Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e
Totalitarismo
- Elementos para um
estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998
Capítulo II
SUBJETIVIDADE, GLOBALIZAÇÃO E TOTALITARISMO
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1. A noção complexa de subjetividade
Em geral entende-se por sujeito alguém capaz de pensar, decidir e atuar por conta própria. Partindo-se desta noção de sujeito, conclui-se que a subjetividade engloba tudo o que é próprio à condição de ser sujeito, isto é, capacidades sensoriais, afetivas, imaginativas e racionais envolvidos nos processos de perceber, compreender, decidir e agir. Filosoficamente, contudo, podemos fazer uma redução da subjetividade ao seu elemento mais simples. A partir dos estudos de Félix Guattari e Gilles Deleuze sobre os diversos regimes de signos e os processos de produção de subjetividades, podemos afirmar que, abstratamente, a subjetividade se reduz a um conjunto de matérias e funções que, sendo organizadas a partir de regimes de signos, se convertem em substâncias e formas (44). Se reduzirmos um corpo a seu elemento mais simples chegamos à sua materialidade organizada sob um jogo de funções. Essa funções todas, organicamente, conformam o corpo. Tem-se portanto diversos órgãos e aparelhos que se articulam entre si. Trata-se pois de uma matéria ordenada nesse conjunto de funções. Mas somente isso não estrutura uma subjetividade. Essas matérias e funções são ordenadas a partir de regimes de signos. Em nível de biossemiose, tem-se como signos ordenadores, os códigos genéticos; em nível de zoosemiose tem-se os signos que - sob linguagens sinalizadoras e expressivas - organizam a vida dos grupos de animais possibilitando a sua sobrevivência e reprodução. Contudo, se considerarmos o nível da antropossemiose, veremos que todos os níveis dessas funções do organismo são de algum modo modelizados pelos diversos signos das culturas humanas (45). O modo de comer, de vestir, de se reproduzir, enfim, de realizar todas as atividades necessárias à existência e convivência humanas é semioticamente organizado. Assim, quando se fala em subjetividade há que se pensar nesse conjunto de matérias e funções - nesse conjunto das necessidades orgânicas - e por outro lado nas dimensões da cultura - nos diversos códigos socialmente ordenadores - que, de algum modo, modelizam o corpo; neste processo estruturam-se as subjetividades.
Deste modo, todas as substâncias ou identidades referem-se ao que as coisas são segundo cada cultura segundo cada regime de signos ou, o que dá no mesmo, segundo as diversas semióticas vigentes e hegemônicas em uma comunidade de comunicação, que tanto pode ser uma família, uma tribo, um grupo de amigos, uma gang, uma comunidade religiosa, uma nação, etc. Perguntas tais como: quem é, o que é ou o que dever ser - perguntas em torno de questões sobre substância e forma - são questões que somente se respondem considerando-se o plano da cultura, isto é, o plano da linguagem ou das semioses e não somente o plano das matérias e funções. Matérias e funções são como uma argila que vai sendo modelada sob as culturas das diversas sociedades.
Toda cultura possui, além do mais, dois aspectos fundamentais sem o que não há sociedade: uma infra-estrutura econômica e uma infra-estrutura comunicativa, isto é, um modo de produzir e consumir, bem como, um modo de significar, informar e comunicar através de sinais que são articulados em regimes de signos, em linguagens, a partir dos quais a sociedade se organiza e se reproduz. Consideramos signo, aqui, em seu sentido mais lato, isto é, como qualquer imagem, som, palavra, gesto, objeto - enfim qualquer coisa ou evento - que sirva para indicar ou representar outra coisa.
Se biologicamente os seres humanos possuem matérias e funções semelhantes, culturalmente as subjetividades são modeladas sob regimes de signos muito diversos, tanto dos diferentes povos, grupos ou classes sociais, quanto dos diversos momentos históricos e conjunturais nos quais essa semiose vai sendo complexamente transformada. Assim, a nossa sensibilidade é modelada - alguns sentimentos se cultivam em uma cultura em um certo momento, mas se negam em outra cultura ou em outro momento do mesmo grupo. O modo de perceber esteticamente o mundo também é modelizado pela cultura: o que consideramos belo e feio, o que consideramos saboroso ou não, seja pepino azedo, comida apimentada, etc, pois a própria percepção do sabor é algo modelizado a partir da cultura; a percepção das cores - o arco-íris tem sete cores para nós que falamos a língua portuguesa, mas para alguém que fala inglês o rainbow tem seis cores, pois, no que se refere ao arco-íris, a comunidade de língua inglesa não distingue o anilado do roxo, ambos compreendidos em uma única gama, purple. Com a dimensão ética também ocorre o mesmo: as noções de justo, injusto, certo e errado estão relacionadas com um conjunto de interpretantes válidos sob uma semiose vigente no seio de uma comunidade em um dado momento histórico (46). O mesmo se passa com os imaginários, a compreensão de mundo, as esperanças, as utopias. Também no nível das necessidades encontramos essas semioses: a definição do que deve ser satisfeito e de como deve sê-lo; tudo isso é modelizado pela cultura. É muito diferente nascer no Brasil ou em Ruanda, no Japão ou na Suíça
Para os fins de nosso argumento, neste estudo, é muito importante compreender isso que acabamos de expor, pois quando analisarmos o processo de globalização veremos como essas dimensões de subjetividade - sensibilidade, dimensão estética e ética, imaginários, compreensão de mundo, esperanças, utopias, racionalidades, necessidades, etc - são modelizadas sob a lógica de disputa entre capitais e da conquista e manutenção de hegemonias políticas.
A relação entre a sociedade e indivíduo é, portanto, muito complexa. No processo de nossa individuação, nós vamos assumindo os jogos de linguagem, os signos e códigos de uma certa cultura, em uma relação simultânea de liberdade e de determinação. Somos determinados pela sociedade em todas as dimensões de nossa subjetividade, mas ao mesmo tempo somos livres no sentido de que podemos interferir sobre esses códigos culturais. Assim, família, escola, colegas, amigos, igrejas e, especialmente, as mídias de massa determinam muito a individuação das subjetividades. Por outra parte é possível uma intervenção dos sujeitos sobre esses determinantes desde que desenvolvam a capacidade de problematizá-los.
As mídias de massa afirmam padrões estéticos, éticos e políticos. Valendo-se do saber elaborado pelas ciências humanas que esquadrinharam a subjetividade - do ponto de vista da antropologia, da psicologia e demais ciências que estudam o homem, como nos dizia Foucault - as mídias de massa exercem poder sobre as subjetividades, de modo tal a agenciar certos comportamentos, a determinar certos movimentos sociais, a promover o consumo de certos produtos, etc, em síntese, ela interfere nos níveis mais íntimos da subjetividade, agenciando os comportamentos mais variados.
Assim, a sociedade condiciona os indivíduos, mas estes podem modificar a sociedade. Desse modo, não cabe falar de uma ex-istência individual de cada um, como se a subjetividade se reduzisse a uma consciência que, movida pela liberdade, põe-se fora de si (ex) através de suas obras culturais, podendo nelas refletir-se e recuperar-se como consciência livre em seu movimento individual, suprimindo o anterior momento de alienação. A subjetividade, pelo contrário, é relativamente determinada por tudo que a modeliza, a família, a escola e demais equipamentos sociais. Com efeito, a subjetividade é fruto de uma con-sistência - cada um de nós é neste conjunto de semioses que nos atravessa e modeliza, que perpassa a nossa subjetividade e nos produz como seres humanos, embora sempre tenhamos a liberdade situada e relativa de resistir aos fluxos que nos produzem e de conferir um sentido singular à nossa vida.
Essa individuação que, assim, ocorre culturalmente, pode-se dar de dois modos, como analisa Félix Guattari. Na perspectiva da individualização, os indivíduos são agenciados capitalisticamente, em meio à massa, a destacarem-se socialmente, individualizando-se ao assumir as referências de poder e prestígio social modelizadas sob as semioses hegemônicas do Capitalismo Mundial Integrado, buscando competir e vencer, ser melhor sob o quadro de valores estabelecido pelas semioses culturais hegemônicas. Por outro lado, na perspectiva da singularização ou subjetivação, a individuação ocorre com o sujeito dando vazão aos fluxos de desejo e paixão, buscando a realização de sua singularidade na relação solidária e criativa com o outro - relação não fetichizada pelas mediações da cultura hegemônica -, outro esse que é desejado em sua liberdade e diferença, rompendo-se, assim, com todos os códigos éticos, estéticos e políticos, entre outros, que impeçam o sujeito de realizar suas potencialidades, de expandir sua criatividade. Assim, por exemplo, para individualizar-se como homem, conforme uma semiose cultural hegemônica, é necessário que a subjetividade se estratifique sob uma identidade machista. Por outro lado, sob o movimento de singularização, a busca da relação com o outro fará o sujeito romper não apenas com a cultura machista, mas com todas as outras semioses dominantes que negam qualquer outro em sua diferença e liberdade, como a discriminação por raças, credo, orientação sexual, etc. Possibilita-se assim que todos realizem as suas singularidades e potencialidades na promoção da liberdade recíproca.
É mister ainda destacar que, nesse complexo processo de produção de subjetividade, cada ser humano possui as suas utopias. Cada pessoa tem sua utopia individual, movida por desejos e necessidades, formulada ao âmbito de sua circunstância: cada pessoa busca realizar o que ainda não é. A sociedade, contudo, orienta as utopias pessoais para certas realizações. Nesse sentido, o capitalismo é um grande formulador de utopias; conforme a ideologia por ele disseminada, cada pessoa nunca deve estar satisfeita com o que é ou tem e deve buscar sempre mais, estar à frente dos demais, ser o maior e o melhor, isto é, possuir em maior quantidade e em melhor qualidade que os demais.
Contudo, existem diversas formas e tipos de utopias. Elas podem ser singularizadoras, subjetivadoras, quando são movidas pelo desejo do outro em sua liberdade, movidas para a relação pessoa-pessoa, face-a-face, na justiça e liberdade - como afirma Enrique Dussel, quando considera a proximidade do face-a-face em sua dimensão utópica ou escatológica, como sentido último da existência humana (47). Mas elas também podem ser alienantes, quando movidas por desejos manipulados sob a lógica do capital, do machismo, do autoritarismo, etc, sendo a outra pessoa subsumida como um objeto a mais no mundo do indivíduo, que dela se vale como um meio para alcançar outros objetivos particulares.
As utopias também tanto podem ser pessoais quanto podem grupais. Vários indivíduos podem compartilhar uma única utopia que os articula em seu agir coletivo, tratando-se, assim de utopias particulares, grupais, como as que se manifestam em certos movimentos ou segmentos sociais. Assim, por exemplo, nos movimentos que lutam por moradia, faz parte da utopia pessoal de cada um o desejo de possuir um terreno para morar. Mas quando esses indivíduos se organizam, dando origem a um movimento social, a posse da terra - pela qual lutam - passa a ser parte de uma utopia grupal. Por fim, as utopias também podem ser gerais, amplamente coletivas de toda uma sociedade ou povo; temos então os projetos políticos como utopias mobilizadoras de grandes segmentos sociais.
Em geral as pessoas não se dão conta dos desejos mais íntimos que alimentam suas utopias pessoais e que estão latentes em suas ações, orientando adesões sociais e políticas, embora tais desejos se manifestem de várias formas nas condutas do cotidiano.
Mas a subjetividade, como vimos, é histórica. Assim, se voltarmos dessa abstração analítica para retornarmos ao concreto da história, teremos que compreender como as subjetividades são produzidas nos quadros da globalização que afeta o conjunto das sociedades atualmente (48).
2. Globalização - aspectos gerais e produção de subjetividade
2.1 A Globalização como Configuração Atual do Capitalismo
Ao analisar o capitalismo no século XIX, Karl Marx já o considerava em sua dimensão de globalidade. Contemporaneamente, entretanto, assistimos a ocorrência de fenômenos econômicos, políticos e sociais inusitados que nos levam a considerar que o capitalismo globalizado entrou em uma nova etapa.
Na primeira metade de nosso século, assistiu-se à emergência do capitalismo monopolista. Didaticamente escreve Laurence Harris que "com a passagem do capitalismo concorrencial para o capitalismo monopolista, o método dominante de produção também se modifica: a produção da mais-valia absoluta dá lugar à extração da mais-valia relativa, que se torna a mola propulsora da acumulação quando a maquinaria domina o processo de trabalho , caracterizando-se aquilo que Marx chamou de submissão ou sujeição real do trabalho ao capital. E, com a produção mecanizada do capital monopolista, a produção se torna ainda mais altamente socializada que na etapa anterior: o trabalho produtivo chega a tomar a forma de trabalhador coletivo, uma força de trabalho integrada toma o lugar dos trabalhadores artesanais individualizados." (49).
Atualmente, a partir do último quarto do século, tanto a revolução tecnológica em curso (que envolve a robótica, a informática a biotecnologia, a tecnologia dos materiais e a sofisticação dos aparelhos orientadores da opinião pública e agenciadores de comportamentos) quanto a organização dos mega-conglomerados e dos mega-mercados, bem como o super-desenvolvimento dos capitais especulativos e dos signos como mercadorias (de softwares a logomarcas ou códigos genéticos sob copyright) imprimiram uma série de novas determinações ao capitalismo que não pode mais ser compreendido com as categorias que eram adequadas à explicação do "capitalismo monopolista". Nesta passagem do capitalismo monopolista ao capitalismo globalizado também se verifica uma modificação no método dominante de produção. Ainda de modo embrionário percebe-se que a produção da mais-valia relativa vai sendo dialeticamente superada em fenômenos de geração de mais-valia virtual - seja a reprodução de capitais voláteis (que se deslocam por variados campos, multiplicando-se em fenômenos especulativos de toda ordem envolvendo ações, imóveis, obras de arte, direitos de cópia de signos, etc) seja pela reprodução de bens intangíveis (softwares e outros) (50). A extração de mais valia virtual se torna a mola propulsora da acumulação quando o trabalho científico se transforma na principal fonte de valor econômico, produzindo informações que, como bens intangíveis, são propriedade privada do capital. Em especial essa extração de mais valia virtual ocorre: a) quando essas informações podem se converter em produtos que regulam o funcionamento de máquinas, como softwares ou peças audiovisuais que orientam fluxos eletrônicos, magnéticos e fóticos em computadores, vídeos, cd-players, etc; ou b) quando essas infomações, como códigos genéticos alterados, regulam o desenvolvimento de organismos vivos, vegetais ou animais, como bactérias utilizadas em processos industriais, plantas e animais biotecnologicamente alterados para fins de alimentação de outras cadeias, de ampliação de insumos industriais, etc. O mesmo ocorre quando, graças à informática e à robótica, após concluir-se a produção de um bem intangível que foi organizado em bites - como softwares, registros de sons e imagens -, a sua reprodução não depende mais do trabalho produtivo imediato, uma vez que ele é replicado pela própria ação do consumidor, possibilitando que o simples acionamento de um software produza milhões de cópias de si mesmo (51).
Com a produção robotizada e informatizada sob os movimentos do capital globalizado, a produção se torna virtualmente ainda mais socializada que na fase anterior - no sentido que possui uma cadeia com etapas mais diversificadas e complexas, embora os sujeitos dessas etapas não estejam todos juntos em uma linha de montagem em um mesmo local (52). Por outro lado, o trabalho fácil de multiplicar, ilegalmente, informações gera movimentos de socialização destes produtos com as cópias piratas de softwares, audiocassetes, videocassetes, etc. que circulam em mercados proibidos de uma economia informal que movimenta bilhões de dólares. Há que considerar-se, também, que a polivalência do trabalhador em ambientes de tecnologia flexível exige uma socialização dos conhecimentos indispensáveis ao funcionamento de várias etapas do processo produtivo e não somente o desenvolvimento de uma especialidade, embora a qualificação específica de alguns trabalhadores em algumas áreas estratégicas seja o diferencial na vitória de algumas empresas sobre as suas concorrentes.
Outro aspecto essencial dessa nova fase do capitalismo é que ele se tornou definitivamente um sistema produtor não apenas de mercadorias, mas também de subjetividades - modelizando semioticamente desejos, afetos, necessidades, padrões estéticos, éticos e políticos, intervindo diretamente no inconsciente das pessoas com a finalidade de reproduzir seus próprios ciclos (53). Como uma das mediações recorridas para tanto, distribui incansavelmente e gratuitamente as peças publicitárias que, sendo consumidas, têm por objetivo tanto orientar o indivíduo ao consumo ou usufruto pagos de outras peças não-publicitárias que lhe trariam satisfação, quanto agenciar outras formas de comportamento. Assim para compreender-se corretamente o giro do capital, nesta etapa de capitalismo globalizado, há que considerar-se: a) tanto o capital investido no processo produtivo da mercadoria - o que exige, além da consideração clássica dos gastos em capital constante (matérias-primas, outros insumos e instrumentos de trabalho) e capital variável (a força de trabalho), destacar também os dispêndios na geração de novas tecnologias, que supõem necessariamente pesquisas científicas e produção de novos saberes; b) como também o capital investido na produção de signos publicitários replicados nas diversas mídias, que modelizem a subjetividade dos consumidores à aquisição de certos signos e a não-aquisição de outros , deste ou daquele produto que os suportem - isto é, trata-se também de considerar o capital investido na criação de imaginários e realidades virtuais em que se mediatizam o movimento de consumo e a disputa por mercados (54).
Neste capitalismo globalizado, estamos frente a um aparente paradoxo. Se a fantástica terceira revolução tecnológica ampliou espetacularmente a produtividade, se é maior a produção de riqueza, porque juntamente com os indicadores de crescimento econômico também aumenta o número de pobres enquanto a riqueza se concentra cada vez mais nas mãos de uma parcela cada vez menor? A resposta é elementar: o capital precisa, cada vez menos, de trabalho-vivo para produzir cada vez mais capital.
O poder do conhecimento em aumentar a produtividade, inovando nas tecnologias, gerou a situação em que dá mais lucro ao capital explorar menos trabalho-vivo, isto é, manter menos trabalhadores empregados. Este fenômeno que Marx supôs nos Grundrisse em 1857 - mas não desenvolveu em O Capital porque não pretendia falar do futuro, mas apenas explicar cientificamente a economia de sua época - descrevendo-o como Disposable Time ou Nicht-Arbeitszeit (55), isto é, como o tempo disponível ou tempo de não-trabalho que o capital não pode mais empregar produtivamente de modo competitivo porque a ciência se tornou a grande fonte produtora da riqueza abaixando o tempo médio de trabalho necessário à produção das mercadorias, sendo a incorporação da tecnologia o diferencial entre a vida e a morte da empresa capitalista na competição do livre-mercado, é o que assistimos hoje. Se uma empresa não investe em pesquisa e desenvolvimento, não inova nas tecnologias - que indiretamente provocam uma redução dos trabalhadores por ela empregados - ela perde a concorrência, sendo derrotada pela empresa maior que a incorpora, dominando maior mercado e desativando unidades produtivas, porque a alta produtividade das unidades tecnologicamente mais avançadas que permanecem é capaz de abastecer todo o mercado consumidor existente que era anteriormente atendido pelas unidades agora desativadas.
Como o grande capital tem mais recursos para investir em tecnologia que os pequenos e médios empresários, todos sabem qual é o final do jogo sob uma economia neoliberal desregulamentada: a concentração maior da riqueza com uma exclusão cada vez maior de trabalhadores - têm-se o horror econômico, como descreve Viviane Forrester (56). Nesta sociedade que equivocadamente apoia os ajustes neoliberais em nome da liberdade que tal projeto efetivamente aniquila para as maiorias, alguns senhores que dominam a riqueza no mundo podem realizar exóticos "gestos de caridade", como o do mega-especulador George Soros que pode se dar ao luxo de fazer uma doação de US$ 500 milhões de dólares à Rússia - sendo que a ex-URSS detinha 4 milhões de pobres em 1987 e agora possui, além de uma economia de livre-mercado, cerca de 120 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza absoluta, conforme um dos últimos relatórios da ONU.
Não se trata de uma crise econômica temporária para a qual a expansão da nova onda tecnológica, em especial da Tecnologia da Informação, trará alguma solução ao disseminar meios de produção virtuais - como softwares - a preços baixos por todo o mundo. A disseminação da informatização em todos os setores da economia, mesmo no setor de comércio e de serviços, tem provocado desemprego na grande maioria dos países. O número de postos de trabalho criados por essa tecnologia é muito inferior ao número de postos que ela faz desaparecer. Trata-se, isto sim, de uma nova configuração do capitalismo, que dependerá cada vez menos do trabalho vivo para ampliar-se e que, por isso, distribuirá cada vez menos recurso na forma de salário, significando que a concentração de capital será cada vez maior no mundo enquanto perdurar este modelo capitalista globalitário.
2.2 Algumas Características Gerais da Globalização
O atual movimento de globalização decorre de uma reconfiguração do domínio dos capitais na ordem mundial contemporânea ao último quarto deste século. Para além da atual revolução tecnológica, assiste-se a um movimento de concentração e internacionalização do capital, de regionalização do mundo em blocos econômicos, de mudanças na cadeia produtiva, de substituição de matérias primas, de restruturação e racionalização empresarial, da produção de subjetividades, baseando-se a economia, cada vez mais, na produção de conhecimento.
Com estas transformações, acompanhadas de taxas elevadas de urbanização e degradação ambiental, vem aumentando acentuadamente a pobreza entre a maior parcela da população do mundo, com o drama do desemprego e do emprego precário, com países soterrados sob o peso das dívidas externas e internas, enquanto uma pequena parcela de cidadãos deste mundo globalizado enriquece vertiginosamente.
Estas modificações econômicas são organizadas e mantidas sob um projeto político hegemônico, o neoliberalismo, que se realiza como uma espécie de modernização conservadora. Nesta nova geopolítica internacional, com o final da guerra fria, o conflito leste-oeste se converte no conflito Norte-Sul, no conflito entre ricos e empobrecidos.
Alguns estudos destacam as principais conseqüências desse modelo de globalização para os países do Terceiro Mundo (57):
1) Incorporação de empresas de capital nacional por empresas transnacionais em razão de não suportarem a concorrência, trazendo por conseqüência a rápida desativação de várias unidades produtivas em razão destes grupos transnacionais produzirem sob novos procedimentos organizativos e com tecnologias mais avançadas;
2) Subalternização de empresas de capital nacional que são contratadas de modo terceirizado pelas grandes empresas transnacionais que se instalam nos países periféricos e que, tendo uma estratégia mundial de crescimento, podem desativar grandes unidades a qualquer momento, deslocando-as para outras regiões, deixando, assim, as empresas locais terceirizadas à sua própria sorte, provocando graves conseqüências econômico-sociais.
3) Com a depreciação do valor das matérias-primas em razão de inovações no setor de tecnologia dos materiais e de engenharia genética, que possibilitam a substituição de inúmeros tipos destas matérias ou a sua produção alternativa, ficam prejudicadas as economias dos países que tem na exportação de matérias-primas sua principal fonte de divisas;
4) Pressão de déficites na balança comercial em razão de importação de tecnologias para a modernização do parque produtivo, bem como pela da degradação do valor dos produtos de exportação e, ainda, em razão dos instrumentos de âncora cambial adotados com a finalidade de manter estabilidade monetária e de não afastar capitais estrangeiros que atuam nos mercados de títulos públicos;
5) Dependência de tecnologias de ponta, especialmente da tecnologia da informação, ocorrendo significativas queimas de capital para importá-las; contudo, a sua rápida obsoletização exige repetidas importações sucessivas de bens tangíveis e intangíveis mais avançados, o que leva a uma fabulosa sangria de capitais das nações dependentes, sem nunca atingir um grau de modernização de ponta nestes setores frente aos países de capitalismo avançado;
6) As economias ficam dependentes dos fluxos de capital internacional, sobre os quais não têm autonomia; os fluxos de capitais voláteis, fictícios ou virtuais especulativos geram um clima de aparente estabilidade econômica que nada tem duradoura, podendo gerar fortes crises ao sinal seguro de alterações no câmbio ou na taxa de juros que lhes reduza a rentabilidade;
7) Enfraquecimento do controle das economias nacionais pelos governos federais, em razão da internacionalização das finanças, bem como, pela acentuada penetração de capitais internacionais;
8) Submetimento a variadas oscilações econômicas em razão da interdependência dos países nos blocos econômicos que se integram, ocorrendo pressões sobre determinados segmentos econômicos nacionais que ficam prejudicados por esses acordos;
9) Acirramento dos desequilíbrios econômicos regionais, em razão das vantagens econômicas e comparativas existentes em certas regiões dos países ou blocos que possuem maiores economias de aglomeração, melhores condições de infra-estrutura e maior facilidade de integração regional dentro dos mega-mercados;
10) Surgimento de ilhas de prosperidade, isto é, algumas regiões em que o desenvolvimento econômico se acentua por nelas se investirem somas significativas de capital em atividades produtivas modernizadas que alavancam o crescimento local;
11) Inchamento de cidades para onde os pobres se deslocam em movimentos migratórios em busca de melhorias, pressionando o surgimento de grandes metrópoles;
12) Ampliação do montante das dívidas externa e interna em razão de empréstimos feitos para equilibrar pagamentos e rolagem de títulos;
13) Transferência de poder, para o exterior, sobre importantes decisões econômicas que envolvem investimentos e produção em amplos segmentos econômicos, principalmente os setores mais modernos, que ficam desnacionalizados em razão dos processos de privatizações;
14) Perda da soberania da nação em razão de sua subordinação não apenas às regras da OMC, em que os países de capitalismo avançado hegemonizam, mas especialmente às decisões das empresas industriais e financeiras multinacionais, bem como, aos interesses dos blocos econômicos dos quais o país faça parte;
15) Exclusão social de significativa parcela da população das diversas regiões dos países que não participam dos resultados do progresso econômico e social que ocorre nas ilhas de prosperidade.
16) Desemprego em massa, como resultado do processo de modernização dos setores produtivos que se realiza com a finalidade de ampliar os níveis de produtividade e competitividade das empresas nos mercados interno e externo, introduzindo novas tecnologias e sistemas de gerenciamento.
17) Ampliação da informalidade e de práticas econômicas consideradas contravenção, como contrabando, pirataria, narcotráfico, prostituição, etc.
18) Precarização das condições de saúde pública, com o retorno de doenças infecto-contagiosas que já haviam sido controladas, em razão da falta de investimentos públicos em saúde e infra-estrutura - água, esgoto, vacinação, etc.
19) Pressões de devastação ambiental, sendo o meio ambiente degradado para promover alguma melhora imediata à vida das pessoas excluídas dos processo produtivos e da assistência por políticas públicas;
20) Decomposição do tecido social ampliando-se as desigualdades sociais na distribuição de renda, no acesso à informação qualitativamente relevante e na competência de interpretá-la, etc;
21) Agravamento dos indicadores da qualidade de vida;
22) Aumento da violência e criminalidade, em razão das tensões sociais provocadas pela exclusão econômica de significativas parcelas da população com necessidades elementares insatisfeitas e que concomitantemente são agenciadas pelas mídias a participarem de processos modelizados de consumo;
23) Ameaça de convulsões sociais com desdobramentos político-institucionais que podem afetar os regimes democráticos liberais: saques, revoltas contra a ausência de políticas públicas, contra a falta de empregos, etc, podendo haver a ascensão de movimentos fascistas que capitalizem tais insatisfações;
24) Perda nacional de referenciais culturais identificadoras, em razão de fenômenos transnacionais de produção de subjetividade em que operam, especialmente, as mídias eletrônicas veiculando mensagens em tempo real pelo mundo todo, e em razão da publicidade que produz imaginários em torno de uma certa configuração de sociedade de consumo;
25) Tendência dos regimes políticos tornarem-se mais globalitários.
2.3 Globalização e produção de subjetividade
O atual processo de globalização acirra a disputa entre os capitalistas por mercados que consumam seus produtos. Nas últimas décadas ocorreu uma saturação de mercados consumidores nos países ricos, tanto porque ali, demograficamente, a população parou de crescer ou vem crescendo a taxas ínfimas, quanto porque o salto tecnológico aumentou vertiginosamente a produtividade das empresas. Da disputa por mercado na Europa, entre empresas européias com as empresas concorrentes norte-americanas e japonesas, surgiu, então, a necessidade de organização de um bloco econômico, uma vez que as inovações tecnológicas possibilitavam a uma única empresa européia produzir para um mercado consumidor muito grande - muito superior ao dos países europeus isoladamente. Como as barreiras alfandegárias entre os países da Europa dificultava para as suas empresas venderem seus produtos nos demais países da CEE, elas passaram a competir com as empresas japonesas e americanas em condições desfavoráveis, pois estas além de explorarem um mercado consumidor bem maior em seus países de origem - permitindo-lhes reinvestir um volume maior de capital em pesquisa e desenvolvimento -, disputavam também os mercados nacionais europeus na mesma igualdade de restrições fiscais. Em razão disto, as grandes empresas daquele continente passaram a forçar o processo de unificação, havendo o surgimento, naquela região, do primeiro bloco econômico, movimento esse seguido por outros blocos em outras regiões.
Outra característica da globalização é a revolução tecnológica nas áreas de informática, robótica, biotecnologia, tecnologia dos materiais, revolução na área das mídias (comunicação em tempo real, computação gráfica, digitalização do conhecimento, Internet, etc). Com essa tecnologia há um aumento de produtividade que poderia ampliar o tempo livre das pessoas - que poderiam trabalhar menos recebendo salários melhores - como argumenta André Gorz em Metamorfose do Trabalho (58). Mas as novas tecnologia, contudo, são utilizadas para acúmulo e concentração de capital, gerando o desemprego, o crescimento da economia informal e a exclusão social. Além disso as tecnologias da informação aprimoraram também as possibilidades de intervenção no inconsciente das pessoas, em particular, e das massas, em geral, possibilitando a emergência de regimes globalitários, como analisaremos mais à frente.
Chegamos assim a um dos pontos chaves desta reflexão: o capitalismo é um sistema não apenas produtor de mercadorias, mas também de subjetividades. Se a subjetividade não é uma entidade metafísica ou transcendental, se ela é histórica e modelizada culturalmente sob jogos semióticos que ordenam matérias e funções, como analisamos anteriormente, então podemos afirmar que o capitalismo atualmente produz subjetividades, pois ele produz semioses que ordenam as funções de organização da sociedade e portanto da vida dos indivíduos. Ele produz subjetividades, por exemplo, produzindo o produtor flexível, isto é, modelizando a subjetividade daquele que deve produzir operando com tecnologias mais complexas e que é envolvido como colaborador da empresa; para tanto, usam-se técnicas de teatro, de tai-chi-chuan, técnicas de psicologia e psicodrama no desenvolvimento de inteligência emocional e muitas outras, para aumentar a produtividade, para que o indivíduo se sinta membro-participante da empresa e não um mero empregado, tendo maior autonomia, podendo até mesmo flexibilizar o seu próprio horário de trabalho, etc. Todas essas técnicas de produção de subjetividade estão incorporadas para o bom funcionamento da empresa e para o atingimento de seus objetivos estratégicos na competição com as empresas concorrentes.
Por outro lado, há o processo de produção do consumidor. Uma vez que as grandes empresas têm que competir entre si pelo mercado, quando os produtos objetivamente são muito similares não havendo diferença significativa, como no caso de dois sabonetes, por exemplo, o que faz com o consumidor consuma o produto A ou o produto B é uma peça publicitária que intervém nesta subjetividade, capturando desejos, anseios e imaginários para levar o indivíduo a consumir um produto e não o outro. Consideremos um exemplo. Qual é a "mãe de família" que não gostaria de ter, pela manhã, uma mesa farta, com diversos tipos de pães, bolachas, frutas, frios, geléias e biscoitos, tendo ao redor da mesa os filhos felizes e bem dispostos que vão estudar e o marido bem trajado, carregando sua valise, pois está empregado e vai trabalhar em um escritório? E neste momento da peça publicitária ouve-se o bordão "Com Doriana, os elogios são para você! Com Doriana, só para você!" Por sua vez, a empresa concorrente, que começa a perder mercado na venda de margarina, tem que associar o seu produto a uma situação mais feliz que a desta família; e mais feliz que isso, só um café da manhã com uma família em férias em uma casa de campo: "All Days. Oh... Happy days..". Trata-se pois de agenciar a subjetividade para vender o produto. Neste caso, desvia-se o desejo da relação com o outro para a posse do produto; os interpretantes de fraternidade, carinho, alegria, felicidade e amor passam a ser associados, também, à margarina por obra de uma espiral semiótica.
Há pois uma produção do consumidor, agenciando-lhe utopias. Relógios, cigarros, automóveis, tênis, automóveis, motocicletas, bebidas, roupas, etc, tudo estará envolvido com prazer, fruição exótica, status, liberdade, poder, sensualidade e outros atributos fascinantes. Se um jovem possui o tênis da moda, um tênis Nike, terá prestígio em seu grupo. Se alguém aparece com um Conga, será ridicularizado. São os signos que as empresas capitalistas criam para a individualização, modelizando a subjetividade dentro de uma sociedade excludente e individualista.
O capitalismo, portanto, pela ação de suas empresas e seus atores, captura as utopias das pessoas sob a sua lógica de dominação e lucro. Ele atua no inconsciente e move o desejo, a angústia e o medo das pessoas; altera a sensibilidade que é modelada sob a lógica do capital e o desejo de alteridade é desviado para o consumo de produtos, para a posse de objetos, ficando as relações coisificadas - o desejo de ter um namorado é desviado para o desodorante, o desejo da família feliz é desviado para a margarina, o desejo de ter um grupo de amigos é desviado para a posse do tênis, entre outros exemplos. Ele também modeliza esteticamente a subjetividade: cria padrões de belo e feio, o que dá status ou não: que roupa devemos vestir, que objetos temos que portar para sermos reconhecidos como importantes pelo grupo em que participamos, etc. Ele também modeliza a dimensão ética: mutila nossa sensibilidade frente o sofrimento alheio, frente à morte, nos desumaniza, altera as noções de justo e injusto, responsabilizando cada pessoa por sua exclusão, escondendo as causas estruturais dessa exclusão. Assim, se alguém fica desempregado é porque não estudou o suficiente para trabalhar com as tecnologias mais complexas, sendo responsabilizado pela sua própria exclusão; se estuda e consegue emprego, o conseguiu porque estudou; se estuda e não consegue o emprego é porque não estudou o bastante; mas essa ideologia oculta o fato de que mesmo se todos estudassem o bastante, não haveria emprego para todos, pois não é a qualificação do trabalhador o que gera postos de trabalho. O capitalismo também produz imaginários, gerando certas compreensões ideológicas de mundo, esperanças impossíveis de cumprir-se, utopias alienadas, compreensões fragmentadas e virtuais do real, etc... O capitalismo modeliza também as necessidades humanas, transformando-as em possibilidade de alguns acumularem mais capital, gerando novas necessidades sociais
Portanto, o sistema capitalista além de ser um sistema econômico é, como diz Félix Guattari, o sistema semiótico modelizante principal. Ele produz e reproduz conjuntos articulados de signos a partir dos quais tudo é transcodificado. Ele transforma qualquer coisa em valor de troca. A afetividade humana, por exemplo, pode ser transcodificada para vender coisas nas peças publicitárias. A desgraça humana também pode ser transcodificada para ampliar o acúmulo de capital, por exemplo, sendo explorada para ampliar o índice de audiência de um certo telejornal, aumentando o lucro da emissora que cobra mais caro pela inserção dos comerciais entre os blocos de notícias. O capitalismo, inclusive, é capaz de capturar com seus signos todas as linhas de fuga ou de subversão, colocando tudo a serviço de sua reprodução. Ele consegue sobrecodificar os signos de protesto e recuperá-los em sua espira dominante. A eficiência ou não dessa captura depende da capacidade dos atores que geram os signos que foram modelizados propagar socialmente um certo conjunto de interpretantes capazes de ressignificar os signos que foram transcodificados. Desse modo as mídias são capazes de transformar Chico Mendes em defensor de borboletas e passarinhos, esvaziando o signo político das causas que o levaram a ser dirigente no PT no Acre, lutando pela aliança dos povos da floresta. Outro exemplo dessas recapturas é a reforma agrária; recentemente o PFL, em sua propaganda eleitoral gratuita, defendia a realização da reforma agrária, que fora capturada sob a lógica capitalista do comércio de terras, eliminado-se-lhe uma característica básica que é a expropriação dos latifúndios improdutivos. Outras recapturas interessantes para análise foram as da música e dança negras para vender a cerveja Antártica durante a copa de 1994; ou as que sobrecodificam discursos e signos políticos em merchandising como as que se verificaram em 89, 93 e 94 - uma das quais, dizia resumidamente o seguinte: "Nós mudamos um presidente. Você tem escolha. Pepsi para quem tem sede de mudanças."
Mas como o capitalismo, como sistema semiótico, pode fazer isso ? Isso é possível porque a nossa interação com os signos é simultaneamente estética e cognitiva. É estética do ponto de vista da sensibilidade; os signos geram em nós afetos e perceptos; é cognitiva porque resulta em representações e conceitos, mediados pelos elementos fundamentais da semiose que são os interpretantes. Todo signo gera em nossa subjetividade um conjunto de interpretantes, aquilo que nós aplicamos ao signo para entendê-lo, frui-lo ou reagir a ele. Esses interpretantes podem ser intelectuais e afetivos, mas também podem ser energéticos - isto é, uma reação orgânica nossa, por exemplo, frente ao grito de que há um incêndio no prédio em que estamos. O capitalismo, pois, gera signos e agencia interpretantes; sabe capturar desejos e revoltas, sabe canalizar intensidades subjetivas; em muitos casos essas semioses levam os indivíduos a tomarem o imaginário como real, o virtual como efetivo, por exemplo, considerar que a URV fosse uma unidade real de valor, quando na verdade o Cruzeiro Real era a unidade real de valor circulante na economia brasileira naquele período em que teve vigência a URV - tanto era assim que os índices inflacionários selecionados para determinar o valor da URV mediam a elevação do preço dos produtos em Cruzeiros Reais.
O capitalismo como sistema político pode assumir várias configurações, cada uma das quais terá um jogo de semioses peculiares. Pode ser liberal, fascista ou social-democrata. Contudo, cada modelo destes engendra seus signos, seus imaginários, seus códigos, sendo que todos eles estão centrados no acúmulo de capital em detrimento da realização universal da liberdade e da dignidade humana de cada pessoa, pois o valor de troca passa a ser a mediação geral de equivalência entre todos os entes por ele modelizados. O capitalismo neoliberal, de sua parte, possui uma ideologia peculiar que o justifica; ele agencia utopias coletivas alienadas que jamais se realizarão, como a utopia do livre mercado, por exemplo, ou ainda a satisfação de todos os consumidores em razão da competição entre os produtores e comerciantes (59). O que se nota, entretanto, é que quanto mais se desregulamenta o mercado, pior fica a situação dos excluídos (60). A semiose neoliberal mobiliza desejos e anseios das pessoas levando-as a terem comportamentos políticos favoráveis aos interesses dos grupos economicamente dominantes - seja ecoando mensagens, através das mídias, em favor das reformas estruturais conforme os parâmetros do Consenso de Washington, seja apoiando politicamente grupos e partidos com elas comprometidos. Em síntese, essa atual configuração de capitalismo neoliberal engendra regimes globalitários. Produzindo subjetividades, essa forma de capitalismo não apenas se implanta como modelo econômico, mas como semiose hegemônica, que agencia e hegemoniza amplos segmentos sociais em defesa de projetos que excluem a maioria, embora essa maioria pense que esses projetos vão atender os seus interesses.
Já existe uma expressiva literatura sobre a globalização e valiosos trabalhos sobre o globalitarismo. Se é inegável que há uma tendência de interdependência e integração econômica mundial, por outro lado, isto não significa que o modelo neoliberal de globalização seja o único possível e o melhor para toda a humanidade. Organizada sob outras finalidades, a complexa interrelação econômica mundial poderia servir ao conjunto dos povos, não precisando ser comandada por interesses de alguns grupos privados que - graças à expansão dos regimes globalitários - concentram, cada vez mais, o capital e ampliam, cada vez mais, o seu poder. O que se vê nos diversos países em que o neoliberalismo se implanta é a adoção de novas regras políticas e sociais que privilegiam certos interesses que acabam prejudicando a maioria da população. Embora todos ouçamos a retórica da promoção de políticas sociais, o quadro do aumento da pobreza no mundo - como conseqüência do atual modelo de globalização - é uma ofensa aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Para o economista Ignacy Sachs, que dirige o Centro de Pesquisa sobre o Brasil Contemporâneo, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, é necessário criticar a globalização (61). Como se pode depreender de seu pensamento, "... a abertura das economias nacionais foi excessiva e aumentou o fosso entre ricos e pobres em todos os países", o que ele denomina "terceiro-mundialização" do planeta, uma vez que a globalização vem produzindo um grande contingente de excluídos que se espalham não somente em favelas ou em bairros periféricos das grandes cidades do Terceiro Mundo, como também nas esquinas e becos das grandes cidades do Primeiro Mundo, como Paris, Nova York e Londres, entre outras. (62) O discurso que enfatiza o livre comércio, conforme o economista, é apenas uma peça de retórica, uma vez que os países detentores de excedentes de produção praticam formas dissimuladas de protecionismo.
3. Globalitarismo - articulação entre globalização e totalitarismo
Nos subitens dessa seção, trataremos propriamente da caracterização do globalitarismo, que articula elementos da globalização com novas mediações de totalitarismo; abordaremos algumas dimensões de produção de subjetividade sob esse regime e analisaremos, posteriormente, como esse processo se desenrola no caso brasileiro, considerando, basicamente, a trajetória da campanha de Fernando Henrique Cardoso à presidência do país, bem como alguns elementos de sua política econômica e de seu governo.
3.1 Globalização, Mundialização e Planetarização
Alguns analistas, refinando as categorias interpretativas, passaram a distinguir a globalização, a mundialização e a planetarização. A primeira envolve elementos de produção e comercialização, relacionando-se à economia e às finanças. Na base do processo atual de globalização estão grandes corporações interagindo nos grandes mercados em movimentos de "fusão" ou "fissão". Nesses movimentos, pressionadas pela disputa de mercado e em busca de maiores lucros, tanto várias empresas se fundem em uma só explorando a economia de escala, quanto grandes empresas se dividem em várias unidades, explorando economias de escopo ou de velocidade. Na base deste movimento de internacionalização e concentração dos capitais está, como um de seus suportes, o tripé bancário dos fundos de pensão, fundos mútuos e seguradoras.
A mundialização, por sua vez, envolve mentalidades, hábitos, estilos de comportamento, usos e costumes. Ela se refere à interferência cultural entre as várias nações e povos, sendo intensificada pelas facilidades atuais de viagens de um país a outro, de comunicação por rádio, TV e internet, cabos e satélites que nos permitem ter acesso direto a inúmeros outros países e culturas. Essa facilidades para comunicação vem quebrando barreiras culturais, provocando influências entre as diversas culturas e levando a mudanças de comportamentos de parcelas das diversas sociedades.
A planetarização, por sua vez, diz respeito à influência política de nações sobre outras nações. Alguns analistas consideram que o desenvolvimento tecnológico e o aprimoramento do processos informacionais ampliaram as influências políticas entre elas, gerando um poder de alcance planetário, que afeta Estados e sociedades, surgindo novas formas de controle de poder que ultrapassam fronteiras, havendo diversas formas de influência entre países e comunidades. Não apenas dos grandes países como Estados Unidos, Japão e Alemanha que impõem pressões determinantes sobre outras economias nacionais, mas até mesmo de grupos sociais nos diversos países que pressionam politicamente outras nações. As pressões internacionais contra os testes nucleares franceses, realizados recentemente, são um exemplo disso.
Se considerarmos, contudo, o processo de produção de subjetividades que analisamos anteriormente, perceberemos que a globalização captura em sua espira a mundialização e a planetarização. Portanto, grande parte dessas pressões de um país sobre outro, acabam ocorrendo em razão das disputas por mercado, em razão da competição internacional pela colocação de seus produtos, na defesa de seus interesses; e mesmo as interferências culturais, em grande parte, acabam se voltando a essa mesma lógica de reprodução do capital que se realimenta com signos exóticos que agenciam novos consumos. Assim, mentalidades, hábitos, estilos de comportamento, usos e costumes são, em diversos níveis, semioticamente modelizados com a finalidade de reproduzir os ciclos dos capitais em disputa sob as mediações publicitárias ou sob atividades produtivas.
Esta captura possibilitada pelos atuais desenvolvimentos tecnológicos introduz um vetor totalitário não apenas em escala nacional, mas sim global, podendo ser denominado como globalitário - nas palavras de Paul Virílio. Trata-se pois de um fenômeno de escala global em que, progressivamente, vai ocorrendo a expansão de formas autoritárias que perpassam a economia, as estruturas políticas, afirmando valores éticos e padrões estéticos, que configuram um modo impositivo de organização da sociedade, embora os mecanismos democráticos permaneçam formalmente existindo.
Como a mundialização e a planetarização são capturadas sob a lógica globalitária, a digitalização dos mecanismos culturais em larga escala, modelizados sob as semióticas do capital, tendem a transformar as infovias em mecanismos potencializadores de um novo tipo de opressão que através delas, habilmente, é realizada. Não se trata apenas de afirmar que as nações tornaram-se reféns de capitais financeiros que viajam o mundo, de um país a outro, através de redes de computadores interligados por cabos de fibra ótica e ondas de satélite. Trata-se de considerar que as diversas culturas estão sendo transcodificadas sob um certo conjunto de linguagens binárias mediadoras e que tudo o que não possa ser convertido nessas linguagens tende a ser marginalizado. Cabe destacar por outro lado, entretanto, que as infovias podem ser espaços também de ação democrática e de movimentos de resistência, uma vez que estas tecnologias podem ser colocadas a serviço da realização da cidadania.
Se uma parcela da população ainda é ingenuamente crédula nas semioses televisivas, por outro lado o desenvolvimento da tecnologia da informação tem feito surgir uma nova via de acesso à informação que são as redes informatizadas, como a Internet em que as pessoas podem exercer um papel ativo no processo comunicativo. Destaca a jornalista Myrian Dell Vechio que, "o mais importante, é que estas redes de informação instantânea irão dar mais uma guinada no modelo de comunicação que está aí. Da comunicação interpessoal, passamos, em pouco mais de um século, por todas as transformações proporcionadas pela tecnologia (imprensa, rádio, cinema, televisão, satélites, cibernética, fibras óticas), que levaram o mundo a se tornar uma Aldeia Global, via comunicação de massa. Agora, com as redes para transmissão de informação haverá um retorno a uma comunicação direta e individual entre as pessoas." (63) Pensando nisto, contudo, grandes industrias americanas estão investindo recursos em um fabuloso projeto que visa colocar em órbita 800 satélites de comunicação para interligar telefones e computadores liberando a cada usuário um endereço fixo. Por outro lado, a saturação de informação tende a provocar a emergência de sistemas de descarregamento automático de dados das redes para os usuários, tornando quase invisíveis muitas ações de resistência.
É preciso considerar, pois, que enquanto estiverem capturadas sob a espira da globalização, essa redes tendem a ser um instrumento a serviço do capital. Não é a toa que Netscape e Microsoft disputam com tanta dramaticidade a hegemonia no fornecimento de navegadores e de outros softwares para que os usuários possam navegar e comunicar na Internet; não é a toa que os grandes bancos estão se apressando por nela colocar seus websites de auto-atendimento, ou que as empresas de jornal, rádio e TV venham disponibilizando, através dela, parte de seus materiais e de sua programação. Não é a toa que aumenta a publicidade nessa nova mídia e que entre os setores de maior concentração de capitais estão os que atuam, especificamente, com a informação e a informática.
3.2 Características do Regime Globalitário
O termo "globalitarismo" é um neologismo que foi introduzido por Ignacio Ramonet nas reflexões sobre o capitalismo contemporâneo. Politicamente pode ser compreendido como a articulação entre globalização e totalitarismo. Alguns, entretanto, destacam que sob a perspectiva cultural e ideológica, ele seria a "fusão entre global e utilitarismo, uma velha doutrina dos liberais clássicos..., agora retraduzida com roupas novas pelo neoliberalismo" (64)
Para Paul Virílio, não se trata de um imperialismo colonial como o do século XIX, nem de um imperialismo político de estilo nazista ou fascista que levaram à Segunda Guerra Mundial. Argumenta ele que "com a globalização, o que existe é a possibilidade de um totalitarismo definitivo, um totalitarismo sem exteriores. Um totalitarismo global." (65)
Como resenhou o jornalista Fernando de Barros e Silva, "ao contrário do totalitarismo cujo sucesso se devia à repressão a toda forma de oposição ou liberdade de expressão, os regimes globalitários incentivam ao máximo a parafernália democrática (eleições regulares, imprensa livre, instituições saudáveis, etc.), ao mesmo tempo em que a transformam num ritual vazio, sem qualquer efeito sobre o curso do mundo." (66) A democracia se torna, então, uma espécie de simulacro formal. O seu conteúdo substancial, contudo, é profundamente esvaziado. Qualquer cidadão pode votar para presidente, mas não pode participar da alteração, sequer, da pauta de um telejornal ou de um Globo Repórter que apresentam informações que "provam", por exemplo, que um dos candidatos a presidente é, realmente, um "Caçador de Marajás", inimigo implacável da corrupção e defensor dos "descamisados" - quando, de fato, está plenamente envolvido em processos de corrupção. Pode-se citar como um outro exemplo de esvaziamento dessa democracia qualquer negociação nacional com o FMI ou com o Banco Mundial: os países têm de se submeter a normas exógenas - determinadas por outros poderes - para obter financiamentos, fragilizando o controle nacional de suas economias em proveito da expansão do capital internacional. As mídias, por sua vez, denominam a essa subserviência de "fazer a lição de casa" - ceder à autoridade de um mestre oculto, cujo receituário sempre penaliza os que já são pobres.
O ex-ministro da justiça Saulo Ramos, indagado se o governo Collor era autoritário escreveu, certa vez, um artigo intitulado Totalitarismo Refinado (67) que pode ser trazido a este contexto. Após resgatar a etimologia da palavra totalitarismo que indicava na acepção fascista de Mussolini "tudo dentro do Estado, nada fora do Estado", destaca também que "em alguns momentos, as próprias democracias liberais, pluripartidárias, passaram a sofrer a tentação totalitária, descrita por Jean François Revel em seu conhecido livro sobre o assunto, no qual frisou que os modernos meios de comunicação, se não podem fazer um ditador, podem sustentar um regime totalitário substituindo a informação pela propaganda, afastando a verdade pela divulgação do falso, tudo elaborado com alguma competência técnica de tal sorte que a defesa da falsidade se apóie sobre um grau mínimo de coerência lógica. No Brasil, isto não se dá completamente ou de forma global pela resistência de alguns veículos de comunicação... mas tome processo contra seus diretores! (...) Inauguramos... uma distinção entre o totalitarismo destemido e o totalitarismo refinado, este nosso que discursa democracia, liberdade de mercado e impulsiona o Estado contra tudo..." (68). O totalitarismo globalitário, entretanto, não está centrado no Estado mas no grande capital transnacional que impõe uma nova ordem política em função de seus interesses. Os mecanismos citados por Saulo Ramos, entretanto, são da mesma forma utilizados.
Podemos destacar, em síntese, algumas características desses regimes globalitários. Entre outras peculiaridades, eles repousam sobre o dogma da globalização e do pensamento único, isto é, afirmam que o modelo neoliberal é o único modelo válido e que nenhum outro pode ser melhor ou substituí-lo, não admitindo-se, portanto, nenhuma outra política econômica fora de seus cânones. Com esta política, subordinam-se todos os direitos sociais do cidadão à lógica da razão competitiva, propondo que a lógica do mercado venha atender o conjunto das demandas sociais de todas as espécies. Entrega-se aos mercados financeiros a direção das atividades econômicas das sociedades dependentes, que se vêem obrigadas a pagar altas somas aos capitais internacionais - especialmente na forma de juros - para que suas economias não quebrem sob o peso das dívidas externa e interna. Estes regimes globalitários favoreceram nas últimas duas décadas a monetarização e a desregulamentação das economias, promovendo o livre comércio, o livre fluxo dos capitais e massivas privatizações. Essas políticas vem transferindo importantes decisões sobre investimento, emprego, saúde, educação, cultura, proteção do ambiente e outras da esfera pública, em particular, da esfera do estado, para a esfera privada, isto é, para a esfera dos agentes econômicos que detêm o grande capital. Assim, com as privatizações em várias áreas estratégicas, do ponto de vista das macro-políticas econômicas, e em outras, como saúde e educação, desmonta-se a capacidade do estado em garantir as liberdades públicas. Os indivíduos ficam, desse modo, submetidos à lógica dos interesses privados para terem asseguradas a satisfação de suas necessidades materiais e culturais. Por outra parte, as nações dependentes e dominadas deixam nas mãos de alguns indivíduos - que são os grandes agentes privados - e órgãos econômicos internacionais as decisões fundamentais do ponto de vista do desenvolvimento econômico nacional. Sinal deste poder de grupos privados, acima do poder da maioria dos estados, é que entre as duzentas maiores economias do mundo atualmente, mais de cem são multinacionais e não países. Contudo, a característica maior deste modelo é que as desigualdades econômicas nas nações que o adotam acentuam-se na mesma proporção que a supremacia dos mercados aumenta.
Outra característica peculiar desse regime globalitário - que já antecipamos - é o modo como se valem das mídias de massa. Graças à recente revolução tecnológica na área de armazenamento e circulação de dados, e portanto, de informação, imagens e sons, a mídia de massa transformou-se em um importante instrumento político. A interligação da comunicação mundial em tempo real e a possiblidade de edição, cada vez mais sofisticada, de imagens e sons não foi ainda criticamente assimilada pela sociedade, que não distingue os ícones e símbolos editados na TV - isto é, imagens e palavras - da realidade efetiva. Tomando como real a informação que vê ou escuta no noticiário, não percebe que todo signo representa apenas parcialmente o objeto dinâmico que o provoca e que, portanto, não está vendo a própria realidade, mas um simulacro que pretende lhe corresponder conforme a locução do apresentador.
Este tipo de tecnologia aplicada na comunicação dos grandes grupos econômicos com populações que desconhecem os mecanismos e princípios dos diversos tipos de semioses facilita, sobremaneira, o estabelecimento de hegemonias políticas, tendências de consumo, a alteração de comportamentos, a adesão a certos valores sociais, etc. Nesta situação elementos fictícios podem ser apresentados como reais ou pelo menos ensejar um debate cujas recapturas sígnicas dos elementos apresentados pode levar à inclonclusão sobre determinados aspectos relevantes do ponto vista dos interesses sociais, como ocorre, por exemplo, nas campanhas eleitorais.
Conforme o professor Murilo César Soares, da Universidade Estadual Paulista, "A TV cria o cenário onde ocorre uma campanha eleitoral" (69). O poder que a televisão ganhou nas eleições fez surgir no meio acadêmico a noção de "vídeopolítica". Há uma nova linguagem que permite ao candidato manter um contato individualizado com a massa, ao invés dos contatos em palanques, cuja linguagem possuía outras estratégias discursivas. Nas eleições de 1994, por exemplo, o horário eleitoral gratuito atingia, na programação das noites, aproximadamente 40 milhões de telespectadores. Nenhum comício ou manifestação seria capaz de atingir todo esse contingente de uma única vez. Mais do que isto, comentam alguns jornalistas que "o vídeo também se alçou à condição de canal privilegiado com os eleitores, deixando em segundo plano os próprios partidos políticos." (70)
Além do mais, como destacam muitos estudiosos, os veículos de comunicação de massa vem se transformando em vigorosos instrumentos de distorção da realidade. Afirma Giampaolo Pansa, um estudioso do assunto e que dirige o semanário italiano LEspresso, que "a TV pode ser um instrumento eficaz de defesa para quem a tem na mão e também um terrível meio de destruir a imagem alheia." (71) Desse modo, os meios de comunicação de massa tornaram-se um pilar fundamental para a manutenção hegemônica da ordem desejada pelos grupos economicamente dominantes.
Seguindo a mesma tendência do grande capital, estes meios também estão se concentrando, cada vez mais, nas mãos de uma pequena parcela de pessoas. Tais pessoas, por sua vez, em razão de sua posição de classe, representam, em geral, setores conservadores, reacionários ou aliados ao grande capital internacional, o que põe em risco a democracia pela falta de mecanismos de controle da utilização desses veículos. Parece inacreditável a concentração dos canais de TV em mãos de poucas pessoas em nossas terras: "Existem nove famílias no Brasil que, juntas, detêm 68 das 71 concessões de TV no país, com mais de 5.000 repetidoras. Somando-se apenas a família Marinho, da Globo, a família Sirotsky, dona da RBS, o grupo de Silvio Santos, SBT, e a família Saad, da Bandeirantes, tem-se a maior fatia das concessões - 46, ao todo" (72). Esses dados de 1994, basicamente, não se alteraram até hoje. O exemplo de Silvio Berlusconi na Itália - um empresário dono de três canais de TV e outras empresas, com a segunda maior fortuna do país, mas que não havia ainda se aventurado em disputas eleitorais - é paradigmático quanto ao emprego das mídias televisivas no campo político. Em 1993 ele fundou um partido, o Força Itália, e liderando um bloco de direita chamado Pólo da Liberdade - que aglutinava de democratas-cristãos a neofacistas -, lançou-se candidato, definitivamente, a menos de 100 dias da eleição. Utilizou 60% dos noticiários de suas redes para propaganda de si mesmo e deixou 14% para os adversários de esquerda. Contornando a legislação eleitoral colocou candidatos como apresentadores de programas para favorecer sua coligação e elegeu-se com tranqüilidade, vindo a governar o país de março a dezembro de 1994, na condição de primeiro-ministro (73). Embora outros analistas digam que a Itália vivia um certo momento de crise institucional, com os dirigentes políticos gerando um vazio de poder que Berlusconi soube preencher, se ele não tivesse à sua disposição tanto espaço de mídia, a situação final seria, provavelmente, bem diferente.
Esta prática de fazer-se propaganda maciça com a finalidade de promover hegemonias políticas tem como primeiro grande expoente bem sucedido Paul Joseph Goebbels, doutor em história e literatura, que veio a tornar-se ministro da propaganda e do esclarecimento popular do governo de Adolf Hitler. Goebbels mantinha sob controle a imprensa escrita, o rádio, o cinema, o teatro, as obras de literatura e a arte. Sua novidade não consistiu em censurar informações indesejadas - o que de fato ele fez com firmeza -, mas em explorar astutamente os diversos meios de comunicação em uma cuidadosa campanha articulada, que popularizou e convenceu a sociedade alemã da justeza das teses defendidas por Adolf Hitler. As técnicas adotadas por Goebbels para enquadramento de imagens e outros recursos formaram escola nesta arte do marketing político. Ele, entretanto, não dispunha das facilidades atuais de edição computadorizada das imagens, sons e movimentos, capazes de se transformar qualquer ícone de realidade em um signo potente o bastante para agenciar os interpretantes que se deseje.
Frente ao regime globalitário, a obrigação da revolta torna-se um imperativo da cidadania, exigindo-se um novo contrato social em escala planetária. O avanço de uma democracia substancial e planetária exige uma crítica da idéia mítica de progresso e modernização, tomando por critério o papel das mediações tecnológicas para o exercício mais pleno e universal da liberdade de cada pessoa. A inovação tecnológica que acelera o progresso econômico e amplia o Produto Interno Bruto dos países, tem ampliado também, sob o modelo globalitário, o número dos que ficam marginalizados do processo produtivo; e, assim, mesmo aumentando a produção da riqueza econômica, amplia-se também o número de pobres nos países que se submetem a esse modelo. A introdução de novas tecnologias não traz necessariamente melhores condições ao exercício da cidadania de todos. Para que isso ocorresse, seria necessário disponibilizar toda a tecnologia e riqueza para a realização das liberdades públicas e privadas. Trata-se pois de lutar contra os aspectos negativos de qualquer forma de progresso ou tecnologia para que os aspectos positivos de tais desenvolvimentos possam contribuir com a ampliação da liberdade de cada um dos seres humanos em qualquer lugar do planeta, combatendo a tecnocracia da atual globalização. Neste aspecto, como já destacamos, as infovias podem se tornar um espaço valioso na articulação das lutas sociais por exercícios de liberdade mais amplos, enfrentando a lógica da reprodução do modelo globalitário que se impõem também pelas infovias. A grande questão é como transitar da interferência cultural e estética, para a interferência política e econômica, e imprimir um outro curso à integração econômica mundial.
3.3 A ingenuidade da Teoria Conspiratória em face da Dialéticidade da Semiose
A tecitura da análise desenvolvida até aqui, que norteará o nosso estudo de caso, pode conduzir o leitor, que não compreendeu bem o argumento central, a concluir pela existência de uma grande conspiração mundial voltada a derrotar as ações democráticas que tentam se afirmar a partir de exercícios concretos de cidadania, exercícios esses que se revelam nas ações que visam promover uma justa participação social em toda a riqueza atualmente produzida, socializar a informação, a educação e cultura. Mais grave ainda, poderá imaginar-se a existência de um complô entre empresários, cadeias de rádio e TV, jornalistas e outros para enganar a opinião pública a todo custo, especialmente nos períodos eleitorais. A ingenuidade da teoria conspiratória reside em que ela é simples demais para compreender a complexidade dos processos de produção de subjetividade.
Assim como, milhões de pessoas pobres no Brasil votaram em candidatos neoliberais imaginando que suas propostas trariam benefícios para a sociedade, do mesmo modo milhares de jornalistas pelo mundo afora, que pouco entendem de economia ou ciência política e menos ainda das estratégias semióticas de produção de subjetividade, também acreditam nessas mesmas teses e votam nos candidatos que as defendem. Ora, não se pode afirmar que os brasileiros pobres - que buscam convencer os amigos e colegas a votarem em tais candidatos - sejam participantes de um complô universal do capital internacional; tampouco se pode afirmar que os referidos jornalistas o sejam.
A estratificação das subjetividades, isto é, o estabelecimento de uma certa identidade a partir de um conjunto dinâmico de micropolíticas, ocorre através infinitos processos semióticos em razão dos quais se constituem imaginários, inteligências, objetivos e projetos. As semioses constituem as subjetividades dos indivíduos na mesma medida em que estes podem interferir sobre elas. Certas cadeias significantes hegemônicas como, por exemplo, a afirmação de que "é preciso privatizar as empresas do estado pra que ele se volte ao atendimento da saúde e educação", perpassam inúmeras subjetividades e em cada momento de passagem a expressão ganha uma nova carga de interpretantes, agenciando novas esperanças e utopias, bem como, exorcizando velhos demônios. Não apenas a população pobre tem uma compreensão ingênua dessa expressão, mas também o tem uma significativa parcela dos profissionais das mídias, que falam de todas as estatais aplicando-lhes invariavelmente os interpretantes de anacronismo e atraso, sem ao menos conhecer a realidade dessas empresas em particular. Em seu discurso eles se traem imediatamente ao dizer que elas não dão lucro ao governo. A traição é dupla. Primeiramente, porque muitas delas são lucrativas, mesmo tendo que manter contratos que subsidiam grupos privados - contratos que prejudicam o desempenho dessas empresas estatais. E segundo lugar, porque o conceito de uma empresa estatal não é produzir lucro, mas garantir produtos ou serviços necessários ao desenvolvimento do país e à promoção da cidadania. Muitos desconhecem as razões históricas do surgimento dessas empresas, que satisfaziam as necessidades estruturais ao processo de desenvolvimento do capitalismo periférico, e assumiam uma certa concepção fordista de distribuição de renda através de um padrão de assalariamento que era considerado necessário como base para a estruturação de um mercado consumidor essencial ao desenvolvimento econômico. Vários talvez se recordem que um dos sonhos de muitos jovens da classe média era ser aprovado em um concurso público para trabalhar no Banco do Brasil, mas poucos analisam qual a importância dessa empresa estatal para o desenvolvimento do país, fornecendo crédito não para obter lucros astronômicos mas para promover a indústria, a agricultura, construção civil, a educação, etc.
O que pretendemos destacar aqui é que as pessoas assimilam informações, as interpretam e produzem novos signos, emitindo novas informações que, por sua vez, afetam outras subjetividades, agenciam novas interpretações e provocam geração de novos signos em um processo semiótico continuo que perpassa todas as relações de poder em que os indivíduos estão envolvidos, sejam micropolíticas, sejam macropolíticas. Não cabe pois falar de um complô neoliberal mundial, mas de um novo modo de produção capitalista que é também um modo de produção de subjetividades que valendo-se de novos aparelhos - como as mídias contemporâneas - são capazes de promover essas semioses hegemonizando os processos informativos, comunicativos e interpretativos, mesmo garantido existência de uma imprensa livre. Os signos divergentes, entretanto, sempre recebem um tratamento modelizante adequado para inviabilizar a ruptura do movimento semiótico hegemônico. De algum modo a divergência deverá ser recapturada ou banida. Recapturar a divergência pode significar dizer: "vejam como somos democráticos, a oposição existe, protesta e é entrevistada na TV". Mas de fato, as propostas da oposição são desprezadas como inexistentes, seus protestos são virtualizados como ações sectárias e os que aparecem na TV sequer podem influir na pauta ou edição do noticiário em que os signos que os capturam serão inseridos, no corte das imagens que irão ao ar ou na semiose simbólica que as modeliza. Não há um complô mundial entre pauteiros, jornalistas, editores de imagens e locutores dos noticiários. Trata-se de uma semiose hegemônica que os estratifica em certos lugares de poder em razão das práticas discursivas e não-discursivas por eles exercidas. As diversas empresas capitalistas que atuam na área da informação não são isentas de alguma posição ideológica em particular. Pelo contrário comercialmente todas tem seus objetivos econômicos que somente podem ser mantidos se forem asseguradas as premissas de uma certa organização política da sociedade que elas tendem a defender, e uma linha editorial compatível com os interesses dos assinantes ou dos anunciantes. Como afirma Hélio Fernandes, dono do jornal Tribuna da Imprensa, "liberdade de imprensa não existe, o que existe é liberdade de empresa; os jornais vivem de publicidade e 70% de seus anúncios são de multinacionais e de bancos. Como esses veículos podem ser independentes?" (74) Assim, a existência de linhas editoriais distintas não significa também que haja democracia substancial na comunicação, uma vez que os diversos segmentos da sociedade não podem se valer dos meios para veicular suas informações com autonomia. Quando, contudo, algumas lideranças podem emitir signos em transmissões ao vivo, encerrada a emissão começam as recapturas e modelizações que são capazes de gerar os interpretantes mais adversos e sem base indicial.
4 O Globalitarismo no Brasil
A emergência do regime globalitário no Brasil ocorre quando passam a existir três elementos que lhe são essenciais: a extensa implantação de meios de comunicação de massa, imunes a qualquer controle popular externo, concentrando hegemonicamente a audiência com a credulidade dos espectadores; o ressurgimento de uma democracia formal centrada na garantia de ocorrência de exercícios eleitorais; e, por fim, a implantação do neoliberalismo sob o receituário do Consenso de Washington. Esses três elementos articulados possibilitam a manutenção de um sistema de poder que se realimenta politicamente graças à produção de subjetividades favoráveis às reformas neoliberais e à condução ao poder do estado dos grupos que têm interesses na implantação e implementação desse modelo no país.
4.1. O Surgimento do Império Televisivo no Brasil sob a Ditadura Militar.
O rádio foi introduzido no Brasil em 1922, quando da comemoração dos 100 anos de independência. A televisão surgiu no país no início da década de 50, com a fundação da TV Tupi, em São Paulo, por ação de Assis Chataubriand. A transmissão de uma hora diária, destinada à elite, era feita ao vivo à tarde, sendo refeita à noite, pois não havia videotape. Haviam pouquíssimos aparelhos de TV, todos importados. Alguns eram colocados em locais públicos para grandes platéias, como o Jokey Club de São Paulo. A primeira telenovela exibida no Brasil, "Sua Vida me Pertence", foi adaptada de uma versão anterior para rádio. Outra novela, "O Direito de Nascer", foi o primeiro grande sucesso do gênero no país. O Repórter Esso, em sua versão para a TV, foi a primeira experiência de telejornalismo no país. Em 1960 ocorre a fundação da TV Excelsior que, dois anos depois, ganhou um prêmio na Espanha pela qualidade de seu telejornal.
A utilização da TV como veículo de divulgação de mensagens políticas e persuasão ideológica cresceu a partir do golpe de 1964 - chamado, por seus promotores, de revolução -, coincidindo com o nascimento de TV Globo, em 26 de abril de 1965. O pai de Roberto Marinho fundara em 1925 o jornal O Globo. Sua morte, alguns anos depois, obrigou o filho, com 26 anos, a tornar-se diretor do jornal. Nos anos 40 surge a Rádio Globo e em 1957 Roberto Marinho obtém do presidente Juscelino Kubitschek a sua primeira concessão de canal de TV, vindo a apoiar o seu governo. A sua segunda concessão de canal recebeu de João Goulart, o qual ajudou a depor em 1964. Conforme Armando Falcão, que foi Ministro da Justiça durante o regime militar, entre 1974 a 1979, "o Globo tinha uma posição de apoio aos governos revolucionários porque o doutor, o jornalista, Roberto Marinho apoiou a revolução de março de 1964 desde antes de ela eclodir. Ele foi revolucionário de primeira hora e continuou, portanto, como revolucionário, a apoiar os governos da revolução." (75)
Como escreve Osvaldo Biz, jornalista e professor da PUC-RS, em 1962 "Roberto Marinho, dono das Organizações Globo, assinou um acordo com o grupo norte-americano Time-Life, que investiu cinco milhões de dólares para a instalação do canal de televisão" (76). A Time-Life Company tinha interesses especiais por desenvolver atividades na Venezuela, Argentina e Brasil. O contrato que lhe concedia participação em uma empresa brasileira de comunicações, violava a constituição, uma vez que não era permitida a presença estrangeira na exploração de serviços de rádio e TV no país. Assim, conforme Sérgio Mattos, professor de comunicação, "a Globo surgiu com o financiamento de um acordo feito com o grupo Time-Life e esse financiamento chegava ao ponto de que a emissora Globo do Rio de Janeiro, só a emissora, tinha uma montagem de recursos da ordem de seis milhões de dólares. Enquanto que a melhor estação de televisão do grupo Tupi, que era a segunda maior rede na época..., tinha sido montada por 300 mil dólares." (77)
A ditadura militar, que empenhou-se por integrar o Brasil através das telecomunicações, estabeleceu como meta viabilizar que, em 1970, os brasileiros pudessem assistir pela televisão "ao vivo", via satélite, a copa do mundo de futebol e que o Brasil pudesse transmitir ao mundo imagens, "ao vivo", de seu carnaval. Ainda nos primeiros anos da ditadura militar, uma comissão parlamentar investigou o acordo entre a Globo e o grupo Time-Life, concluindo que o conteúdo do contrato era ilegal. Os generais, contudo, foram brandos e o caso terminou apenas em 1969, sendo a sociedade entre as empresas dissolvida, ficando Roberto Marinho com o controle total sobre a Rede Globo de Televisão. Deste modo, comenta Osvaldo Biz, "...nasceu uma aliança que nunca mais foi desfeita. De um lado, a Rede Globo ampliava cada vez mais o seu poderio. De outro lado, a Globo emprestava todo o apoio necessário para legitimar os governos militares, surgidos dos conchavos do quartéis e não da expressão popular registrada nas urnas." (78) Em contrapartida ao crescimento da Globo, as TVs Tupi e Excelsior continuavam em lento declínio.
Após o incêndio que destruiu os estúdios da Globo em São Paulo, a rede centralizou a produção no Rio de Janeiro e com o seguro do sinistro organizou uma nova emissora. Com o início das transmissões por satélite em 1969, que possibilitaram ao país uma ligação nacional e internacional, direta e em tempo real, parte da programação passou a ser veiculada em rede, integrando várias retransmissoras no país. Assim, o Jornal Nacional, que surgiu em setembro de 1969 e passou a ser transmitido para cidades integradas na rede nacional da emissora em 1970, converteu-se, segundo o marketing da própria Globo, "...num dos patrimônios da sociedade brasileira" (79). Osvaldo Biz destaca que "a dimensão deste patrimônio foi reconhecida pelo ex-presidente Médici ao constatar que enquanto o Jornal Nacional mostrava atentados e atos de violência em outros países, no Brasil tudo continuava tranqüilo" (80). A famosa declaração de Médici é esta: "Sinto-me feliz, todas as noites, quando ligo a TV para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranqüilizante após um dia de trabalho." (81)
O historiador Rene Dreifuss, analisando esta situação, afirmou que "a verdadeira vida política do Brasil não estava sendo apresentada. Por exemplo, não tínhamos a voz dos conflitos, os conflitos normais da vida diária. Tínhamos uma voz sim, só que era uma voz pré-produzida." (82) Segundo Sérgio Mattos, "a censura cortava não apenas trechos de programas, notícias que não eram veiculadas, mas criou uma tendência no Brasil de a gente não ter a história registrada daquele período" (83). Com efeito, a TV Excelsior foi a única rede que fez oposição ao golpe militar e, justamente por isso, a sua concessão foi cassada em 1970, ano em que a ditadura promoveu a campanha "Brasil : ame-o ou deixe-o". A censura aos meios de comunicação fazia com que certas pessoas desaparecessem da mídia, como se não mais existissem. Sobre isso afirmou Chico Buarque: "eu já era uma persona non grata ao governo. Mas o governo não podia me proibir de existir. Eles proibiram minhas músicas. A censura proibiu algumas músicas minhas. A censura que era oficial, do governo. Agora, a TV Globo se encarregou de ser mais realista que o rei e de reforçar essa censura proibindo o meu nome..." (84)
Por outro lado, as novelas da Globo conquistavam cada vez mais audiência. Novelas como "Selva de Pedra" e "Gabriela" envolveram o público com recordes absolutos de audiência que alcançavam as marcas de 93% a 96% no IBOPE, significando que aproximadamente 50 a 55 milhões de pessoas estavam assistindo o mesmo programa, no mesmo horário todos os dias, ligados na mesma emissora. Em 1989 a Globo chegou a ter suas novelas veiculadas em 52 países. Conforme Washington Olivetto, "o fascínio que existe pelas novelas no Brasil é pela característica do Brasil... O Brasil às vezes dá a sensação de que ele não foi descoberto, ele foi escrito. O Brasil parece um país ficcionário..., às vezes, até parece um misto Gabriel Garcia Marquez com Franz Kafka. Então esse fascínio pela ficção invade a vida das pessoas, a ponto de elas se hipnotizarem pelas novelas." (85) Nestas novelas aparecem todas as classes sociais e vários cenários utópicos são desenhados. Justamente por isso, por contemplar os diversos segmentos sociais com sua programação, o projeto da Globo se consolidou. Conforme Maria Rita Kehl, o projeto da Globo se consolidou "porque não é um projeto que se esqueceu da pobreza, da periferia... Porque se esquecesse, não daria certo... Mas contemplou, maquiando a pobreza e apontando uma perspectiva de ascensão pelo trabalho e pelo investimento. É como se o Brasil tivesse tentado viver, na forma de farsa, o que foi o sucesso mesmo do self made man em outra época do capitalismo." (86) Comentando este projeto e suas mediações, afirma a autora: "a impressão que eu tenho é que a Globo conseguiu melhor do que qualquer política repressiva, de proibição, de censura, alterar a consciência do brasileiro..." sobre seu próprio mundo. (87)
Em 1980 a TV Tupi faliu e sua concessão foi cancelada. Havia, então, duas concessões a serem feitas pelo presidente. O grupo Abril, que edita a revista Veja, esperava obter uma delas, mas como a revista fizera críticas ao regime militar, Figueiredo decidiu entregá-las a outros grupos. Uma ficou com o grupo Bloch e outra com o grupo Silvio Santos, o qual trabalhara na Globo até 1975. Ambos não criticavam o regime. Aliás, sobre fazer criticas ao governo, afirmou Armando Falcão a respeito da Globo: "O doutor Roberto Marinho nunca me criou qualquer tipo de dificuldade. Eu era ministro censor e ele era diretor do [jornal O] Globo, da televisão Globo, da rádio Globo, das rádio Mundial, da rádio Eldorado... Ele nunca me criou a menor dificuldade." (88) Contudo, mesmo enaltecendo regularmente as obras do regime, a Globo também foi censurada no período da ditadura, como no caso da novela Roque Santeiro, por exemplo. No período pós-ditadura, todavia, ela recorreu à tese de que também foi censurada para questionar, perante a sociedade, a tese de que fora conivente com a ditadura militar.
Ampliando o número de suas retransmissoras, a Rede Globo passou a cobrir a maior parte do território nacional. Em 1992, ela tinha 15 mil empregados, 500 atores e escritores, 5 filiais, 63 retransmissoras, cobria 99,2% do território brasileiro e era captável por 99,9% dos televisores brasileiros. Nos anos de 88 a 92, alcançou 78% de audiência e produziu 95% dos programas nobres líderes de audiência, participando em 75% da renda do mercado publicitário. Em muitos lugares do país, até hoje, os canais de televisão são os únicos veículos de acesso às informações diárias e o único canal captado pela maioria continua sendo a Globo.
4.2. A "Transição pelo Alto" e as parcerias de Roberto Marinho com ACM e Fernando Collor.
Os massivos movimentos de resistência democrática que passaram a se desenvolver no final dos anos 70, obrigaram uma transição hegemônica da ditadura militar para o restabelecimento da democracia formal. Nos noticiários da Globo, contudo, as imensas manifestações de protesto contra a ditadura não ganhavam destaque e as ações grevistas eram modelizadas com interpretantes que agenciassem uma rejeição social àquelas ações. Somente quando o poder da sociedade civil obrigou as forças que estavam perdendo a hegemonia a uma transição negociada - com a anistia política e a reformulação partidária - a Globo passou a veicular as notícias perseguindo garantir a hegemonia da transição pelo alto. Assim, mesmo os primeiros grandes comícios pelas eleições diretas para presidente - já após a anistia e o surgimento dos novos partidos - não ganharam espaço nos noticiários da emissora. A transição pelo alto se consolidou com a derrota das "diretas-já" e com os militares perdendo a eleição indireta para presidente para a chapa Tancredo Neves e José Sarney, vindo o presidente a falecer antes mesmo de sua posse efetiva. A semiose produzida sobre a morte de Tancredo agenciava um sentimento de unidade nacional em torno da Nova República, como uma transição democrática a ser assegurada sob o comando de José Sarney, membro do Partido da Frente Liberal, que havia sido presidente do PDS e, antes disso, destacado membro da ARENA, partido de sustentação da ditadura militar. Completava-se, assim, a transição: líderes políticos que apoiaram a ditadura militar agora estavam agrupados em um partido liberal e chefiavam o governo do país em uma aliança com significativa parcela da oposição democrática que perdera espaço com a morte de Tancredo Neves, apoiados por um império midiático televisivo. A Globo, que antes apoiara a ditadura militar, torna-se agora um baluarte da defesa do liberalismo político que será propagado como projeto hegemônico pelo país. Antes que a nova lei de concessão de canais retirasse o poder de presidente em concedê-los, Sarney fez 90 concessões de TV, tendo sido duas para grupos sobre seu controle. Todos passam a agir sob uma nova inspiração política liberal e muitos vão se afiliar à poderosa Globo.
Conforme o jornalista Gabriel Priolli, "saem os militares, entram os presidentes civis e a relação é exatamente a mesma. Quer dizer... A Globo não tem um vocação necessariamente militarista ou ditatorial. Mas tem uma vocação governista. Onde tem governo está a Rede Globo; se não tem governo, saiu do governo, já não interessa mais. Ela é habilíssima em fazer um casamento de interesses com o governo. E o governo também precisa [dessa união], porque qualquer governo de um país de 150 milhões de habitantes, que tem quase 100 milhões de telespectadores, precisa de 70% de audiência." (89)
Após sua eleição, Tancredo Neves reuniu-se com Roberto Marinho e Antonio Carlos Magalhães em um almoço. Como fruto das conversações, Tancredo anunciou que seu ministro da Comunicação seria Antonio Carlos Magalhães. Sarney que assumiu a presidência, após a morte de Tancredo, manteve a mesma indicação para aquela pasta. Após aquele almoço, as relações de ACM com Marinho renderam bons frutos para ambos. Dois casos se tornaram notórios internacionalmente - a partir de um documentário exibido pela televisão inglesa Channel Four em 1993 -, um envolvendo a NEC do Brasil e outro a TV Bahia.
Conforme o documentário, a NEC do Brasil - uma parceria de um grupo japonês com a Brasil Invest, dirigida por Mario Carneiro - era um dos maiores fornecedores de equipamentos de telecomunicações para o governo. Os japoneses denunciaram ao Ministério da Comunicação que estariam ocorrendo desfalques financeiros na Brasil Invest, o que levou o governo, por iniciativa de Antonio Carlos Magalhães, a suspender os pagamentos e encomendas governamentais à NEC, que tinha no governo o seu principal cliente, dependendo de suas demandas e pagamentos para sobreviver. Romulo Furtado, ex-ministro, que considerou justa a atitude do governo, afirmou: "Eu acredito que foi justo. Porém, acho que muitas organizações corruptas não foram punidas tão duramente quanto a Brasil Invest o fora neste momento." (90) Mario Carneiro teve, então, que vender os seus investimentos o mais rápido possível e as organizações Globo adquiriram a empresa. Sem recebimentos e sem encomendas, a Globo adquiriu a NEC por menos de um milhão de dólares, conforme o documentário. Contudo, após o restabelecimento dos pagamentos e encomendas ela teria passado a valer, segundo a mesma fonte, cerca de 350 milhões de dólares. Fato é que o custo da transação nunca ficou publicamente esclarecido, podendo esses números serem tomados como mera especulação. Indubitavelmente, contudo, foi um negócio bastante lucrativo para a Globo.
Por outro lado, a Globo tomou a decisão, em 1987, de suspender unilateralmente o contrato que manteve por 18 anos com a TV Aratu em Salvador, na Bahia, provocando uma queda de 80% nos ganhos comerciais daquela empresa. A nova afiliada da TV Globo na região passou a ser a TV Bahia, controlada pela família de Antonio Carlos Magalhães. Sobre esta relação empresarial Magalhães afirmou: "Eu, no caso, sou um sócio e o Roberto Marinho é meu amigo há mais de 30 anos." (91) Com efeito, ACM era ministro das comunicações e pretendia retornar ao posto de governador da Bahia - o que veio a ocorrer com sua reeleição. Houve denúncias, contudo, que durante a campanha a sua emissora, afiliada à Globo, e outros canais de mídia aliados não ficaram isentos. O intenção a longo prazo de ACM era a projeção de si e de seu filho, Luis Eduardo Magalhães, no cenário político nacional. Eleito deputado federal, Luis Eduardo foi lançado pelo PFL, em março de 1998, como candidato do partido à presidência do país em 2.002. Contudo, pouco tempo depois veio a falecer.
Por fim, as relações de Roberto Marinho com a família Mello também eram bem antigas. Na década de 30 ele e Arnon de Mello - pai de Fernando Collor - tinham em conjunto um empreendimento imobiliário: "Desta amizade, resultou mais tarde, a possibilidade de exploração de um canal de televisão em Alagoas, filiado à Rede Globo." (92) Valendo-se do poder de um canal de TV participante daquela rede, contando com o jornal impresso "Gazeta de Alagoas", que atingia regiões politicamente estratégicas, e com o apoio de outros veículos comunicativos, a família Mello consolidaria seu poder político em Alagoas. Neto de Lindolfo Collor e filho do ex-senador Arnon de Mello, Fernando Collor que, em 1975, casou-se com Lilibeth Monteiro de Carvalho - filha de um sócio de Roberto Marinho - seguirá a tradição política da família. Com o apoio das mídias familiares e de seus aliados, Collor será eleito governador do estado.
4.3 A Ditadura Democrática dos Mass Media e a Eleição de Collor.
Em 1987, Fernando Collor de Mello, já governador de Alagoas, aparece no programa do Chacrinha e a partir de então reaparece outras vezes em transmissões nacionais da TV Globo. O papel destacado que esta emissora viria a ter na sua eleição como presidente e a capacidade da mídia eletrônica orientar as hegemonias políticas no país levaram vários analistas a afirmar que "o Brasil se livrou da ditadura militar, mas entrou em plena ditadura dos meios de comunicação de massa" (93). De fato, a ascensão de Fernando Collor de Mello à presidência é um exemplo da importância política hegemônica das mídias e mostra o primeiro forte movimento do regime globalitário no país, finalizando a Nova República, cumprindo uma transição da ditadura militar para outra forma de hegemonia autoritária, suportada pelas novas tecnologias da informação. O perfil neoliberal de seu governo e a utilização de expedientes formalmente democráticos para introduzir reformas preconizadas pelo Consenso de Washington são também características peculiares ao regime globalitário, cuja implantação no país avança com seu governo.
Em abril de 1989, Collor apareceu duas vezes em cadeia nacional de rádio e TV; a primeira vez no horário político do Partido Trabalhista Renovador, passando de 7% para 20% nas pesquisas de intenção de voto; na segunda vez no horário do Partido Social Cristão, atingindo então 37% das intenções de voto junto ao eleitorado (94). Roberto Marinho, por sua vez, não permitia a realização de debates em sua emissora para não prejudicar o trabalho de mídia que já estava sendo feito há algum tempo, especialmente a partir do Globo Repórter que lançou definitivamente Fernando Collor por todos os recantos do país, caracterizando-o como o "caçador de marajás", ainda antes dos dois programas eleitorais acima mencionados. Ao invés de debates, a emissora instituiu o Palanque Eletrônico, no qual os candidatos eram sabatinados pelos jornalistas. Conforme Osvaldo Biz, "a não participação da Globo na promoção dos debates era compensada por espaços cada vez maiores, oferecidos ao seu candidato nos noticiários. Os minutos foram cronometrados por outros candidatos e diante da evidência do favorecimento pró-Collor, a Globo foi advertida pelo Superior Tribunal Eleitoral". (95) Somente no segundo turno a emissora aceitou promover dois debates, veiculando uma edição compactada do último com a finalidade de promover o seu candidato.
Como alguns estudos demonstraram, não foi apenas a Globo que atuou na área de jornalismo com vistas a gerar semioses favoráveis a Fernando Collor. Um artigo de Bernardo Kucinski, professor da Escola de Comunicação e Arte da USP e correspondente, na época, do jornal inglês The Guardian, mostra claramente como a ação de alguns jornais e canais de TV foram elementos decisivos no resultado da disputa presidencial entre Collor e Lula. O professor destaca que muitas reportagens inconsistentes publicadas no jornal O Estado de São Paulo eram exibidas e utilizadas "nos programas gratuitos de Collor e Ferreira Netto, como base supostamente documental das falsas acusações. Foi também o Estado [de São Paulo] que sinalizou as linhas mestras do ataque: caracterizar o PT como atrasado e antidemocrático, Lula como ignorante e a militância petista como uma milícia organizada para a violência". (96)
Ao contrário das TVs de canal aberto, os jornais escritos, entretanto, tem públicos diferenciados e se distinguem através de diferenças ideológicas - em alguns casos, acentuadas por seu próprio marketing. Não sendo concessões públicas podem, também, apoiar certos candidatos, dentro de alguns limites. No quadro do segundo turno, os jornais conservadores apoiariam Collor, ao passo que jornais com um perfil mais aberto penderiam a destacar, em certas matérias, alguns interpretantes favoráveis a Luis Ignácio Lula da Silva. Conforme Kucinski, houve uma espécie de "unanimidade" em torno de Collor. Segundo ele, nas vésperas da eleição, "frente a iminência da vitória de Lula", muitos jornalistas e editores intensificaram o "terrorismo ideológico e a difamação". Assim, no programa Ferreira Neto, por exemplo, Collor acusou abertamente o Partido dos Trabalhadores de pretender confiscar as cadernetas de poupança. Jornais renomados atribuíram a Luis Ignácio uma "proposta de arrocho salarial", e afirmaram que as correntes majoritárias de seu partido tinham a intenção de: fazer "tudo o que estiver a seu alcance para cercear e se possível suprimir a liberdade de expressão". (97)
No dia da eleição, O Estado de São Paulo publica na primeira página um texto, em itálico, conclmando o eleitor a "votar na revolução liberal". A chamada na capa para um artigo com este título na página 3 afirma: "Não será difícil escolher qual a melhor proposta para o País nas eleições presidenciais de hoje. Fernando Collor de Mello deixa entrever de suas posições a compreensão de um mundo interdependente, enquanto Luiz Inácio Lula da Silva e aqueles que com ele fazem a sua caminhada para trás só sabem acenar com Estado e mais Estado. A escolha pela modernidade terá conseqüências positivas para o desenvolvimento brasileiro." (98) Na página 3 explica que o socialismo com liberdade, proposto pelo PT, significa "... o Estado tudo controlando, desde a imprensa, os serviços médicos, as escolas e as indústrias ditas estratégicas - expressão que lembra os governos militares." Destacando que "o voto pela modernidade será assim o voto dado à grande revolução liberal..."esclarece que tal revolução "será obra de um movimento popular, amplo e generoso como este que se formou por detrás do sr. Fernando Collor de Mello." (99)
Todavia, a edição do último debate, realizada pela Rede Globo, foi a peça decisiva. Conforme uma pesquisa do Instituto Gallup, feita após o debate e antes da edição apresentada pelo Jornal Nacional, a intenção de votos em Collor caía para 44,9% ao passo que a opção por Luis Ignácio subia para 44,4%, vindo em trajetória ascendente. Quanto aos que haviam assistido o debate, 41,9% consideravam que Collor tinha se saído melhor, ao passo que 38,8% afirmavam que Lula fora o melhor. O mais importante da pesquisa entretanto era que o petista tinha sido considerado o vencedor por três entre cada cinco indecisos. Como disse Carlos Eduardo Matheus, diretor do Gallup, "são esses votos que decidem a eleição hoje". (100) Considerando a permanência dessas tendências, Luis Ignácio seria eleito presidente.
Contudo, na noite de 15 de Dezembro, sexta-feira, a Globo levou ao ar no Jornal Nacional a sua peça semiótica. "...Sob o pretexto de apresentar os melhores momentos do segundo debate, acontecido na noite anterior, a Globo mostrou os piores momentos de Lula e os melhores momentos de Collor." (101) Tratava-se de uma flagrante manipulação, evidente para todos os que assistiram o debate completo e posteriormente viram a montagem. No compacto de seis minutos Collor foi até mesmo favorecido com um minuto a mais que o oponente.
Conforme Carlos Matheus, o petista não perdeu as eleições em razão de seu desempenho no último debate. Segundo ele, "Lula perdeu a eleição na reedição sintetizada do último debate apresentada sexta-feira pelos canais de tevê. Aí é que se deu a impressão que Collor tinha ido muito bem e Lula muito mal. A reedição não foi jornalismo, mas propaganda." (102) Segundo Matheus, "havia uma tendência de uma aproximação entre os dois candidatos e no dia do debate eles estavam apenas a 1% de diferença. Com este resumo do debate na sexta-feira, a pesquisa do sábado mostrou uma abertura de diferença e no domingo a diferença, que era de um ponto, aparecia como quatro pontos." (103) Durante o mesmo telejornal, a Globo apresentou uma pesquisa - feita pelo Instituto Vox Populi, que, conforme Osvaldo Biz, era ligado a Collor - cujo resultado, a partir de um levantamento feito por telefone logo após o debate, mostrava a vitória de Fernando Collor de Mello. Além de manipular a edição do debate, a Globo induzia a opinião pública ao erro, fazendo imaginar que aquela pesquisa apresentasse um perfil do conjunto do eleitorado, uma vez que com o seu método de levantamento de informação, através de chamada telefônica, a amostra ficava totalmente prejudicada para universalizações - inclusive para o conjunto dos que assistiram o debate -, pois a opinião de grande parte da população, que não dispõe de telefones, não foi considerada. A pesquisa por sua vez não perguntou diretamente quem havia ganho o debate ou em quem o eleitor votaria, mas qual dos dois candidatos tivera o melhor desempenho, qual apresentou idéias mais claras e qual era o mais preparado. Neste contexto soa irônica a frase proferida pelo jornalista da Globo que mediou o debate: "o nosso trabalho como profissionais da televisão foi e continuará sendo o que fez a televisão nesses dois debates, manter aberto esse canal de duas mãos entre o eleito e os eleitores para que melhor se exerça a democracia." (104)
No Jornal Hoje, que fora ao ar às 13:00 horas, o compacto havia sido editado de forma diferente, com o trabalho supervisionado por Vianei Pinheiro, que atuou na TV Globo de São Paulo entre 1987 e 1989. Conforme Pinheiro, "entre a edição do Jornal Hoje, na hora do almoço, e a edição do jornal da tarde, o resumo do debate foi alterado pelo Alberico Souza Cruz e pelo Ronald de Carvalho, na essência. Não houve aqueles critérios básicos que nortearam a edição da manhã, que eram: o mesmo tempo para os dois candidatos, a questão da pergunta, da réplica e da tréplica. E ficou uma coisa totalmente desbalanceada, virou uma peça publicitária e não o resumo de um debate." (105) Comentando esta mesma edição levada ao ar naquela noite, afirmou armando Rollemberg, "foi um flagrante, um atentado assintoso à ética jornalística. Uma manipulação sem vergonha, desavergonhada." (106) Por sua vez, Armando Nogueira, que era redator chefe do jornal e que trabalhava na emissora desde 1967, ficou revoltado. Em seu depoimento registrado no documentário Brasil: Além do Cidadão Cane, Nogueira diz o seguinte: "Eu, quando fui ao dono da empresa protestar contra a exibição do compacto, que foi posto no ar à minha revelia; eu, quando fui conversar com o dono da empresa, doutor Roberto Marinho; eu disse: Doutor Roberto Marinho, eu não vi esse compacto. Se eu tivesse visto, teria impedido que fosse pro ar. Se eu não pudesse ter impedido, eu diria o que eu vou dizer agora: a Rede Globo foi infeliz, fez uma edição burra, burra, porque não precisava ser burra." (107) No mesmo documentário Gabriel Priolli afirma que "... em hipótese alguma, numa sociedade democrática, em uma televisão democrática, pode se admitir uma manipulação tão grosseira como foi feito pela Globo naquela noite." (108) Conforme o Jornal do Brasil, um dos editores do Jornal Nacional, referindo-se à montagem levada ao ar, afirmou: "nunca fiz um serviço tão sujo na minha vida". (109) Por sua vez, o encarregado da montagem daquela edição, Otávio Tostes, afirmou: "isso não é jornalismo" (110). Ao final daquele processo, Pinheiro foi demitido pela emissora, por ter feito uma denúncia pública do episódio, Armando Nogueira foi aposentado como chefe de redação, após ter trabalhado 22 anos na Rede Globo e Alberico Souza Cruz, que foi o responsável pelo compacto do debate exibido no Jornal Nacional, passou a ocupar as funções anteriormente exercidas por Nogueira.
O outro expediente adotado, o da utilização do resultado de pesquisas como propaganda eleitoral, induzindo o eleitor a votar naquele que estaria em primeiro para "não perder o voto"e para sentir-se satisfeito por votar em quem ganhou, ensejou o surgimento de vários institutos de pesquisa de opinião no país, muitos dos quais - prestando serviço para comitês eleitorais específicos - ignoram parâmetros científicos na coleta das amostras para chegar a resultados favoráveis aos candidatos apoiados por esses comitês, seja desrespeitando a correspondência da amostragem ao conjunto do eleitorado, seja elaborando questões capciosas. Acerca dos institutos de pesquisa de opinião - que ganharam notoriedade nos jornais - afirmoou Janio de Freitas em uma entrevista: "... acredito que esses institutos que estão aparecendo nos jornais tem uma legalidade plena. Mas do ponto de vista da vigilância da Justiça Eleitoral, das instituições políticas governamentais sobre as pesquisas, aí sim eu acho que há uma brecha muito grande. Acho que essas pesquisas mereceriam uma fiscalização muito maior do que a que existe, se é que exista alguma... Mesmo que exista, obviamente é da maior insuficiência." (111)
Um caso emblemático de manipulação de pesquisas eleitorais, circunstancialmente articulado à tentativa de fraude eleitoral, ocorreu no Rio de Janeiro em 1982. Conforme Luis Carlos Cabral, produtor da TV Globo no Rio, a emissora "...já antes das eleições, ela estava dando de uma maneira distorcida os resultados das pesquisas do IBOPE". Após a eleição, problemas na apuração e contabilização dos votos, provocaram atrasos na divulgação dos resultados. Enquanto isso, o jornal O Globo, a Rádio Globo e a TV Globo veiculavam que Brizola seria derrotado. Conforme Cabral, "depois da eleição houve, como é notório, uma tentativa organizada... pelos membros remanescentes do sistema de informação, de tortura, ligados ao poder militar, à ditadura, do que havia de mais cruel nesse sistema militar; eles articularam um golpe sobre o voto popular." (112) Com efeito, as pessoas que organizaram o esquema de fraude tinham acesso aos computadores que contabilizavam a apuração oficial da eleição. Essas pessoas, segundo o documentário exibido pela TV inglesa Channel Four, tinham confiança em que os dados divulgados pela Rede Globo seriam aceitos como verdadeiros pelo conjunto da sociedade. O esquema, entretanto, foi descoberto e Leonel Brizola foi diplomado como governador do Rio de Janeiro.
Outro expediente explorado pelas mídias, dissuadindo uma posição favorável a Luis Ignácio entre os indecisos na eleição de 1989, foi a operação de resgate do empresário Abílio Diniz que havia sido seqüestrado. Como destacou Bernardo Kucinski: "Boris Casoy atacou de entrevista com Saulo Ramos, vinculando o PT ao seqüestro, através do artifício de dizer que devemos ser cautelosos e evitar ilações. O [jornal] Estado [de São Paulo] encampou as declarações do delegado Fleury implicando o PT. A chamada principal com o título "Polícia cerca seqüestradores de Diniz"tinha 38 linhas, sendo que 15 delas consideravam a possível relação do PT com o caso. Diz o texto: "O secretário da Segurança, Luiz Antônio Fleury, disse que foi apreendido com os presos material de propaganda do PT". Em seguida apresenta a posição dos dirigentes do partido e do ministro da Justiça: "Dirigentes do PT negaram com veemência qualquer envolvimento no episódio. O ministro da Justiça, Saulo Ramos, afirmou que o detalhe pode ser uma armação dos marginais. Outro jornal destacou na primeira página que Um padre da Zona Sul, simpatizante do PT, foi avalista da casa alugada pelos seqüestradores" (113). O Estado de São Paulo, por sua vez, afirmando que procurou o sacerdote em sua casa sem tê-lo encontrado, destacou, na última frase da matéria, que "Os outros freis que vivem com o religioso também não estavam na casa, que, na fachada, exibe uma enorme pichação com os dizeres: Lula presidente, Frente Brasil Popular". (114)
Na ampla cobertura feita pelo O Estado de São Paulo sobre o episódio, nas páginas 39 a 44 (descontando-se uma página exclusiva de publicidade), a maior parte dos textos vincula a realização do seqüestro o grupo político chileno Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), embora cite fontes que indicariam como seus autores membros do grupo Frente Patriótica Manuel Rodriguez (FPMR) (115). Contudo, as três manchetes da página 42 estampam: "Fleury diz ter encontrado material do PT", "Brasil analisa atuação do MIR", "Facção desmente envolvimento". Ao lado da foto de cinco seqüestradores, têm-se o primeiro parágrafo, da primeira matéria: "O secretário de Segurança Pública, Luiz Antonio Fleury Filho, revelou que foram apreendidas bandeiras, faixas e sacolas com buttons e adesivos de campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores, encontrados no apartamento localizado na Rua Charles Darwin, próximo ao sobrado onde o empresário era mantido em cativeiro. Vários políticos ligados ao PT contestaram as insinuações de que os seqüestradores poderiam ter ligações com o partido. Pensamos que os casos Lubeca e Mirian já fossem o bastante, afirmou o secretário-geral do PT, José Dirceu. Se a eleição for perdida dessa forma, será criado um clima insustentável no País, acrescentou." (116) A matéria se dedica, então, a explorar supostas relações do PT com a realização do seqüestro.
Mais abaixo ela destaca que para o ministro da Justiça, Saulo Ramos, "... o fato de que um sequestrador estaria usando camiseta do candidato e terem material de propaganda em seu poder nada tem a ver com o PT ou com a Frente Brasil Popular" (117). Conforme a legislação vigente na época, segundo Ramos, se o seqüestro fosse caracterizado como ato político haveria atenuantes na punição. Em razão disso poderia haver intenção deliberada dos seqüestradores em caracterizá-lo deste modo, fazendo uma "armação".
A matéria continua argumentando, entretanto, em um parágrafo inteiro, que: "Policiais da Delegacia Anti-seqüestro informaram que, além do material de campanha do PT, foram apreendidos relatórios, livros técnicos e manual de guerrilha. Foram encontrados ainda quatro agendas com nomes de políticos do partido, como Eduardo Matarazzo Suplicy, presidente da Câmara Municipal de São Paulo, do vice-prefeito de São Paulo, Luis Eduardo Greenhalg, e do secretário-geral do PT, José dirceu." (118) Todavia, no parágrafo seguinte afirma-se que "Romeu Tuma, diretor-geral da Polícia Federal, disse não ter informações sobre qualquer ligação dos seqüestradores de Abílio Diniz com grupos políticos brasileiros." (119) A frase ocupa 5 linhas de uma coluna padrão inserida em uma cobertura de seis páginas. Mais à frente o jornal cita uma declaração de Lula: "Não tenho nada que ver com o MIR nem com o PIR. Mas vou ficar de orelha em pé porque esta pode ser mais uma maracutaia contra o PT" (120). Esta frase ocupa também apenas cinco linhas. A matéria reportou ainda uma declaração de Suplicy: "Desde o primeiro dia Lula prestou solidariedade à família de Abílio Diniz. Ele e nós do PT repudiamos o seqüestro e não admitimos qualquer ilação de que temos algo que ver com este crime." (121) E sobre agendas com telefones que teriam sido apreendidas, afirmou: "Meu telefone está na lista. Qualquer pessoa pode botá-lo numa agenda." (122)
Com efeito, esta informação sobre materiais apreendidos e agendas já havia sido apresentada com variações na página 39 e retornará como argumento em outra passagem : "Segundo Luis Antonio Fleury Filho, foram encontrados no apartamento em que estavam os quatro sequestradores bandeiras, faixas e sacolas com bottons e adesivos do Partidos dos Trabalhadore, o PT. Além de material de propaganda política, havia ainda quatro agendas com nomes de políticos do partido." (123) Agrega-se a observação de Saulo Ramos e novamente cita-se a declaração de Lula: "Não temos nada a ver com o MIR nem com o PIR". A frase aqui está no plural e não no singular, como na outra passagem. Na mesma página, sob a manchete "Família ajuda negociações" lê-se: "Na casa em que está a família de Abílio Diniz e membros da diretoria do Pão de Açúcar surgiu ontem uma discussão envolvendo o PT. O irmão de Abílio, Alcides Diniz, que se mostra mais radical, incrimina o Partido dos Trabalhadores e afirma que foi apreendida uma agenda com nomes de integrantes deste partido. Já a ala da diretoria do Pão de Açúcar ligada a Abílio Diniz, nega essa versão e acusa Alcides. Isso é ridículo, o Alcides está louco, disse Bresser Pereira, amigo pessoal de Abílio, preocupado com o escândalo político que poderia advir da situação. Bresser é filiado ao PSDB". Ao afirmar que a posição de Bresser, membro do PSDB, resulta de uma preocupação com um possível escândalo político, o jornal possibilita entender que - estando o PSDB, em geral, apoiando a Candidatura de Lula naquele momento - seria do interesse de Bresser que essa versão não se difundisse - daí a importância em sublinhar que Bresser era filiado ao PSDB, partido que já havia sido criticado pelo jornal em outras oportunidades por aliar-se ao PT no segundo turno (124). Mais à frente o jornal destaca que Alcides, ao falar pelo telefone com o pai, afirma: "Pai, aqui está tudo bem. O Abílio está bem e tudo não passa de uma manobra do PT." Após ser repreendido por Bresser, continuaria a conversa chegando a fazer uma piada: "Com o dinheiro desse seqüestro o arcebispo de São Paulo, ligado ao PT, poderá até virar papa." (125)
Ora, estas agendas realmente existiram ? E se existiram eram realmente dos sequestradores ? Que outros telefones lá estariam além dos mencionados ? Em quantos apartamentos na região do Jabaquara, em São Paulo, não haveria material de propaganda, tanto de Lula quanto de Collor ? Que relatórios e livros técnicos eram esses que foram apreendidos junto com um manual de guerrilha ? Que importância a matéria deu à informação do diretor-geral da polícia federal que afirmou não ter informações sobre qualquer ligação dos seqüestradores de Abílio Diniz com grupos políticos brasileiros ? Seria esse episódio similar ao que ocorreu com os coquetéis molotov no Conjunto Habitacional Juta II, em 1997, que analisaremos em detalhe posteriormente ?
Com efeito, na última página da matéria, sob o título "Diniz, esportista vencedor, sem medo", lê-se no meio do texto que o próprio Abílio Diniz votara no PT em 1988 e que inclusive havia ajudado a eleger Erundina como prefeita da cidade de São Paulo e que estava elaborando um Plano Econômico que envolvia, entre outros ítens, distribuição de renda, solução ao problema da dívida externa e algumas medidas liberais: "Últimamente, Diniz havia preparado um plano econômico para fornecer ao futuro presidente da República. Nesse plano pregou o aumento da produtividade, distribuição de renda, abertura da economia ao capital externo, solução do problema da dívida externa e redução do papel do Estado. Não declarou seu voto no primeiro turno. No ano passado ele deu seu voto ao PT, ajudando a eleger Luiza Erundina para a prefeitura de São Paulo. De novo, tinha uma boa justificativa: Eu era contra a eleição de Paulo Maluf, que representa um retrocesso". (126)
De fato, o seqüestro de Abílio Diniz, configurou-se assim como um objeto dinâmico que possibilitou a geração de muitos ícones e símbolos que foram modelizados para agenciar interpretantes de medo e insegurança na parcela do eleitorado indeciso que tencionava votar em Luis Ignácio ou entre a parcela que já havia se decidido por esta opção, mas sem muita convicção. Analisando-se este episódio a partir da teoria da dissonância cognitiva de Leon Festinger (127), a vinculação semiótica do PT ao seqüestro feita por Casoy gerava uma dissonância cognitiva entre aqueles que estavam se decidindo por votar em Luis Ignácio, mas mesmo gerando esta dissonância, alertava Casoy que se deveria evitar ilações. Com a dissonância estabelecida aquele eleitor busca uma outra fonte de informação que, confirmando ou rejeitando a plausibilidade da hipótese, o ajude a sair desse estado de dissonância. No dia seguinte encontra esta outra fonte, com a informação estampada na banca de jornal. Não apenas a polícia encontrou material do PT com os sequestradores como descobriu que um padre, "simpatizante do PT", atuara como avalista para que os seqüestradores pudessem alugar a casa que serviu de cativeiro durante o seqüestro do empresário. A dissonância tende a se dissipar pois neste imaginário se estabelece uma semiose, que estaria suportada por signos indiciais, de que o PT realmente estava relacionado com o seqüestro de Abílio Diniz. As afirmações do secretário de segurança pública, Luis Antonio Fleury, operavam como o argumento de autoridade final sepultando de vez qualquer dúvida. Era mais seguro votar em Collor do que em Lula. Com certeza, esta semiose e os interpretantes por ela agenciados também influenciaram o resultado final da eleição.
O texto sobre o avalista da locação do imóvel merece uma consideração adicional. Se um carteiro movido por boa fé empresta um carro a um conhecido seu para que ele possa fazer uma viagem, mas este, ao invés de fazer a viagem, utiliza o carro em um assalto, o carteiro deve ser condenando por aquele crime? É evidente que não. Se ele for simpatizante do movimento ecológico, que importância isso terá para que se divulgue na capa de um jornal: "Um carteiro da Zona Sul, simpatizante do movimento ecológico, emprestou um carro usado pelos assaltantes" ?. O que o movimento ecológico tem a ver com o assalto ? O que essas informações revelam sobre os assaltantes ? O texto do jornal tem um fim premeditado: vincular os assaltantes ao movimento ecológico, tomando-se como termo médio o carteiro. A figura lógica da falácia apresentada é a seguinte: 1) o carteiro é simpatizante do movimento ecológico; 2) os assaltantes estão vinculados ao carteiro; 3) logo, os assaltantes estão vinculados ao movimento ecológico. Como, entretanto, o jornal é uma empresa capitalista privada, o seu dono pode escrever o que lhe aprouver como boa informação, na capa ou em qualquer lugar; por exemplo: "Um padeiro da Zona Sul, simpatizante da Portuguesa de Desportos, foi avalista da casa alugada pelos seqüestradores".
Vemos portanto, que a atuação das mídias foi decisiva na reversão de uma tendência eleitoral praticamente definida, conforme a análise do diretor de um reconhecido Instituto de Pesquisas. Mas por que essa reversão pôde ocorrer tão rapidamente ? A resposta está em outra pesquisa do mesmo Instituto Gallup, segundo a qual a população brasileira, especialmente a mais pobre, acredita ser a televisão o meio de comunicação mais confiável. Essa confiança depositada como que exime a população de uma criticidade mais apurada frente ao veículo. A maioria pensa saber distinguir o que é a novela, a ficção, do que é o noticiário, a realidade - mesmo quando as novelas constróem ícones de realidade e o noticiários apresentam ícones das novelas - como no caso das passagens sígnicas entre as novelas "Que Rei Sou Eu ?", "O Salvador da Pátria" e os telejornais da Globo - passagens que analisamos em outro texto (128). Contudo a transposição que fazem entre ambos é manifesta: "a gente sabe que aquilo tudo é encenação, mas na vida real é bem assim que acontece." O senso comum imagina que ver imagens no noticiário da televisão (inclusive a edição de um debate) é como ver a própria realidade, especialmente quando a transmissão é "ao vivo", não percebendo que se tratam de duas realidades distintas, a realidade - objeto dinâmico que possibilita o noticiário - e as imagens do noticiário como realidade - objeto dinâmico que gera signos e interpretantes em seu imaginário, em sua mente. Em uma transmissão "ao vivo", dependendo do que se focaliza, como se focaliza e do texto que modeliza a imagem, cenas geradas a partir de uma manifestação social, por exemplo, dissolvem o seu caráter reivindicatório e a transformam apenas em mais um transtorno ao tráfego gerado por "desordeiros". Por confiar na informação - especialmente televisiva - sem questioná-la, muitas teses se propagam pela sociedade sem uma análise crítica adequada. Assim, as mídias eletrônicas passaram a ter influência determinante nas decisões políticas da população.
4.4 As midias televisivas - Um poder político sem controle democrático.
Outro aspecto dessa atual midialização da política é a sua velocidade em produzir impactos. Qualquer signo impactante, venha de onde vier, pode alterar conjunturas políticas e imprimir novos sentidos a trajetórias aparentemente consolidadas, desde que seja modelizado e difundido de forma apropriada e haja na sociedade um imaginário propício a acolhê-lo como objeto imediato, que agencie inúmeros interpretantes valiosos à hegemonia que se deseja atingir. Considerando a instantaneidade de difusão de informações propiciada pelo novos recursos da comunicação - como no caso da crise das bolsas - e analisando como os novos meios de comunicação vem obsoletizando algumas formas clássicas de organização das políticas, como algumas ensaiadas pelas oposições ao governo de Fernando Henrique Cardoso, Otávio Frias filho - diretor Editorial da Folha de São Paulo - destacou que "graças ao chamado sistema midiático, as percepções do eleitorado também podem mudar de uma hora para outra, atropelando partidos e instituições. Nesse quadro, parecem mais bizantinas do que nunca as preocupações da oposição com uma ilusória união das esquerdas, com a costura entre partidos, com a ampliação de alianças etc. Esses mecanismos não funcionam mais, ou pelo menos não da forma habitual. Se há algum ensinamento legado por Collor é esse. Costumamos chamar pejorativamente de populismo toda política que dispense as mediações tradicionais dos partidos e associações civis. Tudo muda, porém, quando as formas técnicas da vida moderna passam a ligar a periferia eleitoral diretamente ao coração da política, ou seja, à política econômica internacionalizada." (129)
As técnicas midiáticas de produzir subjetividades agenciando adesões hegemônicas a partir de um trabalho de marketing político, buscam em geral esvaziar a politização das escolhas. Isto faz com que, alguns meses após as eleições, muitos eleitores não se lembrem mais nem sequer dos nomes dos candidatos nos quais votaram ou o nome dos que foram eleitos. Isto ocorre não apenas no caso de parlamentares, mas inclusive no caso de representantes para o poder executivo. Uma pesquisa realizada pelo IBGE em abril de 1996, constatou que 30% dos trabalhadores acima de 18 anos não sabia, sequer, qual era o nome do governador de seu estado, que cerca de 20% dos trabalhadores nas mesmas condições não sabiam o nome do prefeito da cidade em que moravam e que, nada menos de 20%, também não sabiam o nome do atual presidente da República.
Considerando esta pesquisa, o presidente do IBGE afirmou que "a população brasileira não tem uma participação muito ativa. Uma coisa é votar, outra é fazer campanha, cobrar." (130) Isso é tanto mais grave, uma vez que "para 58% dos entrevistados, a referência para o voto é o candidato, não o partido". Isto significa que não apenas a maioria dos eleitores não se preocupa com a identificação ideológica dos partidos, como também, após escolher um candidato, não se preocupa em saber o que ele realmente faz com o mandato que lhe foi conferido, caso tenha sido eleito. Por outro lado, a pesquisa permitiu concluir ainda que, quanto maior a escolaridade do eleitor, mais atuante ele é no que se refere à cidadania. Assim por exemplo, a adesão às greves é maior também entre os segmentos instruídos. A pesquisa apontou por fim que, entre todos os meios para se obter informação sobre acontecimentos políticos, a televisão é preferido por 80% dos entrevistados, sendo que 30% também usam outros meios que não a TV. Sobre isto afirmou o presidente do IBGE: "A TV dá a ilusão de contato com o político, mas não é tão absoluta" (131). Fato é, contudo, que se um parlamentar aparece nos programas da TV Globo, que possuem massiva audiência, ele tem mais facilidade em se reeleger do que outro que neles não apareça. Como a emissora pode vetar a participação de qualquer um em seus programas e como ela mantêm influências sobre outros veículos e suas afiliadas, ela passa a ter grande poder junto aos políticos, os quais preferem não contrariá-la.
Conforme Carlos Matheus, diretor do Gallup, "efetivamente a televisão tem mais credibilidade que a imprensa escrita. A imprensa escrita é tida no Brasil como partidária e a grande maioria da população que assiste televisão não vê posição política ou posicionamento político na televisão, nos diferentes canais de televisão. O que faz com que a televisão, enquanto imagem mostrando não apenas fatos escritos, mas mostrando os fatos relatados pelo noticiário, adquiriu uma credibilidade muito grande. Em princípio aquilo que a televisão mostra é a verdade." (132)
Vemos, portanto, que a inexistência de um efetivo controle substancialmente democrático sobre as mídias ensejou no Brasil um novo tipo de condução hegemônica da política. Como todos os objetos e acontecimentos podem ser modelizados sob sua linguagem, e como é possível articular os signos com as semioses mais estranhas a fim de agenciar interpretantes que, de algum modo, mobilizem ações discursivas ou não discursivas, os mass media passam a ter condições de ditar, não apenas as tendências das modas, mas também certas escolhas políticas. Nisto se revela o que caracterizamos, aqui, como "ditadura democrática" dos mass media.
Tendo explicitado elementarmente os conceitos básicos de nossa análise, podemos agora avançar para o estudo de caso escolhido: o governo Fernando Henrique Cardoso, sua eleição e suas políticas.
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44. Esta é a posição clássica de Guattari e Deleuze a respeito do tema. Veja-se: Félix GUATTARI e Gilles DELEUZE. Mil Platôs. Vol.2, Rio de Janeiro, Editora 34, 1995, p. 98 e 99. Trata-se do conceito de máquina abstrata.
45. Com os desenvolvimentos recentes da semiótica passou-se a investigar a ação dos signos em vários níveis. 1) O seu mais alto nível é a antropossemiose tratando dos processos sígnicos específicos à espécie humana, isto é, "todos os processos sígnicos com os quais os seres humanos se envolvem diretamente." [John Deely. Semiótica Básica. São Paulo, Editora Ática, 1990 p. 47] Avançou-se nesses estudos para a tese de que "a língua é um sistema modelador secundário, e não o sistema primário, muito embora, relativamente ao desenvolvimento da civilização e das tradições culturais distintamente humanas, a língua seja o medium capacitador próximo e a rede sustentadora da semiose. A língua se insere, entretanto, na teia semiótica mais vasta da experiência humana, que intrincadamente tece a semiose lingüística juntamente com as semioses perceptuais compartilhadas pelos humanos com outras espécies biológicas. Essa teia depende delicadamente de redes endossemióticas - internas ao corpo - através das quais o próprio organismo humano é sustentado por uma rede complexa de simbioses sem as quais o indivíduo pereceria. Essa rede é em si mesma semiósica."[Idem]. A interação do homem com seu meio ambiente, com seus semelhantes, com outros animais e vegetais, com o ambiente físico complexifica ainda mais essa teia de fios. Assim, "a metáfora mais adequada não é a língua como um sistema modelador primário, mas aquela do homem como microcosmo" [Idem, p.48]. 2) Outro nível é a zoossemiose que trata tanto "da coincidência dos processos semióticos compartilhados pelos humanos e outras formas animais" como também "compreende uma série de microcosmos e mundos objetivos específicos para cada espécie, cada um dos quais ligado a processos naturais de interação física..." [Idem]. 3) Um terceiro nível foi proposto recentemente, a fitossemiose, ou redes semióticas das plantas, considerando tanto "a interação semiósica entre plantas e várias espécies animais", quanto "a semiose interna ao mundo vegetal". [Idem, p.49]. 4) Por fim, há quem sugira que os signos operem também em níveis inorgânicos anteriores ao próprio advento biológico da vida na natureza: "a atividade sígnica nos domínios do inorgânico seria... bem menos visível, mas ocorreria virtual e concretamente em todo o mundo físico". [Idem]
A semiótica, portanto, considera a ocorrência de processos sígnicos ao nível zoossemiótico anteriores à constituição da linguagem natural. Essas ações significativas - ou intuitivas, se podemos assim chamá-las - permanecem aptas nos humanos ao desenvolvimento de uma racionalidade pré-simbólica, mas repleta de sentido. Assim, complexificam-se sentidos pré-simbólicos com significados culturais em uma trama de interações semióticas em que os indivíduos se constituem ao mesmo tempo que intervém sobre sua circunstância.
46. Entendamos melhor o que significa interpretante. Aparecendo à mente, qualquer coisa lhe produz um efeito, pois a mente reage e produz algo. O efeito que a mente produz como signo do que o provoca pode ser da ordem de um sentimento, de uma reação física ou lógica. De qualquer modo, é o objeto que determina essa representação, que não corresponde ao todo do objeto, mas a algum aspecto seu, sendo portanto o signo, incompleto, na relação que mantém com o objeto que representa. Conforme Peirce, o Interpretante Imediato, consiste naquilo que o signo está apto a produzir como efeito em uma mente interpretadora qualquer; por sua vez, o Interpretante Dinâmico corresponde ao efeito efetivamente produzido pelo signo numa mente interpretadora. Tal efeito poderá ser emocional, energético ou lógico. Será emocional quando se trata de signos que só produzem sentimentos de qualidade, impressões, sensações (auditivas, viscerais, visuais...). Quando se trata, por sua vez, de uma ordem, por exemplo, o interpretante dinâmico será energético, isto é, produzirá como resposta, uma ação de obediência. Quando lógico (convencional, signo de lei), por exemplo, uma palavra ou frase, o interpretante dinâmico será um pensamento que traduzirá o signo anterior em um outro signo da mesma natureza (infinitamente).
É no efeito produzido pelo signo numa mente interpretadora que reside a chave da explicitação da interação do indivíduo com os signos. Tais efeitos dependerão da natureza e do potencial do signo enquanto tal. Nesse sentido, a interação do indivíduo com signos, em nível de primeiridade, despertará em sua percepção sentimentos de qualidade, sensações, imagens ou outros elementos desse gênero. Por sua vez, a nível de secundidade o indivíduo vai ser desperto por fatos brutos e abruptos aos quais reage sua percepção. A nível de terceiridade teremos representações e pensamentos. Entretanto, como os vários tipos de signo, em seus vários níveis, estão simultaneamente em interação e misturados (já que estas distinções entre diversos tipos de signos não indicam que eles estejam efetivamente separados na realidade, apesar da existência de tais tipos e níveis) os efeitos dos signos sobre as mentes interpretadoras serão os mais diversos. Para Peirce, " ... os signos, mesmo os mais genuinamente triádicos, não produzem como interpretantes apenas pensamentos, mas também sentimentos, emoções, percepções, ações, condutas e comportamentos, de modo que, mesmo no signo de natureza pensamental e intelectiva, todos esses elementos estão nele embutidos constituindo, assim, também sua substância." [Lucia SANTAELLA, comentando Buczinska-Garewicz em A Teoria Geral dos signos, São Paulo, Ed. Ática, 1995, p. 116].Teremos, por exemplo, signos genuínos a nível de terceiridade (lógicos) despertando sentimentos de tristeza, de alegria, monotonia e não necessariamente um Interpretante da mesma natureza (signo triádico). É o caso de uma música que produzirá em nós qualidades de impressão diferentes daquelas que possivelmente surgiriam caso conhecêssemos seus diferentes códigos de composição, o que nos levaria a outros tipos de interpretação. Desta forma, certo signo musical, dada a limitação do nosso repertório, produzirá em nós somente um interpretante dinâmico de primeiro nível (emocional). Por outro lado, a percepção de simples qualidades numa obra de arte pode levar um crítico a montar um amplo conjunto de explicações sobre a obra, isto é, à geração de interpretantes em uma série bastante ampla.
Nesse sentido, a interação do indivíduo com os signos, envolve elementos estéticos (perceptos e afetos - a percepção sensível dos signos e disposições afetivas que provoca: sentimentos, emoções, etc.) e elementos cognitivos (conceitos e representações - integrando aspectos perceptivos e afetivos). Em razão disso pode ocorrer que os efeitos gerados por signos publicitários em jogos semióticos, estética e logicamente bem produzidos, modelizem os afetos dos indivíduos agenciando-os ao consumo de mercadorias, à defesa de certas posições políticas, etc.
47. Enrique DUSSEL. Filosofia da Libertação. Edições Loyola, São Paulo, s.d.
48. Trata-se aqui de uma passagem da reflexão em nível categorial abstrato para um nível conceitual mais concreto. Como cada subjetividade resulta de uma trama de agenciamentos singular e como todo signo representa apenas parcialmente o seu objeto, não há como conceituá-las do modo como pretendeu a filosofia moderna ou antiga. A conceituação, aqui, implica em destacar o maior número possível de signos indiciais - signos que fazem parte do objeto - para que o pensamento reconstrua , da melhor maneira, a realidade do objeto dinâmico que investiga.
49. HARRIS, Laurence in BOTTOMORE, Tom. Dicionário do Pensamento Marxista, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1988, p. 285
50. A forma de exploração do trabalho sob o capitalismo recebeu classicamente o nome de extração de mais-valia, extração do valor a mais que resulta da diferença entre o valor do produto final e o valor do capital empregado no processo produtivo. Como somente o trabalho produz valor real, esse excedente é um valor produzido pelos trabalhadores; contudo, ele é apropriado pelo capitalista, que detém o controle do capital empregado no processo produtivo. O cálculo, em geral, da taxa de mais-valia resulta da equação que tem por dividendo o montante deste excedente produzido e por divisor o capital dispendido no pagamento do trabalho. Na atual economia observa-se que as várias formas de extração de mais-valia (absoluta, relativa e virtual) podem coexistir. Verifica-se a extração de mais-valia relativa em razão da redução do tempo de trabalho necessário para produzir o mesmo volume de valor - pelo emprego das novas tecnologias -, bem como pela redução do valor gasto em força de trabalho, com a dispensa de empregados. A extração de mais-valia absoluta é perceptível com a jornada mais intensiva ou extensiva de trabalho, aumentando o valor total produzido por cada trabalhador, não alterando o montante de trabalho necessário. Por fim observa-se a extração de mais-valia virtual pela reprodução virtual de produtos finais intangíveis - como softwares, por exemplo, que são conhecimentos criativamente digitalizados em linguagens binárias de programação, ou ainda, certas informações ordenadas significativamente pelo trabalho intelectual humano. Ora, como o processo produtivo se conclui no consumo final do produto, no caso da indústria de software o montante do excedente produzido está diretamente ligado à quantidade de cópias reproduzidas e vendidas, o que depende diretamente, por sua vez, do valor de uso do produto comparado a outros. O que importa destacar é que o volume do capital acumulado por mediação desse mecanismo de extração de mais-valia virtual cresce a cada ano e que ele resulta, em sua base, da exploração do trabalho intelectual humano. Apenas como exemplo, analisemos o fato de que o Windows 95 vendeu 45,8 milhão de cópias até dezembro de 1996, cujos usuários foram registrados pela Microsoft. O produto que se vende é o programa que é resultado do trabalho intelectual de uma grande equipe que o produziu, uma única vez, como um valor de uso. Não há necessidade do mesmo volume de tempo e de trabalho intelectual para reproduzir uma segunda cópia. Qualquer pessoa, clicando um mouse, pode fazer novas cópias daquele programa. Assim, toda a mais-valia arrecadada com as 45,8 milhão de reproduções do programa se deve ao trabalho originário de sua produção. Virtualmente, entretanto, esta mais-valia pode continuar se avolumando enquanto outro produto com similar valor de uso não se sobrepuser a este, que continuará, assim, sendo multiplicado e comercializado. Concretamente, a reprodução do disquete também supõe algum trabalho que possibilita comercializar, sob essa forma, o programa que já existia. Sobre esse trabalho, também pode ocorrer exploração. Contudo, com o aprimoramento das infovias, a tendência é de que este trabalho de reproduzir o programa se resuma à atividade exercida pelo próprio usuário ao fazer um download do arquivo que deseja adquirir, após ter realizado um pagamento digital pela cópia.
51. Um significativo exemplo dessa reprodução operada pelo consumidor ocorreu no final de agosto de 1996, na disputa entre Microsoft e Netscape que produzem browsers necessários à navegação na Internet. A Netscape que contava na época com algumas centenas de empregados diretos e US$ 81 milhões em vendas, é proprietária do Netscape Navigator - o programa mais utilizado para navegar na rede. A Microsoft temendo o crescimento da concorrente - que pretende produzir um sistema que possa substituir o Windows possibilitando a captura de informações na Internet, em redes corporativas e até em computadores pessoais - iniciou em dezembro de 1995 a produção de um potente browser que seduzisse os usuários da Internet a abandonarem o Netscape Navigator. E aqui chegamos ao ponto chave. Em agosto de 96 a Microsoft lançou a terceira versão de seu browser o Explorer 3.0, e o distribuiu gratuitamente através da rede. Somente na primeira semana um milhão de usuários - espalhados por todo planeta, mas conectados à rede - copiaram o programa, isto é, fizeram o seu download. Traduzindo isso em uma linguagem industrial, foram produzidas um milhão de ferramentas com valor de uso e troca, que foram distribuídas gratuitamente a milhões de consumidores em diversos recantos do planeta com o simples clique de um mouse pelos usuários interessados. Ao mesmo tempo em que o produto da Microsoft era distribuído de graça - aos milhões - pela rede, as ações da Netscape, empresa concorrente, caíram à metade do valor que possuíam em dezembro de 1995, ao passo que as ações da Microsoft batiam recordes. Duas semanas depois do lançamento do novo produto, Jim Clark - o fundador da Netscape - anunciou o lançamento próximo de um novo software, que poderá estar em tudo o que tenha um monitor e uma placa modem - possibilitando utilizar a Internet como uma espécie de TV e revolucionar a estrutura dos computadores que funcionarão conectados à rede e sem possuir, não necessariamente, um disco rígido, além de possibilitar video-games on line e aparelhos celulares para navegar no Web. A iniciativa simbólica de mostrar força impediu uma queda maior das ações. Estes fenômenos de capital virtual necessitam de uma nova economia política para serem compreendidos adequadamente e esta, por sua vez, não poderá prescindir de mediações analíticas da semiótica política em sua constituição.
52. Quantas pessoas escreveram as linhas de código do editor de textos que usei para redigir este estudo? E quantas outras escreveram as linhas de código do ambiente em que este editor pode operar? Tratam-se de dois produtos transformados por milhares de pessoas - se considerarmos todos os que tiveram acesso às versões preliminares, para testes e observações, que foram devolvidas à empresa com a finalidade de aprimorá-los - como ferramentas para a geração de outros produtos, entre eles, o presente texto, e que o determinam como tal. Pode-se argumentar que as múltiplas etapas nas linhas de montagem, operadas por seres humanos, tendam a diminuir - em razão da informática e da robótica - e que menos pessoas produzam muito mais em menos tempo. Mas cada diminuição de função nesta rede, supõe uma outra cadeia que a possibilita. O problema é que o produto desta outra cadeia, sendo intagível, quando é realizado pela primeira vez, dela não depende mais em sua reprodução, bastando um simples clique para que ele seja reproduzido incontavelmente.
53. Analisando a produção econômica e a produção da subjetividade no sistema capitalista, Félix Guattari destacou a ocorrência de uma semiotização das relações de poder em ambos os níveis, que são interativos. Os sistemas de signos que regem diversos domínios da vida ficam modelizados sob os códigos do Capitalismo Mundial Integrado. O capital, afirma Guattari, "é muito mais que uma simples categoria econômica relativa à circulação de bens e à acumulação dos meios econômicos. É antes uma categoria semiótica que se refere ao conjunto dos níveis da produção e ao conjunto dos níveis de estratificação dos poderes". "O exercício do poder por meio das semióticas do capital tem como particularidade proceder concorrentemente, a partir de um controle de cúpula dos segmentos sociais, e pela sujeição de todos os instantes de cada indivíduo.(...) A sobrecodificação, pelo capital, das atividades, dos pensamentos, dos sentimentos humanos, acarreta a equivalência e a ressonância de todos os modos particularizados de subjetivação.(...) O conjunto de valores de desejo é reorganizado numa economia fundada na dependência sistemática dos valores de uso em relação aos valores de troca, ao ponto de fazer com que esta categoria de valores de uso perca seu sentido. (...) A ordem capitalista pretende impor aos indivíduos que vivam unicamente num sistema de troca, uma truduzibilidade geral de todos os valores para além dos quais tudo é feito, de modo que o menor de seus desejos seja sentido como associal, perigoso, culpado." [Félix Guattari. Revolução Molecular, ed. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 213, 201 - 202] Assim, sob os códigos do capital territorializa-se a ética, a política, a economia e a maioria dos órgãos do corpo social; modeliza-se a relação dos sujeitos entre si e com os objetos, produzindo-se-lhes significações, sentidos e códigos de interação. As mídias desempenham aqui importante papel neste movimento de sobrecodificação semiótica. Salienta Guattari que contemporaneamente "os antigos territórios do Ego, da família, da profissão... etc, desfazem-se, uns após outros - se desterritorializam." E conclui: " é porque o inconsciente moderno é constantemente manipulado pelos meios de comunicação, pelos Equipamentos Coletivos, pelos especialistas de todo tipo, que não podemos mais nos contentar hoje em defini-lo simplesmente em termos de entidade intra-psíquica, como fazia Freud..."[Idem, p. 167]
54. Sobre isso veja-se: Euclides André MANCE, "Realidade Virtual - A conversibilidade dos signos em Capital e Poder Político" in Lumen Vol 2 N.4 junho 1996, p. 75-135 ( www.milenio.com.br/mance )
55. Veja-se Karl MARX. Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economia Política (Grundrisse) 1857~1858. México D.F. Editora Siglo Veintiuno, 1972. Vol. 2 (Caderno VII), p. 231-232
56. Veja-se Viviane FORRESTER. O Horror Econômico. São Paulo, Editora UNESP, 1997.
57. No artigo "Globalização e Caminhos Alternativos para o Brasil", por exemplo, Fernando Alcoforado, afirma ser inaceitável o atual modelo proposto para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil nesta era de globalização e considera quais seriam suas principais conseqüências para o país. A alternativa segundo o autor, entretanto, é apenas uma variação do modelo capitalista. ALCOFORADO, Fernando. Globalização e Caminhos Alternativos para o Brasil. Folha de São Paulo, 21/08/96 p. 2-2
58. André GORZ. Metamorfosis del Trabajo - Busqueda del Sentido - Crítica de la Razón Económica. Editorial Sistema.
59. Veja-se Franz J. HINKELAMMERT. "Ética do discurso e ética de responsabilidade: uma tomada de posição crítica". in Antonio SIDEKUM. Ética do discurso e filosofia da libertação - Modelos complementares. São Leopoldo, Ed. Unisinos. p. 73 a 116. Especialmente o item 1. A teoria da concorrência perfeita. p. 75 e a crítica sobre A aproximação assintótica da realidade à sua situação ideal, p. 80s
60. Veja-se: Euclides André MANCE, "Quatro teses sobre o neoliberalismo." Revista Filosofazer, Passo Fundo, IFIBE, ano VI n. 11, p. 83 a 103, 1997. (www.milenio.com.br/mance)
61. Guilherme EVELIN e Patrícia ANDRADE "Desordem mundial - Entrevista com Ignacy Sachs". Isto É, 14 de agosto de 1996. Http://www.zaz.com.br/istoe/vermelha/140302.htm
62. Ibidem
63. Myrian Dell Vechio. "A nova ditadura dos meios de comunicação". Expresso, Ano 1, n.7, nov 1994
64. Maria da Conceição TAVARES. "Globalitarismo e neobobismo". Folha de São Paulo, 30-03-97, p. 2-5
65. "O sistema globalitário". Folha de São Paulo, 09-02-97, pp. 5-9
66. BARROS E SILVA, Fernando de. "Publicitários brincam de democracia na TV". Folha de São Paulo, 2-03-97 , TV Folha, p.2
67. Saulo RAMOS. "Totalitarismo Refinado". Folha de São Paulo, 15-03-1991, especial, p.3
68. Ibidem
69. "O efeito-máquina". Revista Veja, 14-09-94, p. 36
70. Ibidem, p. 36
71. Ibidem, p. 36
72. Ibidem, p. 39
73. Ibidem, p. 37. Posteriormente, entretanto, envolvido em fraudes empresarias, e respondendo a cinco processos, Berlusconi não teve como se sustentar na condição de Primeiro-Ministro. Estes escândalos contribuíram para a derrota da coalizão de direita nas eleições de novembro de 1997. Em um desses processos, ele foi condenado por um tribunal de Milão, em dezembro daquele ano, a 16 meses de prisão e ao pagamento de uma multa de US$ 35 mil, tendo a pena suspensa e a multa reduzida por ser réu primário.
74. Myrian Dell Vechio. Op. cit.
75. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane" (Brasil - Muito Além do Cidadão Kane), dirigido e produzido por Simon HARTOG e realizado pela produtora independente Large Door Ltd., em 1992 e que foi exibido pelo Channel 4, de Londres no dia 10 de maio de 1993.
76. Osvaldo BIZ. "A força da Globo na eleições". Mundo Jovem, mar 90, p.11
77. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane"
78. Osvaldo BIZ. Op. cit., p.11
79. Ibidem
80. Ibidem
81. Júlia Falivene Alves. A Invasão Cultural Norte-Americana. São Paulo, Editora Moderna, 1988, p.117
82. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane"
83. Ibidem
84. Ibidem
85. Ibidem
86. Ibidem
87. Ibidem
88. Ibidem
89. Ibidem
90. Ibidem
91. Ibidem
92. Osvaldo BIZ. "A força da Globo na eleições". Mundo Jovem, mar 90, p.11.
93. Myrian Dell Vechio. Op. cit.
94. Osvaldo BIZ. Op. cit.
95. Ibidem
96. Bernardo KUCINSCKI. "O ataque articulado dos barões da imprensa". Fevereiro, 1990. Em seu argumento ele cita, como exemplo, a matéria de Augusto NUNES, "É preciso deter as milícias", publicada em O Estado de São Paulo, em 05-12-89, na página 2. O texto inicialmente destaca a existência de uma facção xiita no PT que é caracterizada como um "grupo de exorcistas do demônio de plantão". Sobre as cenas das "milícias petistas" em ação afirma: "Admitamos que as imagens transmitidas pelo programa eleitoral de Fernando Collor de Mello tenham sido espertamente editadas, de modo a expurgar a presença, entre os protagonistas dos incidentes, de militantes do PRN. Fiquemos com as imagens divulgadas pelos noticiários do SBT, já que nem mesmo os mais imaginosos patrulheiros ousaram que a TVS se tenha transformado numa extensão da Rede Globo. As cenas - muito pedagógicas - mostram milícias petistas em pela ação." E por fim o texto conclui: "Porque não aceitam o convívio dos contrários as milícias de Caxias [do Sul] merecem a pronta execração dos democratas de todos os partidos, aí incluindo o PT. Enquanto é tempo."
97. Ibidem
98. "Notas e Informações". O Estado de São Paulo, 17-12-1989, p. 1
99. "Votar na revolução liberal". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.3
100. Bernardo KUCINSCKI. Op. cit.
101. Osvaldo BIZ. Op. cit.
102. Jornal da Tarde, 20/12/89, p. 12
103. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane"
104. Ibidem
105. Ibidem
106. Ibidem
107. Ibidem
108. Ibidem
109. Jornal do Brasil, 24/12/89, p.4
110. Ibidem
111. "A diferença entre 89 e 94 é a participação do governo". Revista Democracia, n. 105, ago-set 94; in Quinzena n.194, 15/10/94, p.24, Centro de Pastoral Vergueiro.
112. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane"
113. Bernardo KUCINSCKI. Op. cit.
114. "Frei Leonel é da ordem dos capuchinhos". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.40
115. Cristian BOFILL. "Facção desmente envolvimento". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.42
116. "Fleury diz ter encontrado material do PT". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.42
117. Ibidem
118. Ibidem
119. Ibidem
120. Ibidem
121. Ibidem
122. Ibidem
123. "Seqüestradores de Diniz estão cercados". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p. 39
124. No artigo "É preciso deter as milícias", lê-se: "O que pensam do que ocorreu em terras gaúchas, por exemplo, os tucanos do PSDB, decididos a juntar o partido ao grupo de exorcistas do demônio de plantão ?" O Estado de São Paulo, 05-12-89, p.2
125. "Família ajuda negociações". O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.39
126. "Diniz, esportista vencedor, sem medo." O Estado de São Paulo, 17-12-89, p.44
127. Leon FESTINGER. Teoria da Dissonância Cognitiva,1957. Veja-se: http://zimmer.csufresno.edu./~johnca/spchl00/persuasion.htm
128. Euclides A. MANCE. "Realidade Virtual - A Conversibilidade dos Signos em Capital e Poder Político". Revista Lumen. São Paulo, Faculdades Associadas Ipiranga, vol. II, N.4, p. 75 a 135, junho, 1996, especialmente o item 6.3. A Construção do Imaginário Político e as Trocas Sígnicas entre as Telenovelas da Rede Globo e seus Telejornais. (p.127-135) Curiosamente, oito anos depois de ser exibida originalmente, a novela O Salvador da Pátria foi reapresentada pela mesma emissora em 1998, quando novamente haveria eleição presidencial e Luis Ignácio era novamente candidato. Qual terá sido o critério para decidir que esta novela seria reapresentada neste período eleitoral há pouco mais de 150 dias antes das eleições ? Destaque-se que a cada intervalo da novela aparece a imagem de Sassá caminhando desengonçado e curvado sobreposta a uma imagem clássica do Planalto e do Congresso, com figuras que emergem em relevo; Sassá, caminhando com a coluna ereta e de cabeça erguida, sai de cena por uma abertura lateral. Em seguida surge um outro close dos prédios governamentais e ao lado direito desta imagem, ocupando 1/3 da tela, aparece a imagem de um busto usando a faixa presidencial. A imagem em corte do palácio presidencial sai pela esquerda da tela e a figura do busto presidencial se mantém do lado direito, aparecendo uma mesa semelhante às utilizadas quando os presidentes falam em cadeia nacional, com a bandeira do Brasil atrás. A mesa e o busto se transformam na metade de um globo e Sassá caminhando desaparece no infinito em meio às estrelas. Há pois uma sobrecodificação de símbolos que representam o Governo Federal tanto na abertura quanto no encerramento e intervalos da novela.
129. Otavio FRIAS FILHO. "Lições de Fora e de dentro". Folha de São Paulo, 30-10-97, p.1-2
130. Isabel CLEMENTE. "20% dos trabalhadores não sabem quem é o presidente". Folha de São Paulo, 19-12-97, p.1-4
131. Ibidem
132. Depoimento no documentário "Brazil: Beyond Citizen Kane"