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A Universidade em Questão -
o conhecimento como mediação da cidadania
e como instrumento do capital.
Euclides André Mance
IFIL, fevereiro de 1999
Em Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer destacaram que o movimento dialético de elaboração do conhecimento é sempre condicionado por um processo histórico no qual as teorias que permitem a emancipação dos homens acabam por mediar ações que ampliam a dominação de certos segmentos sobre as sociedades e sobre a natureza (1). A isto pode-se agregar que não só nenhum conhecimento é neutro, como qualquer conhecimento pode se prestar a diversos usos, uma vez que pode ser recuperado em novas semioses que agenciam outros processos pragmáticos e interpretativos.
As universidades como espaço de produção, reprodução e socialização do conhecimento estão inseridas neste mesmo movimento contraditório. O saber nelas elaborado é, de algum modo, recuperado socialmente em processos econômicos, políticos e culturais em meio a uma disputa pela ampliação do exercício público da cidadania ou pelo domínio social e tecnológico de certos segmentos sobre as sociedades e sobre a natureza. É neste conflito que as universidades se transformam e é a partir dele que podemos considerar os seus atuais desafios, convindo apresentar em rápidas linhas a sua gênese e transformação.
As universidades surgiram na Europa, ainda no período medieval, entre os séculos XI e XII. Várias de suas características atuais advém daquele período, tais como o estabelecimento de currículos, provas formais e graduações. Originariamente vinculadas a organizações religiosas que as controlavam rigidamente, com o passar do tempo foram conquistando autonomia, não apenas na forma de sua organização e gerenciamento como também na orientação dos estudos nelas desenvolvidos. As universidades de Bolonha e Paris tornaram-se exemplares, servindo de modelos a muitas outras organizadas na Europa e, posteriormente, em outros continentes. No século XVII ocorre a fundação das primeiras universidades nas Américas, em regiões de colônias inglesas, francesas e espanholas, que após a independência se convertem nos Estados Unidos, Canadá, México e Peru. As universidades, em todo o mundo, estimularam o desenvolvimento intelectual e passaram a ser o principal espaço de formação de lideranças sociais, religiosas e civis.
No século XIX a educação se torna mais laica e aberta e os Estados passam a exercer maior controle sobre os diversos níveis do ensino, diminuindo o poder das organizações religiosas nesta matéria. A universidade de Berlim, fundada em 1810, defendendo o princípio da livre investigação atraía as atenções de professores e estudantes do mundo todo. A livre investigação valia-se de seminários, laboratórios científicos e estudos monográficos - modelo esse que foi reproduzido em muitos outros países. As universidades, então, se consolidam com feições similares às atuais, animadas pela vitalidade do desenvolvimento científico e pela confiança no progresso.
A concepção alimentada pelos governos nacionais apontava a necessidade de organizar-se um sistema educacional único, com valores e objetivos peculiares às demandas de cada país. Neste sistema, a universidade cumpriria um importante papel científico e cultural, com o ensino e pesquisa teoricamente articulando-se a propósitos nacionais. Com efeito, desde a primeira revolução industrial, a ciência se convertera em um momento importante na circulação do capital, possibilitando a otimização técnica das performances produtivas, otimizando também a geração de mais-valia. Marx nos Grundrisse enfatizará o papel do scientific power no surgimento e transformação do capitalismo (2). A partir da revolução industrial as empresas e os Estados passam a financiar fundações, institutos, universidades e órgãos de investigação científica com fins pragmáticos, patrocinando experimentos e investigações científicas que produzissem novos conhecimentos aplicáveis à produção e à ação estratégica que permitissem a ampliação do capital ou o aumento do poderio dos Estados.
No Brasil a primeira universidade surge na segunda década do século 20, no Paraná. Até então, o ensino superior era realizado em instituições de vinculação religiosa, voltados à filosofia e teologia, ou em Escolas e Faculdades autônomas que atuavam na formação profissional em várias áreas (3). Havia, contudo, a compreensão de que a pesquisa científica era um elemento necessário ao desenvolvimento do país e que o seu aprimoramento necessitava de organizações institucionais que a abrigassem. Desse modo, similarmente ao que ocorrera na Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos, promoveu-se a criação de universidades que associavam ensino e pesquisa, visando-se, particularmente, o desenvolvimento de conhecimentos que contribuíssem com o progresso do país. No caso brasileiro, em particular, a ação universitária se empenhou em atuar em três esferas: o ensino, formando recursos humanos nas diversas áreas, a pesquisa, desenvolvendo novos conhecimentos e seus possíveis empregos em diversos campos, e a extensão, realizando atividades junto à comunidade que, conectadas ao ensino e à pesquisa de novos conhecimentos, colaborem com o desenvolvimento e bem estar dos grupos atingidos. Atuando nestas três esferas as universidades, em diversos países, passaram a cumprir uma tarefa vital e peculiar no cerne das sociedades, sendo responsáveis diretamente ou indiretamente por grandes realizações da humanidade.
Durante a segunda guerra mundial e após o seu término, as pesquisas voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico foram muito encorajadas por Estados e empresas. Em muitas universidades, no mundo todo, a pesquisa se torna, então, a principal atividade acadêmica, secundarizando-se o seu papel no ensino. Com a elevação constante dos custos da pesquisa científica, que vai se especializando em inúmeros ramos, e com a concorrência entre empresas na aplicação da ciência ao processo produtivo, os pesquisadores e universidades passam a manter relações cada vez mais estreitas com as empresas.
Por fim, muitas empresas, insatisfeitas com a falta de controle total sobre pesquisas que consumiam elevados financiamentos também por elas sustentados, passam a investir somas cada vez mais altas de capital na organização de laboratórios próprios e na promoção da pesquisa tecnológica e científica, cujos resultados ficavam sobre seu controle, contratando cientistas e pagando-lhes altos salários para produzirem conhecimentos a serem aplicados em inovações produtivas - conhecimentos esses que se tornam propriedade privada das empresas e que são escondidos dos concorrentes, ao invés de serem divulgados à comunidade científica para agilizar a investigação. Com efeito, sob a lógica da disputa do mercado, trata-se de chegar a produção e comercialização de bens que permitam recuperar os investimentos feitos em pesquisa e desenvolvimento, alcançando-se um lucro considerável antes que outros produtos semelhantes, que atuam com propriedades similares, sejam disponibilizados no mercado pelos concorrentes. Desse modo, o conhecimento é produzido tendo-se como finalidade, basicamente, o lucro e não a promoção da cidadania ou o progresso da ciência em suas múltiplas áreas. Inúmeras pesquisas, extremamente prioritárias do ponto de vista humanitário, não são desenvolvidas ou financiadas pelo conjunto destas empresas, uma vez que seus resultados não seriam fonte de lucro.
De fato, se nos processos de desenvolvimento tecnológico de bens tangíveis o conhecimento tornou-se um "insumo" pelo qual as empresas pagam altas somas - muitas fusões e aquisições de empresas visam incorporar distintas tecnologias sob uma mesma corporação -, na área de produção de bens intangíveis o conhecimento organizado sob certas linguagens é, ele mesmo, o produto que, como propriedade privada, torna-se a fonte virtual de acumulação do capital. As empresas produtoras de softwares têm suas equipes de pesquisadores que produzem conhecimentos que permitem controlar, por exemplo, o funcionamento de hardwares e seus periféricos com vistas a uma infinidade de usos cada vez mais sofisticados. Como os signos que codificam esses conhecimentos sob a forma de programas, por exemplo, podem ser replicados infinitamente, e cada cópia tem um custo muito baixo, as empresas que comercializam o conhecimento sob a forma de bens intangíveis vão alcançando o topo da lista das companhias mais ricas e rentáveis do mundo.
Frente a esta transformação no caráter do conhecimento, o sentido de Universitas, que na origem medieval significava abranger todas as classes de conhecimentos, está novamente desafiado tanto pela perda do sentido libertário do conhecimento - que vem se transformando em mera mercadoria ou em fonte principal de lucro -, quanto pela especialização cada vez maior dos diversos ramos do saber ou, ainda, pela crise epistemológica no estabelecimento das garantias de validade do conhecimento, entre outros aspectos.
No primeiro caso, os princípios mercadológicos vem contaminando as teorias, formalizando basicamente o conhecimento como meio de atingimento de fins econômicos. Altas somas são gastas em Pesquisa & Desenvolvimento na corrida acelerada pela inovação tecnológica que permite a certos grupos dominarem mercados no mundo todo e assim ampliarem seu capital e poder. Necessitando de operadores sempre mais qualificados para atuar com essas novas tecnologias aplicadas em equipamentos e programas que se obsoletizam rapidamente, a educação passa a ser vista como formação permanente de capital humano, reduzida ideologicamente, em grande parte, a mero insumo para o desenvolvimento econômico dos países. Perde-se a perspectiva da educação para a cidadania que, além da formação científica e tecnológica, preocupa-se com a formação humana em todas as suas dimensões.
Considerar o conhecimento como mediação de cidadania, em seu sentido mais abstrato, significa compreender que uma das condições do exercício da liberdade é o acesso à informação qualitativamente relevante e quantitativamente suficiente, bem como, à educação que permita interpretar adequadamente tais informações. Como qualquer objeto permite gerar infinitos conhecimentos, a pesquisa universitária deve, ao nosso ver, tomar como objetos aqueles que sejam relevantes à ampliação das liberdades públicas e privadas - considerando as dimensões econômicas, políticas e culturais deste exercício no contexto social local, nacional e mundial em que a pesquisa se desenvolve. Por sua vez o ensino universitário deve educar o aluno para a atividade da pesquisa, recuperar os conteúdos historicamente elaborados e realizar os treinamentos requeridos que permitam a cada educando não apenas exercer uma atividade profissional ou científica competente na área de sua formação, mas também um exercício crítico sobre as dimensões estéticas, éticas, políticas, econômicas e culturais que condicionam seus exercícios de liberdade, gerando interpretantes semióticos intelectuais, energéticos e afetivos adequados à construção de uma sociedade democrática e solidária. Por fim, a extensão universitária deve permitir a intervenção de professores e estudantes junto às comunidades não apenas aplicando conhecimentos em atividades que possibilitem às pessoas ampliarem seus exercícios de liberdade seu desenvolvimento cultural, social, econômico e político, mas também questionando os próprios limites das teorias e procedimentos assumidos, considerando as situações, diálogos e resultados dos trabalhos efetivados. A extensão, portanto, é um desafio à pesquisa e um dos momentos em que o ensino encontra o seu acabamento.
O ideal de uma comunidade universitária em que os diversos ramos do saber possam dialogar fecundamente enfrenta, por sua parte, o desafio de uma especialização cada vez maior e mais rápida gerando variados ramos específicos nas diversas ciências, ramos esses que também se autonomizam. Se as próprias ciências particulares, em alguns casos, têm dificuldade de articular suas próprias especializações, como construir uma Universitas a partir de tantos conhecimentos fragmentados que se desenvolvem rapidamente com os novos recursos da tecnologia da informação ?
Em face desta especialização dos diversos ramos do saber, alguns defendem a inter-, multi- ou trans-disciplinaridade como forma de romper os isolamentos. Outros advogam propostas holísticas no trato do conhecimento - conferindo distintos significados a este termo, alguns dos quais parecem-nos inaceitáveis, filosófica ou cientificamente (4). Perceber a complexidade dos fenômenos, abrindo-se a uma interfecundação múltipla das ciências é algo a ser buscado, sem perder, contudo, a vitalidade que a especialização dos domínios trouxe aos diversos ramos das ciências em particular.
Por fim, frente à crise epistemológica da racionalidade moderna, o debate pós-moderno se desdobra por duas vertentes. Uma apoia-se na teoria dos jogos de linguagem - afirmando que a vigência de qualquer conhecimento é provisória e particular, dependendo da disputa comunicativa no seio de uma comunidade interpretante, enfatizando a importância do dissenso. Outra assenta-se sobre uma peculiar formulação semiótica, argumentando que a representação sempre parcial sobre signos indiciais permite a construção de inúmeros mapas distintos e válidos sobre um mesmo objeto, com vistas a variados fins. Ambas operam uma crítica sobre os paradigmas modernos de validação do conhecimento. Vale aqui citar uma passagem de A Condição Pós-Moderna, de Jean-François Lyotard - que inscrevemos na primeira vertente. Segundo ele, a otimização das performances que visam administrar a prova do enunciado científico, necessária para a sua validação pela comunidade científica, exige gastos cada vez mais elevados. Assim, sem dinheiro não há como provar um enunciado, e sem prová-lo não se pode considerá-lo verdadeiro. Como a maior capacidade de administrar a prova aumenta a capacidade de se ter razão, "os jogos da linguagem científica vão tornar-se jogos de ricos, onde o mais rico tem mais possibilidades de ter razão. Desenha-se uma equação entre riqueza, eficiência e verdade.(...) O estado e/ou a empresa abandonam a narrativa de legitimação idealista ou humanista [acerca da elaboração científica] para justificar a nova situação: no discurso dos capitalistas de hoje, a única situação merecedora de crédito é o aumento do poderio. Não se pagam sábios, técnicos e aparelhos para saber a verdade, mas para aumentar o poderio."(5)
Outros autores, como Habermas e Apel, buscam reafirmar a vigência universal do conhecimento científico e das normas éticas afirmando uma razão comunicativa a partir do pragmaticismo lingüístico, desde o qual refutam o ceticismo peculiar às vertentes pós-modernas, afirmando o consenso argumentativo - sob certas condições - como critério epistemológico para a vigência de enunciados descritivos ou como critério ético para o estabelecimento de normas morais (6). Frente aos acordos comunicativos no seio da comunidade de comunicação haveria que considerar-se, entretanto, segundo Enrique Dussel, a posição dos afetados, dominados e excluídos em relação aos consensos nela construídos, para que tais consensos não sejam expressão estratégica de uma razão cínica que se pretende ética (7).
De qualquer modo, em meio a este cenário de debate, disputa e indefinições, urge reafirmar argumentativamente que cabe à universidade, com suas atividades de pesquisa, ensino e extensão, colaborar para transformar e melhorar o mundo, contribuindo na realização das potencialidade humanas no campo das artes, filosofia, ciência e tecnologia, produzindo conhecimentos que concorram para a realização do bem viver humano e para o domínio ecologicamente adequado da natureza. Para que isso se realize, entretanto, a "...autonomia, a pluralidade, o caráter público, o contato e a integração com o conjunto da sociedade, o compromisso com a liberdade, com a verdade e com a qualidade, a postura crítica, a inquietação e o inconformismo permanentes, a prática da democracia" devem permear a vida universitária (8).
Inserida em uma realidade social específica, a universidade reflete de algum modo este contexto em que interage com as outras organizações sociais, podendo interferir e contribuir na transformação dessa realidade ou dela evadir-se em atividades de pesquisas e ensino cujos objetos e conteúdos não tenham maior significação neste contexto. Por outra parte um dos papéis da universidade é pensar criticamente a própria sociedade em que está inserida, o que implica atuar com autonomia frente às demais organizações sociais. Muitas universidades, contudo, em função da necessidade de financiamento ou por posições políticas e religiosas subordinam-se a instituições públicas ou privadas, abdicando da sua autonomia crítica. A liberdade acadêmica de pesquisa acaba restringida em função de interesses econômicos de empresas que financiam projetos de investigação científica e tecnológica ou pela posição política e religiosa dos mantenedores de universidades privadas.
O discurso governamental de que "...as Universidades devem passar a assumir um papel de liderança, buscando a associação com o setor produtivo público e privado, para o desenvolvimento de áreas de pesquisa que tenham o potencial de produzir benefícios econômicos e sociais para nosso país" (9), passa ao largo desta problemática. De fato, tergiversando sobre a autonomia, quando trata da sustentação financeira das universidades públicas, a política de privatização destas entidades aponta as parcerias com empresas privadas como forma de captação de recursos. Estas parcerias e financiamentos, entretanto, direcionam acentuadamente as linhas de pesquisa submetendo a liberdade de investigação aos interesses do mercado.
Os cortes de verbas para a educação em inúmeros países, provocaram a situação de que, no montante total de gastos governamentais, os dispêndios com as universidades públicas são cada vez menores, o que inviabiliza o desenvolvimento de importantes pesquisas voltadas ao atendimento de demandas peculiares aos diversos países e precariza a situação do ensino e da extensão por elas realizado. De sua parte, os agentes financiadores internacionais, como o Banco Mundial, condicionam a liberação dos recursos à implantação de reformas educativas que, destinando menos verbas às universidades, forçam a sua progressiva privatização. Muitas delas acabam sem recursos para modernizar laboratórios, reformar salas e disponibilizar a professores e alunos novos equipamentos que agilizem o trabalho acadêmico como bibliotecas especializadas e atualizadas, computadores e acesso à internet, por exemplo.
Por outra parte, a maioria das universidades privadas também não oferece estruturas adequadas para o desenvolvimento de pesquisas. Nestas condições, inúmeros pesquisadores optam por trabalhar em laboratórios de empresas privadas, conectando suas investigações com outros projetos em curso. No caso das universidades públicas, como o corte de gastos atinge até mesmo os próprios salários dos professores, muitos destes optam por trabalhar para indústrias em tempo integral ou passam a trabalhar temporariamente em escolas privadas, que pagam melhores salários, assumindo uma dupla jornada de trabalho. Em ambos os casos, as universidades públicas perdem em qualidade.
Esta situação de carência de recursos se reflete também na disputa travada nas universidades públicas em torno de programas e currículos de graduação e pós-graduação, na qual se percebe o embate entre os que advogam uma universidade voltada a formar capital humano, almejando ampliar parcerias com empresas privadas, e outros que advogam uma educação universitária que, realizando atividades de ensino, pesquisa e extensão articuladas às necessidades do desenvolvimento nacional, contribua para a realização mais ampla da cidadania.
Neste debate é perceptível que, sob os auspícios das reformas neoliberais, a autonomia da universidade pública vem sendo perdida, uma vez que em razão da falta de recursos que garantam a sua independência, ela vem assumindo tais parcerias com empresas privadas, colocando-se na função pragmática de formar capital humano ou de desenvolver conhecimentos que se configurarão em propriedade privada das empresas capitalistas que financiam as pesquisas. Assim, a questão da liberdade acadêmica e dos fins da produção do conhecimento em relação à sociedade implica em considerar, necessariamente, o financiamento da própria atividade universitária.
A liberdade acadêmica dos professores universitários não deve ser compreendida como um escudo que proteja o "descolamento" de sua pesquisa no que se refere à relevância acadêmica dos temas de sua investigação ou às necessidades de elaboração teórica provenientes do contexto social nacional em que se encontra inserida a universidade. Muitas das necessidades públicas demandam pesquisas pertinentes ao trabalho universitário. A relevância do conhecimento universitário não se reduz, entretanto, a atender tais demandas. Investigações sobre temas específicos que nada têm a ver com demandas sociais imediatas podem ser relevantes academicamente, devendo-se eticamente promover a liberdade destas pesquisas. Cabe à comunidade universitária, contudo, prestar contas à sociedade de seu labor investigativo, publicando trabalhos que permitam uma apreciação crítica da relevância, andamento e resultados das pesquisas.
Cabe destacar que as universidades brasileiras além de prestarem contas de sua pesquisa, não podem ficar atreladas aos interesses das grandes corporações em troca de financiamentos. Elas necessitam considerar, com autonomia, a realidade econômica, política, social e cultural do país se desejam produzir conhecimentos que contribuam com a sua transformação. Urge enfatizar que, em nosso país, milhões de pessoas estão excluídas de garantias elementares de educação, saúde, alimentação e moradia, que a democracia é inconsistente (20% dos trabalhadores com mais de 18 anos não sabem sequer o nome do presidente do país ou do prefeito de sua cidade (10) ), sendo a opinião pública fortemente influenciada pela mídia eletrônica. Do mesmo modo que a universidade pode contribuir para transformar esta realidade ela pode colaborar para a sua conservação. Para que sua atuação seja transformadora é necessário garantir-lhe, além da autonomia e pluralidade, a perspectiva crítica, a atuação democrática, o caráter público, a busca do conhecimento rigoroso, seguro e argumentado, o compromisso com a liberdade acadêmica e com a qualidade da pesquisa, do ensino e da extensão. Em síntese, a universidade colabora com a transformação do país na medida em que busca alternativas para as grandes questões nacionais, tanto através da elaboração de conhecimentos científicos e tecnológicos que respondam às necessidades do desenvolvimento nacional, quanto através da capacitação de recursos humanos que possam qualificadamente atuar na transformação de nossa sociedade, bem como pela implementação de atividades de extensão, no sentido já indicado. Estes elementos permitem conferir uma perspectiva própria à inserção da universidade na comunidade global, peculiar aos fenômenos de mundialização, quando da realização de convênios e intercâmbios - cada vez mais facilitados pelo aprimoramento das tecnologias de transporte e de transmissão de dados. Se é salutar que a universidade mantenha parcerias com outras instituições sociais - inclusive empresas privadas - na efetivação desses propósitos, tais parcerias não podem se converter, de forma alguma, na fonte de financiamento das atividades universitárias, o que coloca em risco a própria autonomia da universidade.
Convém ainda salientar que, embora o desenvolvimento da ciência e tecnologia esteja no cerne do incremento das forças produtivas na atual etapa do capitalismo, mesmo assim a maior parte das universidades - com maior ou menor grau de parcerias - não está no centro da mudança social. Se por um lado as empresas coordenam o desenvolvimento de uma grande parcela das pesquisas científico-tecnológicas atuais em seus próprios laboratórios e com seus próprios quadros, por outra parte inúmeras organizações da sociedade civil, elaborando, debatendo e difundindo teses econômicas, políticas e culturais ocupam um outro espaço em que a contribuição das universidades poderia ser maior.
Com efeito, as universidades estão, progressivamente, sendo reduzidas a formadoras de profissionais que possam atuar neste novo contexto produtivo, fazendo frente aos desafios da inovação tecnológica, desconsiderando-se outras dimensões fundamentais à educação para a cidadania. Contudo, mesmo aí, as próprias empresas ou organizações patronais também realizam a maioria dos cursos de requalificação e de treinamento profissional mantendo, somente em alguns casos, parcerias com as universidades.
Neste novo contexto não apenas o custo da educação vai se tornando cada vez maior, como o preço pago por ela nas universidades privadas também se eleva. Como a disputa no mercado de trabalho move as pessoas a buscarem um nível de instrução cada vez maior, o comércio do conhecimento torna-se um ramo que prospera ano após ano. Boa parte da clientela potencial associa, estreitamente, a educação superior com melhores salários. Em razão disso, muitas universidades privadas centram os conteúdos programáticos nas disciplinas de formação profissionalizante, particulares às áreas específicas de graduação a fim de atrair e contentar os clientes que, assim, saem das universidades com uma formação medíocre na capacidade de compreender a própria realidade em que estão inseridos, pois lhes faltam conhecimentos básicos de sociologia, economia, filosofia, etc. Importantes conteúdos nos campos da estética, ética e política são desconsiderados pois nada acrescentam à formação profissional destes universitários que não desejam consumi-los.
Considere-se, ainda que boa parte desta clientela compõe-se de estudantes advindos de famílias pobres ou de camadas médias que têm uma formação básica de qualidade inferior e que quando chegam a disputar vagas universitárias para certos cursos como direito, engenharia, medicina e odontologia, por exemplo, em universidades públicas, perdem-nas para estudantes de famílias mais abastadas que tiveram um melhor curso preparatório. A universidade pública, entretanto, é responsável pela formação acadêmica de um expressivo número de estudantes advindos das camadas populares, se considerarmos o conjunto dos cursos por ela oferecidos. A privatização da universidade pública através dos vários mecanismos atualmente adotados, prejudica ainda mais os estudantes provenientes das camadas populares.
Com efeito, o fosso entre ricos e pobres nas sociedades contemporâneas - em que a ciência vem se tornando a principal fonte de valor econômico - é o mesmo fosso entre educados e não-educados, uma vez que se exige uma escolarização mais elevada para a ocupação dos novos postos de trabalho que são gerados. Contudo, é preciso frisar, mesmo que todos os trabalhadores fossem qualificados, não haveria empregos para todos, pois tanto na produção de bens tangíveis quanto intangíveis, a dependência capitalista do trabalho vivo é cada vez menor (11).
De fato, a digitalização do conhecimento não apenas tem permitido a redução do emprego de trabalhadores na produção de um mesmo volume de mercadorias, como também possibilitou a organização de poderosos bancos de dados facilmente pesquisáveis, liberando a atividade teórica para o exercício criativo sobre dados facilmente recuperáveis e comunicáveis. Os novos meios de comunicação, como a Internet, não somente ampliaram o acesso à informação como aumentaram a velocidade de sua circulação, permitindo a constituição de comunidades de pesquisadores sobre os temas mais diversos. Listas de discussão, conferências virtuais e outros expedientes permitem um intercâmbio cotidiano e instantâneo de informações entre pessoas que estejam em qualquer parte do planeta. Freqüentemente, muitos pesquisadores mantém um contato muito mais intenso com parceiros de outros países do que com colegas do mesmo setor na universidade. Por outra parte o aprimoramento de programas de tradução e a proliferação de sites educativos permite que estudantes tenham acesso a textos elaborados sobre os diversos conteúdos de sua formação acadêmica e que muitos blocos de textos sejam diretamente transportados de sites e enciclopédias eletrônicas a trabalhos escolares sem a adequada investigação, análise e síntese.
Assim, um dos grandes desafios da educação e da universidade está em ensinar o educando a localizar, interpretar e reagir às informações disponibilizadas em inúmeros bancos de dados através de múltiplos canais de acesso, desenvolvendo o aprendizado da pesquisa, da capacidade analítica, interpretativa e criativa, da habilidade em problematizar os objetos de investigação, construir sínteses de elementos relevantes aos propósitos almejados, posicionar-se eticamente frente aos conflitos humanos, comunicar o conhecimento elaborado e transformar suas próprias ações com base nos graus de criticidade e sensibilidade alcançados.
Estes são alguns dos desafios colocados à universidade frente a problemática do conhecimento como mediação de cidadania ou como instrumento do capital em meio a atual revolução tecnológica. Neste momento histórico, novamente a universidade está desafiada a reafirmar-se, inserida em um quadro complexo e conflituoso no qual, simultaneamente, a ciência avança com extrema velocidade ao par de uma crise de modelos epistemológicos e éticos, em meio a catástrofes ambientais que resultam do próprio desenvolvimento tecnológico por ela realizado em função dos interesses dos grandes capitais; momento em que inúmeras pequenas comunidades científicas e culturais se organizam internacionalmente através das redes digitais de comunicação e que milhões de trabalhadores são excluídos e marginalizados da produção e do consumo, em que imigrantes - vítimas da fome e de guerras políticas e religiosas - são também oprimidos e marginalizados em terras estranhas; momento em que o projeto neoliberal de privatizações solapa as bases materiais que asseguram a liberdade acadêmica ao mesmo tempo em que oblitera a pesquisa, ensino e extensão voltados aos interesses nacionais e à defesa da cidadania.
A universidade pública, gratuita e autônoma é um patrimônio imprescindível para a promoção da liberdade e como tal deve ser preservada. Diferentemente de se tornar um mero instrumento de lucro para iniciativa privada, as universidades precisam manter-se como espaço de produção, reprodução e socialização do conhecimento que, interferindo nos processos econômicos, políticos e culturais em curso em nossa sociedade, colaborem com a ampliação do exercício da cidadania e com a construção e avanço de um projeto de desenvolvimento nacional voltado à promoção das liberdades públicas e privadas, enfrentando, desse modo, as diversas formas de exclusão que se aprofundam em nosso país.
NOTAS
1 Theodor ADORNO e Max HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1985.
2 Karl MARX. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse) 1857~1858. Editora Siglo Veintiuno, 10a. edição, 1985, vol. 2, p. 32. O poder da ciência aparece sobretudo na análise do desenvolvimento das forças produtivas e da dissolução de sucessivos modos de produção [Vol. 2, p. 32], bem como na passagem da manufatura à grande indústria, que correspondem a duas formas distintas do capital produtivo: "na primeira predomina a divisão do trabalho; na segunda a combinação das forças de trabalho (com um modo uniforme de trabalho) e da aplicação do power científico..." [Vol. 2, p. 86]. Na fase superior da grande indústria, imaginada por Marx nos Grundrisse, a ciência se tornaria a principal fonte de valor, fazendo surgir e avolumar-se o disposable time ou Nicht-Arbeitszeit, isto é, o tempo de não-trabalho ou o tempo de trabalho produtivo disponível na sociedade como força produtiva mas que não é mais empregado pelo capitalista para incrementar seu lucro, uma vez que o volume do lucro da empresa é ampliado, em mercados saturados, inovando-se tecnologicamente a produção e empregando-se menos trabalhadores. Sobre isso veja-se nosso artigo: "Trabalho, Ciência e Tempo Livre em Karl Marx - Dos Grundrisse a O Capital" www.aol.com.br/mance/trabalho.htm
3 Entre outras cabe destacar as Faculdades de Direito de São Paulo e do Recife, as Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro, as Faculdades Integradas de São Paulo e a Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
4 Sobre isso veja o item "A complexidade do Real e a Elaboração dos Conceitos - Uma crítica aos holismos", que é a quinta seção de nosso estudo intitulado "O Filosofar como Prática de Cidadania". www.aol.com.br/mance/filosofar.htm
5 Jean-François LYOTARD. A Condição Pós-Moderna . Lisboa, Gradiva, sd, p. 88 - 91
6 Karl-Otto APEL, La Transformación de la Filosofia (2 vol), Madri, Taurus, 1985 e Jurgen HABERMAS, The Theory of Commucative Action, Boston, Beacon Press, 1984
7 Enrique DUSSEL, "Ética da Libertação" in Antonio SIDEKUM, Ética do Discurso e Filosofia da Libertação - Modelos Complementares. São Leopoldo, Editora Unisinos, 1994, p. 148 e, do mesmo autor, "Del Sceptico al Cinico (Del Oponente de la "Etica del Discurso" al de la "Filosofia de la Liberación")". Libertação-Liberación 3(1):36-47 Jan Dez 1993, Campo Grande, CEFIL. (www.aol.com.br/ifil/Biblioteca/Artigos.htm)
8 Fernando GALEMBECK e Luis Carlos Guedes PINTO, Um Projeto para a Universidade, http://www.adunicamp.org.br/jornal/projeto.htm
9 Paulo Renato SOUZA. Por uma nova Universidade. Seminário sobre Ensino Superior. Brasília, 16/12/96. http://www.adunicamp.org.br/jornal/nova-universidade.htm
10 Isabel CLEMENTE. "20% dos trabalhadores não sabem quem é o presidente". Folha de São Paulo, 19-12-97, p.1-4
11 MARX. Op. Cit., Vol. 2, (Caderno VII), p. 229
Referências Bibliográficas
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MANCE, Euclides André. "Trabalho, Ciência e Tempo Livre em Karl Marx - Dos Grundrisse a O Capital" www.aol.com.br/mance/trabalho.htm
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SOUZA, Paulo Renato. Por uma nova Universidade. Seminário sobre Ensino Superior. Brasília, 16/12/96. http://www.adunicamp.org.br/jornal/nova-universidade.htm
A Universidade em Questão - O conhecimento como mediação da cidadania e como instrumento do capital.
Aula Inaugural do Curso de Filosofia do IFIBE, Passo Fundo, RS - 08 de fevereiro de 1999
www.aol.com.br/mance/universidade.htm
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