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Redes de economia solidária e sustentabilidade

Euclides André Mance
Janeiro 2002

FSM e a Revolução das Redes

Os fóruns sociais mundiais comprovam que está em processo de germinação uma revolução planetária: Uma Revolução das Redes Solidárias.

De fato, a colaboração solidária entre milhares de redes e organizações solidárias que vem se multiplicando nos campos da economia, política e cultura, com o objetivo de assegurar as liberdades públicas e pessoais, pode converter-se em uma alternativa pós-capitalista à globalização atual, fazendo surgir uma nova esfera de contrato social, o setor público não-estatal.

Os FSM nos mostram que os segmentos populares da sociedade civil planetária, compostos por segmentos oprimidos, explorados, expropriados, dominados e excluídos, bem como por todos/as aqueles/as que lhes são solidários, passaram a se organizar internacionalmente tanto na resistência às diversas formas de opressão quanto na proposição e realização de alternativas. Essas alternativas podem superar a lógica capitalista de concentração de riquezas e exclusão social, de destruição dos ecossistemas e de exploração dos seres humanos, afirmando a construção de novas relações sociais, econômicas, políticas e culturais. Organizadas em redes de colaboração solidária, elas têm o potencial de dar origem a uma nova civilização, multicultural, que deseja a liberdade de cada pessoa em sua valiosa diferença. A integração solidária dessas redes coloca no horizonte de nossas possibilidades concretas a realização planetária de uma nova revolução, capaz de subverter a lógica capitalista de concentração de riquezas e de exclusão social e diversas formas de dominação nos campos da política, da economia e da cultura.

No campo da economia solidária, desdobram-se múltiplos processos em paralelo, não havendo um ponto de partida, um comando centralizado, desde o qual tenham-se desencadeado todas as diversas práticas de comércio justo, sistemas de intercâmbio local, autogestão, finança ética, consumo solidário, etc. Igualmente não há um centro gerador que tenha feito emergir as diversas redes que vêm colaborando entre si desde os enfrentamentos de Seattle e recentemente nos Fóruns Sociais Mundiais. O avanço dessas práticas descentralizadas e distribuídas, exige uma integração cada vez complexa do conjunto dessas redes.

Economia Solidária - Diversidade de Práticas e Seu alcance Global.

A noção de economia solidária abarca diversas práticas e não há um pensamento único sobre o seu significado. Ela está associada a ações de consumo, comercialização, produção e serviços em que se defende, em graus variados, entre outros aspectos, a participação coletiva, autogestão, democracia, igualitarismo, cooperação e intercooperação, auto-sustentação, a promoção do desenvolvimento humano, responsabilidade social e a preservação do equilíbrio dos ecossistemas.

O grande avanço nos anos 90 das práticas de economia solidária deveu-se à colaboração em rede entre as organizações. E este é o caminho que devemos seguir para continuar crescendo, para consolidar uma alternativa hegemônica ao capitalismo. Entre estas práticas inclui-se: a Autogestão de Empresas pelos Trabalhadores, Fair Trade ou Comércio Équo e Solidário, Organizações de Marca e Credenciamento, Agricultura Ecológica, Consumo Crítico, Consumo Solidário, Sistemas Locais de Emprego e Comércio (LETS), Sistemas Locais de Troca (SEL), Sistemas Comunitários de Intercâmbio (SEC), Redes de Trocas, Economia de Comunhão, Sistemas de Micro-Crédito e de Crédito Recíproco, Bancos do Povo, Bancos Éticos, Grupos de Compras Solidárias, Movimentos de Boicote, Sistemas Locais de Moedas Sociais, Cooperativismo e Associativismo Popular, difusão de Softwares Livres, entre muitas outras práticas de economia solidária. Diversas redes nacionais e continentais se organizaram. O crescimento mundial dessas redes, indica a ampliação de novos campos de possibilidade para ações solidárias estrategicamente articuladas.

Em razão disso, no FSM de Porto Alegre em 2001, foi lançada a Rede Global de Socioeconomia Solidária, afirmando: "a) que nas iniciativas que formem parte da rede, não exista nenhum tipo de exploração; b) que se busque preservar o equilíbrio ecológico dos ecossistemas... c) que estejam dispostas a compartilhar significativas parcelas de seus excedentes para a expansão da Rede, favorecendo a viabilidade de novas iniciativas econômicas, reconstruindo de forma solidária e ecológica as cadeias produtivas, gerando postos de trabalho e distribuindo a renda, com o objetivo de garantir as condições econômicas para o exercício das liberdades públicas e individuais com base em uma ética solidária". Há poucos meses atrás, no II Encontro Internacional Sobre Globalização Solidária, em Quebec, foi organizado o Comitê de Enlaces, também visando contribuir na articulação das organizações de economia solidária em todo o mundo, estabelecendo como prioridades, entre outras, "o apoio à construção de redes de empresas e de redes de economia soldial e solidária; o mapemaneto de redes e o apoio às redes nacionais". No presente FSM está sendo lançada a Rede Social Mundial, com um portal-web em seis idiomas que facilitará a realização de parceiras entre empreendimentos solidários, transferências tecnológicas, comércio eletrônico e a remontagem solidária de cadeias produtivas, entre muitos outros serviços consolidando internacionalmente a expansão das redes de economias solidária.

Nesta estratégia de colaboração solidária em rede, a difusão do consumo e do trabalho solidários possibilita subverter os fluxos de valor do capitalismo e promover a distribuição de riquezas e o bem viver do conjunto das sociedades.

O consumo solidário significa selecionar os bens de consumo ou serviços que atendam nossas necessidades e desejos visando tanto realizar o nosso livre bem viver pessoal, quanto promover o bem viver de trabalhadores e trabalhadoras que elaboram aquele produto ou serviço, como também visando manter o equilíbrio dos ecossistemas.

De fato, quando consumimos um produto em cuja elaboração seres humanos foram explorados e o ecossistema prejudicado, nós próprios somos co-responsáveis pela exploração daquelas pessoas e pelo dano provocado ao equilíbrio ecológico, pois com nosso ato de compra contribuímos para que os responsáveis por essa opressão possam converter as mercadorias em capital a ser reinvestido do mesmo modo, reproduzindo as mesmas práticas injustas socialmente e danosas ecologicamente.

O ato de consumo, portanto, não é apenas econômico, mas é também ético e político. Trata-se de um exercício de poder pelo qual efetivamente podemos apoiar a exploração de seres humanos, a destruição progressiva do planeta, a concentração de riquezas e a exclusão social ou contrapor-nos a esse modo lesivo de produção, promovendo, pela prática do consumo solidário, a ampliação das liberdades públicas e privadas, a desconcentração da riqueza e o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável.

Ao selecionar e consumir produtos das redes solidárias nós contribuímos para que o processo produtivo solidário se fortaleça, pois os valores que gastamos em tal consumo irão realimentar a produção solidária em função do bem viver de todos que integram as redes de produtores e consumidores.

O potencial de consumo das organizações e populações solidárias em todo o mundo é gigantesco. Não basta criticar o capitalismo com belos discursos políticos, se continuamos realimentá-lo com a prática de nosso consumo. Sempre que possível, devemos praticar o consumo solidário e ecológico.

Por sua vez, o trabalho solidário significa, além da autogestão e corresponsabilidade social, que o excedente do processo produtivo seja reinvestido solidariamente no financiamento de outros empreendimentos produtivos. Isto permite: a) integrar às atividades de trabalho e consumo as pessoas que estão sendo excluídas pelo capital, b) ampliar a oferta de bens e serviços solidários, c) expandir as redes de produtores e consumidores, d) melhorar as condições de vida de todos que aderem à produção e ao consumo solidários.

Assim, com os excedentes gerados nos empreendimentos solidários organizam-se novos empreendimentos produtivos criando-se oportunidade de trabalho para desempregados, propiciando-lhes um rendimento estável que se converte, graças ao consumo solidário praticado por esses mesmos trabalhadores, em aumento de consumo final de produtos da própria rede, gerando-se assim mais excedentes a serem investidos.

Os novos empreendimentos visam produzir aquilo que ainda é adquirido no mercado capitalista, sejam bens e serviços para consumo final ou insumos, bens de produção, materiais de manutenção e outros itens demandados no processo produtivo. Esse expediente - acompanhado de uma crítica dos padrões capitalistas, ecologicamente insustentáveis de produção e consumo - visa corrigir os fluxos de valor, a fim de que o consumo final e o consumo produtivo não deságüem na acumulação privada fora das redes, mas possam nelas realimentar a produção e o consumo solidários, completando os segmentos das cadeias produtivas sobre os quais as redes ainda não tenham autonomia.

Nesta estratégia de rede, sob o Paradigma da Abundância, quanto mais se distribui a riqueza, mais a riqueza de todos aumenta, uma vez que tal distribuição se faz remunerando o trabalho que gera ainda mais riqueza a ser reinvestida e repartida. Desse modo, as populações que estavam anteriormente excluídas, ao serem incorporadas ao processo produtivo e ao receberem uma justa remuneração pelo seu trabalho, podem consumir produtos e serviços solidários que garantam o seu bem viver, realimentando o próprio processo produtivo sob parâmetros ecologicamente sustentáveis. Acordos coletivos no interior das redes permitem ajustar estruturas de custos e de preços sob parâmetros que viabilizem a sua auto-sustentação, como uma alternativa à lógica da escassez que regula os preços nos mercados.

Assim, busca-se integrar consumo, comercialização, produção e crédito em um sistema harmonioso e interdependente, coletivamente e democraticamente planejado e gerido, que serve ao objetivo comum de responder às necessidades da reprodução sustentável do bem viver das pessoas em todas as suas dimensões, inclusive, nos âmbitos da cultura, arte e lazer. É a conexão em rede do consumo e produção em laços de realimentação, com distribuição de renda, o que viabiliza economicamente a consistência e expansão dessa alternativa à globalização capitalista.

Alguns Desafios e Ações Imediatas

A globalização solidária da economia não é um projeto futuro, mas algo que já está em curso e que devemos promover das mais diversas formas, respeitando as diversidades de culturas, formas organizativas dos diversos atores, fortalecendo a participação democrática e o autogoverno dos setores solidários da sociedade civil nos diversos países. Trata-se de promover conexões permanentes entre as organizações, fluxos materiais (compras e vendas), fluxos de informação (divulgação de produtos e serviços, transferências de tecnologia, etc) e fluxos de valores, uma vez que redes econômicas se constróem principalmente por fluxos econômicos.

Para tanto é necessário avançar em formas organizativas que facilitem a colaboração entre as organizações diversas que queiram se entreapoiar, fortalecendo as mais distintas práticas de economia solidária integrando redes locais, regionais, nacionais e internacionais. Construindo redes de redes, redes de colaboração solidária ou a colaboração solidária entre redes, chegamos necessariamente a uma redes globais, atuando de maneira antagônica ao capitalismo, implantando e desenvolvendo um novo modo de produção, distribuição e consumo. Nesta trajetória alguns desafios devem ser enfrentados, entre os quais: a difusão do consumo solidário, a logística de distribuição e comercialização, a organização de fundos de desenvolvimento solidário, o mapeamento de empreendimentos, estabelecimento de conexões entre eles, a diversificação e qualificação dos produtos e serviços, a capacitação técnica de trabalhadores/as e empreendimentos, a formação política e cultural voltada para a autogestão e solidariedade, a estruturação e o fortalecimento de redes nacionais e internacionais a partir da organização local.

Por fim, sob o aspecto político, é preciso pressionar os Estados, e propor legislações e políticas públicas favoráveis à expansão e consolidação da economia solidária. É importante que os partidos de esquerda atualizem suas agendas incluindo em suas pautas uma reflexão sobre a economia solidária não apenas para a proposição de políticas públicas e elaboração de novas leis, como também para uma atualização das estratégias de transformação estrutural das relações de produção, considerando a emergência - a olhos vistos - de uma classe social em que os trabalhadores são donos dos meios de produção, e que somente cresce enquanto classe na medida em que solidariamente se entreapoiam enfrentando as corporações capitalistas e consolidando práticas solidárias de autogestão e intercooperação.

Maiores informações sobre estratégias de colaboração em rede podem ser obtidas em www.redesolidaria.com.br.

Ações Imediatas

No contexto mais imediato indicamos, entre muitas outras prioridades aqui não elencadas, algumas ações econômicas importantes que podem concentrar nossa colaboração:

  • A difusão do consumo solidário, ampliando o volume de vendas e produção solidária. O potencial de consumo das populações organizadas em sindicatos, movimentos sociais-populares e culturais, em empreendimentos solidários, ONGs e comunidades mobilizadas, etc, é gigantesco e necessita ser organizado. Não podemos continuar combatendo o capitalismo com nossos discursos e reproduzindo-o com nosso consumo! O consumo solidário é uma forma de luta anti-capitalista a ser praticado cotidianamente.

  • Organização de Fundos de Desenvolvimento Solidário, como instrumento para o reinvestimento coletivo dos excedentes alcançados pelos empreendimentos solidários. Esses reinvestimentos são fundamentais para criar-se novas empresas e remontar-se as cadeias produtivas.

  • Levantamento de Produtos, Serviços e Valores Movimentados, com a organização, em vários idiomas, de sistemas via web de localização de insumos, produtos e serviços, com chaves por país, estado, região, cidade, etc. O resultado de pesquisas nestes sistemas são listas com todos os empreendimentos que possam atender as demandas feitas nas condições apresentadas, acompanhados de telefone, endereço, correio eletrônico, homepage, etc, possibilitando a multiplicação de redes solidárias de comércio eletrônico. É fundamental que as organizações de economia solidária, particularmente as redes internacionais que detêm bancos de dados já organizados com essas informações, cadastrem seus empreendimentos e produtos, indicando também os insumos e outros itens que demandam para o funcionamento desses empreendimentos. Isso facilitará imensamente a localização dos empreendimentos, a divulgação dos produtos e serviços aos consumidores finais, a logística de distribuição e comercialização, e a remontagem de cadeias produtivas, possibilitando que empreendimentos solidários venham a se tornar fornecedores de outros empreendimentos solidários. Começaríamos a dar uma visibilidade orgânica e global à economia solidária como uma alternativa já existente de satisfação das necessidades e desejos humanos, capaz de promover um desenvolvimento sustentado com distribuição de renda, alavancando também o volume dos fluxos econômicos no interior das próprias redes.

  • Catálogos Mundiais de Economia Solidária e Remontagem de Cadeias Produtivas. Com esses dados poderão ser organizados diversos catálogos setoriais ou por países que poderão ser divulgados nos FSMs, apresentando tanto a imensa diversidade de produtos e serviços disponibilizados por empreendimentos de economia solidária em todo o mundo, quanto a diversidade e o volume de insumos adquiridos. Esses dados serão uma base importante para possíveis definições estratégicas de setores prioritários de investimento, transferências tecnológicas, etc, considerando a organização de cadeias produtivas que alcancem maior autonomia frente aos giros de reprodução do capital, corrigindo fluxos de valores que ao invés de desaguar no mercado capitalista continuariam circulando pelas cadeias produtivas solidárias, financiando a produção e o consumo solidários.

  • Ampliação do Número de Contratos entre Empreendimentos de Economia Solidária. Os FSMs além de serem importantes espaços de elaboração, difusão e articulação política e cultural, devem ser espaços para negociações econômicas solidárias. Será politicamente importante que nos próximos FSMs todas as organizações de economia solidária, que já têm contratos firmados entre si, possam - se for o caso - renová-los em uma sessão pública. Empreendimentos que não possam comparecer ao evento poderiam delegar este gesto simbólico de assinatura a outra organização de economia solidária de seu país ou região que esteja presente no Fórum. Nesses espaços seriam apresentados balanços de quantos milhões de dólares estão sendo comercializados a cada ano através de organizações de Fair Trade e por empresas de autogestão de caráter solidário, quantos milhões de dólares estão sendo movimentados pelas organizações de finança ética, quantos milhões de dólares circulam através dos LETS e Redes de Troca, mas sobretudo, quantos milhões de pessoas em todo o mundo estão produzindo, comercializando e consumindo em redes de economia solidária e como isso tem mudado a vida dessas pessoas para melhor, avançando na construção da cidadania e na sua realização humana. Será importante que cada país apresente suas estatísticas e exemplos marcantes, jornais, revistas e vídeos, que possam ser reproduzidos em outras mídias de massa, divulgando os impactos da expansão da economia solidária nos diversos países e regiões.

  • Essas ações permitem alavancar as práticas de economia solidária em todo o mundo e produzir documentos de referência sobre a expansão da economia solidária como uma alternativa concreta à globalização capitalista. Não como uma promessa futura, mas como uma nova forma de organizar a economia, centrada em novos valores, que já está presente em inúmeros lugares, mostrando-se economicamente viável, socialmente justa, ecologicamente sustentável e que pode ser potencializada pelos Fóruns Sociais Mundiais em todos os países e regiões.

  • Por fim, sob o aspecto cultural - e para considerar apenas um elemento neste campo -, todos/as nós podemos reelaborar nossas sensibilidades, imaginários e conceitos sobre o consumo e a produção, praticando e divulgando a socioeconomia solidária em todos os espaços sociais em que atuamos.


Redes de economia solidária e sustentabilidade
Exposição realizada no II Fórum Social Mundial
Porto Alegre, fevereiro de 2002
www.milenio.com.br/mance/fsm3.htm


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