Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e Totalitarismo
- Elementos para um estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998



Introdução

O objetivo deste livro é realizar uma crítica conceitual do globalitarismo, tomando como caso particular para análise o governo de Fernando Henrique Cardoso. Ao final apontaremos, também, alguns elementos gerais alternativos a este modelo. Nas observações preliminares desenvolvemos uma reflexão bastante didática, visando fornecer ao leitor uma compreensão básica dos mecanismos que conformam o Plano Real e que têm possibilitado assegurar a estabilidade da moeda no país - sob os cânones do neoliberalismo - desde 1994. Esclarecemos as principais propostas retomadas no Consenso de Washington, analisamos a implantação do neoliberalismo no Brasil após a transição da ditadura militar para a democracia liberal em meados dos anos 80 e explicamos o Plano Real em suas três fases constitutivas, que envolveram os dois últimos governos federais, o de Itamar Franco e o de Fernando Henrique Cardoso. Apresentamos também os beneficiados e perdedores com estas políticas de estabilização monetária, o significado das reformas constitucionais para a manutenção do Real, o objetivo da defasagem do câmbio e das elevadas taxas de juros, sua relação com o crescimento da dívida interna, do desemprego e, por fim, a dependência cada vez maior de capitais internacionais para a manutenção da estabilidade econômica brasileira.

Uma vez atingido este patamar preliminar de compreensão, avançaremos para a análise do fenômeno de produção de subjetividade na atual etapa da globalização do capitalismo. A produção hegemônica de subjetividades com vistas a implantação do modelo neoliberal ensejou a emergência de regimes globalitários que se valem dos mecanismos democráticos liberais com vistas à imposição autoritária de medidas econômicas que prejudicam a liberdade pública em benefício do acúmulo privado de capitais pelos grandes agentes econômicos internacionais. A partir destas premissas podermos analisar a implantação do globalitarismo no Brasil, centrando-nos em um estudo de caso: o governo Fernando Henrique Cardoso.

Na realização dessa trajetória investigativa, apresentamos uma noção de subjetividade adequada à compreensão dos processos semióticos de individualização e subjetivação, mostrando como ela é modelizada tanto sob jogos semióticos dos grupos em que o indivíduo participa - família, igrejas, escolas, grupos de amigos e outros - quanto, especialmente, pelos jogos semióticos das mídias de massa, que agenciam sentimentos, desejos e medos e modelizam gostos, imaginários, utopias e outras dimensões subjetivas. Considerando esse fenômeno nos quadros da lógica da globalização, veremos que a disputa entre os agentes econômicos, na busca por ampliar mercados para vender os seus produtos e girar seu capital, bem como, em produzir com menores custos e em índices de produtividade mais elevados os conduz, necessariamente, a atuar na produção de subjetividades, seja modelizando a subjetividade daqueles que têm que produzir com tecnologias flexíveis e que são incorporados como colaboradores no corpo das empresas, seja, especialmente, a modelização da subjetividade do consumidor, para que consuma determinado produto e não outro, em mercados que estão cada vez mais saturados. Do mesmo modo, procedimentos semióticos de produção de subjetividades são utilizados através das mídias de massa para agenciar adesões políticas ao projeto neoliberal que vai se impondo como pensamento único e gerando um conjunto cada vez maior de excluídos e desassistidos. Têm-se então o surgimento dos regimes globalitários que compõem mecanismos formalmente democráticos com a condução hegemônica da sociedade através da produção de imaginários e do agenciamento de condutas particulares e coletivas. Este processo autoritário de formação do consenso vale-se de técnicas semióticas que analisaremos detalhadamente neste estudo.

Explicitaremos também os traços estruturais desta fase de globalização do capitalismo e apresentamos suas características principais e conseqüências mais importantes para os países do Terceiro Mundo. Neste quadro, consideraremos o caso brasileiro, centrando-nos no governo Fernando Henrique Cardoso - como um dos momentos do processo de inserção do Brasil nesta nova ordem mundial -, governo que evidencia inúmeras características peculiares aos regimes globalitários. Trata-se de um governo autoritário que, para abrir o país ao modelo neoliberal de globalização, vale-se dos recursos de mídia para produção de subjetividade de maneira eficiente e de outros expedientes formalmente democráticos, embora, objetivamente impositivos e excludentes, como analisaremos cuidadosamente em diversos itens.

Deve-se destacar, contudo, que embora esse movimento de globalitarização seja hegemônico no país, também há, por outro lado, inúmeros espaços de resistência substancialmente democrática desde os quais são desenvolvidas ações que se lhe opõem. Do ponto de vista desta resistência democrática e popular destacaremos alguns aspectos centrais ao enfrentamento dos processos hegemônicos de produção de subjetividade e explicitaremos algumas condições fundamentais para o exercício das liberdades públicas e privadas, enfatizando a sua dimensão ética. Apontamos, por fim, alguns elementos peculiares à proposta socialista, democrática e ecológica como alternativa aos regimes globalitários.

Sob o aspecto metodológico, o complexo fenômeno de articulação entre globalização e totalitarismo, que envolve aspectos econômicos, políticos, jurídicos e semiológicos, será abordado desde um novo um paradigma investigativo que pode ser adequadamente denominado como semiótica política.

Conforme uma distinção já existente, considera-se a semiologia a ciência que estuda os signos, suas classes e peculiaridades particulares, ao passo que a semiótica investiga as semioses, isto é, o movimento de geração dos signos, pois um signo, para ser interpretado, provoca a geração de outros signos e assim sucessivamente. De fato, ambas estão intrinsecamente relacionadas, não havendo como realizar-se uma investigação semiótica sem recorrer-se aos elementos da semiologia, a qual, por sua vez, não tem como compreender a articulação dos próprios signos sem o recurso de uma semiótica (1). Definições à parte, é o caráter político das semioses, o modo político como os signos operam, o que determina o paradigma investigativo aqui assumido.

O que pretendemos, portanto, sob esta abordagem de semiótica política, é desenvolver uma investigação conceitual sobre fenômenos econômicos e disputas de hegemonia política, que se desenvolvem como momentos do atual processo de globalização, planetarização e mundialização, tomando como caso particular para análise o governo de Fernando Henrique Cardoso, a campanha em que foi eleito presidente da República e as conseqüências de sua gestão, considerando-os como mediações de um movimento global de inserção do Brasil na nova ordem econômica mundial sob o modelo neoliberal.

Sob uma semiótica política, considera-se cada jogo semiótico como jogo de poder, isto é, como intervenção dos indivíduos em determinadas circunstâncias visando imprimir-lhes tendências que resultem em cenários esperados. Se o resultado da intervenção é satisfatório novas intervenções podem ser realizadas para estabilizá-lo daquele modo. Se o cenário resultante for imprevisto e adverso, novos jogos semióticos são realizados a fim de alterar-lhe as tendências visando produzir um outro cenário mais favorável. No caso específico de análise do nosso objeto, consideraremos os jogos semióticos através das mídias de massa - em particular a televisão - esclarecendo os mecanismos de produção de hegemonias políticas, os quais se valem da manipulação de signos, tais como moedas, dados estatísticos, peças publicitárias, discursos políticos, imagens de movimentos sociais, imagens de conflitos em processos sociais reivindicatórios, etc (2).

O adequado desenvolvimento conceitual sobre o tema exigirá que, durante o movimento analítico, sejam consideradas várias mediações entre fenômenos que perpassam níveis macro e micropolíticos que são interdependentes - o que implicará, em alguns casos, retomar determinados temas a fim de articulá-los sob outras mediações.

Por outra parte, em razão do referencial teórico adotado e da definição conceitual do objeto a ser investigado, explicitaremos algumas categorias centrais como subjetividade e globalitarismo, entre outras, para facilitar ao leitor o acompanhamento da reflexão. Embora não tenhamos como explicitar todo o conjunto das categorias semiológicas e semióticas que serão utilizadas no decorrer do estudo, abriremos, todavia, algumas notas esclarecendo o significado das principais categorias e o seu emprego analítico.

Em razão desses aspectos, optamos por apresentar, após as Observações Preliminares, uma noção de subjetividade adequada à compreensão dos processos semióticos de individualização e subjetivação. Em seguida analisaremos alguns elementos básicos dos processos de produção de subjetividade que se realizam sob os movimentos hegemônicos do capitalismo globalizado que, em função das disputas por interesses econômicos internacionais, capturam signos culturais locais modelizando-os sob novas semioses (3). Na seqüência, após caracterizarmos o regime globalitário como sendo a articulação entre globalização e totalitarismo - uma forma de exercício político que mantém em funcionamento as instituições democráticas formais, mas que impõem uma nova forma de organização autoritária da sociedade, graças à geração de semioses que orientam hegemonias políticas -, resgataremos vários elementos na trajetória da campanha política e do governo de Fernando Henrique Cardoso em que ficam patentes traços globalitários. Citando exposições de mídia, de telejornais e informes de seu governo, entre outras peças sígnicas, mostraremos como os signos são hegemonicamente modelizados utilizando-se espaços formalmente democráticos para a formação da opinião pública; o resultado desse processo, contudo, é a imposição de uma ordem excludente a autoritária. Destacaremos em seguida alguns aspectos a serem considerados para o enfrentamento democrático e popular deste tipo de regime autoritário.

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NOTAS:

1. A semiótica e a semiologia são ciências que estudam os signos. Signo vem do grego semeion, semente, associada a uma idéia gerativa, de movimento, de algo que faz surgir outro. Conforme a distinção usual mencionada, a semiologia, seria a ciência que estuda os signos, ao passo que a semiótica, investigaria a semiose, isto é, a ação dos signos tanto ao nível antropológico, quanto biológico ou fisiológico. Segundo a distinção feita pela Associação Internacional de Semiótica, como nos esclarece Félix Guattari, considera-se a semiologia "como disciplina translingüística, que examina os sistemas de signos em relação às leis da linguagem (perpectivas de Roland BARTHES)", ao passo que considera-se a semiótica como "disciplina que se propõe estudar os sistemas de signos segundo um método que não depende da lingüística (perspectivas de Charles Sanders PEIRCE)" [Félix GUATTARI. O Inconsciente Maquínico - Ensaios de Esquizo-Análise. Campinas, Papirus, 1988, p. 20]. Para John Deely, "o objeto ou assunto da investigação semiótica é não apenas o signo mas a ação dos signos, ou semiose." [ John DEELY. Semiótica Básica. São Paulo, Editora Moderna, 1990, p.124]. Charles Sanders Peirce (1839-1914), por sua vez afirma que "A lógica é, em seu sentido geral,... apenas um outro nome da Semiótica, a doutrina quase-necessária ou formal dos signos." [ apud Edward LOPES, Fundamentos da Lingüística Contemporânea. São Paulo, Editora Cultrix, 1986 p. 16] Podemos afirmar, em um certo nível de abrangência, que signos são produtos culturais que envolvem significantes e significados, possibilitando a construção de sentidos sobre objetos, processos, realidades efetivas e imaginárias; que eles possibilitam a comunicação e o estabelecimento dos códigos sociais. A semiótica estuda, portanto, em certo nível, os diversos aspectos das linguagens, em especial as funções sígnicas. Em geral ela trata das regras de articulação dos signos entre si (sintaxe), dos significados que eles possuem referidos aos contextos (semântica) e da utilidade que possuem nas relações sociais (pragmática). [ "Semiótica" in: José FERRATER MORA, Diccionario de Filosofia. Madri Alianza Editorial, 1990, vol. 4, p.2981-2983]. Conforme Edward Lopes, a semiótica estuda "... todas as espécies de sistemas sígnicos que o homem construiu ao longo dos séculos...; todos esses sistemas sígnicos exprimem aspectos de uma particular modelização do mundo , uma imago mundi intuída pela sociedade que criou esses sistemas. É na medida em que estuda tais sistemas que a Semiótica ‘constitui a ciência das ideologias’... no seu plano de conteúdo, constituindo, ao mesmo tempo, a ciência das retóricas, no seu plano de expressão." [Edward LOPES, Op. Cit., p. 16].

2. A definição de signo é uma das questões mais controversas que acompanha a lingüística, a filosofia da linguagem e a semiótica. A noção mais simples é a de que seja "qualquer objeto ou acontecimento, usado como citação de outro objeto ou acontecimento"[Nicola ABAGNANO, Dicionário de Filosofia, Ed. Mestre Jou, 1982, p. 861]. Esta definição expõe a propriedade básica do signo, mas não a sua complexidade intrínseca, compreendida nas definições elaboradas por Charles Sanders Peirce: Signo é "qualquer coisa que leva a algo diverso (seu interpretante ) a referir-se a um objeto a que ele próprio se refere (seu objeto) de maneira idêntica, transformando-se o interpretante, por sua vez, em signo e assim por diante, ad infinitum." [Charles Sanders PEIRCE, "The Icon, Index and Symbol" in Semiótica e Filosofia , Ed. Cultrix, 1972, p. 130].

Outra definição pode ser analisada de modo mais detalhado: "Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que é, portanto, num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira determina naquela mente, algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto pode ser chamada interpretante." [Charles S. PEIRCE. Collected Papers, 8 vol. p. 6347, Cambridge, MA. Harvard University Press. apud : Lúcia SANTAELLA. A Percepção - Uma Teoria Semiótica. São Paulo, Ed. Experimento, 1993, p. 38-39 ] Conforme Lucia Santaella desta definição podemos depreender o seguinte: "1) que o signo é determinado pelo objeto, isto é, o objeto causa o signo, mas 2) o signo representa o objeto, por isso mesmo é signo; 3) o signo só pode representar o objeto parcialmente e 4) pode até mesmo representá-lo falsamente; 5) representar o objeto significa que o signo está apto a afetar uma mente, isto é, produzir nela algum tipo de efeito; 6) esse efeito produzido é chamado de interpretante do signo; 7) o interpretante é imediatamente determinado pelo signo e mediatamente determinando pelo objeto, isto é, 8) o objeto também causa o interpretante, mas através da mediação do signo". [Lúcia SANTAELLA. Op. Cit., p. 39]. A partir daí conclui Santaella que " o signo é algo (qualquer coisa) que é determinado por alguma outra coisa que ele representa, essa representação produzindo um efeito, que pode ser de qualquer tipo (sentimento, ação ou representação) numa mente atual ou potencial, sendo esse efeito chamado de interpretante. Para funcionar como signo, basta uma coisa estar no lugar de outra, isto é, representando outra. Basta qualquer coisa, de que tipo for, encontrar uma mente que algum efeito será produzido nessa mente. Esse efeito terá sempre a natureza de um signo ou quase-signo. Ele é chamado de interpretante."[ Idem, p. 39-40.]

3. As diversas linguagens podem traduzir semioses geradas sob linguagens distintas. Um filme, por exemplo, pode ser contado em seus detalhes a alguém que não o assistiu. A esta transcodificação se denomina modelização. O principal sistema modelizante é a linguagem natural - a linguagem falada, com todos os recursos expressivos corporais - que pode traduzir as demais linguagens. A modelização, contudo, significa captar significantes e significados originários de um outro código, em um outro contexto, e submetê-los a um novo conjunto de regras que, se por um lado os traduzem, por outro lado os reconstróem a partir dos códigos da linguagem modelizadora, capturando-os sob a espiral da linguagem modelizadora. Assim, ações, idéias e comportamentos pessoais podem ser modelizados sob códigos institucionais, publicitários, econômicos, jurídicos, etc. Uma ocupação de terras pode ser modelizada pela linguagem jurídica como infração ao direito de propriedade e sob a linguagem religiosa ser significada como uma ação comprometida com a construção do Reino de Deus e sob outra linguagem como o único modo de possibilitar ao agricultor a oportunidade de trabalhar e viver do seu próprio trabalho. As peças publicitárias, por sua vez, também modelizam sentimentos familiares, paixões e solidariedades para recuperá-los na espiral da venda de determinados produtos ou na adesão a determinados projetos políticos.