Aonde nos levará essa loucura?

Euclides Mance
25/03/2021

Quando os portugueses aportaram nestas terras, enxergaram um mundo de oportunidades para enriquecer. Movidos pela sede de fortuna, passaram a pilhar o que de valioso encontravam. Pessoas que aqui viviam, em suas comunidades milenares, foram escravizadas e mortas, subjugadas para propósitos econômicos e sexuais – sendo tratadas como coisas, usadas e descartadas, pois não teriam alma.

Nascia, desse modo, o Brasil, um país dividido entre os que mandavam e os que obedeciam. Entre aqueles que tinham o poder sobre a vida e a morte dos demais. E aqueles que, para sobreviver, tinham de submeter-se à dominação e trabalhar como escravos ou resistir e enfrentar a opressão, defendendo a sua dignidade, a sua liberdade, sua honra e cultura, até a morte se preciso fosse.

A resistência indígena tornou inviável a escravidão dos povos que aqui viviam, impossibilitando a exploração econômica de seu trabalho. E os portugueses tiveram de buscar escravos em outras terras, que depois foram substituídos por trabalhadores assalariados vindos de qualquer parte.

Aos membros dessa elite, sempre colonial, importava enriquecer e ir embora daqui. Sonhavam em voltar patacudos para a Europa e desfrutar do patrimônio que haviam acumulado às custas do sangue, da vida e da exploração do trabalho alheio.

Tal cultura de saqueio, dominação e de indiferença à morte de milhões de indígenas e negros, de seus filhos e mestiços, permaneceu no Brasil ao longo de sua história. A elite que a reproduz, nos dias atuais, também espera enriquecer com a exploração do trabalho alheio e a pilhagem da coisa pública, para depois gozar a vida na Europa ou nos Estados Unidos. Ou, ao menos, desfrutar anualmente de algumas semanas ou meses por lá. Para ela, é inaceitável que os filhos da classe trabalhadora ingressem nas universidades; que pessoas humildes tenham direito a melhores salários e que lhes seja possível viajar de avião pelo país.

Mas a transparência completa dessa cultura abominável, agasalhada por expressiva parte da classe dominante brasileira, revela-se cristalina na situação atual que o país atravessa. Para essa pequena parcela abastada da sociedade, pouco importa quantos brasileiros morrerão infectados pelo coronavírus. Por isso, desde o início da pandemia, ela nada fez para frear ou conter amplamente a propagação desse vírus. Preocupou-se, tão somente, em assegurar que houvesse vagas de UTI disponíveis para os membros da própria elite, para atendê-los em caso de necessidade.

Assim, criou-se um sistema para permitir a propagação do vírus, contabilizando-se as vagas disponíveis de UTI. Havendo vagas que permitam atender os membros da elite, defende-se que tudo esteja aberto, pouco importando que a transmissão do vírus se amplie e os mais pobres morram de Covid-19 – afinal, os membros da elite, sempre isolados do povo, dificilmente contrairiam a doença, imaginavam. Por outra parte, não havendo tais vagas disponíveis, eles concordam em fechar o que for necessário, para não ficarem desatendidos de uma UTI, em caso de serem acometidos por apendicite, infarto, AVC etc.

No início dessa pandemia, estudos científicos publicados pelo Imperial College London, projetavam que poderia haver 1,1 milhão de mortes no Brasil por Covid-19. Refazendo essas projeções, em abril de 2020, com base em declarações do Ministério da Saúde e em detalhes das condições de habitação e saneamento no país, concluímos que poderia haver entre 1,5 a 1,7 milhão de mortos, se medidas de prevenção do contágio não fossem amplamente tomadas. [1].

Mas, infelizmente, a morte prevista de centenas de milhares de pessoas, que poderia ser evitada com medidas corretas para reduzir o contágio, não teve a menor importância para as elites que governam o Brasil: –“Fazer o quê?” “Esse vírus é igual a uma chuva, vai molhar 70% de vocês”, disse o presidente sociopata, em abril de 2020.

Mas aonde nos levará essa loucura? O atual ministro da Saúde afirmou que garantirá a vacinação de um milhão de pessoas por dia [2].  Supondo que haja vacinas para isso, seriam necessários 100 dias para vacinar 100 milhões de brasileiros – pouco menos da metade da população. Mas, se as mortes provocadas pelo Coronavírus permanecerem em duas mil ao dia, nos próximos 100 dias teremos 200 mil mortes, que somados às 300 mil já ocorridas, resultarão em meio milhão de vidas perdidas. Porém, se todas as vagas de hospitais estiverem ocupadas, no atendimento dos pacientes de Covid-19, também morrerão muitos dos que precisarem de assistência médica em consequência de acidentes de trânsito, infartos, AVC etc.

Os empresários em geral e os banqueiros em particular já se deram conta de que a própria vida deles está em risco. Mas uma parte dos políticos do Congresso Nacional ainda não. Em mais três meses, entre os mortos dessa doença, estarão, com certeza, não apenas os filhos da classe trabalhadora, obrigados a sair de casa para garantir o alimento da sua família, mas também esposas, filhos, mães ou outros parentes dos próprios deputados e senadores que representam os interesses das elites desse país e que sustentam, até agora, o seu Governo genocida. Por serem base de apoio desse Governo, eles são igualmente responsáveis pelas milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas.

É possível que quando o número absurdo de mortes ultrapasse a 400 mil, em mais seis ou sete semanas, a manter-se o patamar atual de mortes diárias, Bolsonaro já não seja o presidente do Brasil. Mas poderá ter sido tarde demais, para mudar o desfecho dessa tragédia, anunciada desde março de 2020.

As UTI’s da Casa Grande e o Genocídio na Senzala

Euclides Mance
7 de Jul de 2020

Enquanto avança o genocídio na senzala, a casa grande vai “passando a boiada”, mantendo o ritmo das mortes em nível adequado para que existam UTI’s disponíveis, em caso de que seus membros necessitem de algumas delas

Fonte da Imagem: Observatório da Crise

De cada cem pessoas infectadas pelo novo coronavírus, ao menos uma delas morrerá. O grande temor da Casa Grande brasileira, dos que vivem no andar de cima da injusta apropriação da riqueza socialmente produzida em nosso país, não é quantos brasileiros despossuídos morrerão em consequência da covid-19 nas periferias urbanas, prisões e aldeias indígenas, nos bairros de classe média ou onde quer que estejam, no interior do semiárido nordestino ou nas margens dos rios que cruzam a Amazônia brasileira. O temor dos que vivem no andar de cima, usufruindo da boa vida que lhes é propiciada, direta ou indiretamente, pelos lucros acumulados com a exploração do trabalho alheio, é que algum deles contraia essa doença e não tenha uma UTI disponível para ser atendido no sistema de saúde.

Por isso, as políticas adotadas pelos governos do capital em nosso país, não são destinadas a evitar a propagação do vírus, com testagem massiva, rastreamento dos infectados, isolamento e tratamento dos doentes. Pois isso pouco importa para os que estão no andar de cima. O que lhes importa é assegurar que haja UTI’s disponíveis para o caso de algum deles necessitar de atendimento médico que exija terapia intensiva. Assim, as medidas referentes a liberar ou não atividades que possam acelerar a propagação do vírus, giram sempre em torno do grau de ocupação desses equipamentos.

É duro chegar a essa conclusão, de que a vida dos mais pobres pouco vale para a chamada “elite brasileira”, que manipula a opinião de uma grande parte da sociedade com o domínio dos meios de comunicação social ao sabor de suas conveniências – mesmo para fazê-la crer na “Solidariedade S.A.”, espécie de merchandising em que grandes empresas fazem caridade, noticiada em rede nacional, com verbas que antes seriam usadas em publicidade. A essa conclusão, de que a “elite brasileira” pouco se importa com o genocídio em curso, somos forçados a chegar por evidências concretas e, até mesmo, pelo cinismo de declarações de autoridades públicas em nosso país.

Em 22 de março o então Ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou: “O que a gente sabe é que quando passa de 50% da população infectada, o vírus já não consegue multiplicar mais na mesma velocidade. Se vai ser 50%, 60% ou 70% da população, isso é secundário.” [1] Assim, se 50% da população brasileira for infectada, morrerá aproximadamente um milhão de pessoas. Se forem 70%, morrerão, aproximadamente, 1,4 milhão. Mas, para o ex-ministro, “isso é secundário”. E cabe salientar que a letalidade do vírus era bem conhecida na ocasião de sua declaração, pois os dados sobre a covid-19 sempre estiveram amplamente divulgados pela OMS.

Na política genocida do Governo Bolsonaro, que até mesmo vetou a obrigatoriedade do uso de máscaras no comércio, nas escolas e igrejas ou a distribuição gratuita delas pelo Estado para as populações carentes [2], parece que quanto mais rápido 70% da população for infectada, mais rápido o país terá se livrado da pandemia: “Esse vírus é igual uma chuva, vai molhar 70% de vocês. Isso ninguém contesta. Toda nação vai ficar livre da pandemia depois que 70% for infectada e conseguir os anticorpos”. [3] [4]

Entre o capital e a vida, o governo optou pelo capital. Afinal, se houvesse testagem massiva e gratuita para todos que apresentassem algum sintoma, quem pagaria entre R$ 250,00 a R$ 560,00 por um teste em clínicas particulares? [5] Durante algum tempo, pareceu mesmo que se tratava de criar um amplo mercado consumidor de Cloroquina com a propagação do vírus, para beneficiar algumas empresas fabricantes desse medicamento e seus acionistas, entre os quais alguns financiadores de campanhas e partidos no Brasil ou nos Estados Unidos [6] [7]. E, mesmo depois que estudos científicos comprovaram os seus riscos, o Governo Federal continuou insistindo em sua administração no tratamento da Covid-19 no Brasil. [8]

Mas, talvez, nada tenha sido mais cínica que a proposta do Ministro da Economia Paulo Guedes em criar o chamado “passaporte da imunidade”, que permitiria a volta ao trabalho dos que fossem testados e tivessem resultado positivo para anticorpos do novo Coronavírus. [9] No dia 4 de abril ele afirmou que na fase 2 poderiam ser testados 40 milhões de brasileiros por mês: “Hoje pela manhã, conversávamos com um amigo na Inglaterra, que criou o ‘passaporte de imunidade’. Ele faz 40 milhões de testes. Ele coloca disponível para nós, brasileiros, 40 milhões de testes por mês” [10].

Ora, se no começo de abril estavam disponíveis 40 milhões de testes por mês para o país, 120 milhões de brasileiros poderiam ter sido testados até agora. Mas não o foram. Pois, para o andar de cima, os testes não serão feitos para identificar os infectados, rastrear os contágios e conter a propagação do vírus. Mas para confirmar que os sobreviventes do contágio na senzala, poderão voltar a trabalhar. Por isso somente seriam feitos na fase 2 da pandemia. Assim, o trabalhador contrai o vírus na fase 1 e, se a família dele não receber um “atestado de óbito” por sua morte, ele próprio receberá o “passaporte da imunidade” na fase 2.

O que importa mesmo, para o andar de cima que mantém esse governo genocida, é o que afirmou o Ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente: “Precisa ter o esforço nosso aqui enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura de imprensa, porque só fala de covid, e ir passando a boiada, ir mudando todo o regramento e simplificando normas, de Iphan, de Ministério da Agricultura, Ministério do Meio Ambiente, ministério disso, ministério daquilo”[11]. No Ministério da Economia, como diz Guedes, “se aprovarem a [privatização da] Eletrobras temos R$ 16 bilhões. Fica agora no Orçamento e vendo no segundo semestre.” [12] Trata-se de transferir o patrimônio público para a iniciativa privada. Trata-se, entre outros objetivos, de privatizar a Educação, fortalecer o setor privado da Saúde, entregar refinarias da Petrobras, grandes extensões do solo e as riquezas do subsolo do país ao capital internacional.

E, assim, enquanto avança o genocídio na senzala, a casa grande vai “passando a boiada”, mantendo o ritmo das mortes em nível adequado para que existam UTI’s disponíveis, em caso de que seus membros necessitem de algumas delas. E, por fim, Paulo Guedes poderá pedir ao seu “amigo” da Inglaterra que comece a enviar os 40 milhões de testes mensais ao Brasil, para verificar quais dos sobreviventes desse genocídio estarão aptos a voltar ao trabalho, para produzir a mais-valia a ser acumulada como lucro pelas forças econômicas que governam o nosso país.

Publicado originalmente em: https://www.observatoriodacrise.org/post/as-uti-s-da-casa-grande-e-o-genoc%C3%ADdio-na-senzala