.

Quatro Teses sobre o Neoliberalismo

Euclides André Mance*
IFiL - Curitiba, PR

Introdução

As quatro teses sobre o neoliberalismo que compõem este texto foram formuladas com a finalidade de serem apresentadas na primeira parte de minha intervenção em um debate sobre o tema (1). É justamente em razão de terem sido formuladas com tal finalidade que decidi, por exemplo, valer-me de Kant para argumentar que o neoliberalismo é imoral. Como todos sabem, Kant é invocado para a justificação do neoliberalismo. Recuperei esse autor, não porque considere a sua reflexão sobre a ética como a melhor fundamentada filosoficamente, mas justamente para provocar o debate sobre a fundamentação ética do liberalismo no campo em que os próprios liberais costumam fazê-lo, a fim de refutar-lhes as posições que pretensamente desdobram da filosofia do direito de Kant, esquecendo, entretanto, de perceber que a autonomia kantiana -- que o direito deve preservar -- é uma exigência da moralidade que se articula com princípios que são contraditórios às propostas neoliberais (2).

Este texto, portanto, consiste na apresentação e argumentação sumária de quatro teses sobre o neoliberalismo como projeto político, a saber:

1) que ele não garante equânimes condições objetivas para o exercício da liberdade de todos os indivíduos nas sociedades em que se implanta, sendo um projeto político excludente que favorece a realização ampla da liberdade da minoria de uma dada sociedade em detrimento do exercício objetivo da liberdade da maioria (3);

2) que é uma concepção de mundo imoral em que usar e descartar pessoas em função de vantagens privadas torna-se, no limite, o lema principal;

3) que propaga uma ilusão, pois é impossível historicamente atingir os fins que propõe com os meios que preconiza, uma vez que estabelece um modelo formal de concorrência ideal impossível de ser realizado;

4) que é um modelo econômico incapaz de enfrentar a crise do trabalho no sistema de produção de mercadorias da atual economia globalizada.

Passemos, então, ao desenvolvimento dessas teses.

1. O liberalismo não garante condições objetivas para o exercício da liberdade de todos.

O exercício da liberdade supõe certas condições, sem as quais ela se realiza em um nível tão precário e mínimo, que acaba perdendo sua efetividade humanizadora. Para facilitar o debate poderíamos dividi-las em condições subjetivas e objetivas -- embora historicamente elas sempre se interpenetrem.

O primeiro filósofo moderno a refletir profundamente sobre as condições subjetivas para o exercício da liberdade foi Immanuel Kant (1724-1804). Humanamente livre é, para Kant, aquele homem que realiza sua própria autonomia, seguindo os ditames da sua própria razão esclarecida. Cada homem, seguindo os procedimentos racionais -- que sendo transcendentais, são universais a toda espécie humana -- define as normas morais universais obedecendo unicamente a si próprio. O Estado tem o papel objetivo de reprimir aqueles que, agindo de modo contrário às exigências da razão, obliteram o exercício da liberdade alheia. Cabe a cada homem ter a coragem de usar o seu próprio entendimento e sair da condição de menoridade, na qual é tutelado por outro que lhe diz o que fazer. Conforme Kant, os guardiões de rebanho se encarregam de tutelar os que tem medo de pensar por conta própria: " Inicialmente os guardiões domesticam o seu gado, e certificam-se de que essas criaturas plácidas não ousarão dar nenhum único passo sem seus cabrestos "(4). Contudo, mesmo estes poderão conquistar sua emancipação. " Mas que o público se esclareça a si mesmo -- diz Kant -- é muito perfeitamente possível; se lhe for assegurada a liberdade, é quase certo que isto ocorra..."(5)

Assim, para o fundador do idealismo transcendental, o esclarecimento, que no campo da convivência social exige ao homem seguir os imperativos categóricos da razão, levaria à superação da menoridade e a uma vivência ética emancipada.

Não tardou, entretanto, para que as teses de Kant sobre o exercício da liberdade fossem superadas dialeticamente -- isto é, incorporadas e transformadas em uma nova construção filosófica.

Georg W. F. Hegel (1770-1831) desdobrará a análise sobre as condições objetivas para o exercício da liberdade, ou, para que a idéia de liberdade possa efetivar-se objetivamente, o que somente ocorre na mediação do Estado.

Se para Kant é possível que o público se esclareça a si mesmo se lhe for assegurada a liberdade, a pergunta torna-se agora como assegurar objetivamente a liberdade ao público, a todo o povo ? Hegel compreende claramente que a liberdade é exercida em meio a um processo histórico, dinâmico, em conflito, cheio de interesses e tensões. Não há, portanto, uma razão que possa esclarecer-se a si mesma independentemente de um conjunto de mediações históricas subjetivas e objetivas. Sendo assim, a liberdade somente pode realizar-se publicamente se forem garantidas as sua condições de possibilidade. A moralidade privada ( Moralität ), como bem analisa Hegel, afirma condutas que alguém, em particular, pode pretender que sejam universais, mas que sendo determinadas por interesses econômicos privados, não possibilitam a realização universal da liberdade dos seres humanos de modo ético. A sociedade civil burguesa (bürgerlichen Gesellschaft) é a esfera dos interesses privados, econômicos, particulares do bourgeois que se afirmam a partir de sua moralidade sem preocupar-se com a realização dos interesses públicos. Frente a isso, a mediação objetiva necessária para a efetivação da idéia de liberdade é a esfera política do Estado. O Estado é a esfera dos interesses públicos do citoyen afirmados a partir de uma eticidade (Sittlichkeit) que, voltada para a realização do bem público, determina um outro caráter para o exercício da liberdade privada (6).

Se em Kant o direito deve ser uma garantia à liberdade privada vivida sob os imperativos da moralidade, em Hegel ele é expressão da eticidade e substrato próprio da cidadania. Em ambos é uma mediação política para assegurar a liberdade de todos os homens. Contudo, a posição de Hegel -- que inaugurou um idealismo histórico -- não tardou muito a ser criticada; em meio a tal crítica foram destacadas, então, as condições objetivas econômicas para o exercício da liberdade.

Conforme Karl Marx (1818-1883) a realização da liberdade supõe condições objetivas não apenas políticas mas também econômicas. A liberdade exige propriedades materiais para o seu exercício, que lhe são, também, condições reais de possibilidade. Embora o Estado pareça assegurar a liberdade de todos com a formal igualdade jurídica, na verdade assegura apenas a liberdade dos que tem propriedades materiais para exercê-la, na própria extensão possibilitada por tais posses. Assim, o Estado sob o capitalismo, fundamentalmente, não é uma mediação ética para assegurar a universalidade da liberdade mas para assegurar a uma parcela de proprietários o contínuo domínio e possibilidade de dispor de sua propriedade privada, condição material objetiva do exercício de sua liberdade. Como para o exercício efetivo da liberdade desta pequena parcela -- cindida da realização da liberdade pública -- se destina a maior parte da riqueza econômica que se converte nas mediações materiais de tal liberdade -- mediações essas que não podem ser utilizadas para o exercício da liberdade das maiorias que não tem sobre elas o direito de propriedade, isto é, de apropriar-se delas com autonomia -- a realização da liberdade de tal parcela minoritária, deste modo, é simultaneamente a negação da realização universal da liberdade do conjunto dos indivíduos daquela sociedade. A propriedade é privada porque todos os demais estão privados de usufruí-la. Deste modo, a propriedade privada que possibilita o exercício caprichoso da liberdade de alguns é o que impede o exercício das liberdades mais elementares dos outros e até mesmo a satisfação adequada de suas necessidades básicas humanas como trabalhar, morar, comer, educar-se, desfrutar de um lazer mais criativo, etc.

Ora, sendo a propriedade privada -- colocada acima do interesse público -- a mediação básica que mantém as privações materiais das maiorias para a realização elementar de sua humanidade e sendo os bens materiais condições objetivas indispensáveis para a realização do exercício da liberdade, conclui-se que para a realização da liberdade de todos e do desenvolvimento humano de cada um é necessário que a posse dos bens econômicos seja universalizada, o que exige o estabelecimento de um controle público sobre a riqueza produzida na sociedade, modificando-se o modo de apropriação dessa riqueza superando-se as privações sociais.

Para Marx, que inaugura o materialismo histórico, o processo de objetivação da liberdade exige, entre outras mediações, tanto a tomada de consciência de si mesma da classe trabalhadora negando sua alienação (esclarecimento), quanto a superação do Estado burguês e da propriedade privada dos meios necessários à produção, bem como a distribuição mais equânime possível dos bens materiais e culturais garantindo a efetivação dos interesses públicos, sociais, e particulares de cada ser humano (emancipação) . O comunismo é para Marx a base material do exercício da liberdade, mas não é a configuração última da sociedade que deve desabrochar do pleno exercício da liberdade dos homens no que Marx chamou "Reino da Liberdade". As organizações políticas e jurídicas que se construam nesta nova sociedade devem assegurar as condições objetivas e subjetivas para o exercício, o mais pleno possível, da liberdade pública e particular (7).

Do que até aqui analisamos, podemos concluir que para a realização da liberdade são necessárias, portanto, condições subjetivas e objetivas. Não basta, entretanto, que um indivíduo possua "autonomia", "condições políticas e econômicas" para o exercício de suas escolhas se não dispuser, entretanto, da informação qualitativa e suficiente para a tomada de decisão. Privado da informação qualitativa e suficiente o indivíduo escolhe, toma decisões em seus juízos autônomos, de acordo com os interesses daqueles que lhes fornecem as informações insuficientes ou parciais.

De tudo isso podemos concluir que, por não assegurar universalmente -- nas sociedades em que se implanta -- as condições objetivas (econômicas, políticas e culturais) para o exercício da liberdade de cada pessoa o liberalismo deve ser rejeitado como modelo de realização da liberdade e da cidadania.

2. O neoliberalismo propõe um mundo imoral

Há uma interpretação inconsistente de textos de Kant para fundamentar moralmente o neoliberalismo. Apresentaremos, em um primeiro momento, os elementos básicos da posição de Kant sobre a moralidade para, em seguida, julgarmos moralmente as práticas propagadas em nome do neoliberalismo.

Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant deduz a partir do estudo transcendental dos juízos morais a sua forma necessária como imperativo categórico: " Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal" (8). O imperativo categórico nos obriga à ação moral pela força de sua própria necessidade racional; é em razão de tal necessidade que ele pode e deve ser universalizado. O imperativo hipotético (faça isso para obter vantagem naquilo) é, por outro lado, imoral, pois a ação não é determinada pela lei objetiva da razão prática, mas por alguma inclinação ou tendência particular. Cabe ao homem dever seguir a sua própria vontade determinada pela razão que se torna, assim, boa-vontade. Só há, pois, moralidade quando há autonomia. A heteronomia (cumprir a lei ou a norma para evitar a sanção ou para obter vantagens) é imoral pois a torna meio para uma outra coisa. A autonomia é a condição de quem elabora a sua própria norma e o faz de modo racional universalizando-a como um fim em si mesma para a conduta moral. Ora, como todos os homens participam da mesma razão -- se todos raciocinarem de modo correto, cada qual elaborará normas válidas para todos. Assim, o exercício da liberdade supõe uma consciência esclarecida e a determinação da vontade a partir da lei moral, comportando-se cada homem como legislador e membro no Reino dos Fins, nunca podendo tomar como meio aquilo que deve ser um fim.

Kant deduz, então, a matéria ou o fim do imperativo categórico:

" O homem, e, de uma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário, em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ser considerado simultaneamente como um fim. Todos os objetos das inclinações tem somente um valor condicional... Os seres... se são seres irracionais, [ tem ] apenas um valor relativo como meios e por isso se chamam coisas, ao passo que os seres racionais se chamam pessoas, porque a sua natureza os distingue já como fins em si mesmos, quer dizer, como algo que não pode ser empregado como simples meio e que, por conseguinte, limita nessa medida todo o arbítrio..."(9).

A segunda formulação do imperativo categórico, considerando a sua matéria ou o seu fim diz, portanto, o seguinte: " Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como meio."(10). Analisando a diferença entre coisas e pessoas, meios e fins, Kant conclui que:

" No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo preço, e portanto não permite equivalente, então ela tem dignidade.

O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço...; aquilo porém que constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade.

(...) Portanto, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que têm dignidade" (11).

A conclusão final a que chega Kant é esta: " Assim eu devo, por exemplo, procurar fomentar a felicidade alheia, não como se eu tivesse qualquer interesse na sua existência (quer por inclinação imediata, quer, indiretamente, por qualquer satisfação obtida pela razão), mas somente porque a máxima que exclua essa felicidade não pode estar incluída num só e mesmo querer como lei universal" (12).

Para garantir o exercício da liberdade individual é necessária a constituição de um Estado, a manutenção da ordem formulada sob leis, e sua imposição aos que não vivem a liberdade segundo os princípios acima expostos. Do mesmo modo o estabelecimento das leis deve respeitar também tais princípios. Assim, afirma Kant que " A pedra de toque para o estabelecimento do que devem ser as leis de um povo está em saber se o próprio povo poderia ter-se imposto as leis em questão (...). O que o povo não pode decretar para si próprio muito menos pode ser decretado por um monarca, pois a autoridade legislativa deste último baseia-se em que ele une a vontade pública geral na sua própria."(13).

Ora, considerando a moral kantiana, a maior parte das práticas preconizadas pelo neoliberalismo é imoral. Destaquemos apenas alguns exemplos do que resulta objetivamente das práticas neoliberais (14).

As pessoas são tratadas como meio quando o valor de propriedade é colocado acima da dignidade humana dos que moram pelas ruas, em favelas ou não tem terra para plantar porque estão privados da propriedade privada. Conforme o censo agrícola de 1985, 0,8 % dos proprietários rurais no Brasil com 1.000 ou mais hectares de terra controlam 45,8% das terras agrícolas do país, sendo que 75% dessa área está ociosa; conforme documento apresentado na "Habitat II - Encontro Paranaense"(15), mais de 50% da áreas sem edificação nos espaços urbanos são propriedade privada de menos de 1% da população; dados do INCRA revelam que 4 milhões e 800 mil famílias de agricultores não tem terra para plantar. Entre considerar a propriedade como meio para a realização da dignidade humana do conjunto dos sujeitos que constituem o povo de um país, ou considerá-la como privada ao uso coletivo para a realização da dignidade humana, a fim de atender somente aos interesses de seu dono particular, o liberalismo escolheu a defesa da propriedade privada, independentemente do estatuto imoral no trato dessa propriedade (16).

As pessoas são tratadas apenas como meio quando são descartadas do processo produtivo ou têm os seus proventos diminuídos para resguardar ou ampliar a competitividade da empresa -- operando com tecnologias mais sofisticadas -- a fim de manter ou ampliar lucros aos seus proprietários e acionistas. O desemprego no mundo todo é alarmante, sendo que no Brasil atinge atualmente a vários milhões de trabalhadores; sem condições de trabalhar com dignidade, mais de 32 milhões de pessoas vivem abaixo da linha de pobreza absoluta em nosso país (17). A maioria dos desempregados e de seus filhos, trabalha na economia informal, por exemplo, catando papel ou cuidando de carros nos centros urbanos ou vendendo coisas nas esquinas (18).

As pessoas são tratadas apenas como meio quando o Estado é privatizado transformando a saúde, educação e a cultura em objeto de comércio para o enriquecimento e o lucro de grupos em troca da prestação desses serviços por algum preço que a maioria da população só poderá pagar a duras penas. Conforme dados do IBGE 15,5% de crianças de 7 a 14 anos não freqüentam a escola; na população com mais de 10 anos são 17,8% os analfabetos. Grande parte destes estão incluídos entre os 32 milhões que passam fome e que não tem condições de pagar por saúde ou educação, etc.

As pessoas são tratadas como meio quando tem de se submeter a leis que elas próprias não imporiam a si mesmas no correto exercício de sua razão respeitando a sua própria dignidade e tomando-se simultaneamente como um fim. Que pai ou mãe se imporia respeitar a cerca de um latifúndio que nada produz ou de um terreno baldio há dezenas de anos (19) no espaço urbano quando vê seus filhos passando fome porque sendo agricultor não tem terra para plantar, ou sendo um desempregado que cata papelão ainda tem de pagar um aluguel exorbitante, o que lhes impede de alimentar minimamente seus filhos e a si mesmos ? (20)

Concluamos, o neoliberalismo é imoral porque é surdo ao sofrimento e à miséria dos milhões de excluídos do processo produtivo, porque justifica essa exclusão em nome da racionalização dos custos e da competitividade entre os agentes privados, defendendo a utilização egoísta da propriedade privada acima da função social que toda propriedade deve cumprir, desconsiderando como objetivo a realização, também, da felicidade alheia.

3) O neoliberalismo propaga uma ilusão, pois é impossível atingir os fins que propõe com os meios que preconiza, uma vez que estabelece um modelo formal de concorrência ideal impossível de ser realizado.

A teoria da concorrência perfeita é obtida por uma abstração de práticas reais de concorrência no mercado. A concorrência perfeita é concebida como sendo a situação ideal de concorrência implícita ao processo de concorrência real. Os predecessores desta concepção de concorrência são John Locke e Adam Smith, sendo posteriormente elaborada no final do século XIX, em um esquematismo formal, como modelo de um equilíbrio geral, por Léon Walras (1834-1910) e Wilfredo Pareto (1848-1923). Assim, de situações reais de concorrência localizadas abstrai-se um modelo formal, universal, do qual deduz-se procedimentos a serem adotados para a realização de uma concorrência perfeita. Explicitando a articulação de diversos aspectos nessa abstração, afirma Franz Hinkelammert que: " Em conexão com a tese de Adam Smith sobre a mão invisível, a situação ideal de concorrência é tal que, na perseguição do interesse pessoal, automaticamente é preservado a realização do bem comum como interesse geral. Daí segue-se a dedução dos valores fundantes do mercado: Propriedade privada e cumprimento de contratos." (21). Deixando-se o mercado livre ao seu próprio movimento, ao seu próprio jogo, atuaria a mão invisível que tende a levá-lo a um equilíbrio. Assim, sob a Teoria do Equilíbrio Geral como a formulada por Walras/Pareto: " Esta tendência é compreendida como uma tendência sempre presente para a presença desse equilíbrio, mas também como um processo no tempo, na qual a economia se aproxima de um estado de equilíbrio num processo sem fim" (22).

Entretanto, o movimento de aproximação da realidade à sua situação ideal é assintótico (23). Na realidade não pode ser efetivado um modelo formal, pois a formalização bane as contingências inerentes à realidade. Nesta aproximação assintótica, é abstraída a contingência do mundo e da condição humana (24): " Ela necessita interpretar, como aproximação, passos finitos em direção a um fim infinitamente longínquo " (25), como se o número 100 estivesse mais perto do infinito que o número 1. A infindável aproximação assintótica da realidade ao modelo ideal, contudo, não conduz à efetivação dos objetivos do modelo, mas leva à realização de alguma outra coisa em razão das contingências da realidade humana que estão banidas do modelo formal. Esta confiança na realização dos objetivos do modelo sob tal aproximação assintótica é denominada por Franz Hinkelammert como uma ilusão transcendental. Assim, sob o modelo formal a concorrência perfeita levaria à satisfação ideal de todos, satisfação regulada pela mão invisível do mercado. Entretanto, na realidade efetiva, quanto mais os "entraves estatais reguladores do mercado" são suprimidos, para que a concorrência seja cada vez mais livre, mais aumenta -- em todas as sociedades que vem adotando este modelo -- a exclusão social e a insatisfação de necessidades elementares da parcela maior da população . Quanto mais se tenta efetivar o modelo moderno e competitivo do livre mercado -- que satisfaria os interesses de toda a sociedade, aumentando a produtividade, baixando os preços e ampliando o consumo quantitativo e qualitativo de todos -- mais reaparecem formas de miséria e barbárie, exclusão e pobreza (26). Os dados do Banco Mundial sobre a pobreza no mundo, se cruzados com a propagação mundial do neoliberalismo articulado às políticas do FMI, confirmam indubitavelmente a análise precedente.

Realizamos neste item 3 a crítica do mito da concorrência perfeita, considerando epistemologicamente a construção teórica do modelo que a comporta. O argumento que desenvolvemos até aqui suporta consistentemente esta crítica. Entretanto, a crítica de que " o neoliberalismo propaga uma ilusão " poderia ser feita ainda sob mais duas abordagens que serão, aqui, apenas apontadas.

Uma análise das transformações reais do capitalismo implicaria em considerar as transformações reais dos mecanismos das concorrências efetivas. Assim, poderíamos também refutar o neoliberalismo -- não apenas considerando a inconsistência de seu modelo teórico -- mas acompanhando o movimento de concorrências reais nas diversas fases do capitalismo que vão se sucedendo: mercantil, concorrencial, monopolista e, agora, na fase de "globalização". Em cada fase destas a concorrência se verifica de modo distinto, pois historicamente situada. Há, contudo, um atual anacronismo nas argumentações de suporte ao neoliberalismo que aplicam na análise da fase de globalização do capitalismo categorias que foram elaboradas para compreendê-lo em sua fase concorrencial. Pior do que isto, as categorias que surgiram com a finalidade de explicar a realidade do capitalismo concorrencial são transformadas em categorias que pretendem normatizar a organização dos agentes econômicos sob o capitalismo globalizado. Assim, argumentam-se transformações da inserção nacional na economia internacional tratando-se o fenômeno da concorrência na atual economia globalizada com categorias que operavam na fase do capitalismo concorrencial, sequer considerando a influência dos monopólios nas alterações dos processos de concorrência e menos ainda a atuação dos mega-conglomerados transnacionais, articulados a um capital financeiro sem pátria que possui uma velocidade extraordinária de movimentação graças às mediações informáticas e comunicacionais geradas no bojo da nova revolução tecnológica.

Uma outra abordagem também esclarece que "o neoliberalismo propaga uma ilusão" porque a manutenção da auto-determinação do indivíduo a partir da autonomia privada – portanto, da liberdade subjetiva -- supõe condições objetivas que a suportem, isto é, a garantia objetiva da liberdade, sem a qual pode haver autonomia mas não auto-determinação, em razão da carência de mediações econômicas, políticas e culturais para tanto. Assim, retomamos a tese primeira: o neoliberalismo propaga uma ilusão porque afirma promover a liberdade autônoma de cada indivíduo enquanto, de fato, desmonta as condições objetivas da liberdade pública, restringindo o exercício de auto-determinação das maiorias, privando-as de condições materiais, políticas e culturais que a assegurem. Neste caso, a ilusão propagada pelo neoliberalismo é a de que ele promove a liberdade de todos, sendo que apenas amplia o exercício de liberdade de uma parcela que tem cada vez mais acesso ao capital e à informação e estão servidos por uma legislação nacional e internacional que favorece os seus interesses privados.

4. O neoliberalismo é um modelo incapaz de enfrentar a crise do trabalho no sistema de produção de mercadorias da atual economia globalizada.

O mundo vive uma nova revolução científico-tecnológica que possibilita, a cada dia, níveis mais altos de super-produção ao mesmo tempo que torna obsoletas grande parte das atividades produtivas do planeta, dispensando um volume cada vez maior de força humana de trabalho, restringindo, assim, os mercados consumidores.

O trabalho, no sistema de produção de mercadorias, entrou em crise, sendo reorganizado em volume e em qualidade em função das inovações tecnológicas e de gerenciamento. Tal crise que afeta o trabalho, também envolve o enfraquecimento de mercados consumidores e a fragilização das economias dos diversos países que vem perdendo sistematicamente a concorrência comercial. A crise econômica que iniciou pelos países do Terceiro Mundo no anos 80, chegou aos países socialistas em 1989 e já atinge aos países ricos. Em um número cada vez maior de países está diminuindo a capacidade aquisitiva das massas, limitando-se a maior parcela do consumo global a setores cada vez menores. Relatórios do Banco Mundial afirmam que o aumento do número de pobres no mundo todo nos anos 90 é um dos problemas mais graves a ser enfrentado: 73% da população mundial detém apenas 15% da riqueza produzida no planeta (27). Isso se agrava cada vez mais em razão do progressivo aumento do desemprego, que na Espanha atinge a casa dos 20%, enquanto na França, Itália, Canadá gira em torno de 10% e na Alemanha e Inglaterra na faixa de 8%. As empresas gigantescas no mundo todo promovem um processo de readequação envolvendo racionalização de custos e novos gerenciamentos a fim de aumentar a produtividade com menos gastos para enfrentar as concorrentes. Em razão disso, a IBM demitiu mais de 20.000 funcionários nos últimos anos; a G.M. que amargou um prejuízo de US$ 4,5 bilhões em 1991, definiu então um programa que previa, em quatro anos, eliminar 74 mil empregos e fechar 12 fábricas até 1995, a fim de voltar a obter lucro, tornando-se mais competitiva. Entre as demissões da G.M. no mundo inteiro estão as realizadas em São Paulo, envolvendo milhares de trabalhadores.

Este processo de modificações na economia capitalista vem agravando cada vez mais a exclusão que é sempre inerente ao capitalismo. Inicialmente eram apenas bairros e periferias isolados que ficavam excluídos na marginalidade, transformando-se em focos de revoltas potenciais -- essas regiões existem em maior ou menor medida em todos as sociedades ocidentais; depois cidades e regiões inteiras foram engolidas no quadro da marginalidade dos movimentos do capital -- que se concentra em certas regiões com processos produtivos cada vez mais complexos, que resultam em mercadorias que serão levadas ao pontos mais distantes do globo em um disputa por mercados (ficando alijadas as áreas que não sediam processos produtivos qualificados e que não possuem significativo mercado consumidor em razão da pobreza global dos consumidores) ; agora já são países inteiros que estão falindo e se tornando casos sociais mundiais -- tem dívidas externas impagáveis, não sediam significativos processos produtivos e de exportação que permitam pagá-las e, por fim, possuem um mercado consumidor cada vez mais pobre e uma infra-estrutura que vai se obsoletizando rapidamente em função de não suportar as inovações tecnológicas, o que não atrai empreendimentos externos.

Há uma crise de dívidas internacionais que se ampliam com o financiamento pelos países super-avitários das importações pelas economias deficitárias. Alemanha e Japão emprestam dinheiro pelo qual recebem juros e que, especialmente, possibilita aos países devedores comprarem os produtos que os mesmos países credores exportam. Sem esse financiamento ocorreria uma crise mundial. A gravidade da situação pode ser percebida considerando-se indicadores da dívida externa e da balança comercial dos países.

A dívida externa da América Latina em 1992 - conforme dados do Banco Mundial, Bancos Credores e FMI - girava em torno de 1,35 trilhões de dólares. O pagamento de seus juros e serviços anuais é em média conforme dados da UNICEF, 178 bilhões de dólares -- sendo que bastaria apenas 2,5 bilhões para reduzir pela metade o número de 40 mil crianças que morrem por dia de fome, diarréia, tétano e sarampo na América Latina. Por outro lado, analisando a balança comercial dos diversos países percebemos objetivamente os dados que suportam a análise precedente, mostrando a maioria em condição deficitária, ao passo que Japão e Alemanha mantém superávits. Em 1992, por exemplo, era esta a situação da balança comercial de alguns países: Estados Unidos US$ -84,50 bilhões; Reino Unido US$ -24,60 bilhões; Itália US$ -10,00 bilhões; França US$ -4,00 bilhões; México US$ -20,00 bilhões; Argentina US$ -2,96 bilhões; Japão US$ +107,06 bilhões; Alemanha US$ +21,00 bilhões (28).

Neste quadro complexo da economia contemporânea, títulos e outros papéis que circulam como capital fictício e o conjunto dos capitais acumulados que não tem como ser reinvestidos na produção em razão da carência de mercado, acabam investidos em mercados especulativos onde os movimentos de concorrência ampliam ainda mais o valor virtual desses capitais. Entretanto, este movimento que possui curva ascendente em um determinando momento, terá também seu movimento de declínio, conforme analisa Robert Kurz. Assim, quanto mais as dívidas se tornarem impagáveis, tanto mais se recorrerá a venda de ações e imóveis para garantir o seu pagamento e maior será a velocidade em que a especulação entrará em colapso, trazendo consigo uma crise no crédito e na economia mundial (29).

O modelo neoliberal, portanto, não é o fim da história. Pelo contrário, as alterações na cadeia produtiva e a concentração do capital mostram que a economia está oligopolizada em movimento de rápidas transformações sob os imperativos dos megaconglomerados que esquadrinham o mundo sob seus interesses e que possuem no neoliberalismo um eficiente instrumento para convencerem os países a adotarem um conjunto de políticas que favorecem a esses mesmos grupos econômicos.

Dentre as mudanças que se verificam em toda o processo produtivo podemos, rapidamente, destacar a aceleração do movimento de concentração do capital, as alterações na cadeia produtiva, as facilidades com que os grandes grupos preservam os seus interesses e o fim do mito da livre-concorrência com as tendências de oligopolização e com as inúmeras parcerias entre concorrentes.

A concentração do capital é notória mundialmente. Em vários segmentos da economia existem menos de 6 empresas que dominam 80% do total da produção do setor. Elevados índices de concentração encontram-se nos setores de pneus, café, refrigerantes, chá, cacau, cerveja, etc. Tomemos como exemplo o caso da produção de pneus. Há dez anos, entre as dez maiores empresas de pneus do mundo, quatro eram originalmente americanas: Firestone, Goodyear, Uniroyal, Goodrich. Neste período, a Firestone foi comprada pela Bridgstone, do Japão; a Uniroyal comprada pela Michelin, da França; a Goodrich comprada pela Continental, da Alemanha; somente a Goodyear ainda resiste. Assim, se em 1985 eram dez as empresas que controlavam 80% da produção de pneus no mundo, em 1992 apenas três empresas já dominavam 60% da produção total de pneus (30) .

No caso da cadeia produtiva -- que envolve cultivo, comércio, transformação, industrialização e consumo -- ocorrem alterações no processo de concentração de capital nos segmentos da cadeia. Na Europa e nos Estados Unidos, verifica-se uma concentração em cadeias de supermercado. Tenha-se como exemplo que na França 40% do setor está dominado pelo grupo Carrefour; já na Suiça 50% vendas de alimentação em supermercados está sob controle do grupo Micros. Contra o mito neoliberal da concorrência, ocorre uma real cooperação entre essas cadeias. Assim, por exemplo, elas se juntam para comprar café e se tornam grande cliente da Nestlé, pressionando os preços para baixo. Esta, por sua vez, busca reduzir os custos da produção, pressionando os produtores, que passam a diminuir custos com funcionários, etc (31) . Outros casos de articulação são os agregados, como no caso das agro-indústrias da Sadia e Souza Cruz, entre outras no Brasil (32).

Por outro lado, as empresas desenvolvem um macro-planejamento estratégico, mudando áreas de atuação e redefinindo sua inserção no mercado. Um exemplo disso é Philip Morris. Esta empresa até 1978 apenas atuava com cigarros. Em função de pesquisas sobre a tendência de queda tênue e prolongada de consumo de cigarros, decidiu diversificar o ramo de atuação, passando a atuar com alimentos. Em 1978 comprou cervejaria Muller, a segunda maior dos Estados Unidos; em 1986 comprou a General Food, então a maior empresa de café do mundo, por uma cifra de US$ 6 bilhões; em 1988 comprou a Kraft, que trabalha com leite e seus derivados, queijo, manteiga, etc, por US$ 12,5 bilhões; em 1990 comprou a Jacobs Suchard que atua com café e chocolate por US$ 5 bilhões. Atualmente a Philip Morris detém 30% do comércio de café do mundo e 12 fábricas na Europa que se unifica. O número dessas fábricas vai diminuir em razão da modernização, ocorrendo intensificação da jornada de trabalho e desemprego (33). A empresa busca comprar o café diretamente do produtor e por preços baixos. Para garantir que continuem baixos ela estimula a produção de café em outras regiões do mundo. Com o aumento da produção, os preços caem; isso significa que ocorre uma exploração maior dos assalariados e uma diminuição do lucro dos pequenos produtores. Ainda com o mesmo objetivo, estimula países a aumentarem a produtividade, com a implantação de programas de modernização agrícola em parceria com governos locais, promovendo o uso de insumos, etc.(34)

Sob as pressões deste processo de "livre-concorrência", de concentração e internacionalização do capital, sob imperativos muito mais econômicos que políticos, vão se formando nas últimas décadas deste século alguns mega-mercados, verificando-se uma peculiar Regionalização do Mundo. A partir de 1980, as empresas européias passam a sofrer enorme desvantagem em relação às empresas americanas e japonesas, em função de que Estados Unidos e Japão dispunham de um significativo mercado unificado. A Europa Ocidental, por outro lado, dividida em 12 países com diversidade de cultura, costumes e, especialmente, legislação, normas técnicas diferentes e barreiras alfandegárias, era um mercado de difícil penetração para as próprias empresas européias. Assim, por exemplo, com inovações tecnológicas em algumas fábricas da Philips no Estados Unidos, era possível produzir para um amplo mercado de todo o país, ao passo que na Europa era necessário implantar fábricas em diversos países -- multiplicando-se gastos -- para fazer frente às normas técnicas ou outras barreiras alfandegárias. Como aqueles pequenos países não tinham mercado amplo para sustentar a concorrência dessas empresas com as americanas ou japonesas, a alternativa era deslocar as fábricas rumo aos grandes mercados, potencialmente, fortes consumidores. Assim, as empresas européias automobilísticas e eletrônicas, pressionadas pela concorrência com EUA e Japão começam a pressionar pela unificação da Europa. Em seguida empresas de outros setores adotam a mesma posição como a Nestlé e a Unilever. Em 1984 um organismo que representa as industrias européias elabora uma lista de reivindicações exigindo a unificação da legislação e liberação no continente das fronteiras internas, possibilitando o fluxo livre do capital, formam um lobby em torno deste programa e ameaçam investir fora da Europa se suas reivindicações não fossem atendidas.

Em 1985 aquele conjunto de medidas se transforma na política oficial da Comunidade Econômica Européia, sendo implantadas progressivamente um conjunto de mudanças para realizar os objetivos propostos. O que importa assinalar é que a iniciativa de formar os blocos mundiais partiu das empresas e não dos governos, embora os governos reportem ao Tratado de Roma, em 1957, como o momento oficial do início do processo de integração da Comunidade Econômica Européia.

Em outras regiões do hemisfério, as multinacionais originariamente japonesas e americanas acompanhavam estes acontecimentos com preocupação. Percebendo o que a unificação do mercado europeu significava na concorrência internacional entre os diversos capitais e desenvolvimentos de tecnologia e o que politicamente significava esta iniciativa em um cenário de pós-guerra fria, Estados Unidos e Japão buscam também aumentar seus mercados. Em 1989 têm-se o início da formação de um bloco entre Estados Unidos e Canadá, com acordo de livre comércio entre aqueles países, sendo posteriormente integrado o México, estando em negociações outras integrações. O Japão, por sua vez, também vai formando o seu bloco. O mesmo acontece com outras economias em outras regiões do mundo.

Frente a tudo isso pode-se afirmar com segurança que o neoliberalismo é incapaz garantir um reordenamento da sociedade -- que atravessa esse período de profundas transformações econômicas, políticas e culturais -- assegurando objetivamente o exercício da liberdade a cada ser humano. Suas medidas, que não conseguem enfrentar a crise do sistema mundial de produção de mercadorias que promove um desemprego generalizado, favorecem a concentração de riqueza em grupos econômicos e em certas regiões estratégicas, desmantelando o poder do Estado em intervir na economia em função de interesses públicos. A crise que se abateu sobre o modelo desenvolvimentista do Terceiro Mundo, sobre o socialismo soviético e a social-democracia européia, também passa a atingir as economias dos países que mais defendem o neoliberalismo, como Estados Unidos e Grã-Bretanha. O neoliberalismo se impõe muito mais como exigência dos agentes econômicos interessados em aumentar seus lucros do que como alternativa política para realização de interesses sociais elementares como poder trabalhar e poder consumir como seres humanos. Frente aos movimentos de concentração de capital e de exclusão social na atual economia globalizada -- acentuados pelas próprias políticas neoliberais exigidas aos ajustes econômicos nacionais como condição de financiamento das dívidas por organismos internacionais (35)-- o projeto político neoliberal se mostra objetivamente incapaz de orientar a superação dessa crise que vai jogando na pobreza a maior parte da população mundial.

Conclusão

Essas teses apresentadas e sumariamente argumentadas justificam de modo consistente a rejeição ao neoliberalismo. As críticas que aqui foram feitas a tal projeto são de fundo filosófico, ético, histórico e econômico. O revés econômico -- analisado na quarta tese -- dos objetivos que apregoa, revés que vem ocorrendo quanto mais se libera o mercado dos "entraves" que o regulam, mostra a pertinência da terceira tese. Por outro lado, mesmo que a realização dos objetivos últimos do neoliberalismo com os meios que preconiza fosse economicamente viável e historicamente possível -- refutando-se a quarta e a terceira teses --, ele ainda assim deveria ser rejeitado pois é imoral -- segunda tese. E mesmo que alguém um dia consiga fundamentar que seja moralmente correto usar outras pessoas apenas como meio para o enriquecimento privado dos que delas se servem e que seja ético descartá-las para que vivam na miséria, desempregadas, sem posses e morrendo à mingua -- como ocorre com as milhares de crianças que morrem de fome na América Latina e no Terceiro Mundo em geral, enquanto seus pais não possuem a propriedade privada que o direito um dia lhes asseguraria ao exercício de sua autonomia privada, para satisfazer a sua própria fome e de seus filhos -- o neoliberalismo ainda assim deveria ser rejeitado porque ele não realiza o elemento mais fundamental que propõe: assegurar que todos os sujeitos de uma dada sociedade possam ser efetivamente livres.

_________________________________________

NOTAS:

* Presidente do IFIL - Instituto de Filosofia da Libertação; Mestrando em Educação - Linha de Pesquisa Educação e Trabalho - UFPR

1. O evento, promovido pelo Instituto Vicentino de Filosofia e pelo Studium OSBM como parte da semana filosófica sobre o tema "Faces do Neoliberalismo", ocorreu no dia 05 de outubro de 1995 na Universidade Livre do Trabalho, Curitiba. Outro debatedor, que fora indicado pelo Instituto Liberal do Paraná, por algum motivo, cancelou seu comparecimento ao evento e o referido instituto não providenciou sua substituição. Assim, essas quatro teses formuladas para um debate acadêmico, levantando -- de modo provocativo -- questões de fundo filosófico, ético, histórico e econômico para uma crítica ao neoliberalismo, ficaram sem resposta naquela oportunidade -- resposta que certamente possibilitaria aprimorá-las com argumentos mais detalhados.

2. Ver-se-á claramente que há uma longa distância entre a concepção liberal kantiana e o que historicamente realizou-se como liberalismo, em seus diversos matizes, esvaziando a autonomia do sujeito privado da conduta moral exigida pela razão, como Kant deduzira transcendentalmente. Veremos ainda, entretanto, como o próprio liberalismo kantiano é incapaz de suportar o exercício da liberdade de todos os sujeitos de uma dada sociedade por não considerar as condições objetivas determinantes de tal exercício.

3. Utilizamos os termos "minoria" e "maioria" para significar no primeiro caso um número restrito de pessoas -- os que detém posses abastadas -- e o segundo para significar as grandes massas sociais que compõem, quantitativamente, a maior parcela de indivíduos de uma sociedade. Tais termos não guardam aqui nenhuma relação com "menoridade" e "maioridade" que utilizaremos posteriormente ao tratarmos da moral kantiana.

4. Immanuel Kant, O que é a ilustração. in: Régis C. Andrade, "Kant, a liberdade, o indivíduo e a república" in: F. Weffort (org) Os clássicos da política, V. 2, p. 84

5. Idem, p. 84

6. Hegel grafa em francês "bourgeois" e "citoyen" fazendo uma análise da contradição dialética inerente ao mesmo sujeito enquanto "burguês" que atua em função de interesses privados na esfera econômica da sociedade -- sociedade civil burguesa -- e enquanto "cidadão" que deve atuar em função dos interesses públicos na esfera política da sociedade, o Estado. Da mesma forma que o Estado é uma síntese dialética que determina a sociedade civil, o exercício da cidadania deve determinar a conduta econômica dos indivíduos.

7. Quanto a essa emancipação total, Marx afirma em uma passagem dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 que o comunismo é o "momento da emancipação e recuperação humanas, momento efetivo e necessário para o movimento histórico seguinte. O comunismo é a configuração necessária e o princípio energético do futuro próximo, mas o comunismo não é como tal, o objetivo do desenvolvimento humano, a configuração da sociedade humana". [ Karl Marx, Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, vol. Editora Abril, 1974 p. 22, grifo nosso]. A realização subjetiva-objetiva de uma humanidade emancipada extrapolaria os contornos do comunismo que, como base material, lhe daria suporte a sínteses culturalmente mais elevadas.

8. Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coleção Os Pensadores, vol XXV, Abril Cultural, 1974, p. 223

9. Idem, p. 228-229

10. Idem, p. 229

11. Idem, p. 234

12. Idem, p. 239. Vemos, portanto, que a liberdade individual, a autonomia do indivíduo, deve ser assegurada quando estiver condicionada à sua responsabilidade moral para com toda pessoa segundo os imperativos transcendentalmente deduzidos, não sendo cada um indiferente à justa realização da felicidade alheia. Mas para que não haja confusão sobre como Kant emprega o termo liberal, podemos analisar algumas passagens de "O Fim de Todas as Coisas". Tratando do modo como o cristianismo considera a finalidade última das ações, Kant articula a vivência do imperativo categórico -- o cumprimento do dever -- ao ato de amar, considerando tal exercício como atitude do homem liberal: " Se, porém, não se trata somente da representação do dever mas do cumprimento do dever, quando se pergunta pelo motivo subjetivo das ações, do qual decorre, quando se pode prevê-lo, o que é de esperar em primeiro lugar, a saber, aquilo que o homem fará, e não somente a pergunta pelo motivo objetivo, o que ele deve fazer; o amor é então, enquanto livre acolhimento da vontade de um outro, submetido a suas máximas, um indispensável complemento da imperfeição da natureza humana (para tornar necessário aquilo que a razão prescreve mediante a lei). Porquanto, aquilo que o indivíduo não faz de boa-vontade faz tão mesquinhamente, e também com pretextos sofísticos sobre o mandamento do dever, que não se poderia contar muito com este último, como mola impulsionadora, sem a participação do amor". [Immanuel Kant, "O Fim de Todas as Coisas" In: Immanuel Kant - Textos Seletos, 2ª Edição, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 176].

Face à imperfeição da natureza humana que pode amesquinhar-se em nome de cumprir o dever -- conceder reintegração de posse em nome de um formalismo jurídico, por exemplo -- o amor é considerado como livre acolhimento da vontade do outro -- de cultivar a terra para saciar a sua fome e de seus filhos com a força de seu próprio trabalho --, isto é, da vontade do outro determinada pelos imperativos categóricos -- que todo homem portador de dignidade e não de preço, deve ser tratado sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio.

" O cristianismo, diz Kant, tem em vista incentivar o amor à observação do dever em geral, e o suscita também, pois o fundador dele não fala na qualidade de um comandante que exige obediência à sua vontade, mas na qualidade de um amigo dos homens, que põe no coração de seus semelhantes a própria vontade deles bem compreendida, isto é, de acordo com a qual eles por si mesmos agiriam livremente caso se examinassem a si mesmos devidamente. // É por conseguinte o modo de pensar liberal -- igualmente distante do sentimento de escravo e da ausência de vínculos -- do qual o cristianismo espera resultados para sua doutrina, mediante a qual pode ganhar para si os corações dos homens cujo entendimento já está iluminado pela representação da lei do dever. O sentimento da liberdade na escolha da finalidade última é aquilo que torna para eles a legislação digna de amor." [Idem, p. 178, ( as duas barras indicam início de outro parágrafo)].

O modo de pensar liberal para Kant em que os homens agem livremente determinando sua vontade sob os imperativos da razão está igualmente distante do sentimento do escravo -- ao qual se impõe autoritariamente o cumprimento de um dever que ele, livremente determinado por sua razão esclarecida, não se imporia cumprir -- como também está distante da ausência de vínculos entre os sujeitos não podendo haver indiferença de um frente à realização do outro em sua dignidade. Sob o modo de pensar liberal -- como Kant o entende -- é o sentimento de liberdade na escolha da finalidade última o que torna digna de amor a legislação. A finalidade última como realização do Reino dos Fins, implica no aprimoramento da convivência social visando que os homem vivam, livremente, a partir de sua boa vontade, sem esperar nenhuma recompensa em troca de suas ações.

Conforme Kant, " Quando o cristianismo promete recompensas (por exemplo, 'sede alegres e consolados, no céu tudo vos será retribuído'), esta expressão, de acordo com o pensamento liberal, não deve ser interpretada como se fosse uma proposta, para deste modo, por assim dizer, subornar os homens, a fim de levarem uma vida boa, uma vez que se assim fosse o cristianismo não seria por si mesmo digno de amor. Somente a exigência de ações que se originam de motivos desinteressados pode opor-se a quem faz exigência de impor respeito ao homem, mas sem respeito não há verdadeiro amor. Por conseguinte, não se deve atribuir àquela promessa o sentido segundo o qual as recompensas seriam consideradas os motivos impulsionadores das ações. O amor, devido ao qual um modo de pensar liberal nos prende a um benfeitor, não se guia pelo bem que o necessitado recebe, mas dirige-se somente de acordo com a bondade da vontade de quem está inclinado a outorgar o bem, mesmo que não tenha poder para isso ou, por outros motivos, que a consideração do bem geral do mundo acarreta, seja impedido de executá-lo." [Idem, p.178-180].

Vê-se claramente que o liberalismo de Kant jamais poderá ser invocado para justificar o pragmatismo neoliberal que sepultou a razão esclarecida sob os interesses econômicos dos agentes privados, instituindo a indiferença frente ao amor no cumprimento do dever , amor esse que considerando cada outra pessoa como um fim e não simplesmente como um meio, busca realizar da melhor maneira possível a justa felicidade alheia.

13. Immanuel Kant, O que é ilustração in: Régis C. Andrade, "Kant, a liberdade, o indivíduo e a república" in: F.Weffort (org) Os clássicos da política, v. 2, p. 85. Considerar se o povo poderia ter-se imposto aquela lei significa respeitar o princípio de autonomia de cada indivíduo que compõe o público, pois do contrário, impor o cumprimento da lei significaria impor uma heteronomia, portanto, a vivência da imoralidade. Há ainda leis que nem mesmo o povo poderia impor a si próprio. Tais leis que o povo não pode impor a si próprio, mesmo sendo respeitado o princípio de autonomia, são leis irracionais que não consideram, assim, os princípios da razão prática. A vontade pública geral, portanto, deve ser determinada pela razão esclarecida. Vemos, assim, que a moralidade deve estar suposta ao estabelecimento das leis compostas pelo direito.

14. Há diversas nuanças e distintas posições teóricas no seio das concepções de liberalismo. Qualquer estudo elementar da história desse projeto político poderá destacar práticas distintas que dele se reivindicam. Não se trata aqui de criticar um modelo formal -- a crítica da aproximação assintótica ao modelo ideal será feita na argumentação da tese terceira. Trata-se de considerar como as práticas que buscam legitimidade nas concepções abstratas do neoliberalismo, ou que delas se desdobram, são consideradas imorais quando julgadas sob os parâmetros deduzidos transcendentalmente por Kant para a conduta moral. Destacaremos aqui que as pessoas não são consideradas, sob a lógica liberal, como seres dignos, sempre e simultaneamente como um fim, sendo pelo contrário tratados, em geral, como meio.

15. Evento preparatório à II Conferência da ONU Sobre Assentamentos Humanos, que ocorreu em Istambul. Cf. IPARDES (org) Encontro Paranaense para Habitat II. Curitiba, Ipardes, 1995 94pp.

16. Sob a concepção kantiana de moralidade, toda propriedade privada deve estar submetida às exigências da moralidade que nos impõe promover a felicidade alheia. Analisando a atitude moral de um sujeito frente a necessidade alheia, Kant considera a forma e o fim do imperativo categórico.

Ao considerar a forma do imperativo categórico, diz o seguinte. Uma pessoa " que vive na prosperidade ao mesmo tempo que vê outros a lutar com grandes dificuldades (e aos quais ela poderia auxiliar), pensa: Que é que isso me importa? Que cada qual goze da felicidade que o céu lhe concede ou que ele mesmo pode arranjar; eu nada lhe tirarei dela, nem sequer o invejarei; mas contribuir para o seu bem-estar ou para o seu socorro na desgraça, para isso é que eu não estou! Ora, supondo que tal maneira de pensar se transformava em lei universal da natureza, é verdade que o gênero humano poderia subsistir, e sem dúvida melhor ainda do que se cada qual se pusesse a palrar de compaixão e bem-querença e mesmo se esforçasse por praticar ocasionalmente estas virtudes, ao mesmo tempo que, sempre que pudesse, se desse ao engano, vendendo os direitos dos outros ou prejudicando-os de qualquer outro modo. Mas, embora seja possível que uma lei universal da natureza possa subsistir segundo aquela máxima, não é contudo possível querer que um tal princípio valha por toda parte como lei natural. Pois uma vontade que decidisse tal coisa pôr-se-ia em contradição consigo mesma; podem com efeito descobrir-se muitos casos em que a pessoa em questão precise do amor e da compaixão dos outros e em que ela graças a tal lei natural nascida da sua própria vontade, roubaria a si mesmo toda a esperança de auxílio que para si deseja". [Immanuel Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coleção Os Pensadores, vol XXV, Abril Cultural, 1974, p. 225].

Retomando a mesma situação para considerar o fim do imperativo categórico analisa Kant que "no que concerne o dever meritório para com outrem, o fim natural que todos os homens têm é a sua própria felicidade. Ora, é verdade que a humanidade poderia subsistir se ninguém contribuísse para a felicidade dos outros, contando que também não lhes subtraísse nada intencionalmente; mas se cada qual não se esforçasse por contribuir na medida das suas forças para os fins dos seus semelhantes, isso seria apenas uma concordância negativa e não positiva com a humanidade como fim em si mesma. Pois que se um sujeito é um fim de si mesmo, os seus fins têm de ser quanto possível os meus, para aquela idéia poder exercer em mim toda a sua eficácia."[ Idem, p. 230-231].

Está claro, portanto, que na ação moral do sujeito frente ao outro é preciso considerá-lo como um fim cuja felicidade é meu dever buscar promover, em razão da qual devo dispor de minha propriedade como mediação. Gozar privadamente de minha propriedade, deixando que cada qual se vire como puder frente aos infortúnios não é para Kant uma atitude moralmente correta. No Reino dos Fins tem-se a realização simultânea dos objetivos privados e públicos sendo que um não pode negar o outro, pois todos devem se desdobrar do mesmo procedimento transcendental, o que impossibilitaria tal contradição.

17. O Brasil, recentemente, acabou de ultrapassar Botsuana, tornando-se o país com a mais grave desigualdade na distribuição de renda no mundo. [IPARDES, op. Cit. p. 41 ]. Em nenhum outro país, proporcionalmente, há tanta concentração de riqueza à disposição de tão poucas pessoas em contraposição a uma massa tão grande de empobrecidos alijada das condições materiais e culturais elementares à dignidade humana.

18. No desespero maior, uma parcela acaba se prostituindo ou atuando em furtos, tráfico de drogas, etc. No Brasil, atualmente, há cerca de 500 mil crianças na prostituição, estando nosso país no segundo lugar em prostituição infantil no mundo, perdendo apenas para a Tailândia.

19. Dissemos "dezenas de anos", mas para respeitar a história devemos ser mais precisos. Na maior parte desses terrenos vazios urbanos -- que possuem na cidade a função de suporte para edificação -- jamais algum imóvel foi construído. De geração em geração esses imóveis vão sendo repassados simplesmente como quantidade de valor de troca. A lei número 601 de 18 de setembro de 1850, conhecida como Lei das Terras, passou a obrigar que as terras fossem compradas do Estado, evitando que os imigrantes que aqui chegavam sem posses se apropriassem das terras desocupadas, ao invés de trabalharem nas fazendas já estabelecidas.

Assim, desde quando o planeta Terra surgiu na maior parte desses vazios urbanos jamais foi edificada alguma coisa, havendo somente desmatamento. No caso brasileiro o estabelecimento jurídico da posse veio assegurar que os colonizadores que mataram e afugentaram os índios, cercando partes de suas terras, fossem considerados legítimos proprietários. Com o Tratado de Tordesilhas em 1494 caberia a Portugal as terras até o meridiano de 370 léguas ao Oeste do arquipélogo de Cabo Verde. Ao sistema das capitanias hereditárias, desenvolveu-se o sistema de sesmarias. Em 1822, com a extinção do sistema de sesmarias a terra ficou à disposição de quem pudesse ocupá-la, exceto os escravos, que não tinham estatuto jurídico para tanto. Até 1850 as pessoas se apossavam das terras devolutas, isto é, das terras que não estavam aplicadas a algum uso ou serviço do Estado, províncias e municípios. Em 1850 com a abolição do tráfico de escravos para o Brasil, torna-se necessária a referida lei de número 601, pois do contrário as fazendas teriam dificuldades em manter ou ampliar a mão de obra. Assim, aos colonizadores que chegaram após essa data não foi dado o direito de matar e cercar, mas obrigou-se-os a comprar as terras que eram deliberadamente mantidas em preço elevado, induzindo-os à condição de trabalhadores explorados por terceiros que já haviam cercado terras. O Filme Gaijin, de Tizuka Yamazaki, retrata esse drama dos imigrantes. Por fim em 1937, sob a ditadura de Vargas, o decreto-lei número 58 simplifica o loteamento em áreas urbanas estabelecendo garantias de compra-e-venda nos negócios a prazo, possibilitando a formação de mercados de terras e o aprimoramento da especulação imobiliária. Assim, sob a continuidade atual dessa mesma lógica, certos vazios urbanos que perduram há "décadas", incorporando a cada dia um valor produzido socialmente, continuarão vazios ainda por muito tempo para que o especulador imobiliário -- que possui tal propriedade, privada ao uso social -- possa continuar enriquecendo apropriando-se privadamente de um valor que é produzido socialmente. [Cf.BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Solo Urbano - Propostas para a Constituinte. Rio de Janeiro, FASE, 1986].

20. Ao considerar a ação do governante frente a prática dos agentes privados, diz o filósofo de Königsberg que o governante "... deve apenas evitar que um súdito impeça outro por meios violentos de trabalhar, de acordo com toda sua capacidade, na determinação e na promoção de si." [ Immanuel Kant, "Resposta à Pergunta: Que é 'Esclarecimento'?" In: Immanuel Kant - Textos Seletos, 2ª Edição, Vozes, Petrópolis, 1985, p. 110-112.

Ora, o que significa trabalhar para a determinação e promoção de si mesmo ? Ao usar arbeiten (trabalhar), Kant se refere especialmente ao trabalho efetivo, econômico, de cada homem. É preciso evitar que qualquer súdito seja impedido de trabalhar, de determinar-se e promover-se, com o seu próprio trabalho. Este trabalho, por suposto, não pode ferir as leis morais. Mas como pode um agricultor trabalhar se está privado da terra ? Como pode um operário desempregado trabalhar dignamente se está privado dos meios de produzir ? Cabe ao governante evitar que um súdito por meios violentos impeça outro de trabalhar e promover-se. Violência é usar a força tratando o outro como meio, como coisa, impondo-lhe uma conduta irracional em que não é considerado como um fim. Kant usa a expressão gewalttätig significando brutal, violento: "... das geht ihn nichts an, wohl aber zu verhüten, dass nicht einer den andern gewalttätig hindere, an der Bestimmung und Beförderung desselben nach allem seinem Vermögen zu arbeiten." [Idem, p. 111-113]. Esta expressão gewalttätig tem ares de família com gewaltig (poderoso), Gewalt (autoridade) e Gewaltherrscher (déspota). Kant não trata da violência como heftigkeit. Trata-se, portanto, não apenas da violência física, mas também de um violência que pode ocorrer como autoritarismo. Autoritarismo é exercer o poder impondo a outros uma conduta incompatível com a moralidade.

Ora, no Reino dos Fins todos os objetivos que se submetam às leis morais devem ser promovidos. Que cada sujeito possa trabalhar com toda sua capacidade na determinação e na promoção de si é algo que pode ser universalizado sem ferir os princípios transcendentais e sem reduzir algum homem à simples condição de meio. Sendo compatível com a realização de todos os demais fins -- que se submetem às leis morais -- no Reino dos Fins, qualquer norma imposta sobre os homens que impeça tal realização -- por exemplo, uma norma que impeça um agricultor pobre de poder produzir e viver de seu próprio trabalho -- não é moralmente legítima. Sua imposição pela força, mesmo que respaldada no direito, resulta no exercício de violência, de autoritarismo. Para Kant o direito não deve ser incompatível com a moralidade, pois do contrário impõe a heteronomia. Assim, para que cada indivíduo possa trabalhar com toda sua capacidade na determinação e na promoção de si há que mudar-se os dispositivos jurídicos que impedem o exercício de sua liberdade, pois o legislador não pode impor ao povo aquilo que o povo não pode impor a si próprio.

21. Franz J. Hinkelammert, "Ética do Discurso e Ética de Responsabilidade: uma tomada de posição crítica", In Sidekum, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação - Modelos complementares, São Leopoldo, Ed. UNISINOS, 1994, p. 75

22. Idem, p. 81

23. Trata-se de uma progressão como a aproximação tangente a uma curva no infinito, que não pode jamais coincidir.

24. Conforme Hinkelammert, " ... o processo de abstração, pelo qual são deduzidas as situações ideais, abstrai da contingência do mundo, e com isso mesmo, da condução humana. As situações ideais são conceitos deste mundo, mas sob abstração da contingência deste mundo. Transformando-os em ideal, do qual o mundo se deve aproximar linearmente, este mundo perde sua realidade. Em lugar da realidade entrou um processo assintótico de aproximação, com cuja ajuda a contingência do próprio mundo é tornada invisível." [Idem, p. 85]. Mas qual será o critério de verdade dessa teoria ? " O argumento da infindável aproximação assintótica, por sua vez, afirma ser ela mesma este critério de verdade. Com isso, porém, nega ele a realidade fáctica como ponto de partida, embora a teoria parta dela. A teoria torna-se tautológica e desemboca no solipsismo." Idem, p.85.

25. Idem, p. 85

26. Embora isto seja evidente não apenas para os que são razoavelmente informados mas para todos que vêem pelas ruas o aumento de mendigos, de crianças e pessoas dormindo pelas calçadas ou catando comida em latas de lixo, revirando restos de feiras livres, etc, apresentamos no próximo item indicadores objetivos sobre o aumento do desemprego, pobreza e exclusão mais acentuados nos países que vem adotando o neoliberalismo, indicadores que suportam esta terceira tese.

27. Um relatório publicado pelo Programa de Desenvolvimento da ONU, traz dados impressionantes: " Um bilhão de pessoas vivem na pobreza no Terceiro Mundo, 180 milhões de crianças morrem de subalimentação, 1,5 bilhão não tem assistência médica, quase 3 bilhões morrem a cada ano de doenças vacináveis, 500 mil mulheres morrem na gravidez ou de parto e mais de um bilhão de adultos não sabem ler ou escrever . Nas nações industrializadas, 200 milhões vivem em total pobreza. Mas o Primeiro Mundo sofre com o desemprego, um alto índice de criminalidade, com a droga, suicídios e milhares de desabrigados" . Manoel Francisco Brito, "ONU alerta para o perigo da concentração de riqueza" in: Jornal do Brasil 23 mai 91 . Cf. Quinzena, Nº 118, p. 24-25 16 jun 91, São Paulo, Centro de Pastoral Vergueiro.

28. Folha de São Paulo, 4 dez 1994, p. 3-2

29. Mantemos aqui a terminologia adotada por Marx no Livro Terceiro do Capital e retomada por Robert Kurz em O Colapso da Modernização, Editora Paz e Terra, 3ª edição, 1993. Entendemos, entretanto, que se trata de um capital virtual, conforme nossa conferência nas Faculdades Associadas Ipiranga, em São Paulo, em 18 de outubro de 1995: Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político, Revista Lumen 2(4):75-135 junho de 1996. Quanto a outros possíveis desdobramentos dessa crise veja-se nesse trabalho, em especial, o item 6, "Realidade Virtual: Economia e Política". Convém notar que já no início dos anos 90 os EUA encontram-se " ...às voltas com o déficit orçamentário de US$ 400 bilhões, tendo passado da condição de maior credor do mundo para a de maior devedor". Bernardo A. Carvalho, Fim das ideologias no império do norte arrebata o mundo para a era da incerteza, in: A. Abril - 93, p. 18, São Paulo, Editora Abril, 1993.

30. Cf. "Concentração e internacionalização do capital - A regionalização do mundo - Cadeia produtiva e processos de concentração" [ Informa, Nº 7 - fevereiro de 1992 ] in: Quinzena, Nº 141, p. 17, 30 de junho de 1992, São Paulo, Centro de Pastoral Vergueiro.

31. Idem, p. 18

32. Muitas outras alianças e associações se estabelecem de diversas formas, seja como participação acionária, como joint ventures, na compra ou fornecimento de componentes, contratos de cooperação tecnológica, ou seja através de acordos de fabricação, montagem ou distribuição de produtos e marketing. Tomemos como exemplo as alianças que se estabelecem no setor de automóveis a partir do quadro publicado em 1991 pela Ward's Automotive International, destacando algumas empresas de diversos países. A GENERAL MOTORS (EUA) incluindo Opel, Vauxhall, Holden's, Lous, Saturn, faz parceria com Bertone, Chrysler, Daewoo, Fiat, Ford, Honda, Isuzu, Nissan, Pininfarina, Renault, Rover, Saab, Suzuki, Toyota, VEB Automobile Works, Volvo, VAZ. Por sua vez, a VOLKSWAGEN (Alemanha) incluindo Audi e SEAT, faz parceria com AZNP, CNAIC, Fiat, First Auto Works, Ford, Mercedes Bens, Nissan, Prosche, Renault, Rover, Shanghai Auto Works, Steyr, Toyota, Volvo, VEB Automobile Works. De sua parte, a FIAT (Itália), incluindo Alfa Romeo, Autobianchi, Ferrari, Iveco e Lancia, mantém parcerias com Chrysler, De Tomaso, Ford, Fuji Heavy (Subaru), GM, Mazda, Nissan, Peugeot, Pininfarina, Pomol; FSM, Steyr, Volkswagen, Zastava. Por sua vez, a NISSAN (Japão), tem como seus parceiros: Daewoo, Fiat, Ford, Fuji Heavy, GM, Mazda, Mitsubish, Peugeot, Second Auto Works, Siam Motors, Toyota, Volkswagen, Yue Long. Por outro lado, a PEUGEOT (França), incluindo Citroen, tem como parceiros CAC, Daihatsu, Fiato, Honda, Isuszu, Mazda, Nissan, Pininfarina, Renault, Rover, Steyr, Suzuki, Volvo. Já a VOLVO (Suécia), faz parceria com Bertone, Daewoo, Ford, Fuji Heavy, GM, Isuzu, Peugeot, Reanult, Volkswagen. De sua parte, a ZASTAVA (Iugoslávia) faz parceria com a Fiat e Polmot FSO, enquanto a KIA (Coréia do Sul) tem como parceiros a Daihatsu, Ford, Mazda. Por fim, a FIRST AUTO WORKS (China) faz parceria com a Volkswagen. Fonte: Relatório Reservado 16 a 22 set 91 in: Quinzena Nº 125, 01 out 91, página 13. São Paulo, Centro de Pastoral Vergueiro, São Paulo.

33. Intensificação significa, aqui, que o trabalhador que permanece nos quadros da empresa -- trabalhando com tecnologias mais sofisticadas -- será mais polivalente, suprindo funções que antes eram desempenhadas por outros.

34. Idem, p. 19. Outro expediente utilizado com o mesmo fim é a substituição de matérias-primas, substituição essa que é pesquisada e realizada sempre que um determinando componente foge muito a este controle dos grandes grupos que dele dependem para a composição do produto final. O objetivo desta estratégia é garantir um fluxo de matérias-primas a custo baixo. Até 10 anos atrás a única forma que os grandes grupos possuíam para manter baixo o preço de diversas matérias-primas era estimular a produção mundial. Contudo, a utilização de biotecnologias ampliou a produção de matérias primas. Não apenas pela biotecnologia aplicada no cultivo com a confecção de sementes híbridas, clones, manipulação genética, produção de enzimas, etc, mas por permitir que, a partir da ação de bactérias, seja possível dividir um produto em suas moléculas, usando posteriormente algumas delas para outros fins, como a utilização de moléculas originárias de processos biotecnológicos que envolvem leite para a produção de aços especiais.

Exemplo da utilização de biotecnologia nesta estratégia de substituição de matéria-prima pode ser verificada na mercado do açúcar. Até 1900 somente existia açúcar de cana; depois da 1ª guerra aparece o de beterraba; já nos anos 80 é produzida glucose à base de milho. Contudo a biotecnologia revolucionou o mercado de açúcar quando, a partir dela, conseguiu-se produzir adoçantes à base de petróleo, usando bioquímica. Atualmente, Nutra Sweet e Aspartine são usados pela Chambourcy e Brahma em produtos diet. Nos EUA a glucose e os adoçantes químicos respondem por 50% do mercado de açúcares. Em decorrência têm-se a queda do preço da matéria-prima no mercado internacional. Assim, quando o preço de um produto sobe, a indústria fabrica substitutos.

35. O plano de estabilização da economia argentina evidencia este argumento. Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo [13 nov 1984, p. 2-12] com o título "Cresce 50% número de pobres na Argentina -- Famílias com renda abaixo de US$ 700 aumentam desde 80; Plano Cavallo cria a categoria dos 'novos pobres' ", traz análises de Gabriel Kessler, professor de sociologia da Universidade de Buenos Aires e consultor da UNICEF na Argentina, destacando que " aposentados, professores, funcionários demitidos das estatais privatizadas, trabalhadores sem qualificação e comerciantes que faliram ao longo dos últimos três anos formam o perfil dos 'novos pobres'". Nos dois primeiros anos do programa de estabilização houve aumento de consumo de alimentos e artigos populares; contudo, a partir de então os índices passaram a apontar crescimento do desemprego e, conseqüentemente, queda no consumo de grandes parcelas da população e aumento da pobreza, havendo 1,5 milhão de desempregados sobre uma população economicamente ativa de 13,9 milhões. Estatísticas levantam também que 2,9 milhões de pessoas, que estão empregadas, procuram um novo emprego em razão da insatisfatória remuneração. Para se ter uma idéia, o corte de gastos do governo reduziu a pensão dos aposentados a US$ 113,00 -- o que corresponde a cerca de 20% do custo da cesta básica argentina.

 

Referências Bibliográficas

BALDEZ, Miguel Lanzellotti. Solo Urbano - Propostas para a Constituinte. Rio de Janeiro, FASE, 1986

BRITO, Manoel Francisco. "ONU alerta para o perigo da concentração de riqueza" in: Jornal do Brasil . 23 mai 91

HEGEL, Georg W. F. Coleção Os Pensadores, vol XLIII. Editora Abril, 1974

HINKELAMMERT, Franz J. "Ética do Discurso e Ética de Responsabilidade: uma tomada de posição crítica". In; SIDEKUM, Antonio. Ética do Discurso e Filosofia da Libertação - Modelos complementares, São Leopoldo, Ed. UNISINOS, 1994

IPARDES (org) Encontro Paranaense para Habitat II. Curitiba, Ipardes, 1995

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Coleção Os Pensadores, vol XXV, Abril Cultural, 1974,

KANT, Immanuel. "O Fim de Todas as Coisas" In: Immanuel Kant - Textos Seletos, 2ª Edição, Vozes, Petrópolis, 1985

KANT, Immanuel. "Resposta à Pergunta: Que é 'Esclarecimento'?" In: Immanuel Kant - Textos Seletos, 2ª Edição, Vozes, Petrópolis, 1985,

KURZ, Robert. O Colapso da Modernização., Editora Paz e Terra, 3ª edição, 1993

MANCE, Euclides André. "Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político". Lumen - Revista de Estudos e Comunicações; vol. II N. 4 - Junho de 1996. Faculdades Associadas Ipiranga - São Paulo.

MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos, Coleção Os Pensadores, vol LI. Editora Abril, 1974

"Concentração e internacionalização do capital - A regionalização do mundo - Cadeia produtiva e processos de concentração" [ Informa, Nº 7 - fevereiro de 1992 ] in: Quinzena, Nº 141, p. 17. 30 de junho de 1992, São Paulo, Centro de Pastoral Vergueiro


Quatro Teses Sobre o Neoliberalismo
Revista Filosofazer. Passo fundo, Ano 6, N.11, 1997/2, p. 83-103
www.milenio.com.br/mance/quatro.htm


[Página Inicial] [Títulos Disponíveis]

.