Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e
Totalitarismo
- Elementos para um
estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998
Capítulo IV
SOBRE O ENFRENTAMENTO DEMOCRÁTICO DO REGIME GLOBALITÁRIO
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1. Produção de Subjetividade e Socialismo Democrático
Se compreendermos a produção de subjetividade de maneira adequada, perceberemos que a crítica, desenvolvida apenas no plano da consciência, como a crítica da racionalidade moderna às ideologias, não consegue agenciar movimentos de singularização, não consegue resgatar a sensibilidade ética e estética, não é capaz de subverter as utopias alienadas ou desmontar os imaginários sob elas articulados, não é capaz de atingir certas dimensões da subjetividade das pessoas e nem promover as transformações reais que são necessárias para construir uma sociedade justa e livre. Isto ocorre porque os principais mecanismos de dominação não operam no plano da consciência - em que se pode contrapor conceitos e representações - mas especialmente no plano do inconsciente, como já analisamos, agenciando desejos e temores, a partir dos quais imaginários utópicos e distópicos são construídos pela modelização de signos do universo simbólico, icônico e indicial de cada pessoa, de grupos sociais e de grandes coletividades. Assim, a crítica conceitual das representações - como a que se faz neste livro - é apenas um dos elementos da subversão das semioses hegemônicas do globalitarismo. Ela contudo é impotente para interferir sobre desejos e temores agenciados por determinadas semioses. A crítica teórica somente provoca subversões quando é acompanhada de um processo pedagógico capaz de agenciar paixões e esperanças, desejos e utopias, que tenham em seu núcleo fundamental o desejo de que cada outro possa viver plenamente a sua liberdade. Somente este desejo mobiliza eticamente a conduta individual na promoção das liberdades públicas e privadas. O desejo da liberdade eticamente exercida de cada outro, coloca-se deste modo, não apenas acima dos desejos de apropriação de objetos agenciados pelas semioses publicitárias, mas também acima dos valores das morais preconceituosas e do direito capitalista, no qual o acúmulo de capitais - mediação material que amplia a liberdade de alguns - realiza-se como negação da liberdade da maioria.
A ação transformadora supõe agenciamentos coletivos, pois cada um de nós é muitos, uma vez que nossa subjetividade é perpassada pela subjetividade de muitos outros, pois é uma con-sistência. Desde esse ponto de vista é fundamental a articulação de grupos, movimentos, organizações, pois só assim a subjetividade de cada um pode, coletivamente, reciclar-se de todas essas semioses, códigos e lógicas capitalísticas que nos perpassam e nos produzem, que nos dominam. A ação transformadora também pode ser uma ação de cada pessoa em particular, desde que essas ações particulares estejam, de algum modo, articuladas às ações coletivas emancipatórias.
Não basta pois ter uma consciência crítica, se os desejos que seduzem as pessoas são agenciados em jogos semióticos que os restringem somente à realizações particulares de sua vida privada. Há muitas pessoas assim; têm uma consciência crítica bastante desenvolvida sobre os problemas sociais e políticos; pessoas que são capazes de realizar complexas análises de conjuntura, explicitar conceitualmente as contradições da sociedade, etc, mas que não se mobilizam para transformar a dura realidade de contradições em que vive a maioria da população. Isso acontece porque muitos já perderam a esperança de que seja possível transformar alguma coisa, porque seus interpretantes afetivos e energéticos foram capturados nas semióticas do capital: não reagem mais, sucumbiram, se consideram impotentes e resolvem, então, priorizar a sua utopia pessoal, seus interesses pessoais, deixando em terceiro plano a realização de uma utopia coletiva e democrática.
Outros, por sua vez, têm um discurso que não corresponde com a prática e nem sequer se dão conta disso, porque os interpretantes que lhe aplicam estão sobrecodificados pela lógica capitalística. Isto é, têm um discurso transformador e crítico, mas que permanece autoritário, porque está modelizado pelo próprio sujeito sob a lógica dos grupos hegemônicos. Com efeito, produzir ou reproduzir um discurso não significa assumir uma nova posição coletiva de subversão das macro e micropolíticas autoritárias. Assim, sob o aspecto da subversão do globalitarismo é necessário que as pessoas componham a realização de suas utopias particulares - movida pelo desejo da alteridade em sua liberdade - com a realização de utopias coletivas, em que todos possam viver, o mais plenamente possível, a sua humanidade. Por exemplo, há diretores - em diversas instituições de ensino - que afirmam, em seu discurso crítico, que a gestão escolar tem de ser democrática e participativa. Mas na prática, os interpretantes básicos que alguns têm de "democrático" são a "ordem" e a "disciplina". Assim, o fato de crianças correrem pelo pátio da escola nos horários de intervalo e antes do início das aulas é interpretado como desordem, bagunça e indisciplina, sendo portanto, a negação do regime democrático escolar. O diretor impõe, então, uma certa compreensão de democracia de acordo com a sua concepção (732), com seus interpretantes. Do mesmo modo em muitas outras situações, várias pessoas assumem um discurso de mudança e transformação, sendo que suas condutas expressam algo totalmente diferente do está no discurso, quando interpretadas de outro modo, sob outra consistência.
Outro exemplo pode auxiliar na compreensão deste problema. Na trajetória de luta pela terra em uma favela de Curitiba, durante o processo de resistência ao despejo, em meio a passeatas e negociações, foram realizados vários encontros formativos entre os ocupantes da área, analisando-se a estrutura de classes sociais na apropriação do solo urbano, "como funciona a sociedade", as suas contradições e conflitos, etc, Por fim, conseguiu-se conquistar a terra de uma parte da favela, mas não da outra. Entre os que conquistaram seu terreno, alguns ergueram muros (um dos quais - inclusive - com cacos-de-vidro em cima). Algumas daquelas pessoas que se tornaram proprietárias deixaram de participar da associação de moradores. Os outros que não haviam ainda conquistado um lote, tiveram que continuar lutando pelo terreno juntamente com uma parcela menor dos que já haviam alcançado aquele objetivo. Assim, apenas uma parte dos que já haviam conquistado um terreno continuava a participar da luta com os demais. No fim, contudo, a parcela despossuída - embora tenha recebido a viva solidariedade desta outra parcela em lutas conjuntas - teve que ser relocada. Dentre aqueles que abandonaram a associação de moradores logo após a conquista de seu imóvel, alguns poucos chegaram a vender os terrenos e foram morar em uma favela mais distante. Com o dinheiro, porém, compraram aparelho de som, televisor colorido e outros objetos que, em suas utopias pessoais, apareciam como realização de sua humanidade. Isso significou, portanto, que o trabalho pedagógico realizado com eles ficou somente no plano da consciência, mas não conseguiu atingir as utopias, os desejos, os anseios mais íntimos, modelizados sob a semiose do capital.
Em outra oportunidade, como momento de um trabalho pedagógico que buscava alcançar esses elementos, alguns jovens que moravam em favelas descreveram como seria a sua casa, família, amigos e vida ideais. Alguns afirmaram, por exemplo, que desejavam ter grandes casas, com muitos quartos e com, pelo menos, dois carros na garagem. Sob a dinâmica pedagógica adotada, essas utopias pessoais passavam a ser analisadas coletivamente, refletindo-se sobre os interpretantes que conferiam sentido à vida de cada um e que norteavam decisões pessoais. Considerando-se a atitude dos que haviam anteriormente abandonado a associação de moradores, concluiu-se que ela se tornara uma mediação ineficaz para realizar os demais elementos das utopias pessoais daqueles indivíduos. A associação possibilitou realizar a posse de um terreno e melhorias para vila. Contudo, como os desejos utópicos daquelas pessoas compunham elementos que transcendiam o que pode ser alcançado através da associação de moradores, as pessoas que não singularizaram seus desejos e não compuseram sua utopia pessoal com a utopia coletiva, junto aos que participavam da mesma comunidade, acabaram abandonando aquela associação de moradores e buscando outras mediações que permitissem conquistar outros objetivos de suas utopias. É um erro pensar que basta apenas uma "conscientização" teórica para que um trabalho pedagógico avance subversivamente. Para tanto, além disso, descobriu-se ser indispensável trabalhar com outras dimensões de subjetividade, não bastando apenas alcançar uma consciência crítica se os desejos que mobilizam as pessoas e seus interpretantes são agenciados ou modelizados sob semioses capitalísticas.
Assim, considerando-se a práxis nos múltiplos aspectos de subjetividade que a determinam é mister realizar-se uma crítica periódica das utopias pessoais: o que move a pessoa a agir, qual é a sua compreensão de mundo, quais são os objetivos maiores e conjunturais que possui em sua vida e como os pretende realizar.
Outro aspecto importante a ser destacado é considerar como as utopias pessoais podem se articular em utopias coletivas. Movimentos de mulheres, negros, meninos de ruas, sem-terras, movimentos pela educação pública, gratuita, de qualidade e universal, compõem utopias particulares que podem ser articuladas em utopias coletivas, gerais. Isso pode ocorrer por dois caminhos. No primeiro caso, essa passagem se realiza eticamente, pela redescoberta da própria humanidade da pessoa, de seu valor, na convivência coletiva. Isto é, quando os interpretantes energéticos frente aos excluídos são singularizados, isto é, quando a pessoa sente revolta frente à marginalização do outro, quando ela sente a exclusão do outro como se fosse a sua própria exclusão, quando a violência contra a mulher, a discriminação contra o negro e o portador de deficiências, quando o abandono de crianças nas ruas são sentidos em nossa carne, em nossa alma, como se fosse uma violência contra nós mesmos. Quando sentimos como se fora em nós próprios o sofrimento que o outro padece sob um exercício de poder que o oprime e o impede de viver sua liberdade de modo dignamente humano. Esse interpretante energético e afetivo é fundamental, pois sem essa qualidade ética não ocorrerão mudanças estruturais do sistema econômico, político e simbólico necessárias à promoção das liberdades públicas e privadas. É necessário pois, resgatar a sensibilidade mutilada frente ao sofrimento de cada pessoa, mulher, negro, criança, trabalhador rural, portadores de deficiências, índios, sem-tetos, enfim, frente a todos os seres humanos que, como tais, devem ser tratados com dignidade e respeito.
No segundo caso, essa composição de utopias pessoais e coletivas, pode se dar através de um componente político, que é a afirmação de eixos estratégicos de luta como, por exemplo, a redução da jornada de trabalho sem redução do salário (como forma de gerar emprego e melhorar a distribuição de renda), reforma agrária, reforma urbana (articulando movimentos de moradia, transporte, saúde e outros em torno de um projeto de cidade), cidadania (pois não adianta apenas negativamente lutar contra o preconceito, sendo vital afirmar positivamente o novo relacionamento humano que promova a realização da dignidade da mulher, do negro, do índio e de toda pessoa) e de outros eixos que sejam democraticamente construídos no debate político entre os diversos atores sociais (733).
Como afirma Arturo Roig, filósofo argentino, cada qual deve por-se-para-si-mesmo como valioso e exigir que se respeite a si e aos demais como seres humanos. O modelo globalitário, contudo, vem submetendo um número cada vez maior de pessoas a relações aviltantes, mesmo para satisfazer as suas próprias necessidades mais elementares. Trata-se, pois, de recuperar interpretantes energéticos e afetivos que reafirmem não ter preço a dignidade humana - isto é, que ela não pode ficar à mercê do sistema de trocas no mercado - e que não se pode permitir que ela seja aviltada em qualquer pessoa.
2. A Dimensão Ética da Liberdade Democrática
Para a construção de utopias coletivas e democráticas torna-se necessário articular as utopias dos diversos movimentos sociais, buscando ampliar a realização da liberdade de cada pessoa, a realização de sua humanidade. Mas para garantir a liberdade de cada outro, se entendemos a subjetividade como historicamente situada, torna-se necessário que lhe seja garantida a satisfação de quatro tipos de condições: materiais, políticas, informativas-educacionais e éticas.
Sem condições materiais não há como se a realizar a liberdade. A liberdade para comer só existe quando há o alimento disponível para comer. Aquele que não dispõe de comida, não possui liberdade para comer. A liberdade para trabalhar supõe condições materiais que a possibilitem. Sem dispor de terra, um agricultor não é livre para produzir com seu próprio trabalho. Sem dispor de uma casa, um apartamento ou um abrigo, não existe a liberdade para morar dignamente como ser humano, mas a imposição de viver ao relento. Sem as mediações materiais para preservar a saúde não há a liberdade para preservar o corpo da dor, do sofrimento e da morte evitável. As mediações materiais devem ser socializadas de modo a realizar o máximo possível a liberdade de cada um e a liberdade de todos, respeitando as singularidades de cada qual, quando não sejam incompatíveis com a realização ética da liberdade pública.
Sem condições políticas, que assegurem a autonomia privada e pública, não há como preservar, promover ou realizar a liberdade dos indivíduos e da sociedade. Isto é, têm-se que garantir a autonomia do indivíduo na sua vida privada e a autonomia da sociedade na esfera pública, a fim de que se possa organizar a sociedade em função dos interesses coletivos. Sem a possibilidade de participar, opinar, decidir e transformar as micropolíticas do cotidiano na vida privada e as macro-políticas - que envolvem inúmeras esferas de organização social - a liberdade fica mutilada, impedida de realizar-se de modo cidadão. O machismo, o racismo, a discriminação de índios e pobres e tantos outros preconceitos justificam ideologicamente micropolíticas autoritárias que negam a liberdade de mulheres, negros e demais segmentos discriminados. Também o tecnicismo, o economicismo e tantas outras ideologias que se desdobram de conceitos arcaicos sobre o valor epistemológico dos enunciados científicos contribuem para a negação da liberdade pública, negando o valor da participação popular na definição das macro-políticas governamentais nas diversas esferas.
O terceiro aspecto é a dimensão informativo-educacional, pois mesmo tendo as condições materiais e políticas, se cada qual não tiver a informação suficiente e qualitativamente relevante para suas decisões e a capacidade de articulá-la, de interpretá-la, de racionar por si mesmo, quando tomar suas decisões poderá estar realizando os interesses daqueles que lhe fornecem uma informação e não fornecem outra. É preciso, pois, ter informação suficiente e de qualidade, isso que, em geral, as mídias de massa não fornecem, seja porque dispõem de informações que não veiculam, seja porque, mesmo pretendendo veicular informações críticas sobre certos temas, delas não dispõem. Atualmente é preciso realizar um exaustivo trabalho de garimpar informações através de inúmeras fontes para conseguir articular as informações básicas a tomadas de posição elementares. A maior parte da população, entretanto, não tem as condições materiais ou a formação educativa que possibilite pesquisar informações, localizá-las, interpretá-las e organizar uma crítica consistente da própria situação econômica e política - ou de outras ordens - em que está inserida. Trabalhando, formal ou informalmente, grande parte do dia e sofrendo os jogos semióticos de saturação da informação acaba sendo agenciada na tomada de decisões - especialmente as decisões eleitorais - que resultam em favorecimento dos próprios grupos hegemônicos que controlam as informações e que estão se submetendo e se ajustando à nova ordem globalitária. Portanto, sem a democratização da educação e da informação, a cidadania fica obliterada, pois embora pareça haver liberdade no ato de escolher, as escolhas acabam sendo induzidas por aqueles que selecionam e fornecem algumas informações e não outras - pois como nos ensinou Peirce, todo signo representa apenas parcialmente seu objeto dinâmico.
O último aspecto é a condição ética do exercício da liberdade, isto é, o desejo da liberdade do outro, como desejo fundamental. Sem a condição ética, o exercício da liberdade de alguns pode aniquilar a liberdade de muitos ou vice-versa. A moral e o direito que impõem certos padrões para o comportamento pessoal e social que negam às pessoas a realização de sua liberdade - de sua condição feminina, homossexual, negra, indígena, infantil, etc. - ou que reproduzem privações sociais - como a concentração das terras no Brasil, assegurada juridicamente, desde as Capitanias Hereditárias ou desde a Lei das Terras de 1850 - obliteram a realização das liberdades públicas e privadas. Assim, a liberdade de uma pequena parcela acumular cada vez mais terra nega a liberdade de uma grande parcela poder morar dignamente ou poder produzir o seu próprio alimento com o seu próprio trabalho. Deste modo, a propriedade privada de tal riqueza, assegurada pelo direito, é o que provoca as privações desta maioria que está privada de realizar a sua liberdade mais elementar de morar ou trabalhar de modo dignamente humano na condição de agricultor. Não se trata de afirmar que a liberdade de um comece onde termina a liberdade do outro. A liberdade de um só é eticamente exercida se promove a liberdade do outro, se resulta em bens materiais e culturais que ampliem o campo de possibilidades de realização da liberdade pública ou se realiza o bem do indivíduo sem prejudicar a realização do bem dos demais. Pelo contrário a ética que preserva, promove e realiza a liberdade se assenta no desejo do outro viver esta mesma liberdade e no imperativo de promovê-la desse modo. Assim, a liberdade privada não pode realizar-se aniquilando as condições de possibilidade da liberdade pública; e esta, por sua vez, deve respeitar qualquer livre exercício humano da liberdade privada, desde que esta não inviabilize outros exercícios de liberdade pública e privada eticamente orientados. Analisemos, pois, a situação de um latifundiário e de um grupo de sem-terras frente a esse aspecto. A realização da dignidade e da liberdade do agricultor sem-terras depende de uma condição material que é a terra, que - por sua vez - é propriedade do latifundiário. O latifundiário, do ponto de vista do exercício de sua liberdade, deve considerar as quatro condições mencionadas. Do ponto de vista ético sua liberdade deve ser exercida promovendo a liberdade do outro. Ora, a manutenção do latifúndio nega a liberdade pública - a realização da liberdade de muitos - em benefício da liberdade de poucos. Se o latifundiário defende a manutenção do latifúndio e não a reforma agrária, ele defende a negação da liberdade pública, isto é, do povo que depende daquela mediação para realizar a sua dignidade humana. Assim, essa liberdade do latifundiário é imoral, não é eticamente exercida. Portanto ela não pode ser assegurada do ponto de vista da garantia pública da liberdade, que é a segunda condição. Por isso a reforma agrária é necessária e tem de ser feita, pois aquela terra tem de ser colocada a serviço da liberdade pública, em proveito da liberdade privada do conjunto dos cidadãos que dela necessita para viver dignamente como seres humanos.
Enfrentando, nos anos recentes, o cerceamento cada vez maior do exercício da liberdade no Brasil, foram os movimentos sociais-populares (sem-terras, sem-tetos, mulheres, negros, portadores de deficiências físicas, estudantis, indígenas, homossexuais, ecológicos, de direitos humanos, por saúde, movimentos sindicais e muitos outros) e os partidos políticos de esquerda que - lutando pelas condições materiais, políticas, educativas e informacionais para o exercício da liberdade pública e privada - promoveram um amplo debate sobre as exigências da ética na política, da ética na economia e da ética na cultura.
A cidadania foi definida como um eixo de lutas dos movimentos populares do país na Plenária da Central de Movimentos Populares que se realizou em 1990 em Brasília. Quando o presidente Itamar Franco recebeu da oposição política, posteriormente, um programa de segurança alimentar para enfrentar o drama dos excluídos e Herbert de Souza foi convidado a encabeçar a campanha contra a fome, a Central de Movimentos Populares argumentou que o combate à fome deveria ser um aspecto de uma campanha muito mais ampla voltada à realização da cidadania. O movimento, então, organizou-se sob o signo Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria, e posteriormente, na segunda etapa, Pelo Emprego.
Para os movimentos sociais-populares que entregaram ao governo Fernando Henrique um conjunto de medidas que poderiam ser adotadas para enfrentar os graves problemas sociais em nosso país, a realização da cidadania implica na superação de valores morais e dispositivos legais que renegam os seres humanos na sua dignidade e a garantia de condições materiais para moradia, trabalho, saúde, transporte, educação, lazer e informação que possibilitem às pessoas viverem com dignidade. Trata-se da afirmação de uma ética libertária, a partir da qual busca-se superar a moralidade dominadora e o direito injusto e excludente. Infelizmente este apelo dos setores populares da sociedade civil para que as políticas públicas promovam a ética, que tem por objetivo a realização das liberdades pública e privada e não a manutenção de uma política que beneficia os especuladores financeiros e ao grande capital internacional, acabou negado pela resposta governamental pragmática de que, para estas atividades de geração de emprego e renda e de políticas sociais, o governo não tinha como liberar mais recursos.
Essa ação afirmativa dos setores populares da sociedade civil pode ser compreendida a partir da afirmação de Arturo Roig (734), em "La dignidad humana y la moral de la emergencia en América Latina": ao por-se-para-si-como-valioso o homem latino-americano passa a afirmar sua dignidade e seu direito a viver em liberdade. Em sua luta pela emancipação torna-se perceptível uma ética emergente como referência para a construção de uma sociedade nova em que não se repita as injustiças que lhe foram cometidas. Neste mesmo sentido, enfrentando atualmente o processo de exclusão social provocado pelo modelo capitalista de globalização, uma parcela dos movimentos sociais-populares afirma uma nova cidadania - que envolve a vida pública e privada - como expressão maior de uma ética que não se contenta com menos que o exercício pleno (embora sempre condicionado pelo nível de possibilidades alcançado socialmente) da liberdade - para que cada pessoa possa desenvolver suas valiosas singularidades para a justa convivência coletiva.
3. A Negação das Liberdades Democráticas (Públicas e Privadas) sob o Capitalismo Atual.
O que vemos nas sociedades contemporâneas, por toda parte, entretanto, é a negação da liberdade pública e da liberdade privada das maiorias em nome da liberdade privada dos que dispõem de capital. Tal negação é tanto maior quanto mais se aplica o neoliberalismo. Os países que o acolhem passam a implementar políticas que cerceiam o exercício ético da liberdade pelas maiorias (735). Esse totalitarismo global, esse Regime Globalitário, esvazia as instâncias políticas da autonomia pública, transformando o Estado em refém do capital financeiro e dos mega-conglomerados - como demonstram as recentes crises no México, Argentina, Tailândia e Hong Kong - tendo esta última repercutido no mundo todo.
Consideremos, neste quadro, entretanto, apenas duas liberdades fundamentais: comer e viver do próprio trabalho. Segundo o último estudo das Nações Unidas para o Desenvolvimento, aproximadamente 1,3 bilhões de pessoas no mundo todo vivem na pobreza absoluta, com menos de um dólar por dia, perfazendo 22,8% da população do planeta, sendo que o número de pobres cresce em torno de 25 milhões por ano (736). Mas o volume da riqueza mundial é cada vez maior e mais concentrado, a tal ponto que, as 358 pessoas mais ricas do mundo em 1993 possuíam ativos que, segundo ONU, superavam a soma da renda anual de países em que residiam 2,3 bilhões de pessoas, isto é, 45% de toda a população do planeta (737). Entre as 100 maiores economias do mundo, 50 são de mega-empresas.
Quanto ao desemprego, por sua vez, conforme documentos da OIT, este atingiu em 1994 cerca de 820 milhões de trabalhadores no mundo; isto é, aproximadamente 30% da força de trabalho mundial estava desempregada. (738) Nos últimos anos esse número continua crescendo em termos absolutos. Nos países em que ele diminuiu - como nos Estados Unidos - ocorreu uma forte degradação do poder de compra dos salários e uma precarização das relações de trabalho.
Este processo de negação das liberdades públicas e privadas da maioria da população que não detêm capital, ocorre, do mesmo modo, também no Brasil - mesmo com as ações de resistência democrática, que acabam sendo modelizadas pelas mídias e esvaziadas de seu conteúdo substancial nessas semioses. O capitalismo atual, de fato, vem suprimindo e fragilizando mediações garantidoras das liberdades públicas e privadas, sejam mediações materiais, políticas, educativo-informacionais ou éticas. O modelo capitalista neoliberal globalitário propaga: a) a concentração dos recursos materiais e a exclusão das maiorias, b) o controle hegemônico do poder político pelos segmentos que controlam o capital, virtualizando cada vez mais a democracia, c) a saturação de informações e a fragilização da autonomia crítica da sociedade; d) uma moral individualista centrada na vantagem privada (em que as relações sociais ficam subordinadas ao mercado) e que renega a promoção da liberdade alheia, quando está não contribui, ainda que mediatamente, para a realização do acúmulo de riqueza sob a ordem neoliberal.
4. O Socialismo Democrático e a Promoção da Liberdade
As quatro condições, anteriormente citadas, são mediações ao exercício da liberdade, considerando a subjetividade como sendo historicamente situada. Considerando-as, a reelaboração da utopia socialista e democrática pode avançar hegemonicamente como alternativa ao atual modelo neoliberal globalitário. Como enfatiza Tarso Genro, é impossível manter a força da utopia socialista se a esquerda ficar presa aos parâmetros peculiares à segunda revolução industrial: "Da sua cultura, da sua ética, do seu modo de vida, advém a proposta de um modelo de produção destrutivo da natureza. Modelo que se choca inclusive com a finitude, já constatável, dos recursos do planeta e que se opõe frontalmente à segurança ecológica e a um desenvolvimento sustentável, elementos irrenunciáveis de um projeto socialista moderno." (739) Frente ao quadro da atual revolução tecnológica ele destaca que "o desenvolvimento concreto da economia e da cultura na sociedade informática abre duas possibilidades extremas para a relação Estado x sociedade: ou um totalitarismo informático, manipulatório e subjugador da maioria da sociedade pelo Estado ampliado (aparelho estatal + monopólios modernos); ou abre a possibilidade da democratização radical do Estado, pelo controle direto e indireto da cidadania." (740) No primeiro caso, trata-se do regime globalitário e, no segundo caso, da afirmação de um projeto socialista e democrático. A recomposição deste projeto afirma, também, "a existência de um espaço público, de caráter não-estatal... capaz de ser estruturado, entre o Estado e a sociedade, para potencializar formas de participação capazes de combinar a democracia direta com a estabilidade da representação política." (741) A força desta alteração deve implicar a emergência de novas relações de poder, que se originam da indignação não-conformista.
As grandes utopias coletivas que visam satisfazer as quatro condições do exercício da liberdade - que anunciamos anteriormente - necessitam expressar-se como projetos políticos que combatem toda forma de exploração, dominação e injustiça. Estes projetos são uma crítica real ao modelo neoliberal que prega justamente um certo individualismo, que torna as pessoas indiferentes ao drama dos que são excluídos do trabalho, do consumo e do conhecimento, entre tantas outras exclusões, que coloca o acúmulo do capital por alguns acima do direito público de realização da liberdade. Trata-se pois de aprimorar-se o projeto político socialista, democrático e popular, que é uma alternativa ao modelo neoliberal. Tal projeto socialista é expressão de uma concepção ecológica de preservação da biodiversidade e de interferência equilibrada nos ecossistemas, e expressão de uma concepção antropológica de promoção da diversidade cultural, respeitando as singularidades dos diversos povos e grupos, quando não são incompatíveis com a promoção universal da liberdade e da dignidade humana. Este projeto, que já está delineado, articula desenvolvimento com distribuição de renda, promovendo a geração de empregos e incorporando ao mercado consumidor as massas atualmente excluídas. É possível, pois, uma alternativa democrática a este modelo neoliberal que o dogma do pensamento único pretende impor a todos.
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NOTAS:
732. Se, de fato, a realização de um projeto coletivo exige ordem e disciplina, é preciso entretanto que haja um acordo coletivo acerca do objetivos do projeto e de suas mediações - coerentes com o desejo do outro em sua liberdade eticamente exercida - a partir das quais uma autoridade se afirma pelo respeito da liberdade pública e não a partir da imposição de seus interpretantes particulares como se fossem universais.733. Sobre isso veja-se: Euclides André MANCE. "Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares". Revista de Cultura Vozes, Ano 85, N.6, nov dez 1991, p. 645-671 (www.aol.com.br/mance)
734. Veja-se Arturo Roig "La dignidad humana y la moral de la emergencia en América Latina" em: SIDEKUM, Antonio. (org) Ética do discurso e filosofia da libertação - modelos complementares, Editora UNISINOS, 1994.
735. Veja-se Euclides André MANCE. "Quatro Teses Sobre o Neoliberalismo". Revista Filosofazer. Passo Fundo, IFIBE, Ano 6, Número 11, 1977, pp. 83-103 (www.aol.com.br/mance)
736. Folha de São Paulo, 17-10-97, p.1-14
737. Gazeta Mercantil, 21 a 23-02-97, Leitura de Fim de Semana, p.1
738. NEUTZLING, Inácio. A Transformação Político-Econômica do Capitalismo no Final do Século XX. CEPAT, Curitiba, 1995 p. 12
739. GENRO. "A síndrome FHC da intelectualidade"
740. Ibidem
741. Ibidem