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A Revolução das Redes:
como se constrói um "sistema solidário" e participativoEuclides André Mance
IFiL, abril de 2001Nas últimas décadas surgiram em todo o mundo, nos campos da economia, política e cultura, inúmeras redes e organizações na esfera da sociedade civil lutando pela promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, constituindo-se embrionariamente em um setor público não-estatal. Redes e organizações feministas, ecológicas, movimentos na área da educação, saúde, moradia e muitos outros na área da economia solidária e pela ética na política vão se multiplicando, fazendo surgir uma nova esfera de contrato social. O avanço de uma nova consciência e de novas práticas sobre as relações de gênero, sobre o equilíbrio dos ecossistemas e sobre a economia solidária, por exemplo, não emerge nas esferas do mercado ou do Estado. O consenso sobre essas novas práticas tem-se construído no interior de redes em que pessoas e organizações de diversas partes do mundo colaboram ativamente entre si, propondo transformações do mercado e do Estado, das diversas relações sociais e culturais a partir de uma defesa intransigente da necessidade de garantir-se universalmente as condições requeridas para o ético exercício das liberdades públicas e privadas.
A progressiva e complexa integração dessas diversas redes, colaborando solidariamente entre si, colocou no horizonte de nossas possibilidades concretas a realização planetária de uma nova revolução, capaz de subverter a lógica capitalista de concentração de riquezas e de exclusão social e as diversas formas de dominação nos campos da política, da economia e da cultura.
A revolução das redes, é uma proposta estratégica que visa conectar empreendimentos solidários de produção, comercialização, financiamento, consumidores e a infinidade de organizações populares da sociedade civil como associações, sindicatos, ONGs , etc, em um complexo movimento de realimentação capaz de fortalecer ao conjunto dessas organizações e integrá-las em crescimento conjunto, auto-sustentável, antagônico ao capitalismo, às várias práticas de dominação política e cultural a fim de promover o bem viver das pessoas. Apontarei neste momento, entretanto, apenas o aspecto econômico dessa revolução das redes.
Nas últimas décadas tivemos o surgimento e propagação de inúmeras práticas de colaboração solidária no campo da economia, entre as quais elencam-se: renovação da Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações de Marca, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, os Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Economia de Comunhão, Sistemas de Micro-Crédito, Sistemas de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Grupos de Compras Comunitárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Alternativas, difusão de Softwares Livres e solidários, entre muitas outras práticas de economia solidária. A maioria dessas organizações, que cobrem os diversos segmentos das cadeias produtivas (consumo, comércio, serviço, produção e crédito) começam a despertar para ações conjuntas.
No Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, após vários seminários foi lançada a Rede Global de Socioeconomia Solidária como possibilidade de integração, transformação e avanço de todas as redes, superando os isolamentos. A idéia básica que subjaz à estratégia da Rede Global é que a difusão do consumo e do trabalho solidários, em laços complexos de realimentação, possibilita que os valores econômicos gerados pelo trabalho possam realimentar o processo de produção e consumo, promovendo o bem viver das coletividades e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável e a expansão do campo de possibilidades de realização da liberdades públicas e privadas, avançando na construção de uma nova formação social que pode configurar-se como uma sociedade pós-capitalista.
Em outras palavras, se consumimos bens e serviços das Redes Solidárias, seus empreendimentos vendem toda a produção e amplia-se o excedente para o reinvestimento coletivo na criação de outras empresas solidárias, remontando-se as cadeias produtivas, ampliando a autonomia das redes frente aos mercados capitalistas, gerando-se novos postos de trabalho com distribuição de renda bem como a produção de outros bens e serviços ainda não disponíveis nessas redes, aumentando-se a oferta solidária de bens e serviços aos consumidores em diversidade e qualidade, sob um modelo autosustentável que preserva o equilíbrio dos ecossistemas e promove a diversidade das culturas que não renegam as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. O reinvestimento coletivo dos excedentes, com processos tecnologicamente mais avançados, permitirá reduzir progressivamente a jornada de trabalho de todos, elevar o tempo livre para o bem viver e qualificar o padrão de consumo de cada pessoa.
Assim, nesta estratégia de rede, quanto mais se distribui a riqueza, mais a riqueza de todos aumenta, uma vez que tal distribuição se faz remunerando o trabalho que gera ainda mais riqueza a ser reinvestida e repartida. Desse modo, as populações que estavam excluídas, ao serem incorporadas ao processo produtivo, recebendo uma justa remuneração pelo seu trabalho, podem consumir produtos e serviços solidários ativando o próprio processo produtivo, sob parâmetros ecologicamente sustentáveis.
Busca-se, portanto, integrar consumo, comercialização, produção e crédito em um sistema harmônico e interdependente, coletiva e democraticamente planejado e gerido, que serve ao objetivo comum de responder às necessidades da reprodução sustentável do bem viver das pessoas em todas as suas dimensões, inclusive, nos âmbitos da cultura, arte e lazer.
Houve recentemente no Brasil um salto organizativo no campo da economia solidária, com o surgimento e fortalecimento de diversas redes e organizações atuando em âmbitos locais, regionais e nacional com propostas diversificadas. Nos últimos dois anos, em nível nacional, tivemos a fundação da Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares, a organização da Agência de Desenvolvimento Solidário da Central Única dos Trabalhadores e a adoção da estratégia de rede integrando empresas da Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas Autogeridas. Em junho de 2000, no Encontro Brasileiro de Cultura e Socioeconomia Solidárias, realizado no Rio de Janeiro, foi criada a Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária. Em seguida lançaram-se as bases para a organização da Rede Global de Socioeconomia Solidária, no I Acampamento de Economia Solidária ocorrido no Rio Grande do Sul, com organizações de diversos países - rede essa que foi lançada no Fórum Social Mundial, com a participação de entidades, pessoas e organizações de 21 países. Por sua vez, o governo do Rio Grande do Sul adotou a estratégia de redes econômicas em projetos de desenvolvimento sustentável. A Secretaria de Estado do Desenvolvimento e Assuntos Internacionais, SEDAI, além de realizar seminários em diversa regiões daquele estado incluindo o tema das redes, onde pudemos debater essa mesma estratégia que aqui apresentamos, tem agora organizado cursos sobre redes de empreendimentos solidários visando disseminar esta estratégia pelo Rio Grande do Sul.
A Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária, por sua vez, integra empreendimentos de produção, comercialização e serviços, organizações de consumidores e de desenvolvimento solidário, escolas de trabalhadores, núcleos de estudos ligados a universidades, outras redes afins e incubadoras de cooperativas visando avançar nesta perspectiva estratégica de realimentação, complementariedade e crescimento conjunto.
Os critérios básicos de participação nesta rede são os seguintes: não haver exploração do trabalho, opressão ou dominação nos empreendimentos; buscar preservar o equilíbrio dos ecossistemas (respeitando-se todavia a transição de empreendimentos que ainda não sejam ecologicamente sustentáveis); compartilhar significativas parcelas do excedente para a expansão da própria rede; autodeterminação dos fins e autogestão dos meios, em espírito de cooperação e colaboração.
Os seus objetivos básicos são: atender as demandas de consumo dos membros das redes, produzindo e comercializando bens e serviços com qualidade técnica, social e ecológica; produzir nas redes tudo o que seus membros ainda necessitem consumir do mercado capitalista: produtos finais, insumos, serviços, etc; corrigir fluxos de valores, evitando realimentar a produção capitalista, o que ocorre quando empreendimentos solidários compram bens e serviços de empresas capitalistas; gerar novos postos de trabalho e distribuir renda, com a criação de novos empreendimentos econômicos para satisfazer as demandas das próprias redes; remontar de maneira solidária e ecológica as cadeias produtivas, visando garantir as condições econômicas para o exercício das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.
A Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária vale-se de diversos instrumentos, entre os quais um portal na Internet onde está sendo alimentado um sistema que permite pesquisar-se com facilidade produtos e serviços de empreendimentos solidários, por estados, municípios e bairros, visualizar-se o mapeamento das organizações no país e a comunicação direta com elas. Algumas redes locais, como a Rede Sol em Curitiba, darão início em breve a processos de comércio eletrônico, com entregas em domicílio. As redes locais realizam feiras, distribuem catálogos e começam a organizar lojas.
A pergunta sobre como se constrói um "sistema solidário" e participativo, tem muitas respostas. A estratégia de redes supõe a democracia total, acentuando-se as liberdades públicas e pessoais. A gestão da rede é descentralizada com participação direta, regionalização e coordenação das atividades. As formas organizativas necessitam considerar esse pressuposto em seus mecanismos de gestão bem como as peculiaridades do funcionamento complexo das redes, com especial atenção às conexões entre os participantes, fluxos de informação, produtos, serviços e valores entre eles, e às propriedades de: autopoiese (qualidade da rede de reproduzir-se a si mesma), intensividade (envolver o maior número possível de pessoas em suas atividades), extensividade (distribuir-se espacialmente pelas diversas regiões), diversidade (acolher e gerar a maior diversidade possível considerando a justiça social e a sustentabilidade ecológica), integralidade (cada parte está conectada a todas as outras sendo afetada por elas), realimentação (cada um demanda produtos e serviços dos outros, o que permite o crescimento sustentável de todos), agregação (propriedade de diversas redes se integrarem em redes maiores).
Contudo, do ponto de vista da sustentabilidade econômica, são requeridas diversas análises técnicas a partir dos dados do consumo local, das organizações econômico-solidárias já existentes e dos recursos humanos e materiais disponíveis, que podem facilmente ser realizadas valendo-se de um software solidário que permite realizar diagnósticos de rede, desenhando com facilidade as conexões e fluxos e entre os empreendimentos e organizações de consumo. A expansão do consumo solidário, o reinvestimento coletivo dos excedentes e a distribuição de renda são condições imprescindíveis para o crescimento dessas redes.
O software Rede Solidária, que está disponível para cópia gratuita, facilita sobremaneira o planejamento, diagnóstico e gestão dos empreendimentos, a sua integração em rede, as decisões sobre os processos de expansão das redes locais e a sua integração em redes maiores. O programa disponível ainda está em fase de testes. Explicitaremos algumas de suas funções na organização de uma rede, uma vez que apresentam a lógica de funcionamento dessas redes de colaboração em sua dinâmica econômica.
Ele possui um banco de projetos nos campos de produção, comércio e serviço que podem ser tomados como referência para a montagem de novos empreendimentos. Esse banco de projetos, que pode ser ampliado pelos usuários, pode também ser compartilhado entre as diversas redes, ampliando-se o número de alternativas locais para a geração de trabalho e renda, considerando-se os recursos naturais, econômicos e humanos disponíveis em cada realidade.
Ao introduzir-se um empreendimento qualquer nos campos da produção, comercialização ou serviço, o programa solicita diversos dados sobre instalações, equipamentos, linhas e volumes de produção, gastos mensais: com insumos, outros materiais, trabalhadores, encargos, aluguéis, energia, custos de comercialização, perdas, etc. O programa, então, cruza os dados e calcula o custo unitário por item produzido, sobre o qual o usuário pode aplicar uma margem de excedente. Ao final o programa apresenta um quadro de demonstração de resultados (Receita Operacional, Custo de Matérias Primas, Custo de Comercialização, Custo Fixo, Custo Total, Excedente Líquido, Margem de Contribuição e Ponto de Equilíbrio do Empreendimento - resultados esses que podem ser atualizados mensalmente, permitindo um fácil acompanhamento do desempenho do empreendimento) e um quadro do Investimento Inicial (Investimento Fixo, Custo de Aquisição de Matérias Primas, Custo Fixo, Capital de Giro e Reserva Técnica). Além desses quadros, o sistema gera um relatório detalhado incluindo depreciação de equipamentos, relação de fornecedores, produtos e serviços adquiridos na rede ou mercado, etc. O grau de detalhamento do relatório permite que esse empreendimento possa ser facilmente replicado em outras regiões uma vez que todo o conjunto de informações suficiente para montar a empresa está nele indicado. Os dados desse empreendimento podem ser incluídos no banco de projetos que é acionado ao serem pesquisadas as possibilidades de expansão das redes.
As pesquisas sobre os diversos empreendimentos da rede podem ser feitas consultando-se por: nome, localização (cidade, estado, país, regiões de cidades ou quadrantes geográficos), produtos ou serviços, insumos e outros materiais consumidos produtivamente, investimento inicial, custos (fixo total, variável total, retirada dos sócios, insumos, outros materiais, comercialização, custo mensal total), capital de giro, faturamento mensal, excedente líquido, ponto de equilibrio, volume de compras na rede, volume de compras no mercado, trabalhadores (função, quantidade, remuneração, jornada semanal), etc.
No caso das organizações de consumo (cooperativas de compras coletivas e outras), o programa permite pesquisar o consumo de produtos e serviços da rede, do mercado ou do Estado - discriminando esse consumo em volumes e diversidade de itens -, bem como o número de consumidores, os coordenadores das cooperativas e as listas de consumo final em vários graus de detalhamento.
O mais importante, entretanto, são os Diagnósticos de Rede e Sugestões de Expansão. Totalizando os dados de consumo, produção, comércio e serviço, o programa permite diagnosticar: a) o Consumo Final praticado na rede em volume e diversidade de itens adquiridos na rede ou no mercado; b) o Fluxo Material em todas as cadeias produtivas no interior da rede; c) o Fluxo de Valores, visualizando-se os fluxos que realimentam a rede e os fluxos que desaguam no mercado; d) o Cadenciamento, que pode ser diagnosticado por empreendimento (de quem ele compra e para quem ele vende), por Produto/Serviço (todos os que produzem aquele item e todos os que o consomem) e Conectividade (listando-se por ordem decrescente os empreendimentos que são fornecedores de um maior número de empresas na rede).
Igualmente, o programa apresenta sugestões para o crescimento da rede, a partir de critérios previamente estabelecidos, analisando possibilidades de remontar cadeias produtivas ou desmembrar empreendimentos com alto faturamento. a) No primeiro caso, após totalizar os dados de consumo, produção, comércio e serviço, o programa levanta todas as demandas da rede por produtos, insumos e serviços que estejam sendo adquiridas no mercado. Em seguida ele consulta o Banco de Projetos buscando localizar algum empreendimento que possa atender aquelas demandas. Se localizar algum empreendimento nessa condição, ele verifica o volume de demanda existente e o ponto de equilibrio do empreendimento localizado (isto é, o faturamento mínimo necessário para que ele se mantenha). Caso o volume de demanda seja igual ou superior ao ponto de equilíbrio, o programa sugere que aquele empreendimento seja montado, uma vez que ele é sustentável no interior da própria rede. b) No segundo caso o programa analisa, para cada empreendimento da rede, a proporção entre o seu faturamento e o seu ponto de equilíbrio. Se o faturamento de um empreendimento for, por exemplo, um pouco maior que o dobro de seu ponto de equilíbrio, o programa propõe que seja organizada uma nova empresa para produzir aquele mesmo item em uma outra região, permitindo gerar novos postos de trabalho e incorporar trabalhadores que estavam desempregados. Ambas as unidades faturarão um volume um pouco maior que o seu próprio ponto de equilíbrio, podendo haver uma redução na jornada de trabalho de todos, mas não havendo contudo redução nos ganhos dos trabalhadores. Tem-se assim um desenvolvimento geograficamente distribuído e localmente sustentável.
Entretanto, como cada realidade muda a seu modo, cabe aprendermos sempre uns com os outros e termos a necessária criatividade de reinventarmos as soluções para que elas sejam as mais adequadas às diversas situações concretas. Parafraseando Paulo Freire, podemos concluir afirmando que, sob a estratégia das redes de colaboração solidária, ninguém liberta ninguém , ninguém se liberta sozinho, todos nos libertamos juntos!
A Revolução das Redes: como se constrói um "sistema solidário" e participativo
World Social Forum
Pádua, maio de 2001
www.milenio.com.br/mance/construir.htm
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