Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e
Totalitarismo
- Elementos para um
estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998
Capítulo I
OBSERVAÇÕES PRELIMINARES: NEOLIBERALISMO E PLANO REAL
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1. O Consenso de Washington
Em novembro de 1989 reuniram-se em Washington funcionários do governo dos Estados Unidos e de organismos financeiros internacionais ali instalados: o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento. O objetivo do encontro convocado pelo Institute for International Economics, sob o título Latin American Adjustment: How Much Has Happened, era analisar as reformas econômicas empreendidas e em curso na América Latina. Lá estiveram presentes vários economistas latino-americanos relatando experiências. As conclusões desse encontro acadêmico, que não possuía caráter deliberativo, passaram a ser denominadas informalmente por Consenso de Washington (4) . Tal encontro ratificou a proposta neoliberal, que o governo norte-americano vinha defendendo, como condição necessária para que qualquer país pudesse receber cooperação financeira externa bilateral ou multilateral. Assim, embora resultassem de uma reunião informal, as conclusões daquele encontro tronaram-se uma espécie de receituário que passou a servir de referência para a coordenação das políticas de desenvolvimento indicadas aos países latino-americanos financiadas por aquelas entidades. O conjunto de ajustes proposto foi tomado como referência não apenas para os países latino-americanos, mas para todas as economias que recorriam àqueles financiamentos, independente da realidade concreta do país ou de seus estágios diferenciados de desenvolvimento.
As elites latino-americanas passaram a assumir aquelas propostas em um discurso tido como modernizador, tornando aqueles objetivos parte integrante de suas metas de ajustes estruturais, uma vez que somente assim conseguiriam financiamentos para garantir o desenvolvimento dos países. A vigorosa defesa do neoliberalismo assumida pelo governo Reagan ecoou como símbolo de uma nova etapa de transformações da economia mundial. A queda do Leste Europeu e a reintrodução de dispositivos de livre-mercado naquelas economias soava como um triunfo da livre-iniciativa contra as economias estatizadas e protecionistas. De outra parte, o modelo desenvolvimentista inspirado na CEPAL - articulando capitais privados nacionais e estrangeiros sob a condução de um Estado regulador e até mesmo empresário - também era considerado retrógrado e impotente para promover a modernização almejada.
A crise econômica latino-americana era compreendida como se não possuísse raízes externas desconsiderando-se a elevação das taxas de juros internacionais - que incidem sobre as dívidas externas e financiamentos -, o preço do petróleo, a deterioração dos termos de intercâmbio, etc. A crise era apontada como resultado de políticas nacionalistas e estatistas ligadas aos regimes militares que fechavam os países à livre circulação do capital. Muitos economistas proeminentes na América Latina e formados nos Estados Unidos como Salinas de Gortari (México) e Domingos Cavallo (Argentina) endossavam essas políticas e passarão a ter destaque na sua implementação em seus países.
O Consenso de Washington considera os problemas políticos e sociais como conseqüências de problemas econômicos e avalia a estes como resultado de entraves colocados ao mercado, especialmente pela má condução da política monetária. Seria necessário primeiro estabilizar a base monetária, para depois promover a consolidação de um crescimento gradual das economias para posteriormente resolver-se os problemas sociais consolidando-se a democracia liberal (5) . Em outras palavras, a liberalização da economia traria com o passar do tempo a resolução dos problemas sociais aos quais o Estado daria prioridade depois de normalizada a economia, superando-se a fase de ajustes estruturais.
A síntese das propostas era a defesa do livre mercado que se auto-organiza em suas relações internas e externas e do Estado mínimo, que deveria ser reduzido a esta condição de maneira rápida e drástica. Tratava-se pois de abrir a economia à importação de bens e serviços e à entrada de capitais de risco com empresas que trariam tecnologias. Essas transformações conformavam os eixos em torno dos quais giravam, de modo articulado, os dez temas tratados no evento: "1. disciplina fiscal; 2. priorização nos gastos públicos; 3. reforma tributária; 4. liberalização financeira; 5. regime cambial; 6. liberalização comercial; 7. investimento direto estrangeiro; 8. privatização; 9. desregulação; 10. propriedade intelectual."
Em síntese o programa apontava para:
a) a necessidade das privatizações, deixando o mercado ao jogo dos agentes privados, gerando com a venda das empresas recursos que seriam necessários ao equilíbrio das contas governamentais na fase dos ajustes estruturais;
b) uma tributação mínima e regressiva, bem como o aumento da base de tributação e a redução de impostos sobre os agentes econômicos, isto é, os possuidores de grandes fortunas e os pobres pagariam as mesmas taxas de impostos, estendendo a cobrança de impostos a segmentos pobres que antes estavam isentos, bem como, diminuindo a cobrança de impostos das empresas;
c) abertura a importações e investimentos estrangeiros, uma vez que o protecionismo de mercado seria ineficiente tanto para captar recursos quanto para satisfazer os interesses do consumidor nacional. O protecionismo inibiria a inserção competitiva do país na economia mundial. O investimento estrangeiro direto complementaria a poupança nacional necessária ao desenvolvimento e traria novas tecnologias aumentado a competitividade do país;
d) quanto ao regime cambial e política monetária, o Consenso de Washington apontava a necessidade de estimular exportações e inibir importações. Afirmava, contudo, que durante a fase de estabilização econômica era válida a vinculação da moeda nacional a uma "âncora externa", mesmo correndo o risco de uma sobrevalorização monetária. Esta política, que era apontada como exceção, tornou-se posteriormente a praxe de dolarização para a estabilização econômica (6) .
2. O Neoliberalismo no Brasil: Os Governos José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco
e Fernando Henrique Cardoso
2.1. A Crise do Desenvolvimentismo
O modelo de desenvolvimento implantado autoritariamente durante a última ditadura militar brasileira apoiava-se no fortalecimento do papel do Estado, no endividamento externo, na substituição das importações e na manutenção de superávits na balança comercial, em que a exportação de grãos desempenhava um importante papel. A Dívida Externa que era de US$ 3 bilhões em 1964, passou a US$ 81,5 bilhões em 1985. Em meados da década de 70 este projeto entra em crise, surgindo novos atores sociais exigindo a satisfação de demandas concretas a partir de sua situação imediata.
Se no período pós-guerra a economia do país registrou um histórico crescimento do Produto Interno Bruto, em média, de 7% ao ano até a década de 80, um crescimento de 4 vezes do PIB/habitante, por outro lado, durante a década de 80 o Brasil permaneceu estagnado. Mesmo com tal estagnação ele continuou sendo o país de industrialização mais avançada no continente latino-americano, mas sem um projeto de desenvolvimento coerente com o aproveitamento estratégico de seu potencial geo-econômico.
A década de 80, sob o ponto de vista do desenvolvimento econômico, ficou conhecida como a década perdida. A estrutura produtiva envelheceu, o fluxo positivo da poupança se inverteu em função da dívida externa que atingia elevados patamares, tendo crescido acentuadamente no período da ditadura militar. Naquela década a economia brasileira perdeu competitividade e tentou manter posições no comércio exterior valendo-se de recursos como o arrocho salarial e a deterioração do câmbio (desvalorizando a moeda nacional frente ao dólar), reduzindo o custo da produção, no primeiro caso, e tornando as mercadorias internacionalmente mais baratas com os dois expedientes, com os facilitando assim a colocação de produtos brasileiros no mercado externo. O Estado, aos poucos, vai se fragilizando e ficando sem condições de reverter o quadro de deterioração econômica e social. A hiperinflação passa a rondar o país.
No período de 75 a 85 verifica-se o fortalecimento da sociedade civil em contraposição ao Estado autoritário. Vão emergindo e radicalizando-se os movimentos populares, sindicais, as Organizações Não-Governamentais. Das questões imediatas e específicas como o custo de vida, a demanda por creches, o arrocho salarial, a situação da educação e outras, estes movimentos vão ganhando uma conotação mais política, surgindo grandes movimentos nacionais, como os que se articularam em torno da luta pela anistia e da luta pelas Diretas Já.
Com o desgaste da ditadura, surgem projetos alternativos de desenvolvimento: o neoliberalismo empunhado pelas elites dominantes e o socialismo democrático, defendido pelos setores populares.
2.2. O Liberalismo Político do Governo José Sarney
O Governo Sarney caracterizou-se como o início da transição do modelo de desenvolvimento autoritário estatal para o liberal, mas não foi essencialmente nem uma coisa, nem outra. Seu "liberalismo" que atingiu a esfera política e ensaiou os primeiros passos no campo econômico, efetivou-se praticamente como um regime de caráter populista, com forte intervenção estatal. Tanto o modelo neoliberal que começava a se implantar quanto o modelo autoritário mostravam sua incompatibilidade com a democracia substancial: sob os dois modelos crescia vertiginosamente no país a concentração de renda, a marginalização, a favelização das cidades. A inflação de preços subia em níveis alarmantes e seu combate serviu de justificativa para medidas promotoras dos interesses das elites em detrimento da qualidade de vida das camadas populares, como analisaremos mais à frente.
2.3 O Liberalismo Econômico do Governo Collor
Em 1989 tem-se o fim de um ciclo de confronto entre o projeto neoliberal e o socialismo democrático, sendo vitorioso o projeto neoliberal que propunha o livre mercado e menos Estado (7).
O projeto neoliberal, que saiu vitorioso e implantou-se no Governo Collor, diferentemente do período Sarney, provocou significativas mudanças na economia do país, apresentando-se como um projeto de desenvolvimento e modernização. Tal projeto subordinou o Brasil ao modelo de "modernização conservadora" estabelecido pelas pressões do capital internacional, acelerou a abertura da economia do país, diminuiu a capacidade reguladora do Estado, fez inúmeras concessões ao FMI, Clube de Paris e credores internacionais. Realizando ondas recessivas, visando combater a inflação, o governo Collor colocou em risco a capacidade industrial e produtiva do país. Após dois anos deste governo, o Brasil passou a viver uma das crises mais agudas de sua história.
2.4 Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso: A Continuidade dos Ajustes Neoliberais
O processo de impeachment sofrido por Collor em razão dos esquemas de corrupção, estabeleceu-se como um momento de crise política conjuntural em que os setores da elite remanejaram suas composições de força para a continuidade do mesmo projeto hegemônico. No Governo Itamar nada de significativo foi mudado nas políticas que vinham sendo implantadas durante o governo Collor. O receituário monetarista permaneceu, com taxas de juros elevadas, e o combate do déficit público se fazia às custas da precarização dos serviços de saúde, educação, e com a pretendida implantação de uma reforma fiscal, que se resumiu ao Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira. Algumas iniciativas voltadas aos aposentados, aos indigentes e à recomposição dos salários, foram mais de caráter administrativo e de gerenciamento, no primeiro caso, e de efeitos de marketing nos dois últimos, uma vez que ações efetivas requeridas pelas demandas reais não foram implementadas (8).
2.5 Alguns Aspectos dos Ajustes Adotados
a) Desemprego Estrutural
A recessão promovida entre 90 e 92 pelas políticas econômicas de Zélia Cardoso de Mello e o conseqüente desemprego, com a finalidade de diminuir a inflação diminuindo o consumo, agravaram ainda mais o quadro de exclusão social existente no país. Em dezembro de 1992 o desemprego, nas seis maiores capitais dos estados brasileiros, girava em torno de 4,5% da população economicamente ativa, segundo o IBGE. Os dados do DIEESE, entretanto, apontavam outros índices (9). O desemprego aberto, isto é, caracterizando a situação das pessoas que compõem a população economicamente ativa que foram demitidas e estavam procurando emprego nos últimos 30 dias era de 10,5%, cerca de 6,6 milhões de trabalhadores; o desemprego oculto, isto é, caracterizando a situação daqueles que procuraram emprego nos últimos 7 dias, mesmo tendo feito bicos e outras atividades do gênero no período sem vínculos efetivos que caracterizassem emprego, era de 3,5%, aproximadamente 2,2 milhões de trabalhadores; e por fim, os que estavam incluídos na situação de desalento, isto é, que procuraram emprego nos doze meses anteriores mas que haviam desistido de procurá-lo no período que a pesquisa foi feita, acreditando que não mais se empregariam, era de 1,5%, cerca de 967 mil trabalhadores. Assim, o desemprego total - somando o desemprego aberto, oculto e desalento - era de 15,5%, aproximadamente 9,9 milhões de trabalhadores. Do total da População Economicamente Ativa, mais de 30 % não tinha carteira assinada. Conforme algumas estimativas, cerca de 40 milhões de brasileiros atuavam na economia informal, realizando "bicos", trabalhando como camelôs, sacoleiras, vendendo bijuterias, doces, salgadinhos, catando papel ou em outras atividades - fosse em razão de estarem desempregados ou com a finalidade de complementar a renda familiar. Entre eles, 5,2 milhões não tinham salário, trabalhando em troca de moradia e comida. Cerca de 6 milhões de crianças e adolescentes trabalhavam para complementar a renda da familia. Por outro lado, entre os que permaneciam no mercado formal de trabalho, o valor médio do salário recebido caía consideravelmente. Na Grande São Paulo, em 1992, ele caiu 53,9% em relação abril/86. Já o salário médio de 1991 equivalia a 55,9% em relação àquele pago em 1985.
Uma pesquisa feita em 1992 na cidade de São Paulo entre aproximadamente 500 moradores de rua revelava, na época, que 87% deles já tiveram emprego formal com carteira de trabalho assinada, 27% tiveram emprego regular até 1991, 38% tiveram emprego regular até 1990, 85% viviam de trabalho temporário e apenas 15% eram mendigos, isto é, pedintes de esmolas.
b) Concentração de Renda e Aumento da Pobreza
O quadro da pobreza no país tornou-se cada vez mais dramático. Em 1990 a situação de distribuição de renda já era crítica, sendo, o Brasil, o país de maior concentração de renda na América Latina. Aproximadamente 44% dos pobres do continente latino-americano vivia em território brasileiro, embora o país tivesse apenas um terço da população da região. Aumentavam os seus pobres, diminuindo a participação deles na apropriação da renda nacional. Em 1980, os 20% mais pobres tinham 2.6% da riqueza do país; em 1989, detinham só 2.1 %. O quadro geral da concentração de renda em 1990 era o seguinte: enquanto 50% dos mais pobres ficavam com 11,2% da renda nacional, os 10% mais ricos ficavam com 49,7%, sendo que o 1% mais rico ficava com 14,6% da renda nacional (10). Conforme dados do IPEA, em 1994 aproximadamente 22% da população do Brasil (cerca de 32 milhões de pessoas) não tinham suas necessidades alimentares atendidas, vivendo em situação de indigência. Aproximadamente 40% das famílias possuíam uma renda per capita de 0,5 salário mínimo e outros 15% de famílias uma renda per capita de 0,25 salário mínimo.
c) A Concentração Fundiária , o Adensamento Urbano e suas Contradições
O ajustes econômicos neoliberais realizados nos anos 90 em nada contribuíram para superar as excludentes estruturas fundiárias rurais e urbanas. Pelo contrário, paralelamente à marginalização nas atividades de produção e no consumo, verificou-se no país, como um desdobramento do modelo de desenvolvimento adotados tanto na ditadura quanto na última década sob o signo liberal, um vertiginoso processo de concentração fundiária e de adensamento urbano, provocando inúmeros problemas nas grandes e médias cidades.
Sob o projeto de desenvolvimento e industrialização, implantado a partir da ditadura, ocorreu a modernização da agricultura, com o plantio extensivo e altamente mecanizado do soja e outros grãos para exportação, bem como, com o plantio extensivo de cana para produção de álcool. A substituição de diversas culturas de subsistência - em terras que eram cultivadas sob um regime de arrendamento e parceria - e o surgimento da agroindústria foram conseqüências dessa política que provocou a concentração de terra e o êxodo rural, com milhões de migrantes camponeses indo para as cidades, em busca de trabalho e de melhores condições de vida, ou dirigindo-se para outras regiões agrícolas mais ao norte do país.
O processo de concentração fundiária que ocorre no Brasil, em todo esse período, é muito acentuado, verificando-se tanto na área rural quanto urbana, acirrando muitas contradições. Conforme estudos que subsidiaram em 1993 a preparação da Semana Social Brasileira, organizada pela CNBB, "em todo o país existem apenas 5 milhões de proprietários rurais. Os 20 maiores proprietários são donos de mais de 20 milhões de hectares e os 3 milhões e 300 mil pequenos proprietários têm, todos juntos, menos de 20 milhões de hectares. Fazendo a média de um milhão de hectares para cada grande proprietário e 6,6 hectares para cada pequeno" (11). Em 1980, 0.8% dos proprietários rurais com mil ou mais hectares controlavam 45,8% das terras agricultáveis do país, sendo que 75% dessa área estava ociosa, enquanto 4,8 milhões de famílias sem-terra lutavam por terra para plantar. De igual gravidade era a situação de 8 mil trabalhadores rurais na condição de "cativeiro por dívida", isto é, de trabalho escravo, conforme dados registrados pela Organização Internacional do Trabalho no país (12). Segundo a CPT nacional (13), contudo, esse número chegava a mais de 16 mil. De outra parte, considerando-se a questão urbana, verifica-se a mesma concentração fundiária. Segundo o geógrafo William Vesentini, espaços urbanos correspondentes a cerca de 40% a 60% das áreas construídas nas capitais eram ociosos, tratando-se de vazios urbanos , cujo principal objetivo era a especulação imobiliária (14).
Quanto ao processo de adensamento urbano, os dados do Censo Demográfico realizado pelo IBGE em 1991 mostram que cerca de 26% dos municípios do Brasil tiveram taxas geométricas de crescimento negativo no período de 1980 a 1991, na faixa de 0% a -6% ao ano. Por outro lado o adensamento urbano nas capitais, que ocorreu em maior medida nas décadas de 60 e 70, e nas cidades-pólo regionais, durante as décadas de 70 e 80, resultou em que cerca de 33% da população do país, em 1991, estava vivendo em doze cidades, configuradas como áreas metropolitanas, incluindo-se aí o conjunto das cidades a elas conurbanadas: São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Fortaleza, Curitiba, Brasília, Belém, Campinas e Goiânia. Destaque-se que a região que se estende da Grande São Paulo ao Grande Rio, possui uma área de 46 mil Km², aproximadamente 0,5% do território nacional, abrigando 22% da população do país e mais de 60% da sua produção industrial (15).
Com esse processo migratório, provocando o inchamento das cidades, sem haver uma política de emprego e distribuição de renda ou políticas sociais que atendessem as demandas vinculadas à reprodução social da vida desses segmentos marginalizados, o espaço urbano tornou-se campo de uma série de conflitos e contradições. Aumentava, assim o contingente de pessoas paupérrimas morando em favelas, cortiços e nas ruas das grandes cidades. O Governo Collor agravou ainda mais a situação, uma vez que os ajuste neoliberais cortaram sensivelmente as verbas de saneamento, saúde e de políticas sociais. Cerca de 46% dos residentes em domicílios não dispunham de sistema de esgoto adequado, 28% não tinham abastecimento de água tratada; verificava-se o reaparecimento de doenças que haviam sido controladas, como meningite, e aumento de doenças contagiosas por falta de saneamento básico, como malária, tuberculose e hanseníase; 16 milhões de crianças estavam desnutridas, sendo que milhares delas morriam por ano com doenças agravadas pela fome, ao mesmo tempo em que crescia o número de crianças pelas ruas pedindo esmola ou vendendo produtos, enquanto aproximadamente 500 mil adolescentes atuavam na prostituição em todo o território nacional. Cerca de 25 milhões de pessoas com dez anos e acima eram analfabetos e 22 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não freqüentavam a escola. Em vários momentos a situação de recessão e fome levou setores da população a promoverem saques, especialmente em cidades do Rio de janeiro, de São Paulo e do nordeste.
d) Dívida Externa e Dívida Interna
O Brasil permanece refém da dívida externa que, em sua maioria, foi contraída no período da ditadura militar, quando os acordos e o destino do dinheiro não foram discutidos com o legislativo ou com a sociedade. Uma parcela deste dinheiro financiou obras de infra-estrutura e integração nacional que contribuíram para o desenvolvimento econômico dos anos 70; outra parte foi empregada em despesas militares em geral, na compra de armamentos e desenvolvimento de tecnologia bélica; outro montante foi desviado para contas privadas em paraísos fiscais e, por fim, outras parcelas engordaram cofres de empreiteiras com o superfaturamento de obras faraônicas por elas realizadas naquele período. Com o aumento das taxas internacionais de juros que incidiam sobre esta dívida no fim da década de 60 - que de 4,5% saltou para 21,5%, tendo em vista combater a inflação nos países ricos - a dívida externa do Brasil saltou para valores estratosféricos e impagáveis. Somente de 1975 a 1990 o Brasil pagou US$ 100 bilhões de juros e serviços, mas a dívida que era de US$ 25 bilhões em 75, passou a US$ 115 bilhões em 1990.
A fim de captar recursos para honrar seus compromissos, especialmente, com os credores internacionais, o governo acabou gerando uma elevada dívida interna, pois passou a tomar recursos na poupança nacional, interna, a fim de pagar os serviços da dívida externa. Estimava-se que a dívida interna girasse em torno de US$ 42 bilhões no final de 1993. Para captar dinheiro internamente, o governo oferecia títulos a juros mais elevados que os do exterior, atraindo capitais externos e internos para seus papéis. Assim, o governo conseguia dólares para pagar os juros e serviços da dívida externa, mas ampliava acentuadamente o seu grau de endividamento. Os banqueiros, por sua vez, criavam inúmeras maneiras de captar e ganhar com a intermediação. Como o Governo não tinham dinheiro para resgatar todos os títulos que leiloava no mercado, acabava emitindo mais títulos para pagar os juros devidos nos anteriores e assim ia rolando a dívida interna que crescia progressivamente.
3. As três fases do Plano Real
Quando Fernando Henrique assumiu o Ministério da Fazenda no Governo Itamar Franco, esse quadro geral que apresentamos era a dura realidade brasileira. Infelizmente, sua política econômica agravou ainda mais essa situação. A demora em iniciar o seu plano econômico possibilitou desenvolvê-lo sob um cronograma que capitalizou eleitoralmente as esperanças populares com a estabilidade de uma nova moeda.
O Plano Real, contudo, não foi elaborado somente para eleger Fernando Henrique Cardoso presidente. Mais que isso a sua eleição significou submeter a economia brasileira definitivamente aos parâmetros do Consenso de Washington, transformando-a a fim de atender os objetivos estabelecidos pelos países ricos, especialmente os Estados Unidos. Entre as medidas adotadas mais salientes, segundo o receituário, destacam-se: a) combater o déficit público diminuindo os gastos e privatizando as empresas estatais para cobrir o caixa do governo; ao vender as empresas para a livre-iniciativa o estado já se livraria do fardo das empresas que operariam no vermelho, bem como deixaria de atuar protecionisticamente em relação aos monopólios de suas empresas destravando o movimento do livre-mercado; b) dolarizar a economia ancorando a moeda nacional na estabilidade da moeda norte-americana; c) manter uma taxa de juros elevada para inibir o consumo local, favorecendo a queda da inflação; d) diminuir o poder de compra dos salários para diminuir o consumo e evitar a inflação; e) abrir a economia tanto para a importação de produtos mais baratos que os similares nacionais, quanto para facilitar a entrada do capital internacional no país, com a instalação de novas multinacionais que trariam tecnologias avançadas e novos recursos, necessários para alavancar o crescimento da economia brasileira; f) continuidade no pagamento da dívida externa, para que os agentes internacionais voltassem a investir no Brasil. Todas essa medidas vieram sendo adotadas nas três fases do Plano: no combate ao Déficit Público, na implantação da URV e na implantação do Real.
Como veremos o atual controle da inflação é artificial e está enriquecendo grupos e pessoas que operam no setor financeiro, está gerando desemprego e aumentando ainda mais a pobreza e a exclusão social em nosso país.
Seguindo as análises do Consenso de Washington, Fernando Henrique afirmava serem três as causas da inflação brasileira: a) o déficit fiscal - uma vez que o Governo, gastando mais do que arrecadava, fabricava dinheiro para pagar as contas, aumentando a quantidade de dinheiro em circulação e com isso diminuindo seu valor; b) a pressão de compra da população, que faz os preços subirem; c) a cultura inflacionária - isto é, o fato de que todos estavam habituados a embutir nos preços praticados no mês seguinte o valor da inflação do mês anterior, o que impedia a queda da inflação.
3.1. O Combate ao Déficit Público
Para combater o déficit público - isto é, para que o Governo não gastasse mais do que arrecadava - Fernando Henrique deu continuidade às medidas do Governo Collor: a) cortou cerca de US$ 4 bilhões nos gastos do governo, inclusive uma parcela de verbas destinadas à saúde, educação e atendimento emergencial às populações carentes ; b) acelerou o processo as privatizações, no qual algumas empresas estatais foram vendidas abaixo do que seria o seu valor real, favorecendo-se desse modo, grandes grupos econômicos que as adquiriram (16) ; c) diminuiu as redes dos bancos federais (17); d) aumentou o combate à sonegação fiscal; d) tentou realizar uma Reforma Fiscal que ficou restrita - inicialmente - à aprovação do IPMF, cobrando um novo imposto de todos que têm conta bancária (18) ; e) renegociou a dívida externa, trocando antigos títulos por novos que pagavam juros de 16% a 18% ao ano.
Estas medidas penalizaram, em geral, as populações mais pobres e a classe média favorecendo grandes grupos econômicos. Os cortes atingiram sobretudo as políticas sociais, saúde e educação, mas não a rolagem da dívida interna e o pagamento da dívida externa, como veremos no item 3.4 Os Grandes Beneficiados e Perdedores com a Política de FHC.
Com efeito, apenas eliminar o déficit público não garante o fim da inflação. Em 1992, por exemplo, o setor público brasileiro (governo federal, Estados e municípios) teve um superávit de 2,1% do PIB, contudo, a inflação ficou na casa de 1.150%. Já em 1993, o déficit brasileiro representou 0,4% do PIB - Produto Interno Bruto (soma dos bens e serviços produzidos no país) ao passo que no mesmo ano o Japão teve um déficit de 0,6% do PIB, os EUA 4,5% do PIB e a Itália 10% do PIB. Portanto, não é o déficit que causa a inflação, mas as condições em que é financiado. A dívida interna no Brasil, que em 1994 atingiu US$ 55 bilhões, configura-se em títulos renegociados a prazos distintos, a maioria de curtíssimo prazo, gerando fortes lucros para os bancos, ao passo que a dívida interna dos EUA é negociada a prazos muito longos, com parcelas de títulos a srem resgatados depois de muitos anos.
Como se vê, a política econômica de Fernando Henrique, nesta primeira fase do plano, veio implementando alguns objetivos estabelecidos durante o Governo Collor, uma vez que tais ajustes econômicos orientam-se pelas mesmas referências do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial, sob a lógica do projeto neoliberal. Contudo, o governo não conseguiu acabar com o déficit público, vendo, pelo contrário, não apenas a sua persistência, como também a elevação da dívida mobiliária interna, isto é, a elevação da dívida em títulos que o governo gira no mercado financeiro.
3.2 O Enfrentamento da Demanda por Consumo
Para diminuir a pressão de compra da população o Plano Real tomou três medidas: a) diminuir o poder de compra real dos salários, b) manter elevadas as taxas de juros no mercado financeiro, c) promover importações diversificadas para diminuir a pressão inflacionária - provocada pela demanda por consumo - aumentando as ofertas.
3.2.1. A diminuição do poder de compra dos salários
O poder de compra real dos salários ficou congelado por um ano a partir da conversão do Cruzeiro Real pelo Real, enquanto a inflação, apenas em julho e agosto de 94 somaram 12%, significando uma perda de 12% no poder de compra dos salários. O Plano em seu conjunto, provocou perdas ainda maiores. Quando os salários foram convertidos para URV as perdas salariais variam de 26,91% a 47,50% dependendo da categoria profissional e da data base de negociação salarial; os trabalhadores de renda mais baixa, os 25% mais pobres, receberam em março de 1994 um dos salários reais mais baixos dos últimos dez anos, cerca de 54% do salário médio recebido em 1985. De março a junho houve uma inflação em URV de 9% que também não foi incorporada no salário. A perda salarial fica clara quando comparamos o valor do salário estabilizado em URV com a elevação do preço da cesta básica que custava em dezembro de 1993 o valor de 80,79 URVs, passando a custar 97,33 URVs em abril e chegando a R$ 110,00s em julho (19). O poder de compra dos salários continuou comprando bem menos do que comprava antes da primeira fase do plano Real, quando a inflação estava na casa de 20% ao mês (20) .
Contudo, diminuir os salários não reduz a inflação de preços. Em janeiro de 1959, por exemplo, o salário mínimo no Brasil valia US$ 522,00 - conforme atualização do DIEESE - e a inflação era irrisória.
3.2.2 A Elevação das Taxas de Juros
Por outro lado, para diminuir a pressão de compra das classes médias altas, sustentando o valor do Real, o Plano se apoia em uma âncora monetária, isto é, mantém taxas de juros muito elevadas tornando atraentes as aplicações financeiras. Essas taxas de juros, contudo, enriqueceram fabulosamente os banqueiros e os empresários que aplicam no sistema financeiro.
Para arrecadar os recursos necessários à continuidade do pagamento de bilhões de dólares aos banqueiros nacionais e internacionais referentes aos juros da dívida mobiliária - isto é, dos papéis que o governo rola no mercado -, o governo, além de valer-se de impostos e recursos oriundos das privatizações, levou o congresso a aprovar o Fundo Social de Emergência, derrubando o dispositivo constitucional que destinava 18% do orçamento federal para gastos com educação e saúde, promovendo cortes nestas áreas, bem como nas políticas sociais e outros serviços prioritários do Estado. O Fundo Social de Emergência representava no imaginário popular a idéia de implementação de políticas sociais. Contudo, como instrumento da política econômica, era uma fonte necessária ao financiamento da dívida interna, cuja projeção de gastos com encargos - juros mais parcelas do principal do empréstimo - em 1994 subia de US$ 7 bilhões para US$ 17 bilhões (21), graças aos próprios juros altos que o governo praticava no mercado, a fim de evitar a elevação da inflação.
3.2.3. A abertura às importações (22)
Como a balança comercial esteve favorável ao Brasil antes da introdução do Real e o governo aumentou suas reservas, o ex-ministro Rubens Ricupero deixou claro, via parabólicas, que iria dar um segundo golpe na inflação a partir de setembro de 94: abrir a importação de todos os tipos de bens de consumo, cuja demanda pressionava a inflação de preços. Assim, haveria produtos importados mais baratos que os produzidos no Brasil e com isso a inflação não subiria. Ocorre que grandes grupos industriais e comerciantes são também grandes importadores. Abaixando os impostos na importação esses empresários mantiveram seus lucros comercializando produtos importados diminuindo a necessidade de mão de obra empregada no país.
Tudo se passa, sob a lógica neoliberal, como se em todos os segmentos da economia mundial houvesse uma competição entre milhares de empresas. Entretanto, o movimento atual de concentração do Capitalismo Mundial Integrado revela que em muitos setores da economia apenas um pequeno grupo domina o mercado mundial. Em certos segmentos da economia, tem-se 4 a 5 empresas que dominam 80% do total da produção do setor. É o que ocorre, por exemplo, no setor de pneus.
Em 1982, entre as 10 maiores empresas de pneus 4 eram originalmente americanas: Firestone, Goodyear, Uniroyal, Goodrich. Perdendo a concorrência com empresas estrangeiras neste setor a Firestone foi comprada pela Bridgstone, do Japão; a Uniroyal foi adquirida pela Michelin, da França; a Goodrich foi comprada pela Continental, da Alemanha; resistindo apenas a Goodyear. Em 1985, 10 empresas controlavam 80% da produção de pneus no mundo. Já em 1992, apenas 3 empresas dominam 60% da produção mundial de pneus.
Outros exemplos interessantes situam-se na área de alimentos. No setor de supermercados, o Carrefour detém 40% das vendas na França, enquanto o grupo Micros responde por 50% das vendas de alimentação em supermercados na Suíça, sendo que essas cadeias às vezes cooperam entre si por algum objetivo comum.
A Philip Morris, por sua vez, atuava basicamente na área de cigarros. A partir de 1978, entretanto, passou a atuar no setor de alimentos, comprando a cervejaria Muller, a segunda maior dos EUA; em 1986 comprou a General Food, então a maior empresa de café do mundo, por US$ 6 bilhões; em 1988 comprou a Kraft (que atua com leite, queijo, manteiga e outros derivados) por US$ 12,5 bilhões; em 1990 comprou a Jacobs Suchard (que trabalha com café e chocolate) por US$ 5 bilhões. Em 1992, a Philip Morris, detinha 30% do comércio de café do mundo e 12 fábricas na Europa que se unificava economicamente, sendo que o número de suas fábricas iria diminuir em razão da modernização e intensificação da jornada de trabalho, gerando desemprego (23).
Para analisar um dos aspectos da política de abertura às importações no Brasil, tomemos como exemplos os casos dos detergentes, das esponjas de aço e das lâmpadas, em meio ao quadro de oligopolização de vários setores produtivos no país.
No primeiro caso, o grupo alemão Henkel - com sede em Dusseldorf e que contabilizou em 1993 US$ 7,92 bilhões em vendas - comprou, em 1994, 25% das ações ordinárias da Bombril que é controlado pelo grupo italiano Cragnotti & Partners, por US$ 50 milhões, o que possibilitou a Henkel participar na administração da Bombril/Orniex, podendo atuar de forma intensa no mercado brasileiro de detergentes e produtos de limpeza. A Bombril, por sua vez era proprietária das marcas Quanto, Limpol, PinhoBril, Mon Bijou, ODD, Brilhol, Pop e Kalipto (24). Por outra parte, no setor de detergente (ou sabão) em pó, a Gessy Lever possuía, em 1994, cerca de 74% do mercado brasileiro (25).
Ora, no mês de agosto de 94 os detergentes líquidos lideraram a alta dos produtos de limpeza, subindo em média 5,8 %. Mas porque isso aconteceu se não houve encarecimento de matérias primas, outros insumos ou mão-de-obra ? Conforme os produtores era porque os preços estavam defasados quando da sua conversão para a URV, que foi feita segundo a norma que estabelecia tomar por referência a média dos preços praticados no últimos quatro meses. Mas, não se pode desconsiderar como um dos fatores dessa elevação a existência de um oligopólio no setor. Os grupos Cragnotti & Partners e Gessy Lever já dominavam, naquela época, 90% de toda a produção de detergentes líquidos no Brasil, depois que a Bombril comprou a Orniex (26).
Um estudo do IPEA constatou uma alta concentração oligopolizada, não apenas neste segmento, mas em vários outros setores do mercado no país (27). Utilizou-se, neste estudo, o Índice Herfindhal Hirschman, que é calculado tomando por referência a participação das empresas na receita global do mercado. Conforme este indicador, considera-se desconcentrados os segmentos que atinjam um índice até 1.000, moderadamente concentrados os que ficam entre 1.000 a 1.800 e, por fim, extremamente concentrados aqueles setores que têm um índice superior a 1.800. Sobre dados de 1994, o IPEA constatou que, no Brasil, "no segmento de copiadoras o índice chega a 9.224 (5,2 vezes o que os EUA consideram extremamente concentrado). Nos mercados de computadores, baterias e montadoras de automóveis, o índice ultrapassa 4.000. Nos segmentos de lâmpadas, máquinas de escrever, cobre, higiene e limpeza, aços planos, elevadores, condutores elétricos e aços laminados, o índice é superior a 3.000." Outros setores com índice de concentração superiores ao considerado razoável nos Estados Unidos, são: metalurgia, torneiras/chuveiros/aquecedores, tratores e colheitadeiras, freios e componentes, eletrodomésticos e centrais telefônicas.
Assim, por exemplo, Fiat, Valmet e Maxion respondem por 87% das vendas de equipamentos agrícolas. De outra parte, "a fusão da Brasilit com a Eternit, que constituíram uma nova empresa chamada Eterbrás, fez com que elas concentrassem 68% do mercado interno de caixas d'água e telhas de amianto." Por sua vez, no mercado de impressoras, "a união da Rima com a Coperbo, cada uma com mais de um terço do mercado, levou à dominação, pelo novo grupo formado, de 67,8% do segmento." Na área química, o estudo do IPEA "cita a fusão da Rhodia com a Cia. Alcooquímica Nacional, através da qual as duas passaram a deter 84,7% da produção de ácido acético." Conforme Lúcia Helena Salgado, economista daquele Instituto, "as fusões e aquisições [no Brasil] têm sido aprovadas sem maior análise econômica, sem apontar benefícios e riscos" - sendo, grande parte delas, aprovada por decurso de prazo (28). A Lei Antitruste, que foi aprovada em junho de 1994, por sua vez, previa punições quando as empresas, que passaram por processos de fusão, não cumprissem determinadas metas que haviam sido estabelecidas.
Ora, os oligopólios têm grande poder na formação de preços. Como afirmavam algumas jornalistas, "no Brasil, as multinacionais da área de alimentos, higiene e limpeza, por exemplo, suspendem suas vendas quando atingem determinada cota preestabelecida no início do mês. Com isso, impedem queda dos preços por excesso de oferta." (29) Conforme o discurso hegemônico, a abertura da economia brasileira para a concorrência estrangeira possibilitaria enfrentar esta situação, uma vez que, por exemplo, "nos segmentos onde a concorrência estrangeira é maior, como o de lâmpadas, as multinacionais reduziram seus preços." Neste setor, especificamente, quatro empresas multinacionais dominam o mercado: GE, Phillips, Osram e Silvânia, sendo este um dos segmentos mais concentrados no mundo inteiro.
Mas o que aconteceu quando o governo abriu o país às importações ? Algumas empresas puderam obter mais lucro com a importação dos produtos que elas próprias fabricam em outros países a custos mais baixos, com tecnologias mais avançadas. Evidentemente, mantida uma política dessas a longo prazo, elas diminuirão a produção no país, gerando desemprego (30) . É o que está acontecendo atualmente em vários setores industriais na Argentina que promoveu um plano econômico semelhante (31) .
No caso das esponjas de aço, a 3M é, potencialmente, o maior concorrente do grupo Cragnotti & Partners no Brasil, que respondeu por 94% de todas vendas neste segmento em 1994. Com a redução das alíqüotas de importação, a 3M, teria melhores condições para importar o Esponjaço de sua matriz nos Estados Unidos, para concorrer com o Bombril que é da Cragnotti & Partners. Por outra parte, conforme o gerente de marketing da Phillips, Isac Roizenblatt, cerca de 20% das lâmpadas para faróis de automóveis que, em 1994, eram utilizadas no mercado brasileiro, já eram importadas, o que, segundo ele, estaria obrigando os fabricantes no país a investir buscando melhorar a produtividade (32). Ora, de fato, como os grupos fabricantes do país são os mesmos do exterior, uma vez que esse é o segmento mais concentrado do mundo, o resultado dessa "livre-concorrência" com a entrada de produtos externos é a redução da produção interna, com a conseqüente geração de desemprego no país. Se é possível importar lâmpadas de qualquer marca, porque uma empresa multinacional investiria no Brasil para enfrentar a importação de lâmpadas de seu concorrente, se suas próprias lâmpadas - fabricadas em unidades produtivas mais sofisticadas em outras partes do mundo - também poderiam ser importadas por um valor final mais baixo do que o de sua produção no país, resultando-lhe assim um lucro ainda maior do que se as fabricasse Brasil ? Toda empresa capitalista opera em razão do lucro. Se for mais lucrativo vender a uma importadora que traga seu produto ao país, do que produzir no próprio país, ela preferirá negociar com a importadora com valores que não inviabilizem a permanência de sua unidade produtiva naquele país com uma produção reduzida, pois mudanças no câmbio ou modificação de tarifas aduaneiras poderiam levá-la a optar novamente por retomar a produção em outros patamares.
3.3. A Cultura Inflacionária
Para suprimir o hábito de embutir no mês seguinte a inflação do mês anterior, o Plano Real instituiu a URV, como média de 3 índices de inflação: IGP-M, IPC-Fipe e IPCA-E (33). Efetivamente, a unidade monetária real circulante era o Cruzeiro Real, embora unidades referenciais de valor existissem várias, como o dólar, o cruzeiro real corrigido pela Taxa Referencial e outras. A URV incorporava, portanto, a inflação média de um período. Contudo para a definição da taxa de inflação média apresentada em cada um desses três índices eram tomados os preços de produtos em Cruzeiros Reais. Como o resultado final era uma média, havia necessariamente produtos com uma alteração mensal em Cruzeiros Reais abaixo da média e outros acima dela. A URV, contudo, era, inicialmente, estabelecida incorporando o valor da média. Com esse artifício, avaliados em URV, alguns produtos ficavam mais baratos que no período anterior. Isso era apresentado para a população como um sinal de acerto do Plano Econômico. Mas curiosamente, mesmo que nenhuma medida econômica fosse tomada, sempre haveria, em qualquer situação, um preço de algum produto oscilando abaixo da média!
Quando a URV, que já era utilizada para a conversão de salários, passou a servir de referência efetiva para a maioria dos contratos privados, o governo começou a defini-la não mais pela média dos índices, mas abaixo da média, fazendo surgir uma perda real inflacionária em URV face à média de preços que subiam em Cruzeiros Reais acima dela.
Por fim o Plano Real transformou a URV em Real, mantendo a nova moeda valorizada frente ao dólar americano, sustentando-a com duas âncoras: a monetária e a cambial (34) . No imaginário popular havia satisfação pela posse de uma moeda que valia mais que a moeda norte-americana. Entretanto, para manter a moeda estabilizada o governo precisava gastar muito dinheiro, fosse pagando taxas de juros elevadas, como também intervindo no mercado de câmbio, enfrentando os especuladores que atuam no mercado paralelo de dólares.
Para sustentar o Real mais caro que o dólar americano, as reservas do Governo vão sendo queimadas, mantendo-se estável o mercado de câmbio.
3.4. Os Beneficiados e Perdedores com as Políticas de Fernando Henrique Cardoso
Fica evidente, por todos esses dados, que o atual controle da inflação é uma espécie de artefato explosivo de efeito retardado. Tais políticas estão agravando ainda mais a crise brasileira, embora não seja fácil entender seus mecanismos. É evidente que não apenas o Plano esteve a serviço da candidatura de Fernando Henrique como também tal candidatura e o atual governo cumprem um papel importante na implantação no Brasil de políticas consagradas pelo Consenso de Washington. Esse plano coloca o país ainda mais sob a hegemonia dos interesses dos Estados Unidos, que enfrentou e ainda enfrenta forte concorrência com os blocos japonês e europeu no final da década de 80 e durante a década de 90. Sendo o principal parceiro econômico dos países latino-americanos, os Estados Unidos tendem a ser os maiores beneficiados com a abertura dos mercados consumidores desses países ao capital internacional, bem como pela degradação dos termos de troca dessas economias em razão do câmbio sobrevalorizado.
O embaixador Paulo Nogueira Batista, já falecido, cita em seu livro sobre o Consenso de Washington, uma frase lapidar do secretário de Estado norte-americano Foster Dulles, na gestão do presidente Dwight David Eisenhower: "Há duas maneiras de conquistar um país estrangeiro: uma é ganhar o controle de seu povo pela força das armas; outra é ganhar o controle de sua economia por meios financeiros". (35)
É de interesse dos EUA que a economia brasileira fique amarrada ao seu bloco econômico. Com a semi-dolarização, com a abertura econômica e a retomada do pagamento da dívida externa através de bônus do tesouro norte-americano, ganha o principal parceiro econômico do Brasil: os Estados Unidos. A razão é simples. Se um Real estiver realmente valendo mais que um Dólar - mesmo que nominalmente pareça valer menos - como ocorre atualmente, comparando-se o preço de um mesmo produto fabricado no Brasil e nos EUA, o produto norte-americano fica mais barato. Logo, as empresas sediadas no Estados Unidos, ou em qualquer país com a política cambial de desvalorizar a moeda local frente ao dólar, ganharão na concorrência com as empresas sediadas no Brasil. O Brasil dispõe de um mercado consumidor de 40 milhões de pessoas que têm um padrão de consumo elevado. Os Estados Unidos, principalmente, estão de olho nesse mercado. De fato, as importações brasileiras subiram de US$ 25,480 bilhões em 1993 para US$ 61,358 bilhões em 1997, sendo que em 1993 o Brasil importou bens dos Estados Unidos no valor de US$ 5,245 bilhões ao passo que esse valor saltou, em 1997, para US$ 14,145 bilhões - com o país quase alcançando a marca de quinto maior importador dos Estados Unidos. As exportações norte-americanas para o Brasil cresceram em média 20% ao ano, desde a abertura comercial iniciada no governo Fernando Collor (36).
Por sua vez, os banqueiros internacionais comemoraram o acordo da dívida externa realizado por Fernando Henrique, quando ainda era ministro da economia, que lhes aumentou os lucros líquidos. No segundo trimestre de 1994 a dívida brasileira rendeu ao Citibank US$ 173 milhões, ao Chase Manhattan US$ 46 milhões, ao J.P. Morgan US$ 35 milhões, ao First Chicago US$ 32 milhões, e assim por diante em relação aos outros credores. A partir deste acordo, o Brasil vem pagando cerca de US$ 22 bilhões ao ano, dependendo da oscilação dos juros internacionais.
De outra parte os banqueiros nacionais e empresários que passaram a aplicar o seu capital no sistema financeiro vem aumentando sua fortuna graças às altas taxas de juros. Somente o UNIBANCO obteve nos primeiros três meses de 1994 um lucro líquido de US$ 24,1 milhão. Os bancos e empresários nunca tiveram tanto lucro fácil: em 1993 os juros estiveram 16% acima da inflação e em 1995 chegaram, após a crise do México, a taxas em torno de 50% ao ano. Se compararmos com o lucro que os bancos obtiveram no primeiro semestre de 1993, ainda sob a inflação, veremos que tanto na situação inflacionária quanto aproveitando as taxas de juros adotadas como âncora monetária, sob uma economia de baixa inflação, eles continuaram se saindo bem: Bradesco, US$ 161,6 milhões; Itaú, US$ 125,7 milhões; Unibanco, US$ 40,7 milhões; Nacional, US$ 36,2 milhões; Multiplic, US$ 22,7 milhões; Mercantil de S.P., US$ 18,7 milhões; BBA - Creditanstalt, US$ 17 milhões e Banco Cidade, US$ 11,1 milhões (37).
Não foi por acaso que entre os financiadores da campanha de Fernando Henrique em 1994 estiveram grandes bancos. Entre eles estavam: BBA-Investimento, Banco Bradesco, Banco Real, Banco Nacional, Banco Intercap, Banco Lavra, Banco Pecúnia, etc (38) . Todos esse bancos doaram dinheiro para a campanha de FHC. O que será que eles esperavam de seu governo ?
Mas de onde o Governo retira o dinheiro necessário para pagar os banqueiros que compram os títulos emitidos com juros tão altos ? Parte do dinheiro vinha do Fundo Social de Emergência (que depois passou a se chamar Fundo de Estabilização Fiscal e que continua financiando esses pagamentos), outra parte vem das privatizações, outra parte vem do corte com outros gastos e o resto o governo rola com a emissão de novos títulos. No final, tudo sai do bolso do contribuinte.
Quem ganha com a elevação da taxa de juros em patamares tão elevados e com o câmbio sobrevalorizado ? Os bancos, os investidores internacionais e as classes alta e média-alta do país. Quem perde ? Todos os que precisam de crédito para produzir ou comprar, por exemplo, agricultores que precisam financiar a plantação e que acabam perdendo as terras para os bancos, pois não conseguem pagar o financiamento; perdem os micro e pequenos empresários, que não podem expandir o seu negócio e gerar empregos; perde a população de classe média baixa que, tendo comprado a prazo, acabou se tornando inadimplente; perde os que ficam desempregados porque as empresas não conseguem financiar a produção e acabam reduzindo o quadro de funcionários; perde a população pobre que necessita dos serviços públicos, uma vez que estes vão ficando precarizados na medida em que os recursos, anteriormente destinados a essas áreas, agora são utilizados nos pagamentos das taxas de juros; etc.
De outra parte quem ganha com a abertura às importações ? Com a abertura indiscriminada às importações, ganham especialmente os países ricos que exportam seus produtos, feitos com a mão de obra local, enfrentando as taxas de desemprego que lá estão elevadas. Aparentemente também ganha, inicialmente, o consumidor porque encontrará produtos mais baratos no mercado. Mas por outro lado, quem perde com essa medida ? Se a política for adotada por longo tempo, o governo ficará sem reservas e terá de cortar ainda mais as áreas sociais e mantaer altas taxas de juros para atrair capitais externos. Não conseguindo competir com as empresas internacionais os empresários investirão uma boa parte de seu capital no sistema financeiro, diminuirão a produção e haverá mais desemprego. Quando o governo interromper essa política, se a produção interna do país não tiver sido expandida para satisfazer o conjunto das demandas internas, os preços poderão voltar a subir. O correto seria aumentar a oferta de produtos aumentando a produção no Brasil, financiando a produção de micros, pequenas e médias empresas, gerando empregos e distribuindo renda na forma de salários. Deveria haver, também, uma fiscalização rígida da composição dos preços dos produtos oligopolizados.
Como os países desenvolvidos têm criado proteções adicionais a patentes dos produtos das empresas que neles têm suas matrizes, os investimentos que, por ventura, as multinacionais venham a fazer no Brasil não significarão transferência de tecnologia. O que lhes interessa é exportar mercadorias e não tecnologias que proporcionem a outros a capacidade de sobrepujá-los. Os países desenvolvidos impõem certas restrições ao movimento de capital estrangeiro em seus próprios domínios para proteger seus interesses. Esse movimento de proteção se realiza na defesa da propriedade intelectual, instituindo verdadeiros monopólios em torno de certas patentes, inibindo certos tipos de investimentos no exterior, bem como transferências de tecnologia.
Por sua vez, a política de câmbio adotada como âncora anti-inflacionária traz problemas. O fato de o Real estar sobrevalorizado frente ao Dólar, dificulta as exportações, o que, por sua vez, também pressiona o aumento do desemprego. Como os empresários encontram dificuldades na colocação de seus produtos no mercado internacional e o país tem importado muito, a balança comercial tem ficado negativa. A tendência a longo prazo, como se verificou em outros países que adotaram medidas semelhantes, é que os grandes grupos industriais e comerciantes passem a se tornar também grandes importadores, deslocando seu capital para esse setor. Abaixando-se os impostos que incidem sobre a importação, esses empresários manterão seus lucros comercializando produtos importados. Isso significa que os produtos nacionais ficarão mais caros em relação aos importados, uma vez que o Real está mais caro que o Dólar. Se eles ficam mais caros em relação aos importados, eles não serão vendidos nem no país, nem fora do país, gerando desemprego e desindustrialização. É o que está acontecendo na Argentina que promoveu um plano sob o mesmo receituário econômico, com exceção do artifício da Unidade Real de Valor.
Em síntese, o Plano Econômico de Fernando Henrique Cardoso abaixou a inflação às custas da diminuição do poder de compra dos salários e da manutenção das altas taxas de juros; combateu o déficit público cortando gastos, inclusive os que seriam efetuados com políticas sociais. O seu plano econômico promoveu um empobrecimento de grande parte da população, tendo como contrapartida o enriquecimento de empresários e banqueiros. A médio prazo o plano aumentará a desemprego em razão da queda do consumo interno e da política cambial que mantém o Real sobrevalorizado. Com a queda das exportações e com o déficit da balança comercial, o pagamento da dívida externa e da dívida interna inviabilizarão, sob esse modelo adotado, qualquer política de desenvolvimento econômico capaz de promover uma expansão do emprego e distribuição de renda.
4. A situação do Plano em 1995: Reforma constitucional e Taxas de Juros
Para continuidade desta política de ajustes neoliberais, tornaram-se imprescindíveis uma reforma constitucional e a introdução de outras leis que retiravam do Estado certas atribuições que lhe eram inerentes - como já antecipara o funcionário do FMI que fora publicamente critica em jogos de mídia por Fernando Collor de Mello.
4.1. A Reforma constitucional
Fernando Henrique enviou para o congresso quatro grandes projetos: reforma da previdência social, reforma econômica, reforma tributária e fiscal, e a reforma política. Esses projetos podiam ser modificados pelos deputados e senadores. Todos eles, mesmo os que ainda não forma votados, precisam de 60% dos votos para serem aprovados.
Com a Reforma da Previdência, modificaram-se os critérios da aposentadoria por tempo de serviço alegando-se a falta de recursos para a previdência e a existência de apenas 2,1 trabalhadores ativos para cada aposentado. Na realidade em 1994 a previdência teve um saldo positivo, sobrando R$ 1,8 bilhões. Com a nova lei - que ainda depende de uma aprovação final - as pessoas somente poderão se aposentar, no caso dos homens, com 35 anos de contribuição e 60 anos de idade e, no caso das mulheres, com 30 anos de contribuição e 55 anos de idade. O mais grave é que 33,47% dos trabalhadores urbanos se aposentam por invalidez - seja porque se acidentaram em serviço, seja porque não ganhavam um salário que lhes possibilitasse cuidar adequadamente da saúde, gerando um agravamento de moléstias que poderiam ter sido sanadas.
De fato, no país existem hoje 4,65 trabalhadores ativos para cada inativo. Ocorre que 42,9 % dos trabalhadores brasileiros não tem carteira assinada, não havendo contribuição à previdência sobre a exploração dessa mão de obra. Além do mais, cerca de 14% da população economicamente ativa estava desempregada, quando do início da tramitação desse projeto. Se a política do governo aumentasse empregos e não os juros, e se fiscalizasse as relações empregatícias e garantisse o direito de cada trabalhador ter sua carteira assinada, a previdência teria uma sobra muito maior e não precisaria ter alterado os benefícios. Uma política de distribuição de renda que elevasse o nível dos salários elevaria também a arrecadação da previdência.
Com a Reforma Tributária e Fiscal o governo buscou ampliar sua arrecadação aumentando a base tributária, isto é, o número de pessoas que pagam impostos, reduzindo o número e o valor de impostos sobre as empresas, pois elas precisariam de dinheiro para gerar tecnologias e empregos. De fato a mudança nos impostos é necessária, mas deveria incidir sobre as grandes fortunas, as enormes propriedades de terra, sobre os lucros dos bancos e ser acompanhada de uma política de fiscalização sobre industriais e comerciantes para que paguem corretamente os impostos.
Com a Reforma Econômica, buscou-se vender a maior parte das empresas estatais e privatizar-se todos os serviços que fossem possíveis: mineração, siderurgia, transporte fluvial e marítimo, serviços de telecomunicações, setores de extração de petróleo, energia elétrica, telefonia, etc, bem como tratar da mesma maneira as empresas nacionais e transnacionais, mudando o conceito de empresa brasileira de capital nacional. Nos países em que essa reforma foi feita, os serviços ficaram mais caros e piores, como no México, Venezuela, Argentina e outros. No Brasil, depois que a Ultra-fértil foi privatizada, o preço dos fertilizantes subiu 1/3; depois que a COSIPA foi privatizada, muitos trabalhadores foram demitidos e os que ficaram passaram a trabalhar sob pressão, provocando 150 acidentes de trabalho em apenas 4 meses; após a privatização da Light, os serviços de energia elétrica pioraram muito no Rio de Janeiro; o serviço privado de telefonia celular em Brasília também trouxe insatisfações, etc. Há outros casos em que a privatização melhorou a qualidade dos serviços, mas também os encareceu sobremaneira.
Houve muita propaganda enganosa, contudo, que desqualificou as empresas estatais. Não apenas a Petrobrás, por exemplo, é a primeira do mundo em extração de petróleo em águas profundas, como também exporta tecnologia petrolífera para países do Primeiro Mundo. Seus lucros seriam muito maiores se a empresa não vendesse nafta a preços subsidiados a grupos privados que produzem seus derivados. O mesmo acontecia com companhias siderúrgicas que vendiam aços especiais a preços subsidiados para metalúrgicas privadas. No caso da Telebrás, é sintomática a propaganda enganosa que utilizou a figura do "plano de expansão de carros." De fato, o Sistema Telebrás elevou em 700% o número de linhas telefônicas instaladas entre 1972 e 1993 ( de 1,4 milhão para 12,5 milhões), multiplicou o número de telefones públicos no país de 10,3 mil para 300 mil, o que deu ao Brasil a 11º maior rede telefônica do mundo. O crescimento da densidade telefônica - o número de linhas por 100 habitantes - entre 1973 e 1990 colocou o Brasil no segundo posto deste item no mundo, à frente de Japão, Alemanha, Estados Unidos e demais países, ficando atrás apenas da França. Contudo, das 15 mil localidades interligadas em todo o território nacional somente 3.000 são lucrativas. Quando grupos privados começarem a explorar o sistema acorrerão para espaços lucrativos como no período em que a ITT - International Telegraph and Telefon e a CTB - Companhia Telefônica Brasileira ( controlada pela Brazilian Traction, do Canadá) exploravam os serviços no Rio Grande do Sul, Paraná e nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória e várias cidades do nordeste. O fato daquele sistema de telefonia expandir-se em busca de lucro e não da prestação de serviço em função das necessidades sociais fez com que Carlos Lacerda e Leonel Brizola, na época figuras antagônicas e emblemáticas da direita e da esquerda, encampassem os serviços telefônicos criando companhias estaduais que foram posteriormente subsumidas pelo Sistema Telebrás. A abertura do mercado possibilitará à gigantesca AT&T explorar as áreas lucrativas, quebrando esta base de sustentação da Telebrás que lhe possibilita prestar serviços em áreas não lucrativas que poderão ficar descobertas e abandonadas, a exemplo do que ocorrera quando o serviço era privado e realizado pelas ITT e CTB. Pior ainda, a intenção do governo não é apenas flexibilizar o monopólio no setor, mas vender as empresas estatais de telecomunicação.
Na Reforma Política, além de ter aprovado a possibilidade de reeleição do presidente, governadores e prefeitos, o governo quer reduzir as atribuições do Estado, suas funções e promover uma reforma eleitoral introduzindo o voto distrital misto, mudar a lei de financiamento das campanhas, etc. Devido ao caótico processo de adensamento urbano, é preciso considerar que se o voto distrital misto for aprovado, poderão ocorrer distorções na representação proporcional partidária, bem como a oficialização dos currais eleitorais que se tornariam distritos eleitorais. Contrariamente à proposta do governo, uma reforma política que resolva o problema das distorções de representação é necessária, garantindo que os votos dados a um partido ou coligação corresponda realmente ao número de parlamentares que elege, bem como, garantindo a existência de proporcionalidade entre o número de eleitores de cada estado e o número de deputados federais por ele eleitos, evitando que certos deputados federais possam ser eleitos com um número tão pequeno de votos que em outros municípios não elegeriam sequer um vereador. A diferença numérica de representação parlamentar dos diversos estados seria compensada pela eleição de um mesmo número de senadores para cada estado, o que resguardaria os interesses de cada Unidade da Federação quando da apreciação de projetos vindos da câmara ou do executivo.
Além das Reformas, os parlamentares que apoiam o governo tem apresentado Projetos de Lei que avançam na mesma direção das políticas neoliberais do Consenso do Washington. O substitutivo para a Lei de Diretrizes e Bases para a Educação Nacional elaborado pelo MEC e que foi apresentado por Darcy Ribeiro, entre outras coisas, desobrigou o Estado de garantir a universalidade do ensino na escola pública e gratuita de 1º, 2º e 3º graus, permitindo cobrança de taxas dos alunos, cortando verbas para pesquisa e extensão universitárias, possibilitando reduzir a maior parte das universidades a Centros de Ensino Superior, como aconteceu no México. O Projeto de Lei Nº 282/95 do deputado Antonio Jorge do PPR do Tocantins que tramita na Câmara dos Deputados estabelece o pagamento obrigatório de mensalidades pelos alunos matriculados nas Universidades Federais, cujo valor seria definido pelo MEC. O projeto prevê que mesmo os alunos reconhecidamente carentes deverão pagar o curso, após conclui-lo.
O conjunto dessas reformas, de inspiração neoliberal, visa enfrentar o déficit público cortando gastos, ao invés de ampliar a arrecadação através da elevação do nível de atividade econômica do país. Ademais, a necessidade de promover essa reformas está vinculada à necessidade de cortar gastos primários para cobrir os gastos com a dívida mobiliária, em razão das taxas de juros elevadas que mantém artificialmente o real estável.
4.2. A Manutenção de Juros Elevados e suas Conseqüências
Os juros altos que o governo pratica como âncora monetária tem aumentado a própria dívida interna do governo. Em 1991, após os dois anos do Governo Collor, ela era de quase US$ 53 bilhões chegando ao final de 1994 aos US$ 134 bilhões. Os títulos de curto prazo que o sistema financeiro gira diariamente, somavam US$ 11,5 bilhões em 1991, chegando em Dezembro de 1994 à alarmante cifra de US$ 71 bilhões. Após a crise do México, no início de 1995, a equipe econômica do governo elevou as taxas de juros à fabulosa cifra aproximada de 4% ao mês. Um editorial da Folha de São Paulo, então, afirmava o seguinte: "supondo-se que até o final do ano o governo ofereça ao mercado, para continuar com a bomba-relógio no colo, as taxas médias atuais de cerca de 4% ao mês, o dispêndio com juros terá sido de mais de US$ 40 bilhões, ou seja, o suficiente para pagar por mais de dez anos todas as internações hospitalares do INAMPS. Ou algo como uma Vale a cada cinco meses" (39). Sob a lógica desse ajuste estrutural, todo o dinheiro adquirido com as privatizações das empresas como a Vale do Rio Doce acabaram desaguando nesse buraco negro que mantém estável o valor do Real. Para se ter uma idéia mais clara, em 1994, o governo gastou R$ 7 bilhões com a saúde. No mesmo período a conta dos juros para a União, estados e municípios foi de R$ 20,3 bilhões, três vezes mais que o gasto com saúde (40).
Essa política de juros altos custava ao país, em maio de 1995, US$ 100 milhões ao dia, o que perfaz US$ 3 bilhões ao mês. Como vimos o governo mantém os juros altos porque deseja inibir o consumo tornando o crediário inacessível e os empréstimos caros e porque deseja atrair investidores externos, a fim de aumentar as reservas em dólar, podendo ampliar as importações que forçariam a baixa dos preços da indústria nacional. Alguns economistas defendem, contudo, que o governo aumente os impostos para pagar os juros evitando que a dívida cresça. O aumento de impostos também tiraria dinheiro do mercado diminuindo a pressão de compra. O presidente da organização que reúne pequenas empresas do Brasil, Joseph Couri, afirmou que "o governo quer matar o carrapato, mas está matando o boi junto" (41). De fato, em 1994 o governo gastou R$ 5,4 bilhões da receita de impostos pagando essas dívidas. Isto representava quase 10% da arrecadação do Tesouro Nacional naquele ano. Somente no primeiro trimestre de 1995, aproximadamente R$ 1,4 bilhão da receita do Tesouro haviam sido gastos com a rolagem desses títulos.
Em razão dos juros altos muitas empresas, já em 1995, começaram a quebrar, como a Casa Centro - uma das maiores cadeias varejistas do país. Outras empresas já estavam dando férias coletivas aos empregados, como no caso da Silvânia, que fabrica lâmpadas no ABDC, e da Caloi que deu férias coletivas para milhares de funcionários, entre abril e junho. O gozo das férias, em geral, é o primeiro passo para aliviar o custo de futuras demissões que já se previam, caso não houvesse alterações nas políticas de juro e câmbio que respectivamente dificultavam as vendas no interior do país e no mercado externo. Sem poder vender não há razão em produzir. O dinheiro que iria para a produção, no caso de muitas empresas, vai para o mercado financeiro, enquanto os trabalhadores estão de férias.
Em maio de 1995, os empresários insistiam que o governo fixasse a cotação do Dólar em R$ 1,20. Isso favoreceria as exportações e o governo poderia baixar os impostos das importações, porque o próprio câmbio as inibiria. Contudo o governo se manteve irredutível, pois ao desvalorizar o Real deveria ampliar ainda mais as taxas de juros para manter as aplicações atrativas aos investidores externos. Até mesmo alguns banqueiros, temerosos com o que significaria um calote generalizado na cadeia produtiva sugeriram ao governo que abaixasse as taxas de juros, mas o governo se manteve inamovível.
Entendamos melhor as conseqüências do juro alto na cadeia produtiva. Desde março de 1995, quando os juros dispararam ainda mais, vindo abaixar um pouco somente vários meses depois, milhares de consumidores que haviam comprado no crediário, não puderam mais pagar suas prestações que ficaram muito elevadas. A inadimplência, isto é, o "calote", nas lojas no mês de abril daquele ano foi 266% maior que em abril de 94. Muitas redes tiveram que transferir a conta para as indústrias, que sem receber, fizeram o mesmo com os fornecedores, não pagando as matérias primas. Como as empresas que não pagam o que devem não recebem crédito, só restava a muitas delas o caminho da falência. Horácio Lafer Piva, diretor da Federação das Indústrias de São Paulo, comparou a situação daquele momento a um "barril de pólvora" (42).
De maneira didática podemos entender os efeitos do juro alto na cadeia produtiva em oito passos:
"Juro Alto: Aumentam os valores das prestações do consumidor no crediário. O salário não acompanha e começa o calote.
"Comércio: Sem receber as prestações, as lojas ficam sem caixa. Não tem como pagar a indústria.
"Indústria: Sem receber do comércio as indústrias também ficam sem dinheiro para pagar pelas matérias primas que usam na produção - e evitam os bancos.
"Fornecedores: O fornecedor de matéria-prima, que é o último da cadeia de produção, não recebe da indústria e não tem como transferir o calote para ninguém.
"Preços: O fornecedor não vende mais a prazo para quem não paga e tenta recuperar o prejuízo aumentando seus preços para outros clientes.
"Ciranda: A 'ciranda do calote' que começou no consumidor, coloca empresas em dificuldades. Há tendência de aumentos de preços em toda a cadeia.
"Bancos: A crise e o juro alto atingem em cheio quem tomou dinheiro no banco apostando na continuidade do crescimento econômico gerado pelo Plano Real. Com a onda de calote, os bancos não emprestam mais.
"Recessão: Surge o temor do desemprego e o consumidor se retrai. Aprofunda-se a dificuldade das empresas. Algumas não resistem e quebram." (43)
Considere-se, por fim, que faz parte da concepção do plano tomar como indicadores do sucesso do projeto de desenvolvimento somente alguns vetores técnicos da economia, como os aspectos monetários. O fato da moeda e o cambio permanecerem estáveis, associados a um pequeno crescimento do Produto Interno Bruto, é apontado como indicador de sucesso do plano. Não são considerados, entretanto, os custos sociais dessa política, que reparte entre a elite econômica - pela remuneração das taxas de juros - os recursos que poderiam atender políticas de saúde, educação, abastecimento, transporte, saneamento, moradia, etc. Indicadores mostram que enquanto os setores das classes mais altas estão se capitalizando, cada vez mais, enriquecendo proporcionalmente em relação aos recursos que dispõem para aplicar em investimentos financeiros com projeções de lucro extremamente elevados - enriquecimento esse que aumenta a pressão de compra que leva o governo a aumentar os juros, num círculo vicioso -, por outro lado, da classe média-baixa para baixo o número de famílias pobres vem aumentando. Assim, enquanto uns obtêm mais lucros sobre a riqueza que já possuem, outros ainda perdem nos reajustes do salário que recebem. Por fim, as políticas anti-consumo adotadas acabam penalizando os mais pobres, que vão sendo desassistidos de quaisquer mecanismos compensatórios, e aumentando a pressão de compra dos mais ricos.
5. Não há Luz no fim do Túnel Neoliberal
O projeto neoliberal vigente no país, que foi conquistando hegemonia nesses 15 anos graças a uma massiva campanha realizada através dos veículos de comunicação de massa - que o associou à modernidade -, é incapaz de atender as demandas sociais e realizar as condições básicas da cidadania para o conjunto da população. Somente a implantação de um projeto de desenvolvimento com distribuição de renda poderia provocar as transformações estruturais necessárias na economia do país à garantia da promoção das liberdades públicas e privadas.
O projeto neoliberal implantado no Brasil não enfrenta a crise social do país, porque não visa promover transformações estruturais que incorporem à cidadania os milhões de brasileiros excluídos e marginalizados. As reformas que propõe visam corrigir disfunções que dificultam a livre circulação do capital, isto é, o movimento de acúmulo e concentração de riqueza pelas elites internacionalmente e nacionalmente dominantes que são as grandes difusoras das políticas avalizadas pelo Consenso de Washington.
Em contrapartida, somente um projeto de desenvolvimento democrático e popular, promovendo a distribuição de renda com crescimento econômico, poderá fazer frente à crise que o país atravessa. Este projeto terá de enfrentar questões estruturais como: incorporar ao mercado de trabalho as massas desempregadas aumentando a produtividade e qualificando a tecnologia no país; ampliar o mercado consumidor incorporando a níveis mais elevados de consumo os milhões de brasileiros empobrecidos ; promover as reformas agrária e urbana combatendo a concentração fundiária e socializando a apropriação da terra para morar e plantar; consolidar a hegemonia em torno de uma nova ética, base para a construção de uma nova cidadania em que a sociedade civil controle democraticamente o Estado; tratar em bloco, com os demais países da América Latina - como, por exemplo, ao âmbito do Mercosul - a renegociação da dívida externa; enfrentar a dívida interna alongando o perfil dos títulos públicos postos no mercado financeiro; democratizar os meios de comunicação de massa e todos os aparelhos e gestão do Estado; etc.
A resistência ao modelo neoliberal e a construção de uma Alternativa Democrática e Popular somente serão possíveis com a retomada das mobilizações populares dos diversos setores da sociedade civil superando o corporativismo, compondo objetivos imediatos do atendimento de algumas demandas emergenciais com objetivos estratégicos de transformações estruturais, ganhando expressão político-institucional como uma aliança de forças de esquerda e centro-esquerda. A equipe econômica, que tem em Fernando Henrique o seu porta-voz, armou essa "bomba-relógio" que a cada dia torna-se mais explosiva. No limite, nem mesmo vendendo o conjunto das empresas estatais o problema seria resolvido. A situação se agravaria ainda mais porque o Estado perderia as forças necessárias para induzir o crescimento econômico de maneira ordenada em todo o país - e não apenas em alguns bolsões - e coordenar o mercado. Alguns dos aspectos para o desarme dessa bomba precisam ser imediatamente acionados. O governo precisa começar a baixar as taxas de juros e desvalorizar o Real frente ao Dólar de maneira gradual e progressiva. O patamar de desvalorização apontado na política das banda larga e minbanda cambiais, deve ser acentuado, mas sem sobressalto, favorecendo exportações e tornando o país menos dependente dos capitais especulativos; de outra parte, com a melhoria no desempenho da balança comercial, torna-se possível e indispensável promover um retorno gradativo a taxas de juros compatíveis à retomada do crescimento necessário da economia nacional. O governo deve ainda estabelecer um imposto progressivo sobre as grandes fortunas e patrimônios fundiários especulativos como uma das fontes de recursos para financiar o déficit público.
Desarmar a bomba não significa, entretanto, ter resolvido os problemas básicos do país. Cabe aos setores democráticos brasileiros resistir ao desmonte do Estado, à fragilização das políticas sociais e à precarização dos equipamentos e serviços públicos. Frente ao modelo econômico adotado que provoca cada vez mais exclusão, é preciso afirmar o direito à cidadania de cada brasileiro que está sendo lesado por essa política que transfere o patrimônio público para grupos privados nacionais e internacionais.
6. Plano Real, Globalização e Produção de Subjetividades
Somente é possível compreender adequadamente o processo hegemônico em torno da efetivação do Plano Real quando o consideramos nos quadros da globalização e quando analisamos os recursos de produção de subjetividade adotados para a mobilização da sociedade em defesa de reformas que a penalizam cada vez mais.
No próximo capítulo analisaremos como é operada a produção capitalística de subjetividades e como, através dela, a globalização dos capitais vem engendrando um novo tipo de regime político autoritário que convive com a democracia liberal - o regime globalitário. O fenômeno de produção de subjetividade no Brasil não apenas garantiu a adesão hegemônica ao Plano Real como também propiciou a consolidação de uma transição do regime autoritário da ditadura militar para o regime globalitário que ora se impõe, fragilizando as mediações públicas que deveriam garantir a liberdade do conjunto dos cidadãos e favorecendo, em contra-partida, a ampliação da liberdade dos agentes privados do grande capital.
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NOTAS:
4. Leitura indispensável para uma compreensão elementar deste processo é o trabalho de Paulo Nogueira Batista, O Consenso de Washington - A Visão neoliberal dos problemas Latino-americanos, Caderno da Dívida Externa, N. 6, PEDEX, São Paulo, 1994. São as idéias deste trabalho que aqui resenhamos.
5. O Chile e o México, que foram as estrelas da primeira onda a levar os ajustes do Consenso de Washington aos limites, subordinando o político ao econômico, realizaram tais reformas mediante regimes fortes. Em alguns casos, o "excesso de democracia" era visto como empecilho para os ajustes estruturais. Sob tal lógica a democracia não é vista como condição para atingir-se um desenvolvimento econômico-social, mas como um dos subprodutos dos ajustes neoliberais.
6. Quem ganha e quem perde com essas políticas analisaremos no item 3.4.
7. O Projeto Democrático e Popular, de caráter socializante, que foi derrotado naquela ocasião propunha, sob o aspecto econômico, um modelo de desenvolvimento baseado na distribuição de renda, que poderia ser parcialmente caracterizado nos seguintes aspectos: a) reordenar os parâmetros de produção, acumulação e consumo, reorientando o conjunto das relações de trabalho tendo em vista promover um crescimento sustentável com distribuição de renda, gerando um forte mercado consumidor interno, incorporando a ele as massas sociais atualmente empobrecidas; b) restaurar as condições de funcionamento do Estado, desprivatizando-o, isto é, colocando o Estado a serviço do interesse público, suprimindo a sua utilização por grupos privados, que dele se beneficiavam de várias formas, por exemplo, com a compra subsidiada de produtos das estatais abaixo do preço de custo (como o nafta, aços especiais, etc), com o superfaturamento de obras públicas, ou ainda, recebendo repasses de verbas para realizar serviços públicos sem nenhum controle ou fiscalização; c) regulamentação e orientação social do mercado, intervindo juridicamente sobre oligopólios, monopólios e cartéis, estabelecendo estoques reguladores, promovendo diversas formas de propriedade dos meios de produção, incentivando a produção cooperativada, as pequenas indústrias, etc; d) redefinir o padrão de financiamento doméstico e internacional da economia, renegociando a dívida externa, após uma auditoria e sob condições estabelecidas a partir de um projeto que assegure o desenvolvimento nacional; f) modificar a normas de incorporação do progresso técnico, cabendo ao Estado um papel imprescindível no campo da pesquisa e desenvolvimento tecnológico em áreas consideradas estratégicas; g) modificar as formas de inserção internacional do país, tanto no campo econômico quanto político, fortalecendo alternativas coletivas envolvendo o conjunto dos países da América Latina e das nações do Terceiro Mundo; h) realizar reformas estruturais que tanto promovam o acesso a terra rural e urbana aos despossuídos quanto a geração de empregos. Por outro lado, sob o aspecto político, o seu projeto de democratização substancial do país propunha: a) a radicalização da democracia através da implantação e implementação de novos mecanismos de participação direta e representativa da população; b) gestão popular dos bens, serviços e equipamentos públicos; c) participação popular no planejamento permanente das cidades e do desenvolvimento urbano; d) democratização da informação, da cultura e do lazer em todos os níveis; e) construção de novas relações micro-políticas no cotidiano enfrentando o racismo, o machismo e as demais formas de preconceito e discriminação e afirmando valores éticos, como a solidariedade, a busca da justiça e o combate a toda forma de discriminação e preconceito; f) a construção do poder popular, pela viva participação organizada dos setores populares da sociedade civil. A estratégia geral proposta para realizar os elementos básicos desse projeto socialista democrático compõe: o acúmulo de forças em torno de um projeto político democrático e popular, que apresenta um conjunto de reformas estruturais e parciais de caráter socializante, a consolidação da hegemonia em torno deste projeto tanto com a eleição de parlamentares e governantes que o defendam em todos os níveis quanto com o crescimento e consolidação de organizações e entidades populares da sociedade civil, e especialmente, pelo fortalecimento de movimentos de massa no campo e na cidade. A consolidação do Governo Democrático e Popular, tornaria possível o avanço em transformações mais estruturais que seriam garantidas por uma forte base de sustentação parlamentar e pela própria população organizada e mobilizada em defesa da cidadania.
8. No caso dos aposentados vale lembrar as declarações feitas pela imprensa por ministros do governo Itamar que a falta de verbas para a saúde devia-se ao fato de terem sido garantidos reajustes às pensões dos aposentados, o que reforçava a tese da necessidade de fundir os ministérios da Saúde, Previdência e Bem Estar Social em um único ministério, o da Seguridade Social, proposta essa que foi encaminhada pela Comissão de Seguridade na Câmara dos Deputados Federais.
9. "O IBGE inclui na PEA (População Economicamente Ativa) pessoas com 15 anos ou mais, enquanto o Seade/Dieese considera com 10 anos ou mais (desde que tenham trabalhado ou procurado emprego).
Para classificar uma pessoa como desempregada, o IBGE pergunta se ela procurou emprego nos últimos sete dias da pesquisa, enquanto o Seade/Dieese indaga se procurou nos últimos 30 dias." Gabriel J. de CARVALHO. "Conceitos diferentes explicam por que taxas vão de 7% a 16%". Folha de São Paulo, 05-03-98, p. 2-410. IPEA. Brasil: Indicadores Sociais. IPEA, 1992, p.6 in CNBB. Brasil - Alternativas e Protagonistas (Instrumento de Trabalho). CNBB, 1994, p. 33
11. CNBB-Regional Sul II. Semana Social Paranaense, Curitiba, 1993 , p. 2
12. Folha de São Paulo, 09-03-93, p. 1-9
13. Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo no Brasil. Goiânia. CPT/Loyola, 1993, p. 78
14. "Em São Paulo, por exemplo, cerca de 45% da cidade é constituída de terrenos ociosos ou vazios. (...) Esse fato ocorre devido à chamada especulação imobiliária...". José Willian Vesentini, "Espaços Ociosos e Especulação Imobiliária", in José W. VESENTINI e Fernando PORTELA. Êxodo Rural e Urbanização. Coleção Viagem Pela Geografia, 3ª Edição, São Paulo, Editora Ática, 1991, p. 22
15. William VESENTINI. "Urbanização e Rede Urbana" in op. cit, p. 18
16. O processo de privatização iniciado durante o Governo Collor promoveu a dilapidação do patrimônio público. O próprio Relatório do Tribunal de Contas da União, em caso específico, condenou a privatização da Rede Ferroviária de Armazéns por ter sido conduzida "à revelia das normas gerais vigentes". Em um estudo feito pelo gabinete do Deputado Raul Pont, do Rio Grande do Sul, as oito primeiras estatais privatizadas durante o Governo Collor somaram US$ 1,65 bilhões. Desse total, apenas 0,3% foi pago em dinheiro. Os outros 99,7% foram pagos em "moedas podres", isto é, títulos e papéis do Governo que avolumam sua dívida interna: debentures da Siderbrás, Títulos da Dívida Agrária, títulos da Dívida Externa (73,3% do total) e Certificados de Privatização (26,4%). O Governo Itamar, por sua vez encaminhou um projeto ao Congresso Nacional mudando a lei 8.031/90 sobre a desestatização. Na lei anterior o capital estrangeiro participava com apenas 40% das ações com direito a voto; agora chega a 100%. As bancadas de esquerda exigiram que a participação fosse com moedas fortes e defenderam a não privatização de empresas consideradas estratégicas como a Telebrás, Petrobrás e outras. A restrição à participação do capital estrangeiro a apenas 40% favorecia aos oligopólios nacionais, que adquiriam o controle da estatal com moedas podres e que em seguida vendiam a ex-estatal ao capital estrangeiro por moeda forte. Fernando Henrique Cardoso pretendia não apenas concluir a privatização dos setores siderúrgico, petroquímicos e de fertilizantes, como também iniciar a privatização do setor elétrico e ferroviário, avançado sobre outros setores considerados estratégicos pelas esquerdas.
17. O plano previu também a necessidade de enxugar essas redes, eliminando agências de localidades com pouca movimentação financeira, a fim de reduzir custos, tanto com a manutenção da infra-estrutura das agências bem como com a manutenção de funcionários.
18. A reforma fiscal proposta anteriormente, ainda durante o Governo Collor, era uma exigência do FMI para concessão de financiamentos. Um dos seus representantes, inclusive, chegou a falar da necessidade de promover-se mudanças na constituição brasileira para que fosse possível um equilíbrio das contas públicas. A reforma fiscal que se tentou implementar sob a orientação de Marcílio Marques Moreira, prejudicava direitos sociais e penalizava assalariados. Suas principais medidas, que foram retomadas por Fernando Henrique, eram: acabar com a aposentadoria integral dos servidores públicos, desobrigar o Governo Federal de certos gastos com escolas e hospitais, reduzir os programas sociais e assistenciais, manter a aposentadoria e assistência médica gratuita somente para os que recebessem até três salários mínimos, estabelecer o desconto da previdência na casa de 10% para todos, aumentar imposto de renda, criar um novo imposto sobre operações financeiras e retirar recursos dos estados e municípios para equilibrar os gastos federais. Quanto ao imposto de renda, pretendia-se diminuir os limites de isenção, aumentando o número de contribuintes de 6 para 12 milhões de pessoas físicas, aumentando as alíquotas, bem como diminuir o imposto de renda sobre as empresas. O Governo manteve sistematicamente o reajuste das tarifas de luz, telefone, eletricidade, etc, acima da inflação. Quanto às reformas na constituição às quais se referira o funcionário do FMI - motivando um pronunciamento enérgico de Collor na mídia, destratando-o publicamente - elas acabaram sendo realizadas sob o Governo de Fernando Henrique.
19. Pesquisa da fundação Getúlio Vargas revelou que a margem de lucro no Brasil, que mantém os preços altos, é uma das mais elevadas do mundo e cresceu ainda mais no ano de 94. No primeiro trimestre de 94 a margem bruta média de lucro foi de 25,78% contra 22,3% no mesmo período de 93. O comércio varejista teve uma taxa média bruta nos lucros de 40,34% no primeiro trimestre do ano de 94 contra 13,20% em relação ao primeiro trimestre de 93. O mecanismo da URV estabilizou os preços em patamares elevados e o salário em níveis menores.
20. Embora tínhamos preços dolarizados próximos ao valor da Europa e América do Norte, o valor do salário mínimo pago no Brasil nem sequer chegava próximo ao salário mínimo mensal pago nesses países: Estados Unidos, US$ 696,00; Canadá, US$ 920,00; França, US$ 1.000,00; Holanda, US$ 1.075,00; Espanha, US$ 600,00. Pior ainda, não se aproximava sequer de outros salários mínimos de países pobres do Terceiro Mundo: Senegal, US$ 100,00 ; Paraguai, US$ 180,00; Equador, US$ 150,00; ou de países médios, como a Argentina cujo salário mínimo valia US$ 200,00.
21. "Juro Alto Ameaça Equilíbrio Orçamentário". Folha de São Paulo, 24-04-94, p. 1-12.
22. Os dados citados nesta seção têm como fonte o artigo: "Concentração e Internacionalização do Capital e Regionalização do Mundo - Cadeia Produtiva e Processo de Concentração". in: Quinzena Nº 141, 30 jun 92, p.17-19. C.P.V., São Paulo.
23. Para garantir maiores lucros a Philip Morris busca comprar o café diretamente do produtor e por preços baixos, estimulando a produção de café em várias regiões do mundo. Com aumento da produção, abaixam-se os preços da matéria-prima. Os médios produtores, competindo entre si, exploram ainda mais os assalariados; por sua vez, os pequenos produtores vêem seus lucros diminuídos. Por outro lado, a empresa estimula certos países a aumentarem a produtividade, com a implantação de programas de modernização agrícola pelos governos, com uso de novos insumos, etc.
24. "Henkel compra 25% da Bombril por US$ 50 mi". Folha de São Paulo, 28-10-94, p.2-8
25. Maristela MAFEI. "Lever dobra produção de sabão em pó - Empresa inaugura hoje fábrica em Vespasiano (MG) com capacidade para 300 mil toneladas/ano do produto". Folha de São Paulo, 10-03-94, p.2-11
26. Elvira LOBATO e Maristela MAFEI. "Poucas empresas dominam indústria - Vários setores industriais brasileiros ultrapassam concentração considerada altamente preocupante nos EUA". Folha de São Paulo, 28-08-94, Especial, p. A-6
27. Ibidem
28. Ibidem
29. Ibidem
30. Curiosamente, no que diz respeito à importação de pneus mais baratos, o mercado que se aqueceu foi a importação de pneus usados, ou, como se dizia no país, "pneus semi-novos"...
31. Exemplo do aumento do desemprego em razão desse fenômeno pode ser verificado na cidade de Americana. Tanto o prefeito quanto o presidente da câmara de vereadores, ambos do PSDB, reuniram-se com empresários e trabalhadores, em 1995, em um protesto contra o governo federal, que se negou a subir as alíquotas de importação de tecidos sintéticos vindos da Ásia, da casa de 16% para 70%. A concorrência com os tecidos importados provocou falências de indústrias e desemprego no pólo têxtil da região que engloba Sumaré, Santa Bárbara, Nova Odessa e Americana. O protesto acabou em um confronto com a polícia. Cf. "Protesto contra governo termina em pancadaria", Folha de São Paulo, 19-05-95, p. 2-9
32. Elvira LOBATO e Maristela MAFEI. Op. cit.
33. Mecanismo similar a este fora adotado em setembro de 1987, na gestão do ministro Luis Carlos Bresser Pereira, com o nome de URP (Unidade de Referência de Preços) que era baseado, entretanto, na inflação média do trimestre anterior e não apenas na do último mês.
34. Embora esta política não possa sustentar-se por tempo ilimitado, enquanto o Governo conseguir vender empresas estatais ampliando seus recursos em caixa para manter a política dos juros altos, para atuar no mercado de câmbio e equacionar seu orçamento, a inflação continuará baixa. Quando acabar sua fonte de financiamento - a venda do patrimônio estatal - a situação ficará insustentável, a não ser que a credibilidade conquistada pelo sucesso virtual do plano atraia investidores estrangeiros, aumentando o produto interno bruto, a arrecadação de impostos, o que, articulado a um corte dramático dos gastos do Estado, possibilitaria continuar pagando a dívida externa e progressivamente ir abaixando as taxas de juros internas ao ponto de estabilizar a economia sem mais precisar contar com recursos de privatizações, mesmo porque a essa altura não haveria quase mais nada a privatizar.
35. Paulo Nogueira BATISTA. O Consenso de Washington - A visão Neoliberal dos Problemas Latino-americanos, Caderno Dívida Externa, n.6, PEDEX, p. 37
36. Antonio Carlos SEIDL. "Brasil pode ser quinto importador dos EUA". Folha de São Paulo, 24-03-98, p. 2-12. Segundo John Mein, presidente da Câmara Americana de Comércio de São Paulo, o investimento direto dos Estados Unidos no Brasil no Brasil seria recorde em 1998, e atingiria uma cifra de US$ 9,5 bilhões.
37. Ricardo Galuppo. "Caixa alto na Terra da Inflação". Revista Veja, 11-08-93, p. 76
38. Folha de São Paulo, 04/09/94, Especial p.3
39. Masturbação Econômica. Folha de São Paulo, 14-05-95, p. 1-2
40. O custo Social dos Juros. Folha de São Paulo, 19-05-95, p. 1-2
41. Fernando CANZIAN e Fideo MIYA. "País gasta US$ 100 mi ao dia com política atual". Folha de São Paulo, 21-0595, p.1-16
42. Fernando CANZIAN. "Juro alto aprofunda desaceleração da economia e eleva dívida pública". Folha de São Paulo, 21-05-95, p. 1-16
43. O Efeito Dominó do Juro Alto. Folha de São Paulo, 21-05-95, p. 1-16