Euclides André Mance
Globalização, Subjetividade e
Totalitarismo
- Elementos para um
estudo de caso: O Governo Fernando Henrique Cardoso
Copyright do Autor © 1998
Conclusão
O capitalismo globalizado fragiliza, cada vez mais, o exercício das liberdades pública e privada da maioria da população mundial. Sob a lógica do acúmulo privado de capital, a democracia vai sendo enfraquecida e subsumida por um regime globalitário, gerenciado por uma elite mundial que decide onde, quando e sob quais condições investir seu capital. Essa elite é capaz de promover alterações nas hegemonias políticas e legislações nacionais ou modelizar semioticamente elementos culturais particulares em função de seus interesses globais através de processos de produção de subjetividades. Assim, sob o capitalismo globalizado, a garantia das condições fundamentais para o exercício da liberdade - condições materiais, políticas, educativo-informacionais e éticas - fica prejudicada. Isso é perceptível ao considerarmos o aumento da pobreza, do desemprego, da precarização das relações de trabalho e a fragilização das políticas sociais no mundo todo e particularmente no Brasil, caso que estudamos em detalhe.
Destacamos que esse movimento hegemônico do regime globalitário perpassa o conjunto das relações sociais, políticas e culturais das sociedades nas quais é implantado e implementado. Analisando o caso brasileiro, em particular o governo de Fernando Henrique Cardoso, pudemos analisar que os poderes constituídos do Estado - o legislativo, o executivo e o judiciário - atuam hegemonicamente na implantação desse projeto e que as mídias de massa - graças ao aprimoramento das tecnologias comunicativas e das estratégias de produção de subjetividades - desempenham um papel decisivo para que esse movimento hegemônico possa cumprir-se. Por outra parte, destacamos também que o movimento de resistência democrática, que enfrenta esse modelo neoliberal globalitário, perpassa a sociedade civil e a sociedade política que se interpenetram. Assim, tanto no legislativo, no executivo, no judiciário, quanto nas mídias existem ações que se opõem à implantação desse modelo, que já se encontra em fase avançada no Brasil. Os parlamentares de esquerda, embora sendo minoria no país, se desdobram em ações propositivas e críticas em nível federal, estadual e municipal. Em prefeituras e governos estaduais, algumas gestões tentam avançar na implementação de mecanismos democráticos e populares, do mesmo modo que, a nível federal, alguns órgãos e institutos com certa autonomia disponibilizam publicamente informações que alimentam a luta da resistência democrática. Também no judiciário, uma parcela dos operadores do direito atua contra-hegemonicamente ao desmonte do Estado e não aceita converter-se em mero instrumento de legitimação do regime globalitário. Do mesmo modo, também se verifica um movimento de resistência democrática na ação de uma parcela da imprensa que busca promover uma informação qualitativamente relevante e indicialmente sustentada, que amplie as possibilidades de reflexão criteriosa e do exercício de liberdade dos que são por elas informados. Sem dúvida alguma, entretanto, são os setores populares da sociedade civil organizada os principais sujeitos da resistência democrática que enfrenta a implementação do regime globalitário no país.
Diferentemente dos regimes totalitários clássicos, os regimes globalitários necessitam que uma oposição exista e que ela apareça em ações a serem veiculadas pelas mídias. É fundamental a ocorrência de eleições - para que o eleitor possa escolher entre várias opções - e a existência de uma imprensa crítica. É fundamental que denúncias sejam feitas pela oposição, que parlamentares corruptos sejam cassados, que manifestações sociais ocorram protestando contra os governos, etc. Nada disto, entretanto, deverá resultar em entraves para a implementação das políticas econômicas que é o objetivo maior do regime. Este é o coração do modelo. Tudo o que possa dificultar a transferência do capital acumulado no país ao controle dos megaconglomerados internacionais será enfrentado com os mais diversos procedimentos semióticos, políticos ou econômicos. Esta é, simultaneamente, a grande força do regime globalitário, mas também a sua fraqueza, pois ele necessita preservar espaços em que uma contra-hegemonia possa se exercer, embora deva contê-la, impedindo que inviabilize o próprio projeto hegemônico. Assim se é possível que os trabalhadores, em países de regime globalitário, possam sair em protesto pelas ruas e possam eleger seus representantes, por outro lado coage-se tais representantes a não implementarem políticas contra-hegemônicas ao globalitarismo capitaneado pelos megaconglomerados, pois se o fizerem, os capitais internacionais se vão, o FMI e o Banco Mundial não fornecem mais financiamentos e o resultado seria a tragédia econômica dos países.
Contudo, o cenário pode ser outro quando nos espaços contra-hegemônicos se consolida não apenas a resistência, mas se inicia a implantação, pelo poder público, de um projeto alternativo, democrático e popular, introduzindo mecanismos de distribuição de renda, de promoção de atividades produtivas que gerem postos de trabalho, mecanismos de acesso a informações qualitativas e relevantes, bem como, para o desenvolvimento da habilidade em articulá-las e compreendê-las. Se os milhões de excluídos puderem produzir com as tecnologias que já lhes sejam disponíveis, se tiverem condições de satisfazer medianamente as condições materiais ao exercício de sua liberdade, se estiverem envolvidos politicamente com a consolidação de um projeto democrático substancial, se tiverem a habilidade de criticar as semioses publicitárias que conduzem ao consumo alienado e se forem capazes de consumir com a preocupação de garantir os postos de trabalho gerados por estas políticas, inicia-se, então, um movimento de acúmulo de poupança interna e a geração de um forte mercado consumidor. Progressivamente, o desenvolvimento de novas tecnologias adequadas ao potencial geoestratégico nacional, a redução progressiva da jornada de trabalho e a promoção da distribuição de renda e o crescimento da poupança interna vão reafirmando a soberania nacional - diminuindo as pressões das dívidas - e ampliando as mediações ao exercício das liberdades públicas e privadas. De fato, o trabalho produz riquezas e o consumo não alienado tanto amplia a liberdade do consumidor quanto pode garantir a permanência de postos de trabalho no mercado nacional, quanto ampliar a poupança interna que alavanca o desenvolvimento tecnológico do país. O consumo não alienado ocorre com a compreensão de que nele a produção encontra sua finalidade ou seu acabamento e que ele tem impacto sobre todo o ecossistema, isto é, de que o consumo é a ultima etapa de um processo produtivo e que as escolhas de consumo podem influenciar tanto na geração ou manutenção de postos produtivos em uma sociedade em que se garante a autonomia pública, quanto na preservação de ecossistemas, na reciclagem de materiais, no combate à poluição ou na promoção do bem estar coletivo da população de sua comunidade, de seu país e do planeta. De outra parte, a internacionalização desse modelo - em que o trabalho e o consumo alienados dão lugar ao trabalho e ao consumo voltados a garantir o bem estar da comunidade e do país - permitiria que tecnologias sem pagamentos de royalties ou de direitos de cópia fossem apropriadas por outras populações nas mesmas condições, em vistas da realização do mesmo projeto socialista e democrático. A complementariedade das economias internacionais, de suas poupanças se faria, então, em função da universalização das liberdades e não em favor do acúmulo da maior parte da riqueza do planeta por algumas centenas de milhares de pessoas. Criar-se-ia mecanismos públicos - de caráter estatal ou não - como elementos mediadores desses movimentos contra-hegemônicos de capitais. Se os fundos de pensão atualmente existentes, por exemplo, fossem gerenciados - por uma decisão política dos trabalhadores que os possuem - não sob a lógica da globalização mas de uma internacionalização econômica solidária, eles poderiam fomentar significativos movimentos de geração emprego com distribuição de renda.
Quando falamos de um poder público, referimo-nos a algo maior que o Estado no sentido estrito. A consolidação de um poder público somente é possível como consolidação de um poder popular, isto é, como um bloco de forças sociais que, atuando em diversas esferas da sociedade civil e da sociedade política, consolida uma hegemonia alternativa ao globalitarismo vigente. Para que esse bloco de forças sociais possa avançar ele necessita realimentar sua utopia coletiva a partir das singularidades emergentes nos diversos segmentos sociais, ampliando os espaços de realização da liberdade pública, considerando as quatro mediações já analisadas.
O estudo de caso, feito neste livro, apontou, pelo contrário, que há uma tendência em se acentuar o caráter globalitário do regime democrático no Brasil, que tem como conseqüência o enfraquecimento do poder público - especialmente o estatal - em promover ações voltadas à realização da cidadania. A forte articulação dos setores políticos hegemônicos dominantes - que alinhavaram a transição pelo alto, da ditadura militar ao modelo neoliberal - com setores de mídia televisiva e da grande imprensa também hegemônicos - que igualmente apoiavam a ditadura e que agora apoiam as reformas neoliberais - possibilitou a permanência no poder de um mesmo bloco de forças que, após o impeachment de Collor, se recompôs no governo de Fernando Henrique. Trata-se da implementação, a partir dos anos 90, de um mesmo projeto, com uma pequena variação dos atores.
Em contrapartida, os esforços de resistência democrática perceptíveis em ações dos movimentos sociais-populares, de uma parcela de parlamentares, prefeitos, governadores de esquerda, operadores do direito e de uma parcela de jornalistas e veículos de imprensa, encontram dificuldade em legitimar-se socialmente em razão das capturas semióticas que os modelizam através das mídias de massa, gerando interpretantes adversos às suas ações, como sendo danosas aos interesses do país ou perigosas à estabilidade econômica e política nacional. Como entretanto, a existência desses segmentos é uma necessidade do próprio modelo para legitimar-se e como as forças hegemônicas não podem controlar esses setores que agenciam linhas de fuga da semiose hegemônica, subvertendo os seus jogos de poder, permanece possível que - em razão da insatisfação social decorrente dos reveses econômicos do modelo - uma contra-hegemonia avance em um movimento de substancial democratização do país. Somente a radicalização da democracia substantiva - com vistas à promoção das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas - pode ser o caminho de enfrentamento do globalitarismo. Na construção dessa contra-hegemonia, entretanto, é necessário considerar os elementos já analisados de produção de subjetividade e de composição das utopias pessoais com as utopias coletivas, sem o que a liberdade privada pode aniquilar a liberdade pública ou a liberdade pública pode se realizar em detrimento do legítimo exercício ético da liberdade privada. No cerne desse movimento contra-hegemônico está a afirmação de eixos de luta, articulados ao socialismo democrático e ecológico, que se apresenta como configuração alternativa de sociedade ao modelo neoliberal. Para o avanço deste movimento contra-hegemônico, é necessário promover a realização das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas como meio e fim da organização das relações sociais, bem como agenciar interpretantes energéticos e afetivos que singularizem a experiência histórica cotidiana do face-a-face com os excluídos e marginalizados, movendo o conjunto da sociedade a ações que visem superar as causas estruturais da exclusão e marginalização. Nos últimos anos no Brasil, as lutas pela ética na política, na economia e na cultura são expressão de uma outra forma de conceber a organização da sociedade, em que a liberdade privada não pode negar a liberdade pública ou vice-versa, quando ambas se orientam eticamente. Trata-se, pois, da afirmação de uma sociedade em que ambas as liberdades se promovam reciprocamente para a realização, a mais plena possível, de todas as valiosas singularidades de cada ser humano, de cada cultura, de cada povo.