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A Revolução das Redes como Estratégia de Libertação Popular

Euclides André Mance*

Nos dois textos em que o professor Paulo Lopes realiza críticas à hipótese de a colaboração solidária poder constituir-se em uma estratégia viável à efetivação de uma alternativa pós-capitalista, superadora da globalização atual, observa-se um recurso estilístico de contextualmente aduzir, sem afirmar explicitamente, adjetivos desqualificadores ao autor da proposta e a outros pesquisadores que contribuem nessa reflexão como forma de criticar-lhes as idéias. Nota-se como recorrente a alusão ao "grupo de iluminados", à "idéia genial de um iluminado", "os iluminados", etc. Outro estratagema do mesmo naipe é dizer "não estou falando" disso ou daquilo, evocando idéias sobre isso e aquilo; melhor seria se o autor explicitasse a quem se aplica as alusões que faz (1).

Para precisar os argumentos, cabe esclarecer alguns conceitos centrais na reflexão que o professor Lopes vem alimentando e alguns que lhes são adjacentes. No primeiro caso incluem-se estratégia, político-organizativo, excluídos-incluídos e alternativa histórica; no segundo caso, idéia genial de iluminado, retórica e pré-ocupação.

A utilização dos conceitos de estratégia e tática como mediações da práxis política advém de Lênin que inverteu a máxima do general e estrategista prussiano Karl Von Claussewitz que dizia ser a guerra a simples continuação da política por outros meios. Ao inverter a frase, considerando "a política como a simples continuação da guerra por outros meios", Lênin introduziu na análise política não apenas as categorias de estratégia (do grego, estratós - exército) e tática (ação específica de batalha), como militarizou a concepção de práxis política: os militantes devem ser organizados como em um exército, comandado por um Comitê Central, a partir de uma única estratégia de construção de um projeto econômico, político e cultural. Sem um exército previamente organizado não se ganha uma guerra. Sem uma ação político organizativa prévia às lutas, não se ganha a guerra política. O objetivo final da luta política é a conquista do poder de Estado, com o qual será possível revolucionar a estrutura econômica implantando e implementando o projeto político do proletariado. Dadas as diversidades de configuração do Estado e das lutas políticas, Gramsci diferenciará a guerra de movimento da guerra de posição, enfatizando o papel da condução política hegemônica da sociedade civil, organicamente articulada em torno de um projeto estratégico. Se Lênin enfatizava o papel do Partido Político como instância educadora das massas - mediação entre a filosofia política marxista e a ação do proletariado - Gramsci alargará essa tese, referindo-se às diversas organizações da sociedade civil como espaços de luta política e ação educativa, de produção de consensos e hegemonias. No cerne dessa compreensão de revolução - independentemente da adoção de métodos de luta democrática ou de luta armada - a conquista do poder político de Estado é condição-chave para uma ruptura histórica. Desta forma, todas as ações econômicas e culturais gestadas pelas classes exploradas, expropriadas e dominadas são consideradas inofensivas para combater o capitalismo se não operarem como táticas de uma estratégia política unitária que se volta para a conquista do poder do Estado, hegemonizada por uma vanguarda que orienta os rumos dessa transformação. Os membros de tal vanguarda são justamente aquelas pessoas capazes de dizer o que é ou não é estratégico, o que é ou não revolucionário, o que é meramente tático e até mesmo o que à ação tática não se presta; são dirigentes e lideranças que, atuando no comando de organizações da sociedade política e sociedade civil, avançam no trabalho político-organizativo a fim de acumular forças para transformar crises conjunturais em crises orgânicas, quando o que se põe em questão não são mais as conquistas imediatas para as classes em particular, mas a transformação estrutural da sociedade, visando abolir a sua própria divisão de classes.

Com efeito, para os que se habituaram a considerar a estratégia revolucionária sob um paradigma de centralização política e de ruptura histórica é muito difícil compreender que uma revolução antagônica ao capitalismo possa ocorrer sob uma estratégia de rede em que o econômico e o cultural não sejam subalternos ao político, e que a implantação e implementação progressiva dessa rede não sejam nem uma ruptura imediata do sistema capitalista em uma dada sociedade, nem uma mera reforma do capitalismo, mas a expansão de uma rede econômica, política e cultural anticapitalista que cresce absorvendo progressivamente as forças produtivas geradas também sob o capitalismo, constituindo-se, política e culturalmente, em um novo "bloco histórico". É muito difícil entender que agenciamentos econômicos, culturais e políticos possam engendrar complexos laços de realimentação que subvertam as dinâmicas de reprodução do capitalismo(2) e que o ciclo histórico dessa subversão é um processo mais amplo que não se confunde com a ocorrência, em algum momento seu, da conquista de uma parcela de poder político de Estado pela nova classe hegemônica (uma vez que outras parcelas desse poder estão difusas na sociedade civil em oposição à essa classe que se torna dirigente), mas que se trata da própria transformação do Estado e de sua política no processo de sua subversão, processo esse que leva essa classe a assumir o controle do governo do Estado que ela subverte, governo esse que é apenas uma parcela do poder político do Estado. A dificuldade de entendimento que isso suscita talvez resida em aceitar que as diversas organizações do setor popular da sociedade civil possam unificar ações em torno de eixos de luta (nos campos da produção econômica, reprodução social e da cultura) politicamente antagônicos ao capitalismo, mesmo assumindo, cada um desses atores coletivos, sua estratégia peculiar de organização e luta, independentemente de adotarem a estratégia de um "partido único"- como muitos defenderam até poucas décadas atrás - ou de alguma organização política centralizada que o substitua (3). Para muitos é difícil compreender como multiplicidades de ações moleculares que variam de escopo e escala - pense-se na diversidade de ações específicas dos movimentos sociais-populares e nos diversos níveis de suas abrangências que vão da ação local à ação internacional - possam articular-se em redes desenvolvendo ações conjuntas sem que haja um projeto político único e centralizado que os articule, mas unificados em torno de objetivos comuns consubstanciados nos eixos de luta. Muitos intelectuais resistem em aceitar o potencial caráter estratégico - para a construção de uma sociedade democrática e pós-capitalista - das lutas de índios, negros e mulheres, de sem-tetos e portadores de deficiências, de cooperativas de produção e consumo e de movimentos culturais. Aplicando a todos eles certos esquemas teóricos que não resultam da análise criteriosa da práxis desses movimentos em seus diversos contextos, afirmam que, por eles não enfrentarem diretamente a contradição entre capital e trabalho, são apenas espaços táticos para a ação político-organizativa. Não percebem que essas lutas, se articuladas em torno de eixos estratégicos, podem avançar não apenas na busca de conquistas imediatas, mas de transformações estruturais do capitalismo.

Ora, qualquer atividade de organização social pode ser abstratamente considerada em suas dimensões política, econômica e cultural. Privilegiar o aspecto político frente ao econômico e ao cultural, considerando qualquer ação nas duas últimas esferas como exercícios táticos subalternizados à primeira é um equívoco que não apenas decorre de uma compreensão inadequada dos exercícios sociais de poder que permeiam todas as esferas da sociedade, como também das seqüelas de uma visão clássica e equivocada do próprio exercício político. Compreender a ação política como pré-ocupação é uma abstração que remonta à visão grega em que o suporte econômico que sustenta o exercício político está assegurado pelo trabalho escravo e em que uma minoria assume a condição de cidadãos por estirpe e não como resultado de um processo educativo. Falta apenas considerar o trabalho como um negócio (como negação do ócio) para chegarmos a uma certa noção burguesa de trabalho usualmente associável a essa noção aristocrática de política. É interessante notar que o professor Lopes após considerar a intencionalidade e mediaticidade da colaboração solidária pergunta-se se é possível articular-se elementos teóricos em torno dessa colaboração e arremate que se não o for estaremos no campo da retórica. Com efeito, parece-nos que o emprego da pré-ocupação como o realizado pelo autor é um exemplo claro da retórica que critica: retire-se o ar que o professor Lopes respira e sua pré-ocupação primeira será simplesmente viver. Retire-se-lhe o alimento e sua pré-ocupação será comer; retire-se-lhe a moradia e sua pré-ocupação será abrigar-se das intempéries. É sutil debater sobre a ocupação anterior à ocupação - expressão logicamente inconsistente, pois a ocupação política inclui-se na extensão de toda a ocupação - quando não estamos mais preocupados com o que comer, onde dormir ou como tratar da doença de nossos filhos.

Ainda sobre a intencionalidade e mediaticidade peculiares à colaboração solidária, convém relembrar que nos textos anteriores deixamos claro que as inúmeras iniciativas solidárias existentes que resenhamos não se articulam sob a estratégia complexa de rede, não se configurando, portanto, como uma alternativa ao capitalismo. Por outro lado destacamos a hipótese de que se essas ações - se forem articuladas estrategicamente sob um modelo de rede, visando implementar os princípios de autopoiese, integralidade, extensividade, intensividade, fluxos solidários de valor, de matérias e de informação, etc - podem vir a engendrar uma alternativa ao capitalismo e portanto a superação desse sistema como modo de produção dominante. Por fim, afirmar que a teoria deve responder à questão de ser ou não possível articular elementos teóricos em torno da colaboração solidária, como faz o professor Lopes, é um disparate. Qualquer ação humana é passível de ser objeto de elaboração conceitual e, portanto, de ser teorizada. A afirmação é tão obtusa que não deixa margem a uma resposta negativa. Isto é, afirmar que não seja possível articular elementos teóricos em torno da colaboração solidária é o mesmo que dizer que os seres humanos são incapazes de pensar conceitualmente a própria solidariedade que praticam.

Convém destacar também que o modo como o professor Lopes emprega o expressão iluminado - citada várias vezes em seus textos - aludindo contextualmente os elaboradores do estudo em questão é também uma figura retórica que busca desqualificar essa investigação, afastando-se do sentido conceitual de expressões como iluminismo, ilustração, esclarecimento ou aufklärung - talvez dando a entender que nos julguemos inspirados, visionários ou videntes no sentido esotérico que a expressão possa ter nos contextos em que é aplicada. Revela também uma fragilidade quanto a sua compreensão de elaboração teórica. De fato, não há nenhum conhecimento que seja fruto da elaboração de um único ser humano, uma vez que a linguagem e as semioses que atravessam qualquer reflexão são produtos coletivos e constantemente reciclados. Mas não se pretenderá mais esclarecido que o iluminado aquele que o critica ? Considerando ainda que a expressão iluminado, por ele empregada, é precedida da preposição de, ensejando compreender que a possível estratégia de colaboração solidária apresentada teria origem em um grupo de iluminados para os excluídos, vale considerar o método de elaboração teórica desta reflexão, a fim de dirimir uma pretensa oposição entre "alternativa histórica para os excluídos" ou "alternativa histórica dos excluídos".

O fato de a colaboração solidária ser sistematizada criticamente por intelectuais orgânicos não subverte o fato de que a práxis social global tem precedência sobre a elaboração teórica do investigador. Algumas vertentes da filosofia da libertação, desenvolvidas a partir dos anos 70, ao questionarem-se acerca do sujeito histórico da revolução e da elaboração teórica inerente a esta, argumentaram que as classes populares eram o sujeito de ambos e que cabia aos intelectuais, solidários à práxis de libertação popular, mergulhar no universo simbólico que medeia essa práxis, considerar suas diversas formas e escopos, investigar os elementos agenciadores da ação popular, suas contradições, fragilidades e fortalezas históricas, perspectivas de avanço, etc, enfim sistematizar criticamente aquela mesma práxis e retribuir dialogicamente essa reflexão àqueles atores sociais para que, democraticamente, no exercício do diálogo e da crítica, os movimentos e organizações populares pudessem aprimorar a práxis que efetivam (4). As categorias a serem aplicadas nessa análise crítica, por sua vez, deveriam ser produzidas a partir da construção conceitual sobre as diversas realidades particulares em questão, considerando as diversas formas de dominação, de resistência e de luta por libertação. Tratava-se de negar - sempre que necessário - os esquemas teóricos a partir da prática e construir, a partir do exercício mesmo da práxis de libertação e do diálogo com seus sujeitos históricos, novos conceitos e novas categorias analíticas, que resultassem em novos marcos teóricos que melhor permitissem compreender a própria realidade em curso. Com esta abertura à alteridade histórica como fonte inovadora - da realidade e da teoria - não apenas podemos falar de uma ética emergente das lutas populares, como o faz Arturo Roig (5), mas de uma colaboração solidária cuja realização econômica, política e cultural pode dar origem a uma sociedade de colaboração solidária, subvertendo o capitalismo. Podemos não apenas criticar o populismo que reelabora as demandas populares de modo a atender as demandas da classe dominante, mas também de um certo tipo de esquerdismo que reelabora demandas populares como elementos táticos para atender aos interesses de projetos estratégicos pretensamente revolucionários.

Sob a perspectiva que adotamos, cabe partir da práxis social, detectar as contradições entre os diversos atores e, a partir delas, considerar as classes sociais e seus interesses antagônicos, desvendando as mediações recorrentes nos processos de exploração, expropriação e dominação, bem como, as mediações de resistência e de lutas por libertação, isto é, pela expansão dos exercícios de liberdade pública e privada, que implicam no compartilhamento de mediações materiais, políticas, educativas, informativas e éticas para que ambas (as liberdades pública e privada) se realizem de modo democrático. Como toda prática (ação efetivadora) supõe alguma teoria, todas as formas de resistência e de luta por libertação estão permeadas por teorias cujos alcance e consistência variam em função do grau de sua reflexão e reelaboração por parte dos atores que as praticam. É possível, entretanto, uma reflexão criteriosa e sistemática sobre esses elementos teóricos, suas dificuldades gnosiológicas e estratégicas, e sua capacidade de desvendar mecanismos de dominação e de apresentar alternativas; é possível propor dialogicamente formas de ação que ampliem o domínio sobre as mediações materiais, políticas, informativas, educativas e éticas que mediatizem a liberdade dos sujeitos populares explorados, expropriados, dominados e excluídos. A teoria, portanto, surge da práxis e a ela retorna buscando qualificá-la para que possa ser mais eficaz como elemento de libertação. A estratégia da colaboração solidária em redes autopoiéticas surge em um processo investigativo que adota esse método, aqui sumariamente apresentado. Partindo das práticas de solidariedade, difusas por todas as classes populares, buscando compreendê-las conceitualmente com o arcabouço das teorias já elaboradas que conhecemos (e sempre tendo consciência da parcialidade desse conhecimento, pois a onisciência é um atributo de caráter mitológico) chegamos a fenômenos que melhor são descritos sob o modelo de redes e à necessidade de elaborar novas categorias que aprimorassem o próprio referencial teórico para melhor compreender a práxis que se configura como origem e fim da investigação. A organização de redes de colaboração solidária, como a entendemos, é uma estratégia que tem sua origem (expresso pelo genitivo de) na prática dos excluídos que efetuam ações econômicas solidárias e que para eles se volta (expresso no dativo para), como reflexão criteriosa de sua própria práxis, tendo em vista aprimorá-la, potencializá-la como práxis de libertação popular (6). Aliás, a preposição de tem, pelo menos, treze empregos habituais. Quando particularmente colocada entre dois substantivos ela pode significar, entre outros aspectos: posse, pertença, origem, finalidade (equivalendo a preposição para), causa e participação. Trata-se portanto de uma alternativa que parte de excluídos, tendo neles sua origem, sua causa e que se volta para todos os seres humanos, particularmente a eles próprios.

A questão dos excluídos dá margem a outro jogo de palavras do professor Lopes. No primeiro texto esclarecemos que embora as redes de colaboração solidária possam vir a surgir em meio ao capitalismo, elas são radicalmente antagônicas a esse sistema. No segundo texto afirmamos que as práticas de colaboração solidária que então resenhamos não se articulam estrategicamente e que seus sujeitos prestam pouca atenção aos fluxos de valor inerentes no processo de produção e consumo, fazendo com que as mesmas realimentem estruturas capitalistas. Enfatizávamos no próprio título do texto a necessidade de compreender as práticas existentes de economia solidária e, além disso, transformar e conectar tais atividades de produção e consumo solidários sob uma perspectiva estratégica que as potencialize, de forma a expandirem-se em relações de produção e consumo antagônicas ao capitalismo. Na medida em que as redes se expandam, teremos - segundo a hipótese em estudo - a expansão de uma economia pós-capitalista. Ora, se o capitalismo gera excluídos (em razão de o desenvolvimento científico, ao ser aplicado à produção, dar origem ao que Marx chama de disposable time), por outra parte incorporar tais excluídos nas redes de colaboração solidária, sob a estratégia que apresentamos como hipótese no primeiro artigo, não significa incorporá-los ao capitalismo, como o texto do professor Lopes dá a entender ao falar da colaboração solidária como estratégia de inclusão na ordem existente. Com efeito, as práticas de economia solidária existentes realimentam, mediatamente, o movimento de acúmulo capitalista uma vez que consomem insumos, outros materiais e serviços do mercado, ao passo que poderiam buscar a satisfação dessas demandas consumindo produtos e serviços de outras unidades produtivas solidárias, operando laços de realimentação produtiva em um movimento de rede, avançando na geração de complexas cadeias produtivas em regime de colaboração solidária. Isso corrigiria os fluxos de valor, de modo que os mesmos realimentassem o movimento de produção e consumo das redes, ao invés de desaguar no mercado capitalista. Ao que parece o professor Lopes critica a estratégia que apresentamos como se as práticas atuais de economia solidária a realizassem; e como as práticas atuais incorporam novamente o trabalho dos excluídos no movimento de acumulação capitalista, a estratégia das redes apresentada no primeiro artigo seria apenas uma estratégia de inclusão dos excluídos no capitalismo. Ora, se o professor Lopes considera que a estratégia apresentada no texto não compõe elementos que permitam a geração de uma economia antagônica ao capitalismo, deve argumentar a falha da estratégia proposta e não apenas dizer que é difícil aceitá-la ou mencionar que as práticas atuais de economia solidária não subvertem o capitalismo, pretendendo com isso contraditar aquela estratégia que, entretanto, não é efetivada nessas práticas.

Por fim, vale considerar que, talvez, a contraface do discurso que afirmava "quanto pior a situação do povo, melhor para a revolução" possa ser a que afirma: "melhorar a situação do povo em redes autopoiéticas de colaboração solidária é reincluí-los na reprodução do capitalismo." Ambas as teses são equivocadas. Fome, pobreza e miséria, morte de pessoas que lutam por terra para plantar e morar, iniciativas de produção comunitária e de consumo solidário (bem como, lutas pelo respeito à dignidade de mulheres, negros, índios, homossexuais e tantos outros grupos que lutam pela expansão das liberdades públicas e privadas visando ampliar e aprimorar as mediações materiais, políticas, educativas e informativas que as suportam) não podem ser reduzidas a meras táticas de luta política. De fato, as práxis de libertação, voltadas aos objetivos dos setores populares da sociedade civil, podem molecularmente realimentar-se em revolucionários movimentos de rede. Sob a matriz teórica que adotamos, não é um acordo simbólico em uma comunidade de comunicação, seja em consensos genéricos ou substantivos, o que pode decidir pela validade ou não desta afirmação; não são acordos simbólicos nas comunidades científicas dos experts o que confere legitimidade a uma teoria qualquer sobre fenômenos objetivos, mas a capacidade dessa teoria em expressar coerentemente relações entre elementos indiciais que ela conceitualiza - significando o termo índice uma categoria semiótica que expressa uma classe de signos que fazem parte dos objetos dinâmicos (7). É esse o critério básico a partir do qual possíveis acordos podem se estabelecer. Em última instância, no que se refere à conceitualização de realidades objetivas, é a práxis o critério de validade das teorias. É na práxis que os limites de transformação histórica se ampliam ou se restringem pela própria ação histórica dos sujeitos sociais. Não existem, portanto, os exatos limites que imagina existir o professor Paulo Lopes, pois os campos de possibilidade são dinâmicos e os seres humanos podem criativamente fazer surgir novas relações econômicas, políticas e culturais. Com efeito, é através da reflexão rigorosa da práxis que podemos perceber, parcialmente, os limites das teorias adotadas e aprimorá-las em suas debilidades e fraquezas. Em contrapartida, o aprimoramento dessas teorias permite colaborar na qualificação da práxis, quando a ela, orgânica e dialogicamente, essa reflexão se articula. Nenhuma teoria compreende totalmente o real, pois todos os signos representam parcialmente os objetos dinâmicos. Os exatos limites que o professor Lopes persegue, portanto, somente podem ser formulados como uma falsificação "teórica" da realidade, como presunção suportada em esquemas teóricos que levam o investigador a afastar-se da compreensão conceitual da realidade quando dela imagina se aproximar.

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Notas

* Foi professor de Lógica e Filosofia da Ciência na UFPR; participa atualmente do Núcleo de Estudos Latino-Americanos (ALEP) do Setor de Ciências Humanas da mesma Universidade; leciona Filosofia da Linguagem e Filosofia Latino-Americana, respectivamente, no Studium São Basílio Magno e Instituto Vicentino de Filosofia, em Curitiba; presidiu o Instituto de Filosofia da Libertação (IFiL) no período de 1995 a 1998. Artigos e conferências do autor, citados nesse texto, estão disponíveis em www.milenio.com.br/mance.

1. Acerca desses estratagemas e outros recursos afins veja-se Arthur SCHOPENHAUER. Como vencer um debate sem ter razão. TopBooks, 1997.

2. Sobre agenciamentos subversivos veja-se Félix GUATTARI. Revolução Molecular. Brasiliense, 1987 e "Subjetivação Subversiva" in Teoria e Debate, Ano N.12, p. 60-64. Sobre laços de realimentação em movimentos autopoiéticos de rede, veja-se Fritjof CAPRA. A Teia da Vida. São Paulo, Cultrix, 1997. Sobre nossa crítica a concepções equivocadas de holismo veja-se "A complexidade do Real e a Elaboração dos Conceitos - Uma crítica aos Holismos", que é o quinto item de nosso artigo "O Filosofar como Prática de Cidadania." http://www.milenio.com.br/mance/filosofar.htm.

3. Veja-se nosso artigo "Eixo de Lutas e a Central de Movimentos Populares". Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85, nov. 1991, p. 645-671.

4. Veja-se Horácio CERUTTI GULDBERG. Filosofia de la Liberacion Latinoamericana, México DF, Fondo de Cultura Economica, 1983. Veja-se também nosso artigo "Práxis de Libertação e Subjetividade". Revista de Filosofia, Ano 6, N. 7, p. 81-109, jun. 1993. PUC-PR, Curitiba. Sobre a produção do conhecimento a partir da problematização da práxis e no movimento dialógico com atores nela envolvidos, veja-se Paulo FREIRE. Pedagogia da Esperança, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1992

5. Veja-se Arturo ROIG. "La ‘dignidad humana’ y la ‘moral de la emergencia’ en América Latina" in: Antonio SIDEKUM (org) Ética do discurso e filosofia da libertação - modelos complementares, Editora UNISINOS, São Leopoldo, 1994.

6. Genitivo e dativo são casos de declinação em certas línguas como latim, grego e alemão. Aqui apenas destacamos que essas funções, nos contextos a que nos referimos, são cumpridas, respectivamente, pelas preposições de e para. Veja-se Napoleão Mendes de ALMEIDA. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. Ed. Saraiva, 1999, p. 97, 376, 378. Em nosso contexto, para (do latim, per + ad ) constitui o sentido de direção, destino ou fim.

7. Veja-se Lucia SANTAELLA. A Teoria Geral dos Signos - Semiose e Autogeração. São Paulo, Ed. Ática, 1995 e Charles Sanders PEIRCE. Semiótica e Filosofia , São Paulo, Editora Cultrix, 1972.