essas metrópoles estão as cidades-pólo regionais. No final da teia tem-se as outras cidades menores a elas interligadas.

Com o crescimento acelerado das cidades-pólo, metrópoles e da megalópole citada, ocorre um processo de super-capitalização de agentes econômicos do setor imobiliário que, atuando na especulação de terras, passam a desenvolver ingerências cada vez maiores nos governos municipais para valorizar suas áreas. A espoliação urbana ocorre basicamente sob duas formas. No primeiro caso, o especulador é beneficiado pelo elevação do preço dos seus imóveis, resultante do desenvolvimento da região em que eles estão localizados graças aos investimentos públicos e da população que ali reside. Conforme alguns geógrafos, os vazios utilizados para fins especulativos correspondem até cerca de 40% a 60% das áreas construídas nas capitais brasileiras. Outro modo de valorizar o imóvel é a modificação dos Planos Diretores Urbanos, realizada pelos governantes municipais, alterando coeficientes de aproveitamento (quantos metros quadrados podem ser construídos) e sua destinação para residência, comércio, serviços, etc.

A história das cidades é cheia de contradições.

A emergência das contradições urbanas envolve dois elementos importantes. Por um lado, com esse movimento de urbanização ocorre uma nova organização social do espaço urbano, com uma concentração de pessoas sem recursos nas grandes cidades, com a inexistência de mecanismos econômicos para a satisfatória reprodução social destes contingentes e de mecanismos sociais adequados ao controle da reorganização social do espaço - especialmente quanto à ocupação do território. A violência urbana - inerente a este modo capitalista excludente e marginalizador - tende a acentuar-se proporcionalmente à exclusão desses segmentos sociais de condições dignas de trabalho, moradia e educação, e à sua segregação em regiões urbanas abandonadas, que permanecem nessas condições porque emergiram e cresceram fora dos padrões da legalidade: são pessoas que moram em ruas que legalmente não existem, em casas que conforme a lei não deveriam existir, com ramificações ilegais de redes elétricas, encanamentos de água, etc. Comenta Raquel Rolnik que com a urbanização vai surgindo uma verdadeira cidade paralela, oculta, irregular, fora dos padrões do planejamento previsto que coexiste com a cidade oficial desenhada nas pranchetas (1). Outro campo de contradições é a distribuição e gestão dos meios de consumo coletivos: habitação, transporte, saúde, equipamentos públicos, etc. Enfrentando essas contradições surgem movimentos sociais por moradia, transporte, saúde e outros movimentos sociais populares que podem estrategicamente articular suas lutas sob o eixo da reforma urbana.

Concomitante ao processo de urbanização e alta concentração demográfica nas cidades, passa a ocorrer também, a partir da década de 60, uma produção cultural especialmente destinada às massas urbanas, difundida principalmente através da televisão e do rádio, mídias centrais dessa cultura. Com o surgimento da sociedade de massas nos centros urbanos e a manipulação cada vez maior da subjetividade das pessoas através dos aparelhos culturais, em especial pela mídia eletrônica, afirmam-se padrões de consumo, normas éticas e estéticas, e orientam-se as opções políticas do eleitorado - intervenções e manipulações essas que favorecem a manutenção no poder político das classes econômica e culturalmente dominantes. Elementos culturais trazidos pelas populações migrantes são capturados sob os jogos sígnicos da cultura urbana e um sincretismo cultural se implanta como baliza de individuação. Antigas referências culturais que demarcavam o comportamento feminino, jovem e dos vários segmentos sociais são desterritorializados neste novo espaço de micro-poderes que se exercem difusamente por toda a cidade. Em torno das contradições culturais envolvendo ações de preconceito, discriminação, marginalização ou imposição de valores autoritários surgem também movimentos sociais, como os movimentos de mulheres, negros, estudantis e outros que podem articular suas lutas em torno do eixo da cidadania.

O objetivo da cidade deve ser o bem viver dos cidadãos

Os habitantes da cidade somente se tornam cidadãos quando vivem com dignidade. Viver com dignidade significa dispor dos recursos necessários para realizar livremente a sua humanidade. Desse modo, considerando-se as finalidades humanas do bem viver, cabe promover-se políticas públicas que visem assegurar a cada pessoa as condições materiais, políticas, informativo-educacionais e éticas para garantir-lhes o bem viver nas melhores condições possíveis.

Daí decorre que administrar uma cidade exige sensibilidade às necessidades dos cidadãos, uma vez que sua vida, problemas e aspirações não podem ser reduzidos a vetores, números ou fórmulas manipuláveis sob a lógica fria das pranchetas. O drama das crianças que vivem pelas ruas não se resume a uma cifra relativa, as pessoas que não têm moradia não são uma estatística da COHAB, os rios poluídos são se reduzem a um volume de certos dejetos por centímetro cúbico de água corrente. A tecnicização do planejamento urbano é fruto de uma ideologia que nega a existência de contradições sociais e interesses econômicos envolvidos em cada decisão sobre as políticas públicas, que acoberta a dor e a injustiça sofrida pelas maiorias sob coeficientes e gráficos coloridos que justificam projetos que acentuam ainda mais a exclusão social.

Com efeito, os problemas urbanos, decorrentes do modelo capitalista de desenvolvimento, devem ser enfrentados estruturalmente em suas interconexões. Isto significa que a defesa da Cidadania implica na Reforma Urbana, em políticas integradas em nível de Regiões Metropolitanas e na Democratização do Estado. Além disso, cabe superar a compartimentação das políticas públicas - isoladas em áreas setoriais - para que se possa atingir às raízes estruturais dos problemas urbanos vinculados à Organização do Espaço, à Defesa da Vida, ao Desenvolvimento Humano Integral e às Questões Administrativas da gestão municipal.

Sem Reforma Urbana não há como assegurar o bem viver ao conjunto da população.

Soluções isoladas nunca resolvem os problemas urbanos e quando alguns são aparentemente equacionados desse modo, geram-se outros em decorrência de tais soluções, que mantêm o modelo estrutural de mercantilização do espaço e dos serviços urbanos, centrados na idéia de apropriação privada da cidade. As soluções exigem grandes obras e construções que beneficiam empreiteiras e outros organismos privados que as executam e especuladores imobiliários por elas beneficiados. Além disso elas aumentam o endividamento do município consumindo recursos públicos que poderiam ser destinados a outras atividades fins. Isso ocorre inclusive quando esses projetos atendem, em graus variados, certas demandas isoladas de segmentos da população.

Em oposição a este modelo, a Reforma Urbana possibilita reorganizar a cidade combatendo a lógica de acumulação capitalista nas atividades destinadas à reprodução social da vida, como: moradia, abastecimento, saúde, transporte, etc. Assim, a inversão de prioridades na definição das políticas públicas deve vir acompanhada de uma outra concepção de organização da cidade, em função do bem viver dos cidadãos e não da ampliação dos lucros das empresas que se enriquecem com o desenvolvimento urbano. Isso exige um planejamento urbano que promova a interconexão entre todos os programas setoriais, como mediação para realização da Reforma Urbana e a contratação de serviços, sempre que possível, em regime de colaboração solidária.

Afirmar a cidadania implica suprimir antigas leis, instituir novos direitos e afirmar uma nova ética.

A defesa da cidadania, desdobra-se também em aspectos no campo do Direito e no campo da Ética. No primeiro caso trata-se de suprimir leis injustas e garantir a realização de direitos políticos, econômicos, humanos, civis e sociais, que se materializam no acesso à moradia, educação, saúde, lazer, informação, amparo social, etc. A cidadania, contudo, extrapola as obrigações do Estado em relação ao cidadão e vice-versa, uma vez que se a compreenda como realização plena do ser humano integral, garantindo-se-lhe o respeito à identidade e à realização subjetiva. Trata-se, neste segundo caso, de afirmar-se uma nova ética que enfrente as discriminação de gênero, etnia, opção sexual, idade, condição física e mental, que enfrente a imposição de padrões estéticos e todas as formas de dominação cultural, visando reconstruir a sensibilidade, a solidariedade e o mútuo respeito nas relações cotidianas. Assim, trata-se de fazer cumprir a função social da cidade, da terra e dos serviços urbanos, valendo-se do poder do Estado para tanto, e promover uma nova ética vinculada a valores como a solidariedade, a justiça, a igualdade e a honestidade, os quais devem reger a administração da coisa pública e as ações no cotidiano da vida privada das pessoas.

A afirmação de uma nova ética na esfera pública exige a democratização do Estado

A democratização do Estado implica na sua desprivatização, na participação do povo na administração da cidade, na construção do poder popular, na efetivação do Orçamento e do Planejamento Urbano Participativos. A desprivatização significa que os investimentos públicos devem ser feitos para atender as reais demandas populares, e não com a finalidade de ampliar o acúmulo de capital por empreiteiras e outros grupos econômicos do setor imobiliário, de transporte, etc. A descentralização do poder e a introdução de mecanismos de participação popular são condições para a garantia de inversão de prioridades e para que as demandas sociais sejam atendidas na perspectiva da Reforma Urbana e da Cidadania. Com o orçamento participativo, a população pode controlar a alocação de recursos, a definição de prioridades a serem atendidas, etc. Com o planejamento urbano permanente participativo a população - com a assessoria técnica devida - pode definir: a localização e funcionamento de novos equipamentos públicos, como postos de saúde, escolas, creches, etc; a alteração de serviços coletivos, como novas linhas de transportes e outros; a reorganização do zoneamento urbano, adequando o zoneamento da cidade ao bem viver dos cidadãos.

Problemas interligados exigem soluções conjuntas.

Compreender as cidades sob o prisma das regiões metropolitanas significa enfatizar que muitos problemas de cada município em particular somente podem ser resolvidos quando as administrações municipais atuam em conjunto. Assim, problemas como a poluição de córregos, o abastecimento de água, enchentes, a sobrecarga nos sistemas e equipamentos de saúde, o transporte, a falta de saneamento e questões habitacionais, entre tantas outras, somente se resolvem com soluções integradas.

Exercitando a solidariedade, podemos conjuntamente mudar a história de nossa cidade

A colaboração solidária pode dar origem não apenas a alternativas econômicas para geração de emprego e renda, como apresentamos recentemente em A Revolução das Redes (CEPAT - Informa, Ano 4 - N. 46, p. 10-19, dez 98), mas também a novas formas de organização das cidades.

Os atores da esfera pública não-estatal (ONGs populares, associações, movimentos e outras entidades civis que realizam incontáveis ações voltadas a garantir suportes materiais, políticos e culturais necessários à realização das liberdades públicas e privadas, promovendo o bem comum, desenvolvendo atividades econômicas de geração de emprego e renda, serviços gratuitos ou quase gratuitos em áreas de saúde e educação popular, entre muitas outras ações que não têm fins lucrativos) podem desempenhar um papel decisivo na construção de uma hegemonia alternativa que imprima uma outra história às nossas cidades.

O crescimento dessa nova esfera - entre o Estado e o mercado - na qual se confere um caráter solidário às atividades econômicas, políticas e culturais implementadas, não significa que as organizações populares da sociedade civil não continuem a pressionar o Estado com vistas a garantir políticas públicas voltadas ao atendimento dos interesses sociais. Isso significa que o fortalecimento de Redes de Colaboração Solidária enfrentando diretamente problemas como geração de emprego, elevação dos níveis de consumo dos excluídos, entre outros problemas centrais e imediatos à vida dos excluídos, tende a fortalecer a capacidade desses atores em alterar a configuração atual das cidades, tornando-as mais justas, ecologicamente harmônicas e auto-sustentáveis. É possível, pois mudar a história de nossas cidades para ampliar as liberdades públicas e privadas, promover o bem viver de todos e incorporar à cidadania a legião dos excluídos, afirmando-se uma nova ética e instituindo-se novos direitos que garantam as liberdades públicas e privadas.

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Notas

1. Raquel ROLNIK, "Morar, atuar e viver." in: Teoria e Debate, N.9 p.18-23 jan-mar 90. São Paulo.


A Cidade e os Cidadãos
Curitiba, abril de 1999
www.milenio.com.br/mance/cidade.htm


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