PRÁXIS DE LIBERTAÇÃO E SUBJETIVIDADE *
Introdução A filosofia, desde a tradição moderna, trouxe contribuições importantes à qualificação da práxis de libertação, em especial quanto à crítica ética e política. É urgente, contudo, nos perguntarmos pelo atual significado estratégico da categoria práxis. A atual definição que, em geral, se confere à práxis possibilita a compreensão satisfatória de fenômenos contemporâneos de dominação e libertação tão complexos que se desdobram em meio a uma chamada "terceira revolução industrial" na qual a robótica, a biotecnologia e sobretudo a comunicação de massas, a informatização e a telemática alteram significativamente as relações de dominação e exploração dos povos de todo o mundo sob os códigos de um Capitalismo Mundial Integrado ? As teorias que operam com o conceito moderno de práxis -- que surgiu no século passado em meio ao processo de industrialização e que sofreu algumas reformulações posteriores -- nos possibilitam compreender as estratégias de dominação e avaliar satisfatoriamente as estratégias de libertação em meio a sociedades que se configuram cada vez mais como sociedades "pós- industriais" ou "pós-modernas", como as denominam alguns? Serão necessárias reformulações do conceito de práxis bem como a construção de novas estratégias que o componham com outras categorias elaboradas ou reelaboradas contemporaneamente para que compreendamos adequadamente os processos de dominação/libertação no Brasil atual e para que se torne possível aos movimentos sociais uma ação transformadora que efetive uma sociedade mais justa e democrática, suprimindo a produção da subjetividade que se realiza segundo os códigos opressivos dominantes ? Sob a inquietação dessas questões organizaremos nossa reflexão em quatro momentos. Primeiramente analisaremos a emergência da compreensão moderna da práxis, tratando de seu núcleo central em Hegel e Marx, destacando a sua relação com a necessidade, o desejo e o trabalho. Em seguida, retomaremos alguns aspectos da sistematização feita por Adolfo Sánchez Vázquez que se tornou um instrumento de divulgação da filosofia da práxis na América Latina. Em terceiro lugar trataremos de certos alargamentos contemporâneos da concepção de práxis, resgatando alguns aportes de Emmanuel Lévinas, Enrique Dussel e Félix Guattari, que nos possibilitem problematizar o conceito de práxis face aos fenômenos contemporâneos de modelização da subjetividade e singularização. Por fim trataremos dos movimentos populares atuais e de sua práxis libertadora. 1. A Emergência da Compreensão Moderna da Práxis A modernidade dos séculos XVIII e XIX tinha entre seus objetivos fundamentais o esclarecimento e a emancipação dos homens. É um momento histórico marcado pela valorização da razão e da autonomia do indivíduo em contraposição à fé e à submissão a superiores hierárquicos (fossem membros do clero ou governantes), submissão essa que fora uma das marcas características do período medieval. Tratava-se de vencer as "trevas da ignorância e do preconceito", armando-se com a "luz da razão". A filosofia da práxis surge em um contexto em que o mundo das essências objetivas e transcendentes já fora metodicamente posto em dúvida, em que o sujeito ganhara destaque desde a viragem antropológica do "Penso, logo Sou" que se desdobra na cisão entre res extensa e res cogitans, sendo esta última a dimensão da subjetividade que se torna o fundamento para a afirmação da verdade. Na vertente moderna em que se construirá o conceito de práxis, a posição da subjetividade passará a preceder a posição do objeto, enquanto objeto de conhecimento. Afirmava-se um papel ativo da subjetividade na produção do conhecimento. Neste período a dialética moderna se constitui como um movimento de síntese do conhecimento até tornar-se um movimento histórico de auto-produção humana. Neste processo ocorrem três momentos importantes na afirmação diferenciada da subjetividade. No primeiro deles trata-se da afirmação de um Eu Transcendental (Kant), sujeito do conhecimento que compreende os fenômenos construídos pela própria subjetividade em sua interação com a realidade objetiva; sujeito abstrato à margem da história. No segundo momento têm-se a superação do Eu Transcendental em um Espírito Absoluto (Hegel), sujeito da história que em seu movimento dialético efetiva a realidade objetiva e que ao apropriar-se dela enquanto idéia, supera a alienação, conhecendo- se a si mesmo. E por fim, a negação o Espírito Absoluto em um horizonte antropológico da luta de classes (Marx), afirmando-se que são os homens os sujeitos da história. A realidade objetiva é produzida por homens que, no capitalismo, estão necessariamente divididos em classes, divisão essa que mantém a alienação. Assim, a superação da alienação exige não apenas a compreensão do movimento dialético da produção da realidade e, conseqüentemente, a compreensão de cada sujeito como membro de uma classe, mas fundamentalmente a superação da divisão de classes. Embora nesses três momentos o ideal moderno que se pretende realizar é o de esclarecimento e emancipação dos homens, há diferenças fundamentais entre eles. Para Kant, o esclarecimento, que no campo da convivência exige ao homem seguir os imperativos categóricos da razão, levaria à superação da minoridade e a uma vivência ética emancipada. Para Hegel, o movimento dialético da História, do Espírito Absoluto, como práxis, superando a alienação levaria à afirmação universal de uma eticidade, voltada ao bem comum, vivenciada pelo citoyen em um Estado que é a plena efetivação da Idéia de Liberdade, superando a moralidade burguesa da sociedade civil, onde os interesses privados do bourgeois se desdobram no plano da sua particularidade. Para Marx, o movimento dialético da história como práxis das classes sociais, a partir da tomada de consciência de si mesma da classe trabalhadora (esclarecimento) e de sua luta pela sua própria libertação, levaria à destruição da sociedade de classes, do Estado burguês e da propriedade privada (emancipação), garantindo uma superior efetivação da universalidade do humano, que pode agora apropriar-se de si mesmo no "Reino da Liberdade" que se inicia na sociedade comunista e que se desdobra para além de sua configuração. Assim, a práxis, a partir de Hegel e Marx, é uma categoria integradora da metodologia dialética, da ontologia dialética e da lógica dialética que se tornam indissociáveis, seja no idealismo hegeliano ou no materialismo marxiano. A práxis torna-se um movimento da subjetividade que, ao se exteriorizar, efetiva-se como objeto tornando-se realidade (wirklichkeit) e que, mediatamente, ao voltar-se teoricamente sobre si mesma -- enquanto realidade exteriorizada como objeto -- se reapropria como idéia, negada em uma totalidade que lhe impõe novas determinações essenciais. A práxis torna-se um movimento que possibilita a compreensão da realidade que é efetivamente contraditória, ao sintetizar no conceito o ser e suas determinações históricas essenciais em um processo de totalização. É justamente isso o que possibilitará a crítica teórica das ideologias que se constroem a partir de representações (Vorstellung) e não dos conceitos (begriff). A práxis torna-se também a ação prática emancipadora do homem, que lhe abre inúmeras possibilidades de realização histórica. A diferença fundamental entre Hegel e Marx é que para o primeiro, o movimento dialético da história é um devir que tem sua razão de ser no auto-conhecimento do Espírito, ao passo que para o segundo, o movimento dialético da história possui uma base materialista, em que se destacam as necessidades reais dos homens, desde a qual a consciência se desdobra. 1.1. Práxis e Subjetividade em Hegel -- o trabalho e o desejo Em Hegel a práxis pode ser compreendida tanto como a atividade absoluta e universal do Espírito, como também, a atividade do Espírito sob a forma específica de atividade humana no trabalho. Na história da filosofia, Hegel foi o primeiro pensador a tratar filosoficamente a fundo a ação humana transformadora e produtora de objetos materiais. Em Fragmento de Sistema(1800) e Sistema da Moralidade (1802), o trabalho é compreendido como a destruição utilitária de um objeto, transformando-o em outro objeto, a partir de uma idealização prévia, isto é, de uma finalidade. O trabalho estabelece uma relação peculiar entre homens e objetos. Nesta relação se unem o objetivo e o subjetivo, o geral e o particular, por intermédio das ferramentas. A ferramenta, subjetivamente, é preparada e utilizada pelo trabalhador, mas objetivamente está voltada ao objeto do trabalho que a determina. Na ferramenta a subjetividade do trabalho se generaliza como mediação de um modo universalizável de trabalho. Em Filosofia da Realidade (1º curso 1803-1804; 2º curso 1805-1806) o trabalho é compreendido como mediação da auto- produção do homem, bem como analisado em relação ao desejo e em relação ao objeto do trabalho. No primeiro curso, ao tratar da dialética da consciência, Hegel distingue a sua dinâmica teórica, que envolve a memória e a linguagem como primeiras formas de realização da síntese sujeito e objeto, da sua dinâmica prática, onde o desejo, através do trabalho, promove a síntese sujeito e objeto. O desejo animal é dirigido ao objeto para destrui-lo imediatamente. Neste caso imediatamente nega-se o objeto que é destruído, como também imediatamente nega-se o desejo que fica satisfeito. O desejo humano, por outro lado, está aberto a mediações, sendo a principal delas o trabalho, que transforma o objeto e, mediatamente, o desejo. O trabalho é, assim, a mediação entre a destruição do objeto e a satisfação do desejo, que tanto transforma o objeto tornando-o mais aprazível como também transforma o desejo, humanizando-o, refinando-o. O caráter social do trabalho advém desta relação intrínseca que mantém com a necessidade, com o desejo. O trabalho satisfaz mediatamente uma necessidade; com isso, a satisfação imediata dá lugar a uma satisfação ideal e possível, adquirindo o trabalho um caráter universal e abstrato que pode satisfazer as necessidades de todos. Por outro lado, o homem se humaniza ao mediar o trabalho entre desejo e satisfação. Para satisfazer mediatamente o desejo através do trabalho que transforma a natureza, o homem cria instrumentos, que vão sendo cada vez mais qualificados. Com o surgimento das máquinas e a divisão do trabalho, analisa Hegel, passa a ocorrer uma interdependência cada vez maior na satisfação das necessidades humanas, e o trabalho se torna mais abstrato e universal, uma vez que os indivíduos trabalham para satisfazer as necessidades de muitos outros e, por fim, surge um conjunto de conseqüências negativas da humanização pelo trabalho, grande parte delas em razão da moralidade burguesa. Na Fenomenologia do Espírito (1807), o trabalho é manifestação do desenvolvimento do Espírito que se conhece a si mesmo enquanto identidade do sujeito e objeto no processo dinâmico do devir histórico. Partindo do saber imediato, individual, passando por inúmeras mediações, o movimento da consciência chega ao Saber Absoluto, compreendendo que tudo é manifestação do Espírito, chegando à auto-consciência. Entretanto, afirma Hegel que "a auto-consciência somente atinge sua satisfação em outra auto-consciência" (1). A singularidade da auto-consciência não se satisfaz com a realização do desejo de uma coisa. É necessário que a consciência seja reconhecida por outras consciências, que ela se converta em objeto de outro desejo. Pois como afirma Vázquez, comentando esta passagem de Hegel, " um homem somente satisfaz seu desejo humano quando outro homem lhe reconhece um valor humano. (...) Desejar, pois, é desejar ser reconhecido." (2). Como a essência humana não se realiza em um indivíduo isolado, mas na coletividade, o indivíduo deseja o reconhecimento de outra consciência que, então, se afirma coletivamente. Como cada consciência deseja tal reconhecimento, surge o conflito e a luta de consciências. Assim, o desejo de reconhecimento leva a uma luta mortal. " O indivíduo que não arriscou a vida pode, sem dúvida, ser reconhecido como pessoa -- afirma Hegel --, mas não alcançou a verdade deste reconhecimento como reconhecimento de uma auto-consciência independente. E, do mesmo modo, cada qual tem que tender à morte do outro, quando expõe sua vida, pois o outro não vale para ele mais do que vale ele próprio..." (3). Entretanto, se a luta suprimisse todos os que não aceitam o reconhecimento do Eu, a morte privaria de sentido esta vitória, pois não haveria ninguém que o reconhecesse. Assegurar-se-á o reconhecimento do Eu, deixando com vida o outro vencido, ao qual o Eu se impõe como Senhor, mantendo o outro na posição de escravo. Esta luta apresentada por Hegel de forma abstrata corresponde ao movimento do Espírito em busca do seu auto-conhecimento pleno. Arriscando a vida natural, o senhor alcança o seu reconhecimento espiritual, e submete materialmente o escravo. Temendo a morte o escravo renuncia ser reconhecido e submete-se a trabalhar para o senhor. Entretanto, pelo trabalho, a subjetividade do escravo torna-se produto objetivo, podendo reconhecer-se nos produtos que cria ao transformar a matéria, tomando consciência de si enquanto humano. O escravo tem consciência de sua liberdade no processo de trabalho e sua superioridade ao senhor que fica à margem do processo produtivo. Tem-se, portanto, que o desejo de reconhecimento é fundamento da luta do Senhor e do Escravo, figura que simboliza as contradições sociais no campo da comunidade econômica. No processo histórico, a subjetividade, em Hegel, é apropriada pela razão mediante sua ex-posição objetiva, através da práxis -- compreendida como atividade efetivadora. A dimensão desejante humana é superada pela mediação do trabalho e pelo reconhecimento do mesmo por outra auto-consciência. O outro é subsumido na totalidade como mediação para o reconhecimento do Eu Absoluto. 1.2. Práxis e Subjetividade em Marx -- O trabalho, a necessidade e o desejo. Para Marx o papel da filosofia não é apenas compreender racionalmente o mundo -- pois "a alienação da vida humana permanece e continua sendo tanto maior, quanto mais consciência dela como tal se tem" (4) -- mas contribuir para a sua transformação efetiva. Para transformar a sociedade é necessário uma crítica radical (filosofia da práxis) e a mediação histórica do proletariado que promove a revolução respondendo a necessidades radicais humanas, conquistando a emancipação dos homens, "... a apropriação sensível pelo homem e para o homem da essência e da vida humanas, do homem objetivo, das obras humanas..." (5). Necessita-se, pois, da crítica teórica e da prática. Se a teoria por si só é inoperante, o proletariado, por outro lado, não poderia se emancipar sem a filosofia. " Assim, como a filosofia encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na filosofia suas armas espirituais" (6). A práxis é compreendida como atividade humana, real, efetiva e transformadora. A práxis originária é o trabalho humano, a produção material, que esclarece a práxis social e a história como auto-produção do homem por si mesmo. O trabalho humano é a objetivação da subjetividade, fonte subjetiva de todo valor e de toda riqueza; e na medida em que o indivíduo não reconhece em cada objeto a subjetividade humana, está alienado. É pela práxis que o homem se humaniza. Para humanizar-se o homem não pode permanecer em sua subjetividade, necessita objetivar-se, o que só pode ocorrer através da práxis. O trabalho humano é a práxis fundamental. Através dela o homem se faz presente como ser social, humaniza a natureza e humaniza-se enquanto se eleva como ser consciente sobre sua própria natureza e cultura. A produção tem assim, por um lado, um conteúdo econômico vinculado à produção de objetos úteis que satisfaçam necessidades humanas, e por outro, um conteúdo filosófico vinculado à auto-produção ou auto-criação do homem. A produção existe, basicamente, em função das necessidades. O homem é um ser de necessidades e produz para satisfazê-las. Se o animal só produz imediatamente sob o império da necessidade, o homem o faz mediatamente. Libertando-se de suas necessidades, elas perdem seu caráter instintivo, natural e são satisfeitas e recriadas de modo humano. O homem não é apenas um ser de necessidades naturais, mas inventa e cria suas próprias necessidades, superando seu ser natural, auto-produzindo-se. Em um capítulo dos Manuscritos Econômico-filosóficos (1844), Marx trata do significado da necessidade no capitalismo . Afirma Marx que no sistema capitalista especula-se como criar no outro novas necessidades, para levá-lo a um novo sacrifício em vista de satisfazê-las, para levá-lo a uma nova dependência, para desviá-lo para uma nova forma de gozo; enfim, para levá-lo à ruína econômica. Busca-se no capitalismo criar uma força essencial estranha sobre o outro, para satisfazer o carecimento egoísta do mesmo. Cria-se, dessa forma, necessidades de apropriação de objetos. "A necessidade do dinheiro [ para apropriar-se dos objetos ] -- diz Marx -- é assim a verdadeira necessidade produzida pela economia- política e a única necessidade que ela produz. (...) O aumento da produção e das necessidades se converte no escravo engenhoso e sempre calculador de apetites humanos, refinados, anti-naturais e imaginários -- a propriedade privada não sabe fazer da necessidade bruta necessidade humana; seu idealismo é a fantasia, a arbitrariedade, o capricho..." (7). O produto torna-se uma isca para atrair o ser dos outros, o seu dinheiro. "Toda necessidade real ou possível -- afirma Marx - - é uma fraqueza que arrastará as moscas ao melado -- exploração universal da essência coletiva do homem." (8). A afirmação inconfessada do capitalista é essa: "... engano-te, enquanto te proporciono o gozo"! (9). O capitalista torna-se, assim, um proxeneta, um "cafetão" , alguém que ganha dinheiro servindo de intermediário em casos amorosos, um explorador da prostituição de outrem (10). Ao sucumbir à sedução enganadora, alienando-se de sua subjetividade objetivada no dinheiro que troca pelo objeto, o homem se prostitui em uma relação desejante eternamente insatisfeita que não o humaniza, convertendo-se em escravo daquele que mobiliza o seu desejo. O capitalista desperta no outro "apetites mórbidos e espreita todas as suas fraquezas, para exigir dele depois, a propina por estes bons serviços" (11). A alienação vincula-se, contudo, tanto a esse refinamento das necessidades sob a lógica da propriedade privada, quanto à privação da satisfação das necessidades elementares. Em ambos os casos mutila-se a sensibilidade humana. A luz, o ar livre, a limpeza, a moradia salubre, a alimentação e tantos outros itens necessários à uma vida humana são negados à maioria, que vive na miséria, determinando novos sentidos e qualidades de percepção sensorial embrutecidas. Por outro lado desejos produzidos engenhosamente como mediação de acúmulo de capital por terceiros, tornam-se necessidades culturais alienantes. Com isto, nenhum dos sentidos, sejam físicos (visão, audição, olfato, tato e paladar), espirituais, práticos (vontade, amor, etc), existe mais em seu modo humano ou animal. Para Marx, somente com a superação da propriedade privada seria possível a "emancipação total de todos os sentidos e qualidades humanas" (12) que se fizeram humanas objetiva e subjetivamente. Quanto a essa emancipação total, que é a negação da negação da humanidade que fora realizada pelo capital, afirma ele em uma passagem muito interessante dos Manuscritos que o comunismo é o "momento da emancipação e recuperação humanas, momento efetivo e necessário para o movimento histórico seguinte. O comunismo é a configuração necessária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal, o objetivo do desenvolvimento humano, a configuração da sociedade humana" (13). A realização subjetiva-objetiva de uma humanidade emancipada extrapolaria os contornos do comunismo que, como base material, lhe daria suporte a sínteses culturalmente mais elevadas. Se a alienação de todos os sentidos físicos e espirituais engendrou a afirmação do sentido do ter, o comunismo, destruindo a propriedade privada capitalista possibilitaria materialmente a desalienação de todos os sentidos (14) e o refinamento das sensações e paixões humanas que não são apenas determinações antropológicas mas afirmações ontológicas que atingirão novos sentidos em novos modos de existência (15). No capitalismo, contudo, mobilizados pela necessidade material insatisfeita em razão da propriedade privada, os trabalhadores são uma classe em si que vende sua força de trabalho para a classe que detem os meios de produção. A classe dominante que mantém a alienação do trabalho cria também necessidades culturais, apetites mórbidos que, em troca de certo gozo, possibilita ao capitalista acumular o dinheiro que pertencia ao consumidor. Além disso, divulga ideologias que propõem formas de satisfazer necessidades mantendo a propriedade privada. Compreendendo a relação de sua situação econômica com a situação política e ideológica, com o direito assegurado pelo Estado, a classe trabalhadora em si torna-se classe para si ao perceber as contradições do capitalismo e sua situação de classe, desmontando as ideologias, chegando ao momento de sua auto- consciência, afirmando seu valor. Organizando-se para enfrentar a exploração e opressão passa a ação prática efetiva que ruma para a revolução do proletariado. A luta pela satisfação das necessidades e apropriação real da sua subjetividade objetivamente exteriorizada no produto é o que move a classe trabalhadora em sua luta contra a classe dos que detém os meios de produção e circulação. 2. A Sistematização da Filosofia da Práxis em Adolfo Sánchez Vázquez A tese de doutorado defendida por Vázquez em Março de 1966, publicada posteriormente com algumas alterações e ampliações sob o título de Filosofia de la Práxis, tornou-se um importante instrumento de divulgação da concepção marxista de práxis. Nesta obra, ele recolhe a contribuição de diversos pensadores, entre eles Lênin e Gramsci. Lênin repensou a práxis sob o ponto de vista da estratégia e das táticas políticas. Partindo do princípio que a luta de classes era uma espécie de "guerra civil oculta", ele inverte a máxima do general prussiano e estrategista militar Carl Von Klausewitz que afirmava ser a guerra uma simples continuação da política por outros meios (16) , defendendo a concepção de que a política é a simples continuação da guerra por outros meios (17). Lênin transportará, então, para o campo da política a estratégia e os conceitos militares que tomarão corpo no Estado Bolchevique e em elaborações de estrategistas da III Internacional. Ao aplicar-se na política o paradigma da guerra, militarizou-se a política e esquadrinhou-se um perfil de subjetividade do militante, disciplinado como um soldado a executar as diretrizes sob um modelo de centralismo; na política era necessário pensar como derrotar o inimigo e vencer a guerra - - como derrotar o inimigo de classe, do Estado Revolucionário, do Partido Dirigente. O paradigma militar teve desdobramentos diferenciados na tradição marxista conforme os contextos históricos, indo desde a guerra de movimento e guerra de posição em Gramsci à guerra popular de Mao Tsé-Tung. Deve-se mencionar também que o regime stalinista, apoiando-se em conceitos leninistas, deturpando alguns e abstraindo outros, assentou-se firmemente em teses militaristas que levaram à eliminação física de inúmeros "inimigos do Estado Revolucionário". O que importa salientar é que a partir de Lênin a práxis política da classe para si que fará a revolução superadora do capitalismo, tem por referência um paralelo de estratégia militar tanto na organização do movimento operário e do partido comunista, quanto na execução militante das ações. O partido seria a mediação entre a teoria revolucionária (a filosofia da práxis e a estratégia política) e a ação do proletariado. Alguns elementos da concepção leninista e gramsciana de práxis política encontraremos na obra de Sánchez Vázquez que, ainda hoje, norteia em grande parte da América Latina a atuação de movimentos de libertação. Ao tratar de alguns problemas filosóficos em torno à práxis, Vázquez demarca tal conceito em um campo próprio à tradição moderna reduzindo a subjetividade à sua dimensão racional e promotora de transformações objetivas pelo uso da força, normalmente mobilizada por necessidades materiais -- naturais ou culturais. A subjetividade mais ampla em seu plano passional, desejante, articulado a um imaginário utópico bem como as mobilizações subjetivas da práxis não ganham maior destaque. A práxis fica compreendida como a atividade em que um sujeito ativo modifica a matéria-prima -- que podem ser entes naturais, produtos de uma práxis anterior ou o próprio ser humano. Esta atividade, que é dirigida ao objeto para transformá- lo, desdobra-se em seu momento teórico na compreensão da matéria- prima, dos instrumentos de intervenção e de como manipulá-los, bem como no estabelecimento de uma finalidade, isto é, de um resultado que se idealiza alcançar; em seu momento prático trata- se da ação efetivadora que atinge um resultado real, objetivo, efetivo. O fim, aquilo que não se alcançou materialmente, nega a realidade efetiva, afirma outra que não existe; é produto da consciência e regido por ela. A prática transforma o mundo exterior que, como tal, independe da consciência do transformador e resulta em uma realidade nova. Têm-se pois, a realidade objetiva da matéria-prima, a ação cognoscitiva do agente sobre ela, a ação teleológica idealizando sua mudança e a ação efetivadora que resulta em um produto real -- imprimindo uma nova forma na matéria -- como os elementos iniciais e básicos ao estudo da práxis. A práxis fica assim reduzida, em seu núcleo central, à relação dialética entre teoria e prática efetivadora. As formas da práxis dependerão da matéria-prima. Destacam- se, contudo, duas formas de práxis: a produtiva que, sendo a práxis fundamental ao plano da infra-estrutura econômica, suporta e determina as outras formas de práxis, e a práxis política em que a relação teoria e prática exige um alto grau de elaboração - - uma vez que sua matéria-prima são as classes sociais em contradição de interesses e em luta -- para que seja satisfatoriamente consciente, organizada, dirigida e eficaz. Em razão de tais exigências da práxis política torna-se necessária a existência de um partido, no seio do qual se construirão as estratégias e táticas para a luta (18). Na práxis política, como em toda forma de práxis, embricam- se a teoria e a prática. Aqui também a teoria se desdobra em dois planos, cognoscitivo e teleológico. No primeiro caso, trata- se de compreender ontologicamente a realidade concreta. Há que desenvolver-se um movimento dialético que, partindo do todo fragmentado, através de uma abstração analítica em que se desvendam as mediações e contradições da realidade, chega-se a uma síntese compreensiva da totalidade concreta e de suas múltiplas determinações. Essa síntese, compondo conceitos que são a unidade dialética do ser e sua essência histórica, é a base de toda teoria crítica que possibilita refutar todas as representações ideológicas sobre a realidade, bem como distinguir a práxis da anti-práxis. (19) Na tradição política que subjaz ao conceito de práxis política de Vázquez, esse momento cognoscitivo é normalmente subdividido na análise estrutural e na análise conjuntural da realidade efetiva (20). Na análise estrutural, em um certo nível de totalização, busca-se compreender algumas dimensões da totalidade concreta, em especial, as dimensões econômica, política e ideológica. Ao plano da dimensão econômica, analisa- se a formação do capital: a sua composição técnica -- divisão e interrelação do capital no setores agrário, industrial, comercial, serviços e financeiro -- bem como a sua composição social -- a divisão de classes. Ao âmbito da dimensão política analisa-se, basicamente, a organização do Estado e os projetos políticos em conflito. Já ao plano da dimensão ideológica analisa- se a disposição dos equipamentos e mecanismos de formação da representação de mundo. Por sua vez, na análise de conjuntura o objeto de investigação é a correlação de forças entre as classes, bem como o alinhamento dos sujeitos sociais quanto à manutenção ou transformação das estruturas econômicas, políticas e ideológicas. O momento teleológico da práxis política se desdobra na definição de objetivos a serem perseguidos e que afetem as estruturas já analisadas, bem como na organização de uma estratégia eficaz no seio daquela totalidade compondo diversas ações articuladas para alcançar os objetivos propostos e, ainda, na definição de táticas apropriadas à conjuntura em constante mutação. A prática política é considerada como a ação efetiva que transforma o objeto -- as classes ou grupos sociais, a sociedade inteira, as relações econômicas, políticas e ideológicas. A práxis política, unidade da teoria com a ação prática efetivadora, busca intervir sobre as bases econômicas e sociais em que se assenta o poder material e espiritual da classe dominante. Para transformar a matéria, afirma Sánchez Vázquez, é necessário o uso da força, isto é, a violência (21). A resistência da matéria social exige a violência que se exerce contra o corpo para mudar a consciência. Além de resistir à violência, a matéria social pode atuar contra-violentamente realizando, assim, o que Sánchez Vázquez denomina anti-práxis. Para Vázquez, como a sociedade de classes é regida pela violência (22), os revolucionários também deverão usá-la a fim de destruir a própria sociedade de classes e construir uma nova sociedade regida por princípios éticos elevados. A violência revolucionária é eticamente justa, pois visa acabar com toda a violência. Salienta, entretanto, que não se deve compreender a violência metafisicamente como força motriz da história, o que seria um equívoco. Entretanto, ao afirmar o conceito de práxis como uso da força que imprime uma forma na matéria, e ao definir violência como uso da força, irremediavelmente toda práxis será violenta. Observa-se que em Filosofia de la Práxis a subjetividade humana fica reduzida à abstração de uma dimensão teórica que se objetiva por uma ação efetivadora mobilizada por necessidades históricas, desconsiderando a importância da dimensão passional, desejante como intrínseca à práxis. Tem-se a afirmação da totalidade ontológica como o horizonte teórico necessário à revolução, desde o qual os indivíduos são compreendidos conceitualmente a partir da luta de classes -- que é a determinação histórica essencial. A práxis política por sua vez aponta para uma intervenção sobre a subjetividade a partir da luta ideológica -- a persuasão teórica que, fundamentalmente, refuta representações no plano cognoscitivo e objetivos teleológicos mantenedores das estruturas -- e da violência corporal quando se redobre a resistência da matéria à persuasão teórica ou se estabeleça a anti-práxis. 3. Alguns alargamentos contemporâneos da concepção de práxis 3.1. Emmanuel Lévinas : Subjetividade e Alteridade Embora Lévinas não tenha eleito a práxis, enquanto tal, como temática de sua reflexão, a sua filosofia é rica em considerações sobre o exercício efetivo da práxis social. Em sua filosofia tem-se a afirmação de uma noção distinta de subjetividade em relação aos pensadores que aqui tratamos anteriormente. Em Totalité et Infini (1961) Lévinas desenvolve uma crítica ética à práxis dominadora e à sua legitimação ontológica. Afirmando a categoria de exterioridade, Lévinas propõe a ruptura das totalidades em que a subjetividade do outro e sua alteridade, acabam reduzidas a um conceito que recebe um sentido a partir de um projeto fundamental, fundamento esse que na história da humanidade acabará sempre legitimando o exercício do poder autoritário que se efetiva sobre o outro que já fora teoricamente aprisionado ao mundo do mesmo na limitada extensão de um simples ente. Para além da consciência do mesmo e de seu projeto, há o outro e sua liberdade. À mesmidade da consciência que reduz todo outro a um ente de seu mundo, somente o Desejo pode transcender. Lévinas trata de uma dimensão fenomenológica da subjetividade que precede à consciência. Para ele a necessidade ou o desejo (grafado com "d" minúsculo) é o primeiro movimento do mesmo em busca da apropriação dos elementos que, sendo ou não mediatizados pelo trabalho, levam ao gozo. Diferentemente deste desejo enquanto necessidade, Lévinas constrói a categoria "Desejo do Invisível" ou "Desejo do Infinito" (grafados com "D" maiúsculo) para expressar o Desejo do ser humano à alteridade de outro humano, que jamais se confundirá com o desejo consumista. O outro, enquanto outro, está sempre para além das totalidades ontológicas, para além da fenomenologia do olhar, que reduz o que vê a um ente de seu mundo. O Outro enquanto alteridade não pode ser reduzido a um ente em nossa consciência. Tal Desejo da relação pessoa-pessoa é o Desejo do Invisível, pois o outro não se reduz ao que vemos; é Desejo do Infinito porque o outro pode sempre se manifestar infinitamente outro para além de nossos conceitos já formulados. Este Desejo que nos move em direção ao outro é um Desejo Metafísico, pois não se trata de um desejo da apropriação do outro enquanto elemento do mundo (23). Na relação face à face onde dois seres humanos se encontram, impõem-se a dimensão ética do respeito pela alteridade. Pela sua palavra o outro se manifesta outro e julga o mundo do mesmo. A proximidade que se estabelece, exige a atenciosa escuta da palavra do outro e a disposição de serviço. A linguagem, entretanto, não é espaço para o conhecimento do outro, mas espaço do encontro e reencontro do Eu com o Outro, historicamente situado como encontro de dois mundos. Movido pelo Desejo do Invisível o homem se coloca a serviço da justiça na relação com o outro. A partir do Desejo do Invisível, Lévinas desenvolve uma metafísica dinâmica -- posto que a essência de cada homem se abre a infinitas possibilidades de realização -- que critica as ontologias que haviam reduzido a subjetividade humana, a alteridade, a um ente reduzível a um conceito. Afirma o outro como exterioridade inabarcável nas totalidades ontológicas e destaca a palavra como manifestação da subjetividade. Embora faça a crítica das totalidades opressivas e construa uma ética que exige o respeito à realização alterativa do outro, Lévinas não formula, em Totalité et Infini , propostas consistentes voltadas a transformações sociais, políticas e econômicas que se fazem necessárias para a realização de uma sociedade onde se vivam os princípios éticos que formula. 3.2. Enrique Dussel : Práxis e exterioridade A grande questão que se levantou ao pensamento de Enrique Dussel na década de 70 foi como abrir o metodologia dialética (24) -- essencial a uma filosofia que se constrói articulada à práxis de libertação dos oprimidos -- possibilitando a afirmação de um novo horizonte ético e crítico desde a afirmação alterativa da exterioridade. Se por um lado, o outro não pode ser subsumido na totalidade ontológica construída na síntese dialética sem negar-lhe a distinção, por outro lado a afirmação de um Desejo do Invisível não lhe parecia consistente o bastante para a construção de uma teoria eficaz ao processo de libertação latino- americano que necessitava tratar da exploração econômica, da dominação pedagógica, da dominação política, do machismo, da discriminação racial e de tantas outras formas de opressão e de mutilação do outro e de sua subjetividade (25). Dussel então lançará mão de um recurso que será simultaneamente a força e a fraqueza de sua teoria: a analogia. Contrapondo ao logos da totalidade ontológica, o aná-logos que se afirma desde a exterioridade metafísica, Dussel tenta equacionar o seu problema (26). Através da analogia, embora o mesmo possa pensar criticamente a ação do outro, não o reduz a um conceito, afirmando-se que o outro, enquanto outro permanece exterior à totalidade ontológica. Pela analogia, o movimento dialético, tanto de compreensão do mundo quanto de ação transformadora, supõe uma necessária abertura ética ao outro, à exterioridade. Assim, o projeto do mesmo, sua teoria e sua prática podem ser questionados e reformulados desde a palavra do oprimido, da alteridade. E sendo tal abertura permanente, nenhum projeto de libertação poderá descambar em totalitarismos. Por outro lado, um mesmo conjunto de categorias analógicas poderiam ser utilizadas para a crítica ética da economia, da política, da erótica, da pedagógica e poderiam servir de referenciais à práxis de libertação nessas diversas esferas. A composição metodológica da dialética com esta abertura à exterioridade será tentada de diversas formas. Em 1972 Dussel propõe a composição de dois métodos: um método analético, apropriado à abertura da palavra do outro -- o que possibilita criticar eticamente o horizonte de sentido da totalidade --, e um método dialético, que possibilita implementar as mediações da práxis que busca responder à palavra interpelante (27). Em 1974 Dussel fala de um método dialético positivo que possibilita uma crítica da compreensão cotidiana do mundo desvendando-lhe um fundamento ontológico; que possibilita também, através de uma passagem analética, a crítica ética da ontologia mediante a abertura à interpelação da alteridade e que, finalmente, se conclui em uma práxis analética que visa responder faticamente ao apelo recebido (28). Em 1977 trata do método dialético positivo que possui intrinsecamente um momento analético, no qual a totalidade é questionada pela interpelação do outro, sendo a escuta da palavra a exigência de uma consciência ética, que, impossibilitada de interpretá-la adequadamente por advir de um outro mundo e de uma outra história, a aceita, lançando-se o interpelado à práxis de libertação do oprimido. Tal método possuiria um movimento anadialético (29). Trata-se pois de abrir- se à subjetividade do outro que se exterioriza pela palavra, desde a qual é possível construir um outro sentido ao mundo de ambos. Com isso Dussel pretende criticar a ontologia desde um novo horizonte meta-fisico, isto é, desde a palavra do outro que se encontra mais além do horizonte ontológico do mundo do mesmo. Seis categorias analógicas possibilitariam a elaboração de uma reflexão crítica sobre toda práxis -- que será sempre uma relação pessoa-pessoa --, dando conta da necessária abertura à exterioridade. A categoria de totalidade possibilita a compreensão do sentido de ser atribuído aos entes desde o projeto fundamental ao âmbito de um mundo. Na sociedade capitalista a totalidade do ser se funda no capital. Desde o projeto fundamental do acúmulo do capital e de garantir o seu domínio - - com mediações políticas e culturais, entre outras -- desenvolve- se o "mundo" como totalidade concreta. Inserido nesta totalidade cada homem, entretanto, pode atribuir vários sentidos de ser às coisas que aparecem em seu mundo, sendo necessária, pois, a crítica da compreensão ingênua, cotidiana, a fim de chegar ao fundamento da totalidade como tal, desvelando o projeto fundamental desde o qual cada coisa na totalidade recebe o seu sentido. A categoria de exterioridade possibilita afirmar o outro radicalmente distinto para além do horizonte da totalidade, do mundo do mesmo, podendo ser analogicamente outra pessoa, outro povo, outra cultura, etc. A mediação compreende a possibilidade dos entes servirem como elementos para a realização de um projeto fundamental. Têm-se a alienação quando a alteridade é tomada como mediação para a realização de um projeto -- seja econômico, erótico, político, pedagógico, etc -- que lhe é imposto, sendo resultado, portanto, de uma práxis de dominação. Não se trata mais do não reconhecimento da subjetividade humana exteriorizada no produto cultural, nem mesmo da não apropriação material pelo sujeito de sua subjetividade exteriorizada no resultado de seu trabalho. A libertação consiste em superar praticamente a alienação, reconstruindo a proximidade. A proximidade, por sua vez, se efetiva na relação face-a-face na justiça, havendo o respeito à alteridade, podendo concluir-se ou não na festa e no gozo, sendo movida por uma pulsão de alteridade. Desde esse jogo categorial Dussel tratará da práxis em 3 horizontes básicos: a práxis metafísica, a práxis de dominação e a práxis de libertação. A práxis metafísica é mobilizada por uma pulsão de alteridade que move seres humanos a uma relação face-a-face, na qual se age para o outro como outro buscando estabelecer a proximidade, sentido arqueológico e escatológico da existência humana. Sendo assim, a práxis é distinta da proxemia, que é um dirigir-se às coisas e da poíesis , que é a ação produtiva. A práxis de dominação é a afirmação prática da totalidade na qual o outro, tomado como mediação de um projeto imposto, ficando alienado. Tal práxis sustenta uma formação social injusta. A dominação é compreendida como " o ato pelo qual se coage o outro a participar do sistema que o aliena", obrigando-o a realizar atos contra a sua essência histórica, sendo para Dussel, "um ato de pressão e de força" (30). Quando o oprimido tenta se libertar a dominação transforma-se em repressão -- pedagógica, policial, militar e com inúmeras outras faces. Ao crescer a pressão da revolução a repressão transforma-se em guerra. A práxis de libertação é a ação da alteridade negada que busca suprimir a dominação que sofre, bem como a ação daquele que busca suprimir a dominação do outro. Estabelecendo-se uma consciência ética a partir da palavra interpelante, provocante do outro, afirma-se uma responsabilidade que se realiza na práxis de libertação que visa responder a essa palavra promovendo o questionamento e destruição da ordem totalitária, injusta, desde a vivência de um ethos libertador fundado na bondade -- que não busca recompensas pessoais pela ação que desenvolve -- que busca a construção de uma nova ordem que envolve necessariamente uma economia e uma tecnologia humanizadas. Ao deslocar a crítica das ontologias do plano do Desejo ao plano das analogias, Dussel retorna ao âmbito cognitivo como horizonte da crítica da totalidade. Ao analisar a dominação como ato de pressão e força não percebe a dimensão passional das relações de poder que, modelizando a subjetividade da alteridade e seduzindo seu desejo , pode agenciar-lhe uma palavra interpelante que seja alienada. As elites dominantes valendo-se de diversos mecanismos , como a mídia, por exemplo, podem mobilizar o povo, normalmente mal-informado, a clamar por ações que a longo prazo mantenham a sua própria condição de dominado e explorado. A filosofia da libertação de Dussel que surge pretendendo-se pós-moderna em razão de negar a ontologia moderna que afirma a subjetividade do mesmo como horizonte de compreensão do mundo, posteriomente não se pretende pós-moderna afirmando não poder negar o lugar determinante da racionalidade (31). Quanto a isso pode objetar-se que sem a pulsão de alteridade não haveria o movimento em direção à proximidade em Dussel, condição indispensável para a práxis metafísica, sem a qual a práxis de libertação tornar-se-ia impotente para a subversão da ordem antiga e para a construção do novo (32). 3.3. Guattari e a Revolução Molecular As reflexões de Félix Guattari tratam da constituição da subjetividade dos indivíduos em meio à complexa situação contemporânea vinculada a uma "3ª Revolução Industrial" em curso, onde a informatização, a telemática, a robótica, a bio- tecnologia, as modificações na cadeia produtiva, a utilização da energia nuclear e solar, a tecnologia de materiais e os meios de comunicação de massa, provocam complexas transformações econômicas, sociais e culturais que não podem ser mais compreendidas sobre o paradigma moderno da práxis. Essas transformações vão configurando uma situação bastante distinta da modernidade industrial, situação essa que é caracterizada por vários analistas como pós-industrial ou pós-moderna. O Capitalismo Mundial Integrado, que vai tomando conta de todas as áreas do planeta configura-se não apenas pela integração internacional dos capitais e a constituição de mega- mercados, mas especialmente pela modelização da subjetividade dos indivíduos. Para tanto vale-se do saber moderno que, tomando o homem como objeto de estudo, o esquadrinhou sob recortes da psicologia, sociologia, antropologia, da pedagogia e das ciências humanas em geral. Este saber, como instrumento de exercício de poder, norteia a utilização de novas tecnologias de comunicação de massa e informatização, bem como a utilização de novos Equipamentos Coletivos para uma efetiva intervenção sobre o inconsciente das pessoas agenciando devires, mobilizando desejos, anseios e outras intensidades segundo um conjunto de códigos previamente estabelecidos a partir dos quais as performances individuais se desenrolam em função dos interesses daqueles que as agenciam. Como afirma Guattari, "os Equipamentos Coletivos, os meios de comunicação, a publicidade não param de interferir nos níveis mais íntimos da vida subjetiva" (33). A publicidade, por exemplo, apoiada em pesquisas de mercado e opinião, em pesquisas e teorias psicológicas, sociológicas, etc., é um fenômeno da interação desses conhecimentos com a finalidade de provocar ações práticas e/ou discursivas. A dominação de massa se realiza instigando o indivíduo a diferenciar-se da própria massa, assumindo referências postas pelo próprio sistema vinculadas à fama, ao poder, ao sucesso, à riqueza, ao status, à segurança, etc. Tais balizas e anseios vinculam-se às suas opções profissionais, às suas escolhas de consumo, à competição, à priorização do privado, à sua postura política, entre outras ações. Como resultado dos complexos processos de intervenção sobre a subjetividade têm-se uma modelização de comportamentos na esfera da produção e do consumo, das relações cotidianas micro- políticas em todas as esferas, bem como, nas ações políticas a nível global, estrutural. Sobrecodificam-se as relações de poder no cotidiano capitalizando tais conjuntos de força difusos em toda a sociedade para a manutenção do modelo capitalista global. Tal constituição da subjetividade vai muito além da mera divulgação de uma formulação ideológica, de uma intervenção no plano consciente cognitivo da conceituação/representação do mundo. A modelação da subjetividade é realizada, fundamentalmente, por uma intervenção sobre o inconsciente que não deve ser entendido como um espaço de fixação de papéis em uma redução familialista ou como estruturado similarmente à linguagem, fazendo depender seus componentes de uma sintaxe universal. Trata-se, para Guattari de um inconsciente esquizoanalítico, maquínico, um território aberto por todos os flancos a interações sociais, econômicas, políticas e de outras ordens, que agenciam comportamentos através de diversas semióticas (34). Tal inconsciente, essencialmente, não está centrado na subjetividade humana, mas participa de diversos fluxos de signos, fluxos sociais e materiais (35). É um espaço anterior à oposição realidade-representação-conceituação, anterior ao plano das teorias e ideologias. E, fundamentalmente, é o espaço onde se entrelaçam efetivamente os motores da práxis, o lugar onde interagem componentes semióticos e diversos sistemas de intensidades, agenciando fluxos de desejo e devires (36). "O inconsciente... é um nó de interações maquínicas através do qual somos articulados a todos os sistemas de potência e a todas as formações de poder que nos cercam" (37). Com isso, a luta ideológica fica recolocada em novo nível. Não basta apenas tratar da compreensão teórica do real, mas especialmente reverter as dinâmicas de agenciamento passional. As reflexões de Guattari nos levam a concluir que sem a "desalienação" dos desejos e a reconstrução de uma sensibilidade ética e política não haverá como derrotar as classes dominantes e suprimir a dominação de massa. Frente a esse processo de dominação, Guattari trata da Revolução Molecular . Nela tem-se a liberação dos fluxos de desejo fora dos padrões modelizados pelo sistema na cultura de massas e dos demais padrões opressivos que territorializam a práxis cotidiana a partir de códigos familiares, religiosos, etc. Este processo denominado singularização ou subjetivação tem por horizonte o respeito à alteridade, como formula Lévinas (38). Tal conceito de revolução descarta o mito progressista da história, pois a vazão de desejos fora da lógica de produção e consumo do sistema dominante pode ser neutralizada -- como aconteceu com movimentos de contra-cultura nos anos 60 e 70 -- ou vir a constituir padrões mais reacionários -- como se vem verificando atualmente em países do leste europeu. Elementos de subjetivação estão presentes em movimentos de mulheres, negros, homossexuais, rádios livres, ecológicos, juventude, moradia, saúde e tantos outros que podem se articular em processos de transformação mais globais, denominados Revolução Molar. Afirma Guattari que somente a singularização da práxis dos movimentos sindicais, partidários, das organizações de classe e demais máquinas de guerra os transformará em movimentos capazes de abalar as estruturas capitalistas. A dinâmica molecular, desburocratizando essas entidades e liberando desejos singulares extrapolando a territorialidade dos códigos disciplinadores e repressivos, realiza uma singularização da militância, conferindo- lhe uma nova significação, resgatando na práxis política a dimensão das utopias pessoais e coletivas. Não se deve confundir, entretanto, molecular e molar respectivamente com micro e macro-social. Molecular diz respeito a processos de subjetivação, singularização, que subvertem códigos dominantes de individuação -- em nosso caso, de individuação capitalista --, podendo realizar-se envolvendo simultaneamente amplos conjuntos de territórios. Molar diz respeito a ações articuladas que se voltam sobre as "estruturas" econômicas, políticas e sociais mais objetivas, ainda que podendo ocorrer em conjuntos de territórios menos amplos. Não se pode, por outro lado, cindir e contrapor subjetividade e objetividade. Toda individuação capitalista ou subjetivação subversiva concorrem para a manutenção ou dissolução do conjunto global de códigos e performances, em maior ou menor intensidade, nos planos culturais, econômicos, políticos e sociais. Por outro lado, uma revolução molar somente ocorre desencadeando processos moleculares. Trata-se pois, de revolucionar as relações cotidianas e a cultura, bem como as " estruturas" de produção e reprodução social subvertendo as relações de poder em ambos os níveis que se interpenetram. Em Guattari tem-se uma compreensão mais ampla da subjetividade, salientando o âmbito inconsciente, passional, da práxis, em especial, sua dimensão desejante. Uma vez que o capitalista não apenas se apropria do produto do trabalho, mas modeliza a subjetividade da massa agenciando desejos em cada indivíduo, disciplinando-lhes a "liberação" territorializada em função das performances que lhe interessam, trata-se de resgatar a liberação de desejos fora do códigos dominantes, promovendo uma revolução do cotidiano, como elemento imprescindível à subversão do sistema capitalista. A revolução do Capitalismo Mundial Integrado exige, contudo, a articulação de revoluções moleculares com revoluções molares. 3.4. Movimentos Populares atuais e práxis de libertação Após essa excursão sobre práxis e subjetividade, parece- nos necessário ampliarmos o conceito de práxis, para compreendermos satisfatoriamente os jogos de poder atuais. À dimensão teórica e prática será necessário acrescentarmos a dimensão das necessidades e paixões bem como o processo dos agenciamentos. Considerando esses quatro aspectos podemos compreender mais satisfatoriamente a complexidade da práxis que desenvolvem os movimentos populares no Brasil atual. Mas que país é este ? Marcado por uma pobreza somente comparável na América Latina à do Peru, o Brasil é um dos países com a maior taxa de concentração de renda do mundo. Em nosso país 59% dos mais pobres sobrevive com 2,1% da renda nacional (39); cerca de 40 a 60% das terras nas capitais dos estados são manchas urbanas destinadas à especulação imobiliária (40); o adensamento urbano faz com que as doze maiores cidades do Brasil detenham hoje cerca de 30% de toda a população do país(41); enquanto no Recife mais de 40% da população mora em favelas. Alguns grupos econômicos e proprietários privados detém, sozinhos, latifúndios maiores que vários países, como a MANASA que detinha já em 86 mais terras que todo o território da Bélgica e do Líbano somados, ou a APLUB, que possuía um território maior que o estado de Israel ou de El Salvador (42); 7 milhões de crianças estão hoje pelas ruas pedindo esmolas; 320 mil crianças morrem de fome/miséria por ano; mais de 8 mil casos atuais comprovados pela Organização Internacional do Trabalho de " cativeiro por dívida", isto é, de trabalho escravo em nosso país (43). Por outro lado, nesses anos de crise a elite enriqueceu cada vez mais; o setor financeiro teve lucros elevados (44); e nossa mídia eletrônica -- tecnicamente qualificada e extremamente criativa -- exporta novelas, programas infantis e outros produtos culturais para o Primeiro Mundo. A classe dominante vive em uma opulência de envergonhar turistas europeus. Neste país que alguém já chamou de "Belsomália", mistura de Bélgica com Somália, ocorre uma conformação de elementos econômicos, políticos, sociais e culturais a-modernos, modernos e pós-modernos. A-modernos são a estrutura fundiária, o coronelismo político, o trabalho escravo, o voto de cabresto, a religiosidade tradicional alienante, etc. Modernas são as indústrias, os mecanismos democrático-formais, a capitalização do mercado urbano de terras, o movimento de concentração de capitais, a depredação ambiental em razão do lucro, o trabalho assalariado e sua especialização, os cientificismos, o mito do progresso, os sindicatos e associações de classe, movimentos sociais que atuam na área da reprodução social da vida, etc. Pós-modernas são a informatização, a telemática, os caixas-automáticos e vídeo- textos, a mídia, a robotização de algumas etapas produtivas, a eliminação de postos de trabalho no setor secundário e a ampliação do setor terciário, a manipulação da subjetividade das pessoas pela publicidade através da mídia eletrônica, o consumo simbólico, a existência de gangs, movimentos culturais, ecológicos, etc. É considerando este quadro complexo que buscaremos refletir sobre a constituição da subjetividade das pessoas e sobre a práxis de libertação dos movimentos sociais. A subjetividade de cada ser humano é constituída numa trama de relações micro e macro-políticas -- portanto, relações de poder -- em que interagem as condições materiais para a reprodução social de sua vida, os horizontes e códigos culturais que orientam a compreensão de sua circunstância e condição social, bem como a sua interação com os demais e sua intervenção sobre a realidade efetiva. É correto afirmar que cada ser humano -- independentemente da condição social -- possui sua utopia, construida a partir da negação de sua realidade, formulada a partir de anseios, desejos, aspirações e necessidades, que variam significativamente conforme as classes sociais. Em uma sociedade de classes, as utopias individuais acabam sendo modelizadas sob as dinâmicas do capitalismo. O capitalismo é o principal responsável pela topia deplorável em que vive a grande maioria da população, com as necessidades básicas para a reprodução satisfatória de sua vida insatisfeitas, bem como, pela opulência de uma elite poderosa. Por outro lado, ele é também o grande vendedor de ilusões e fantasias, promovendo a formulação de utopias alienadas para todas as camadas sociais e apresentando estratégias para conquistá-las. Detenhamo-nos aqui, entretanto, na utopia das populações pobres e da classe média-baixa que são a base dos movimentos populares. Em geral propõem-se que ninguém deva se conformar com a pobreza, mas lutar para melhorar a sua condição social, que será avaliada pelo grau de riqueza que atingir, isso é, pela propriedade de certos tipos de imóveis, automóveis, volumes de recursos em aplicações financeiras, bens duráveis, indumentária, adornos caros, prodigalidade em gastos com supérfluos, em aquisição de produtos de determinadas marcas, em viagens e festas, etc. É a partir dessa territorialidade que a subjetividade mobilizada por necessidades naturais, culturais e desejos agenciados através de diversas semióticas formula sua utopia, que é a idealização dos contornos de sua própria individuação. Além da utopia, apresenta-se também a estratégia para efetivá-la: votar no "bom político" que tem "dó do povo"; qualificar-se profissionalmente, trabalhar bastante, desenvolver atividades extras remuneradas, poupar e acumular um capital inicial para tocar seu próprio negócio arriscando para vencer, jogar na loteria e muitas outras alternativas, mas sempre respeitando o direito de propriedade, a lei, a ordem, etc. É importante frisar que tais utopias não são representação da realidade futura, mas uma composição de uma formulação cognitiva, imaginária, com anseios, desejos, aspirações que mobilizam a práxis em busca de objetivos últimos. Embora emerjam negando a realidade imediata, as utopias tanto podem ser conservadoras, alienantes, quanto singularizadoras e revolucionárias. As utopias alienantes não afirmam o desejo alterativo, a busca de justiça, a proximidade como desejo fundamental. Acabam favorecendo a classe dominante, ou construindo relações opressivas em que se nega à alteridade o seu devir histórico. Elas provocam, por exemplo, o desvio do desejo da relação pessoa- pessoa para o desejo da apropriação de objetos, como ocorrem em tantas peças de publicidade: o desejo da companhia de uma linda mulher desviado para a compra de uma calça jeans; o desejo de uma família feliz desviada para o consumo da margarina; o desejo de um homem carinhoso que ofereça flores ou de um rapaz erótica e vigorosamente atlético, desviado para o consumo de desodorantes, etc. Por outro lado, as utopias singularizantes afirmam o desejo alterativo, a busca da justiça e a proximidade como seu fundamento. Agenciam processos de subversão de códigos éticos, políticos, econômicos, jurídicos, comunicativos, que impeçam os processos de subjetivação, singularização, o devir histórico autêntico de pessoas e grupos. Quando grupos de pessoas se reúnem para tentar realizar conjuntamente questões comuns às suas utopias pessoais, emergem os movimentos sociais. É irrefutável que todo movimento popular possui uma pauta de objetivos que, sendo a negação de aspectos da realidade presente, da topia estruturada, exigindo sua transformação, pode ser caracterizada como expressão de pequenas utopias fragmentadas e isoladas que podem ou não serem singularizadoras. É importante salientar a possibilidade de se construir utopias mais coletivas compondo essas utopias fragmentadas em torno de eixos de luta visando transformações estruturais da sociedade (45). A análise das utopias que mobilizam pessoas, grupos e coletividades maiores em movimentos sociais é imprescindível para a compreensão dos desdobramentos e das tendências históricas desses movimentos. Tomemos como exemplo uma ocupação de terras. Depois de muitas lutas e organizações, enfrentamentos com policiais, audiências com o prefeito, negociações com o proprietário da área ocupada, uma associação de moradores conquista a posse da terra. Na teorização da prática compreendem que os interesses dos sem-teto são antogônicos aos interesses dos especuladores imobiliários, que as leis e a polícia estavam a serviço de defesa da propriedade privada da terra e não da sua ocupação social. Contudo, após a conquista da terra, muitos deixam de participar da associação de moradores, pois desejam realizar outros objetivos pessoais para os quais a associação não serve como mediação. Assim, as utopias pessoais daqueles indivíduos compunham não apenas a necessidade da moradia, mas também o desejo de possuir um vídeo-cassete, um automóvel, uma determinada marca de roupa, e outros elementos mais, desejos esses agenciados pela mídia. Nesse caso, tais desejos são alienantes por dois motivos. Primeiramente porque o sentido desses objetos não se constrói a partir de um projeto fundamental mobilizado a partir do desejo alterativo, não sendo portanto buscados como mediação para a proximidade, mas sim em vista de um projeto de individuação em que a posse do objeto simbólico lhe confere, consoante ao imaginário construido sob a territorialidade da utopia dominante, um destaque social e certo poder ao qual o objeto está associado. Se esses mesmos objetos fossem buscados como mediação para a proximidade na abertura de uma utopia coletiva, não haveria aí alienação, e a estratégia para alcançá-los não seria individualista, mas mediatamente coletiva, pois tratar-se-ia de buscar o melhor para toda a coletividade e não apenas para si próprio. Por outro lado é também alienada porque além do objeto não realizar o desejo último de subjetivação na proximidade, realização do qual se afasta ao buscar atingir por essa via, acaba praticamente realizando o acúmulo de capital daqueles que manipulam o seu desejo e que comercializam o objeto simbólico. No processo de aprimoramento da práxis de libertação dos movimentos sociais -- considerando seus agenciamentos, as necessidades e os aspectos passionais envolvidos, a dimensão teórica e prática -- parece ser importante atuar considerando seis aspectos: a) partir da prática efetiva do movimento ou ator, mapeando seus agenciamentos fundamentais; b) colocar em crise as utopias pessoais (indivíduo-sujeito) e particulares (grupos e movimentos), elaborando uma cartografia dos aspectos passionais, necessidades e interesses envolvidos, bem como suas formulações, estratégias de construção teórica e/ou imaginária da realidade e seus processos, bem como estratégias e táticas de intervenção sobre a topia, c) analisar as estruturas e conjunturas do sistema que consolidam e tensionam a topia efetiva e as utopias que lhe dão sustentação; d) em seguida é mister tratar-se da construção, a partir das diversas utopias pessoais e particulares, de utopias mais coletivas movidas pelo desejo alterativo, que abarque as aspirações populares imediatas articuladas em eixos estratégicos que avancem em sua satisfação incidindo sobre as estruturas sociais apontando para o fim da exploração, dominação e discriminação, consolidando uma nova ética, que se manifeste em todas as relações micro-políticas do cotidiano; e) cuidar para que tal utopia coletiva, ações práticas e linguagens mediadoras sejam sedutoras, mobilizando os desejos das pessoas, promovendo o agenciamento de processos de subjetivação, singularização e f) por fim, tratar de como efetivar a intervenção de grupos, organizações e movimentos em organizações mais globais que possibilitem uma ação articulada, norteada por uma ampla utopia coletiva, explicitada objetivamente em um projeto político, que evidenciando os eixos de luta, consolide um amplo engajamento social em sua defesa. Conclusões. Respondendo parcialmente aos questionamentos iniciais, podemos afirmar que é necessário superarmos a concepção moderna da práxis para compreendermos adequadamente as diversas facetas da práxis de dominação e implementarmos efetivamente uma práxis libertadora. Tais mudanças vinculam-se a uma nova concepção de subjetividade, alienação e das dinâmicas de poder do mundo contemporâneo, sob a configuração de um capitalismo mundial integrado, no qual estamos inseridos. O transporte para a práxis política do paradigma militar não só importou uma territorialidade de individuação militante, sublimadora do eros em práticas discursivas e não-discursivas frente aos adversários no interior dos partidos de esquerda e dos inimigos de classe, como também dificultou a compreensão dos jogos de sedução, a construção do imaginário, o agenciamento de fantasias como mediações de ação política. Despreparados para trabalhar seus próprios sentimentos, anseios, desejos, medos e fantasias, muitos militantes acabam sendo seduzidos pelas classes dominantes e cooptados por governos e patrões que lhes acenam com a realização parcial de suas utopias pessoais; outros que investem sua libido em campanhas eleitorais nas quais perdem os contornos que separam a realidade de sua fantasia, abandonam as organizações após a derrota eleitoral de seus sonhos; outros que se projetam como lideranças de destaque passam a capitalizar seu poder de persuasão face ao prazer do reconhecimento coletivo, de ser ouvido, ser citado, ser estimado e seguido; outros burocratizam as entidades criando uma couraça que os proteja no seio da instituição; outros ainda, após serem eleitos parlamentares, colocam em segundo plano a realização da utopia, dos princípios e da estratégia partidárias, cuidando prioritariamente da realização de sua utopia pessoal, da sua reeleição, mesmo às custas da cooptação de novimentos sociais. Enfim, sempre haverá consideráveis razões para justificar uma ação movida por um desejo inconfessado, bem como haverá razões suficientes para cada cidadão justificar suas opções normalmente agenciadas em jogos de poder. Os alargamentos contemporâneos no trato da alteridade e subjetividade analisados neste artigo, abrem novos questionamentos no campo da práxis política. Entendemos, contudo, que nenhuma das concepções colocadas em debate conseguiu aprofundar satisfatoriamente algumas questões essenciais. Como promover a construção de utopias coletivas capazes de articular diversas utopias particulares de inúmeros novos atores sociais-populares que emergiram ou ressurgiram no mundo todo a partir da década de 60 e que proliferaram e se diversificaram sobre questões específicas como movimentos feministas, movimentos de negros, movimentos de juventude, movimentos ecológicos, e especificamente no Terceiro Mundo, movimento por terra para morar e plantar, movimento de saúde, movimento de transporte, , movimento de índios desaldeados, movimento de meninos e meninas de rua, associações de moradores, comunidades eclesiais de base, movimentos de luta contra o desemprego, movimento de favelados, movimentos estudantis e tantos outros ? Como compor a diversidade em um mesmo processo global que resulte em uma sociedade radicalmente democrática, popular e plenamente socialista ? Como provocar processos de subjetivação que consigam reverter os agenciamentos efetivados através da mídia, e a submissão passiva das pessoas, em se deixarem super-explorar, em troca de um mísero provento que não dá para satisfazer nem sequer suas necessidades primárias, mas que os mantém vivos ? A classe dominante que encontra agora nas democracias formais um espaço de relativa segurança, não intensificaria ações militares que esporadicamente já realizam matando lideranças populares todos os anos, aumentando a tensão dos conflitos de baixa intensidade para se manter no poder, caso seus interesses sejam colocados em risco ? Como compor sob uma ética de libertação e uma estratégia eficiente jogos de poder que resistam a tal processo envolvendo seduções, persuasões, agressões e mortes ? Como promover a singularização da práxis de lideranças e dirigentes cuja subjetividade foi territorializada sob os códigos disciplinadores de tendências de esquerda que mantiveram intocados o machismo e o autoritarismo camuflados sob certas estratégias de organização sindical e partidária ? Como resgatar a paixão política de setores expressivos e atuantes nos movimentos políticos e sociais que se tornaram apáticos após a queda do socialismo real no leste europeu, após a constatação do insucesso da Frente Sandinista na construção do socialismo democrático em Nicarágua que se tornou patente na derrota eleitoral para Violeta Chamorro, após a derrota da utopia socialista da Frente Brasil Popular em 1989 ? Essas e muitas outras questões que emergem da práxis de pessoas, movimentos e partidos engajados na construção de uma nova sociedade nos convidam a uma reflexão orgânica que contribua para a libertação integral de cada ser humano, para a subversão de todas as situações de exploração, dominação e de qualquer forma de injustiça, bem como para a construção de uma sociedade em que cada ser humano possa viver plenamente sua existência, sendo respeitado e desejado em sua alteridade. A disposição última a atender a esse convite, entretanto, não se apoia em um paradigma teórico, mas em uma sensibilidade ética e estética perante o rosto de cada ser humano oprimido que, mesmo sem palavras, nos convida à solidariedade. ------------------------------ NOTAS * Comunicação apresentada na "Semana Filosófica" , PUC-PR, 24 de Setembro de 1992 1. HEGEL, La Phénoménologie de l'Esprit. Trad. Jean Hyppolite. Paris, Aubier, Éditions Montaigne, 1939 Tomo I p. 153 2. Adolfo SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Filosofia de la Praxis, Ed. Grijalbo, México D.F., 1967, p. 66 - 67 3. HEGEL, op. cit. p. 159 4. Karl MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, vol. 35 Editora Abril, 1974 p. 27 5. Ibid., p. 16 6. Karl MARX, "Crítica da Filosofia do Direito de Hegel : Introdução", apud Adolfo SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Filosofia de la Praxis, Ed. Grijalbo, México D.F., 1967, p. 108 7. Karl MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, vol. 35 Editora Abril, 1974 p. 22 8. Ibid., p. 23 9. Ibid., p. 23 10. Tanto a atividade em que se objetiva a subjetividade humana, quanto o gozo que pode se realizar na apropriação do objeto, são sociais em seu modo de existência e conteúdo. Da mesma forma que na prostituição o corpo de outro é mediação de uma relação social alienante, sob a contradição prostituidor- prostituido, também a relação alienada com o objeto em busca do gozo é uma prostituição. "A prostituição é apenas uma expressão particular da prostituição geral do trabalhador, e, desde que a prostituição é uma relação que inclui não somente o prostituído, mas também o prostituinte -- cuja infâmia é ainda maior --, recai também o capitalista, etc, nesta categoria." (Ibid., p. 15). Em outra passagem, contudo, Marx afirma que "... o dinheiro é o proxeneta entre a necessidade e o objeto, entre a vida e os meios do homem". E salienta: "Mas o que me serve de meio para minha vida, serve também de meio para o modo de existência dos outros homens para mim. Isto é para mim o outro homem" (Ibid., p. 35). Neste caso, em um modo de existência onde a humanidade é negada em função do acúmulo de capital, a subjetividade que se realiza no produto objetivo -- que visa atrair o ser do outro -- e na sua fruição -- mediada pelo dinheiro -- se desumaniza. 11.Karl MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, vol. Editora Abril, 1974 p. 23 12. Ibid., p. 17 13. Ibid., p. 22 (grifo nosso) 14. Ibid., p. 17 15.Ibid., p. 34. Para Marx a superação da alienação está vinculada às suas diversas formas históricas: " É evidente que a superação da alienação se dá sempre a partir da forma da alienação que constitui a potência dominante: na Alemanha, a autoconsciência; na França, a igualdade, por causa da política; na Inglaterra, a necessidade prática, material, real, que se toma por única medida." ( Ibid., p. 27). 16. Escreve Clausewitz em Da Guerra "A guerra é uma simples continuação da política por outros meios. Vemos assim, que a guerra não é meramente um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação das relações políticas, a realização destas por outros meios. [...] Toda guerra será considerada como um ato político". Cf. Carl VON CLAUSEWITZ, De la Guerre. Traduzido ao francês por Denise Naville. Les Edition de Minuit, Paris, 1970, p. 67 - 68. Delcy Doubrawa ao invés de "relações políticas" preferiu a tradução "negociações políticas" . Cf. Rogers Ashley LEONARD, Clausewitz, Trechos de sua Obra, traduzido por Delcy Doubrawa, Biblioteca do Exército Editora, Rio de Janeiro, 1988 p. 46 17.No primeiro número do Pravda em 1923 Lênin escreve que "para os trabalhadores do partido só pode ser benéfico o estudo detalhado das obras de Clausewitz". Cf: Augusto de FRANCO,"Recusando o paralelo militar na política" in O novo socialismo utópico (pré-edição) São Paulo, Ed. Thomé das Letras, 1991, p. 47. Sobre esse tema: Clemente ANCONA. 'La influencia de 'De La Guerra' de Clausewitz en el pensamiento marxista de Marx e Lenin" in Clausewitz en el pensamiento marxista, Pasado y Presente, México, 1979. 18.Adolfo SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Filosofia de la Praxis, Ed. Grijalbo, México D.F., 1967, p. 165 19. Embora Sanchez Vázquez não exponha, em Filosofia de la Praxis, de maneira concisa e clara este movimento metodológico dialético de compreensão da realidade, a ele se refere citando a Crítica da Economia Política explicitando a atividade teórica cognoscitiva, a produção de conhecimentos, "... como um processo ascencional do abstrato ao concreto...", bem como, tratando da sua dimensão analítica e sintética, em outra passagem, ao referir-se a Hegel ( p. 167 e 72-73). O conteúdo do parágrafo de nosso artigo que dá margem a essa nota parece implícito e coerente com o estudo da práxis feita por Vázquez. Estudos acerca do método dialético marxiano desdobrando-o em momentos analíticos e sintéticos, resolutivos e compositivos, com posicionamentos distintos perante o mesmo, podem ser encontrados em G. A. KURSANOV, El Materialismo Dialético y el Concepto, Ed. Grijalbo, México D.F., 1966, em especial o ítem "El Concepto como Unidad de lo Concreto y lo Abstracto" p. 195- 208 ( publicada no México no mesmo ano em que Vázquez defende a sua tese de doutorado sobre a filosofia da práxis ), Wolfgang RÖD, Filosofia Dialética Moderna, Brasília, Editora da Universidade de Brasília, 1984, em especial o ítem "O Método da Economia Política" p. 230-235, e ainda Enrique DUSSEL, La Producción Teórica de Marx -- un comentário a los grundrisse. Ed. Siglo Veintiuno, México D.F., 1985, em especial "El Método Dialéctico de lo Abstracto a lo Concreto" p. 48-63. 20. Salienta Vázquez que ao se realizar a análise de uma dada formação estrutural, em um momento histórico determinado, é necessário considerar a perspectiva genética de constituição histórica das próprias estruturas em questão. Cf. SÁNCHEZ VÁZQUEZ, op. cit. p. 282-283. 21. Tal conceito de práxis política é similar ao conceito de guerra em Clausewitz: " a guera é pois um ato de violência destinado a compelir o adversário a submeter-se à nossa vontade" . CLAUSEWITZ, op. cit. p. 51. Lênin afirmou em seu texto sobre "O Racha da II Internacional" que a violência é o meio que precisamente distingue a guerra como continuação da política. Cf. Pierre NAVILLE, "Carl Von Clausewitz et la théorie de la guerre" in Clausewitz, op. cit. p. 29 22. A violência "calada" da exploração de classe, da miséria, da fome, da prostituição e da doença citada por Vázquez op.cit. p. 305-306 nos lembra a guerra civil "oculta" de Lênin. Ao par da violência calada está a violência "ruidosa" do Estado com seus aparelhos e métodos repressivos na defesa dos interesses do capital. 23. Ao tratar da fenomenologia do eros, Lévinas explicita que na relação erótica humana manifestam-se simultaneamente o desejo, que se conclui no gozo, e o Desejo sempre insatisfeito, que buscará servir ao outro na proximidade, na justiça e no respeito. Cf. Emmanuel LÉVINAS, " Au dela du visage" in Totalité et Infini, Martinus Nijhoff , 1961 pp. 232 -261, em especial 233 - 244. 24. Durante a década de 70, trata-se da dialética existencial heideggeriana, com incursões pelo conceito de práxis formulado por Husserl desde a Lebenswelt. A partir da década de 80, Dussel volta-se ao estudo da dialética marxiana buscando nos próprios textos de Marx a utilização da categoria de exterioridade. O conceito de mediação em Dussel, entretanto, não é similar ao conceito de mediação em Marx, pois Dussel não concebe similarmente a contradição dialética ontológica da realidade, posta a precedência metafísica do outro distinto como negadora da posição ontológica do outro como diferente. 25.Ao afirmar que o outro enquanto tal não pode ser visto, Lévinas cria um problema quanto ao estatuto alterativo do corpo material do outro. Retomando o conceito hebraico de basar (carne, homem), Dussel afirma a unidade do corpo, simultaneamente matéria e vida, objetividade e subjetividade interpenetradas, sendo portanto a exterioridade humana simultaneamente seu corpo objetivo e sua subjetividade. Esta equação dusseliana cria, entretanto, um outro problema. Não se poderá advogar, por exemplo, que um grupo de empobrecidos e oprimidos seja exterioridade total a concretude histórica de uma dada formação social, da qual materialmente participam na reprodução social de suas vidas, ainda que em condições precárias, mesmo contra sua vontade, mas em razão de suas necessidades. Nesse sentido as ponderações de Oswaldo Ardiles parecem corretas ao afirmar que a exterioridade é também simultaneamente e parcialmente interna à totalidade. Cf. Oswaldo ARDILES. El Exílio de la Razón Ed. Sils Maria, Cordoba, Argentina, 1988 pp 162 a 164 e 172. 26.A analogia e a meta-física são duas categorias inseparáveis no pensamento dusseliano. A metafísica é afirmada no seguinte sentido: "... a physis significa a totalidade ou o fundamento no sentido dos gregos e metà significa o que está 'mais além'". A metafísica trata assim de "... descobrir um mais- além do mundo, que é dado quando o Outro provoca e... sua palavra vem de 'mais além' do horizonte do mundo. Em grego, 'mais além' e 'mais alto' se dizem aná e a 'palavra': lógos; de tal maneira que ana-lógos significa ' a palavra que irrompe no mundo desde mais além do mundo', mais além do fundamento." Cf. Enrique DUSSEL, Introduccion a una filosofia de la liberación latino-americana, Ed. Extemporaneos, México D.F., 1977 p. 126 27.Enrique DUSSEL, Introduccion a una filosofia de la liberación latino-americana, Ed. Extemporaneos, México D.F., 1977 28.Enrique DUSSEL, Método para una filosofía de la liberación - Superación Analéctica de la Dialéctica Hegeliana. Ediciones Sigueme, Salamanca, 1974. 29.Enrique DUSSEL, Filosofia da Libertação, Loyola, 1980 30.Ibid., p. 60 31.Enrique DUSSEL, "Filosofia de la liberación desde la praxis de los oprimidos" in Libertação Liberación 2(1):33-49 jan dez 91 32.Sobre a identidade entre os conceitos de "Pulsão de Alteridade" em Dussel e "Desejo do Invisível" em Lévinas, veja- se nosso artigo "Lévinas e Dussel face-a-face" in Atualidade 3(116):7, 23 out 29 out 88, Curitiba, Pr. 33.Félix GUATTARI, Revolução Molecular, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 170 - 171 34.Guattari, analisando a produção econômica e a produção da subjetividade no sistema capitalista, percebe a ocorrência de uma semiotização das relações de poder em ambos os níveis, que são interativos. Os sistemas de signos que regem diversos domínios da vida ficam modelizados sob os códigos do Capitalismo Mundial Integrado. O capital, afirma Guattari, " é muito mais que uma simples categoria econômica relativa à circulação de bens e à acumulação dos meios econômicos. É antes uma categoria semiótica que se refere ao conjunto dos níveis da produção e ao conjunto dos níveis de estratificação dos poderes". "O exercício do poder por meio das semióticas do capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a partir de um controle de cúpula dos segmentos sociais, e pela sujeição de todos os instantes de cada indivíduo.(...) A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particularizados de subjetivação.(...) O conjunto de valores de desejo é reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática dos valores de uso em relação aos valores de troca, ao ponto de fazer com que esta categoria de valores de uso perca seu sentido. Passear 'liveremente' numa rua, ou no campo, respirar ar puro, cantar meio alto, tornam-se atividades quantificáveis de um ponto de vista capitalístico. (...) A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema de troca, uma truduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado." Sob os códigos do capital territorializa-se a ética, a política, a economia, etc; modeliza-se a relação dos sujeitos entre si e com os objetos, produzindo-se-lhes significações, sentidos e códigos de interação. Cf. F. GUATTARI, op. cit. p. 213, 201 - 202. 35.Salienta Guattari que contemporaneamente "os antigos territórios do Ego, da família, da profissão... etc, desfazem- se, uns após outros -- se desterritorializam." E conclui: " é porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos Equipamentos Coletivos, pelos especialistas de todo tipo, que não podemos mais nos contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos de entidade intra-psíquica, como fazia Freud..." Félix GUATTARI, op. cit. p. 167 36.Em Guattari o devir é um " termo relativo à economia do desejo". Para o pensador francês " os fluxos de desejo procedem por afetos e devires, independentemente do fato de que possam ser ou não calcados sobre pessoas, sobre imagens, sobre identificações. Assim um indivíduo, etiquetado antropologicamente como masculino, pode ser atravessado por devires múltiplos e, aparentemente contraditórios: devir feminino que coexiste com um devir criança, um devir animal, um devir invisível, etc. Uma língua dominante... pode ser localmente capturada num devir minoritário", como um certo dialético. Cf. Félix GUATTARI, "Notas descartáveis sobre alguns conceitos" in Félix Guattari & Suely Rolnik, Micropolítica -- Cartografias do Desejo, Petrópolis, Ed. Vozes, 1986, p. 318 37.Félix GUATTARI, Revolução Molecular, Ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 171 38.Falando de uma prática democrática da diferença afirma Guattari : " Não se trata de aceitar o outro em sua diferença e sim de desejar o outro em sua diferença, como escreve Emmanuel Levinas" Cf. Félix GUATTARI, "Subjetivação Subversiva" in Teoria e Debate, (12):60-64 nov 1990 p. 64 39.Conforme afirma Clóvis Rossi em uma análise sobre o estudo "Pobreza e distribuição de Renda na América Latina" feito por economistas do Banco mundial: "... o número de miseráveis só faz crescer. Eram 46,3% em 1980 e já são os 59,6% de agora. Como se fosse pouco há o detalhe de que esses quase 60% ficam com miserabilíssimos 2,1% da renda nacional. Cabe, portanto, aos 40% restantes o grosso do bolo (pouco menos de 98%)". Clóvis Rossi, "A Grande Infâmia". Folha de São Paulo, 09/03/93, p.2 . Embora estes dados pareçam contraditórios com a análise de Carlos Eduardo da Silva, no mesmo jornal no dia anterior afirmando que " embora haja mais pobres no país, diminuiu a participação deles na apropriação da renda nacional: em 1980, os 20% mais pobres tinham 2.6% da riqueza do país; em 1989, tinham só 2.1 % ", o fato é que a miséria aumentou inegavelmente. 44% dos pobres do continente latino- americano vive em nosso território, embora tenhamos apenas um terço da população da região. Conforme dados do IPEA, aproximadamente 22% da população do Brasil (31.679.095 pessoas) passam fome, vivendo atualmente em condições de miséria extrema. 40.Cf. José William VESENTINI, "Espaços Ociosos e Especulação Imobiliária", in José W. VESENTINI e Fernando PORTELA. Êxodo Rural e Urbanização. Coleção Viagem Pela Geografia, 3ª Edição, São Paulo, Editora 'Àtica, 1991, p. 22. 41.Trata-se das regiões metropolitanas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza, Curitiba, Brasília, Belém, Campinas e Goiania. Cf. José William Vesentini , "Síntese Geográfica - Compreendendo o Homem e o Espaço" in José W. VESENTINI e Fernando PORTELA. op. cit., p. 29. Destaque-se que a única megalópole brasileira que se estende da Grande São Paulo ao Grande Rio, incluindo Campinas, a Baixada Santista e o vale do Paraíba, possui uma área de 46 mil Km², aproximadamente 0,5% do território nacional, abrigando 23% da população do país e mais de 60% da produção industrial brasileira. Cf. José William VESENTINI. Sociedade e Espaço. Editora Àtica, 1992. p. 177. 42.Conforme documento da CNBB-Regional Sul II, Semana Social Paranaense - Brasil, Alternativas e Protagonistas, Curitiba, 1993 , p. 2 : " em todo o país existem apenas 5 milhões de proprietários rurais. Os 20 maiores proprietários são donos de mais de 20 milhões de hectares e os 3 milhões e 300 mil pequenos proprietários têm, todos juntos, menos de 20 milhões de hectares. Fazendo a média de um milhão de hectares para cada grande proprietário e 6,6 hectares para cada pequeno" . No Brasil existem atualmente 4,8 milhões de famílias rurais sem terra. Confrontando-se outras fontes tem-se que a MANASA, Madeireira Nacional SA, possuía 41.317,66 km² a sua maioria em Lábrea, Maranhão e Gurapuava, Piauí; já a APLUB -- Agro Florestal Amazônia SA possuía 21.984,72 Km² basicamente em Carauari e Jataí no Amazonas. A Bélgica possui 30.519 Km², Líbano: 10.552 Km², Israel 21.946 Km², El Salvador 21.393 Km². Fontes: Jornal do MST e Almanaque Abril, 1986 43.Cf. Folha de São Paulo, 09-03-93, p. 1-9. Segundo a CPT nacional esse número chega a mais de 16.000. Cf. Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo no Brasil. Goiânia. CPT/Loyola, 1993, p. 78 44.Os 100 maiores bancos no país em 1992 obtiveram 9,8% de rentabilidade sobre o patrimônio líquido, 13% de crescimento do lucro operacional e somente o Bradesco obteve sozinho um lucro de US$ 300 milhões. Cf. Revista Veja, Nº 32, 11 de Agosto de 1993, p.76-83 45.Sobre eixos de lutas veja-se nosso artigo "Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares" in Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, 85(6):645-671 nov dez 91 Práxis de Libertação
e Subjetividade.
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