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As Redes de Colaboração Solidária
e a Construção da Democracia

Euclides André Mance
IFiL, abril de 2001

1. A democracia que desejamos assegura as liberdades públicas e privadas.

A democracia que desejamos é aquela que assegura realmente as liberdades públicas e privadas, eticamente exercidas ao conjunto das pessoas e sociedades. O exercício concreto das liberdades, todavia, supõe condições materiais, políticas, educativas informativas e éticas para realizar-se como manifestação de cidadania.

Sem condições materiais não há como se realizar as liberdades. A liberdade para comer só existe quando há o alimento disponível para comer. Aquele que não dispõe de comida, não possui liberdade para comer. A liberdade para trabalhar supõe condições materiais que a possibilitem. Sem dispor de moradia, não existe a liberdade para abrigar-se dignamente como ser humano, mas a imposição de viver ao relento. Sem as mediações materiais para assegurar a saúde não há a liberdade para preservar o corpo da dor, do sofrimento e da morte evitável.

Sem condições políticas, que assegurem a autonomia privada e pública, não há como preservar, promover ou realizar a liberdade dos indivíduos e da sociedade. Sem a possibilidade de participar, opinar, decidir e transformar as micropolíticas do cotidiano na vida privada e as macro-políticas - que envolvem inúmeras esferas de organização social e governamental - a liberdade fica mutilada, impedida de realizar-se de modo cidadão. O machismo, o racismo, a discriminação de imigrantes, índios e pobres e tantos outros preconceitos justificam ideologicamente micropolíticas autoritárias que negam a liberdade de mulheres, negros e demais segmentos discriminados. Também o tecnicismo, o economicismo e tantas outras ideologias que se desdobram de conceitos arcaicos sobre o valor epistemológico dos enunciados científicos contribuem para a negação da liberdade pública, negando o valor da participação popular na definição das macro-políticas governamentais nas diversas esferas.

Contudo, mesmo tendo as condições políticas e materiais para concretizar suas escolhas, se as pessoas não dispuserem de informações suficientes e de qualidade relevante para as suas decisões ou não souberem como refletir adequadamente sobre as informações de que dispõem, o exercício de sua liberdade fica prejudicado. Portanto, sem a democratização da educação e da informação, a cidadania fica obliterada, pois embora pareça haver liberdade no ato de escolher, as escolhas acabam sendo induzidas por aqueles que selecionam e fornecem algumas informações e não outras.

Por fim, sem a condição ética, o exercício da liberdade de alguns pode aniquilar a liberdade de muitos ou vice-versa. A moral e o direito que impõem certos padrões para o comportamento pessoal e social que negam às pessoas a realização de sua liberdade - de sua condição feminina, homossexual, negra, indígena, infantil, etc. - ou que reproduzem privações sociais (como tantas leis injustas), obliteram a realização das liberdades públicas e privadas. A ética que preserva, promove ou realiza a liberdade se assenta no desejo de que cada pessoa possa viver eticamente sua liberdade o mais plenamente possível e no imperativo de promovê-la desse modo. Assim, a liberdade privada não pode realizar-se aniquilando as condições de possibilidade da liberdade pública; e esta, por sua vez, deve respeitar qualquer livre exercício humano da liberdade pessoal, desde que este não inviabilize outros exercícios de liberdade pública e privada eticamente orientados.

2. A negação das liberdades públicas e privadas sob o capitalismo atual.

O que vemos nas sociedades contemporâneas na maior parte do planeta, entretanto, é a negação cada vez mais acentuada das liberdades pública e privada das maiorias, em nome da expansão da liberdade privada dos que dispõem do grande capital. Tal negação é tanto maior quanto mais se aplica o neoliberalismo. Os países que o acolhem passam a implementar políticas que cerceiam o exercício ético da liberdade pelas maiorias. Esse totalitarismo global, esse Regime Globalitário, esvazia as instâncias políticas da autonomia pública, transformando o Estado em refém do capital financeiro e dos mega-conglomerados - como demonstram as crises no México, Argentina, Tailândia, Hong Kong, Rússia, Brasil, entre outras, com repercussões no mundo todo.

Consideremos, neste quadro, entretanto, apenas uma liberdade fundamental: a de alimentar-se. Mais de 1,3 bilhões de pessoas no mundo todo vivem na pobreza absoluta, com menos de um dólar por dia. Por outra parte, o volume da riqueza mundial é cada vez maior e mais concentrado, a tal ponto que, as 358 pessoas mais ricas do mundo em 1993 possuíam ativos que superavam a soma da renda anual de países em que residiam 45% de toda a população do planeta. Outra estatística revela que "a riqueza combinada dos 447 bilionários do planeta é maior do que a renda de metade da população mundial" (1) Entre as 100 maiores economias do mundo, 50 são de mega-empresas.

Considerando-se este quadro, pode-se afirmar que o movimento capitalista de acúmulo e reinvestimento em busca do maior volume de lucro está levando esse sistema econômico ao ápice de concentração. Tal concentração é gerenciada por algumas centenas de mega-conglomerados transnacionais que graças à automação, informática e biotecnologia dependem cada vez menos de trabalho vivo para realizar o processo produtivo, gerando um volume de lucro cada vez maior para os que dominam maiores fatias do mercado e barateando cada vez mais as mercadorias. A lógica da concentração, entretanto, faz com que haja cada vez menos mercado consumidor para adquirir tais produtos, pois menos recurso é distribuído na forma de salário, gerando-se uma multidão de excluídos cujo potencial de trabalho já não mais interessa ao capital.

O capitalismo atual, de fato, vem suprimindo e fragilizando as mediações garantidoras das liberdades públicas e privadas, sejam mediações materiais, políticas, educativo-informacionais ou éticas. O modelo capitalista neoliberal globalitário propaga: a) a concentração dos recursos materiais e a exclusão das maiorias, b) o controle hegemônico do poder político pelos segmentos que controlam o capital, virtualizando cada vez mais a democracia, c) a saturação de informações e a fragilização da autonomia crítica da sociedade; d) uma moral individualista centrada na vantagem privada (em que as relações sociais ficam subordinadas ao mercado) e que renega a promoção da liberdade alheia, quando esta não contribui, ainda que mediatamente, para a realização do acúmulo de riqueza sob a ordem neoliberal.

3. Da Resistência ao Neoliberalismo à Globalização da Solidariedade

Os segmentos populares da sociedade civil planetária compostos por contingentes oprimidos, explorados, expropriados, dominados, excluídos e por todos aqueles que lhes são solidários, vem se organizando internacionalmente não apenas na resistência a esse estado de coisas, mas na construção de novas relações sociais, econômicas, políticas e culturais que, organizando-se em Redes de Colaboração Solidária, têm o potencial de dar origem a uma nova civilização, multicultural e que deseja a liberdade de cada outro em sua diferença.

Nas últimas décadas inúmeras práticas de solidariedade expandiram-se internacionalmente integrando-se em movimentos de rede. A partir delas pode-se vislumbrar os primeiros sinais do nascimento de uma nova formação social que tende a superar a lógica capitalista de concentração de riquezas e exclusão social, de destruição dos ecossistemas e de exploração dos seres humanos.

Sob a lógica das redes de economia solidária, que são uma parcela desse conjunto todo, a difusão do consumo e do labor solidários, em laços de realimentação, possibilita que os valores econômicos gerados pelo trabalho possam realimentar o processo de produção e consumo, promovendo o bem viver das coletividades e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável, a expansão do campo de possibilidades de realização da liberdades públicas e privadas.

A nova geração de redes de colaboração solidária que começa a surgir carrega consigo características de inúmeras práticas solidárias bem sucedidas, entre as quais elencam-se: os Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Rede Global de Trocas, Economia de Comunhão, Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Sistemas de Micro-Crédito, Sistemas de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações de Marca, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Grupos de Compras Comunitárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Alternativas, difusão de Softwares Livres (Free Softwares) e inúmeras outras práticas de sócio-economia solidária que poderiam ser aqui elencadas (2). O crescimento mundial do Setor Público Não-Estatal indica a ampliação de novos campos de possibilidade para ações solidárias estrategicamente articuladas com o objetivo de promover as liberdades públicas e privadas.

As Redes de Colaboração Solidária, atuando sobre as condições necessárias ao exercício das liberdades, avançam na construção de uma nova formação social que pode configurar-se como uma sociedade pós-capitalista.

Economicamente, trata-se da difusão do consumo e labor solidários. O consumo solidário significa selecionar os bens de consumo ou serviços que atendam nossas necessidades e desejos visando tanto realizar o nosso livre bem viver pessoal, quanto promover o bem viver dos trabalhadores que elaboram aquele produto ou serviço, como também visando manter o equilíbrio dos ecossistemas. De fato, quando consumimos um produto em cuja elaboração seres humanos foram explorados e o ecossistema prejudicado, nós próprios somos co-responsáveis pela exploração daquelas pessoas e pelo prejuízo ao equilíbrio ecológico, pois com nosso ato de compra contribuímos para que os responsáveis por essa opressão possam converter as mercadorias em capital a ser reinvestido do mesmo modo, reproduzindo as mesmas práticas injustas socialmente e danosas ecologicamente. O ato de consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é também ético e político. Trata-se de um exercício de poder pelo qual efetivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, a destruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e a exclusão social ou nos contrapor a esse modo lesivo de produção, promovendo, pela prática do consumo solidário, a ampliação das liberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável. Ao selecionar e consumir produtos identificados pelas marcas das redes solidárias nós contribuímos para que o processo produtivo solidário encontre seu acabamento e que o valor por nós dispendido em tal consumo possa realimentar a produção solidária em função do bem viver de todos que integram as redes de produtores e consumidores.

O labor solidário significa, além dos aspectos referentes à autogestão e corresponsabilidade social dos trabalhadores, que o excedente do processo produtivo - o qual sob a lógica capitalista é acumulado por grupos cada vez menores - seja reinvestido solidariamente no financiamento de outros empreendimentos produtivos, permitindo integrar às atividades de trabalho e consumo aqueles que estão sendo excluídos pelo capital, ampliar a oferta de bens e serviços solidários e expandir as redes de produtores e consumidores, melhorando as condições de vida de todos que aderem à produção e ao consumo solidários. Assim, com os excedentes gerados nos empreendimentos solidários organizam-se novos empreendimentos produtivos criando-se oportunidade de trabalho para desempregados, propiciando-lhes um rendimento estável que se converte, graças ao consumo solidário praticado por esses mesmos trabalhadores, em aumento de consumo final de produtos da própria rede, gerando-se assim mais excedentes a serem investidos. Os novos empreendimentos visam estrategicamente passar a produzir aquilo que ainda é adquirido no mercado capitalista, sejam bens e serviços para consumo final ou insumos, materiais de manutenção e outros itens demandados no processo produtivo. Esse expediente visa corrigir os fluxos de valor, a fim de que o consumo final e o consumo produtivo não desaguem na acumulação privada fora das redes, mas possam nelas realimentar a produção e o consumo solidários, completando os segmentos das cadeias produtivas sobre os quais as redes ainda não tenham autonomia.

Politicamente, as redes de colaboração solidária defendem a gestão democrática do poder, buscando garantir a todos iguais condições de participar e decidir não apenas sobre as atividades de produção e consumo praticadas nas redes, mas também, nas demais esferas políticas da sociedade, visando combater toda forma de exploração de trabalhadores, expropriação de consumidores e dominação cultural, enfatizando o valor da cidadania ativa na busca do bem comum e da cooperação entre os povos.

No campo da informação e educação, as redes de colaboração solidária buscam promover da melhor maneira possível a circulação da informação e geração de interpretantes que não apenas permitam ampliar os conhecimentos de cada pessoa, suas habilidades técnicas e domínios tecnológicos ou a sua competência em produzir e interpretar novos conhecimentos necessários às tomadas de decisão em todas as esferas de sua vida, mas que além disso permitam recuperar a sensibilidade, a auto-estima e outros elementos de ordem ética e estética imprescindíveis à realização do bem viver de cada pessoa e de toda a coletividade.

Eticamente as redes de colaboração solidária promovem a solidariedade, isto é, o compromisso pelo bem viver de todos, o desejo do outro em sua valiosa diferença, para que cada pessoa possa usufruir, nas melhores condições possíveis, das liberdades públicas e privadas. Desejar a diferença significa acolher a diversidade, de etnias, de religiões e credos, de esperanças, de artes e linguagens, em suma, acolher as mais variadas formas de realização singular da liberdade humana que não neguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas. Promover as liberdades significa garantir às pessoas as condições materiais, políticas, informativas e educativas para uma existência ética, solidária.

A partir das últimas décadas em que práticas de economia solidária vêm se difundindo em todos os continentes, o capitalismo deixou de ser visto como um "mal necessário" por muitos, para ser considerado por estes apenas como um modo de produção historicamente circunscrito a um conjunto de determinantes que, levando ao ápice os movimentos de acúmulo de riqueza e de exclusão social, vem forçando as populações marginalizadas do trabalho e do consumo a engendrarem novas relações de produção e consumo solidários que progressivamente podem se constituir em uma alternativa sistêmica ao próprio capitalismo. Isto seguramente pode ocorrer na medida em que os fluxos de valores produzidos solidariamente nessas redes realimentem novos laços de produção e consumo solidários, expandindo uma riqueza combinada cada vez maior, compartilhada entre todos que integram esse novo bloco econômico e social.

4. As Redes Solidárias, colaborando entre si, tornaram-se uma nova esfera democrática do contrato social.

Há pois uma nova esfera de contrato social que não é nem o mercado, nem o Estado, mas as Redes Solidárias. O consenso de que é preciso manter o equilíbrio dos ecossistemas e preservar a biodiversidade não surge na esfera do mercado ou do Estado, mas na esfera das redes de movimentos ecológicos e sociais que lutam em defesa das liberdades públicas de todas as gerações a terem direito a um ambiente saudável, a ecossistemas equilibrados, à diversidade da fauna e flora, a um planeta não poluído.

Do mesmo modo, o consenso sobre a necessidade de construirmos novos parâmetros para as relações de gênero, superando as diversas formas de opressão, discriminação e violência que atingem as mulheres não surge a partir do mercado ou do estado, mas das redes que conectam os mais diversos movimentos feministas e de mulheres em todo o mundo.

A importância do Fórum Social Mundial reside justamente na possibilidade de integração e realimentação das inúmeras redes que atuam na defesa das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas, buscando assegurar a todas as pessoas as condições materiais, políticas, educativas e informativas requeridas ao seu bem viver.

Não apenas um outro mundo é possível. Este outro mundo já está brotando nos diversos continentes nas práticas mais diversas centradas na solidariedade, que visam promover as liberdades responsáveis enfrentando as diversas formas de opressão, exclusão e injustiças. Na construção da democracia de baixo para cima, trata-se de avançar no fortalecimento e expansão dessas redes e na criação de novas redes, na sua integração colaborativa com outras redes em âmbitos locais, regionais e globais, acolhendo as diversidades culturais que não reneguem as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas.

 

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Notas

1. Pepe ESCOBAR. "Os donos do mundo". Gazeta Mercantil, 21 a 23-02-97, Leitura de Fim de Semana, p.1. Curitiba, Brasil,1997

2. Uma grande variedade dessas práticas de economia solidária pode ser pesquisada a partir do site mantido pela Rede de Colaboração Solidária da cidade de Curitiba, situada na região sul do Brasil, e acessível no seguinte endereço eletrônico http://www.ifil.org/rcs.

 


As Redes de Colaboração Solidária e a Construção da Democracia
World Social Forum
Pád
ua, Maio de 2001
www.milenio.com.br/mance/democracia.htm


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