Falácias de Moro

Euclides Mance
29 / 12 / 2017

O livro “Falácias de Moro” (ISBN: 978-85-69343-40-0) pode ser descarregado neste link:

http://www.euclidesmance.net/docs/livro_falacias_de_moro.pdf

Nele realizamos uma análise exaustiva das principais inconsistências lógicas, tanto semânticas quanto formais, presentes na sentença condenatória do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá.
 
O livro se divide em duas partes, demonstrando que os argumentos do juiz violam frequentemente as leis da lógica para obter conclusões que não podem ser validamente obtidas.

Na primeira parte, analisamos dez falácias, explicando-as uma a uma, indicando sua forma lógica e a nomenclatura  filosófica recorrente na tipificação desses raciocínios falhos, facilitando sua análise e estudo com base na tradição acadêmica.

Na segunda parte, percorremos a sentença como um todo, evidenciando os diferentes erros lógicos cometidos pelo juiz no transcorrer de sua argumentação. E mostramos como a condenação do ex-presidente está apoiada justamente nessas inconsistências lógicas.

A primeira versão desse estudo foi publicada em agosto de 2017 pela Agência Latino-Americana de Informação – ALAI. https://www.alainet.org/en/node/187329

Agradeço a interlocução realizada, nas semanas seguintes, com professores de lógica que trabalham em diferentes universidades no Brasil, possibilitando aperfeiçoar aquele estudo inicial, ora publicado como livro.

Boa leitura a todos/as.

 

 

O voto como capital político

Euclides André Mance
26 de Maio de 2017

O dinheiro somente funciona como capital quando é  investido num processo de produção e/ou de intercâmbio que visa resultar em mais dinheiro do que o inicialmente investido, sendo acumulado esse valor a mais, no todo ou em parte, por seus controladores.

Tudo o que possa ser capturado sob esse movimento de valorização e acumulação econômica pode se converter em capital. Assim, pessoas, comunidades e a inteligência humana se convertem em capital humano, capital social e capital intelectual, pois podem ser explorados na valorização do capital, tornado-se, desse modo, fatores de valorização do capital e de acumulação de riquezas.

Como temos visto no Brasil, esse mesmo movimento pode ocorrer pela subordinação dos votos, conferidos no interior dos aparelhos de Estado, ao processo econômico de acumulação de capitais, sendo pois convertidos em capital político à disposição de seus controladores.

O processo é similar ao modo como o grande capital, disputando mercados, busca obter o controle de empresas de capital aberto, comprando a maioria das ações ordinárias com direito a voto.

A diferença é que, neste caso, trata-se de obter o controle sobre decisões do Estado, financiando a maioria das campanhas eleitorais ou oferecendo propinas aos agentes públicos com poder de decisão, obtendo-se com tais investimentos — respectivamente, de longo e de curto prazos –, a quantidade de votos necessária à aprovação ou rejeição de projetos e programas em favor dos interesses dos controladores desse capital político, isto é, desse capital que, investido no processo político, resulta em acumulação econômica de mais capital.

Assim, na atividade de reprodução ampliada de seu poder político, como mediação para a reprodução ampliada de seu capital econômico, somente uma empresa, a  JBS, distribuiu propinas a 1.829 candidatos de 28 partidos, somando mais de R$ 600 milhões, fora as doações legais no financiamento de campanhas eleitorais [1].

Algumas grandes empresas chegaram mesmo a estruturar departamentos internos com funcionários destacados para cuidar de preservar seu capital político no interior do Estado, tanto pelo fluxo contínuo na eleição de candidatos comprometidos com suas pautas econômicas quanto pela posterior manutenção de sua lealdade através de pagamentos periódicos — para que atuassem como passarinhos felizes que cantam ao receber o alpiste [2].

Chegaríamos a uma cifra seguramente estarrecedora, se fosse possível saber e somar tudo o que foi investido pelo conjunto das empresas capitalistas  na eleição de parlamentares que operam como seus representantes no interior do Estado e na compra posterior de votos de outros parlamentares, não inicialmente financiados por elas, para aprovar seus projetos estratégicos ou para derrotar projetos que são contra os seus interesses  em câmaras de vereadores, assembleias legislativas e no Congresso Nacional .

Mas dado que no Reino dos Fins, como dizia Kant, tudo tem seu preço ou a sua dignidade, o capital nunca consegue comprar os votos de todos, pois a consciência e a dignidade de uma parte dos eleitos não estão à venda nesse mercado. E quando a sociedade, exercendo criticamente seu voto, elege como seus representantes — nas esferas do poder executivo e legislativo —  pessoas historicamente comprometidas com os interesses dos mais pobres e excluídos, com a defesa dos direitos dos trabalhadores e a justa distribuição da riqueza socialmente produzida, as bancadas do capital não conseguem exercer seu poder político como forças da situação. E, embora tentem cooptar os eleitos em tudo o que seja possível, agem de fato como forças de oposição.

Dessa forma, as organizações do grande capital montam sempre suas bancadas, maiores ou menores, financiando as campanhas de seus parlamentares, para atender aos interesses de suas empresas em particular e, no geral, aos interesses da classe econômica de que fazem parte. Cabe recordar que o próprio golpe de Estado, que deu origem à República Brasileira foi patrocinado por forças econômicas, particularmente latifundiários e cafeicultores, que aumentavam seus ganhos com a imigração de mão-de-obra europeia para suas lavouras, substituindo assim o trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Para a consumação daquele golpe de 1889, coube às forças políticas e militares imporem à sociedade a nova ordem que traria o progresso ao país.

Em nossa história, como na história dos demais países, as bancadas do grande capital, são compostas por parlamentares de diferentes partidos políticos. Para compreender isso, cabe recordar o sentido histórico e originário da palavra partido,  que significa uma parte da sociedade, que defende um mesmo projeto ou interesses comuns.

Tais parlamentares, independentemente de suas legendas partidárias, são braços do que se pode chamar, com propriedade, de partido econômico do capital, que conforme as conjunturas se agrupa ou se separa em diferentes agremiações políticas, conformando blocos com interesses comuns, sem eliminar contudo as divergências que mantêm entre si — particularmente na disputa travada pela acumulação da mais-valia entre o capital produtivo (agrário, industrial e de serviços) que produz valores de uso e o capital improdutivo (comercial, financeiro e de serviços), que opera somente na circulação dos valores econômicos.

Tais representantes políticos são eleitos para defender os objetivos estratégicos do capital em geral, favorecendo sempre aos interesses do capital produtivo, comercial e financeiro. Bem como, para derrotar quaisquer projetos que distribuam a riqueza, defendam a classe trabalhadora ou o interesse público, em detrimento da realização dos objetivos de acumulação privada do capital.

Esse partido econômico, no sentido sociológico de uma parte da sociedade, é constituído, em seu conjunto, por todos os grupos econômicos que defendem em linhas gerais o mesmo projeto capitalista de sociedade, baseado na acumulação privada de lucro com a exploração do trabalho subordinado ao capital.

Os braços desse partido econômico operam igualmente no executivo e no judiciário.

Dele fazem parte todos os grandes veículos de comunicação que operam via rádio, TVs, Internet ou mídia impressa e que, recaindo na mesma classe de empresas com fins lucrativos, atuam com a mesma lógica de maximização da acumulação privada de riqueza com a exploração do trabalho subordinado em suas áreas de atuação.

A participação desse setor de mídias no golpe de estado de 2016 pode ser verificada pelo que lhe coube do butim, como vemos na tabela abaixo, com a reconcentração da verba de publicidade federal nos grandes grupos de comunicação.

Em números absolutos, o aumento de seu faturamento com publicidade estatal, comprova que o golpe de estado foi um negócio bastante lucrativo para o Grupo Globo, principal expoente na propagação em todo o nosso país das teses defendidas pelo partido econômico do capital. Nisso se destaca o trabalho incansável dos comentaristas econômicos da Globo News e da rádio CBN — fazendo jus, ao Grupo, abocanhar uma grande parte desse butim, que depois será gasto, entre outras coisas, possivelmente, para oferecer prêmios a cidadãos que fazem a diferença no Brasil.

Mas também foi um bom investimento para o restante do andar de cima do poder de mídia desse mesmo partido, como se pode ver no gráfico a seguir.

A famosa foto do trio que teve papel relevante no golpe de Estado de 2016 foi registrada justamente num evento promovido pela Revista Isto é. Mas, como comprovar que o aumento de 1.384,1 % que a revista obteve no recebimento de verbas publicitárias do governo federal nos últimos 12 meses teria sido uma contrapartida de Michel Temer à empresa controladora dessa revista pelos bons serviços prestados ao conceder honrarias a tais personagens em sua tentativa de consolidar o golpe?

Não basta, porém, às forças desse partido econômico conquistar apenas o poder de decisão no interior do Congresso, somando os votos de seus representantes em favor de suas causas, ou no executivo com seu serviçal de ocasião, disposto a sancionar e despachar a realização de seus pleitos. Devem fazer o mesmo também no interior do poder judiciário.

Nesse caso, a  corrupção de um magistrado pode ocorrer pelo mesmo mecanismo da oferta de dinheiro ou de vantagens materiais em troca de sentenças – razão pela qual alguns juízes já foram condenados e presos no Brasil. Mas, por outra parte, a corrupção dos valores que norteiam um juiz também pode ocorrer de forma mais sutil, pela cooptação de sua interpretação sobre  atores, eventos  e sobre particularidades das matérias que irá julgar, para que seu juízo seja favorável aos interesses dos sujeitos que personificam o capital, como protagonistas do desenvolvimento econômico, cultural e social que deve ser apoiado e propagado em todo o país.

A estratégia adotada nesse caso é conceder ao magistrado prêmios e participação em eventos de ampla repercussão social, movendo a sua vaidade, autoestima e presunção, que acabam alimentando, em vários deles, até mesmo atitudes de pedantismo e jactância – peculiares a alguns juízes e ministros que se imaginam isentos de quaisquer interesses particulares em suas decisões.

Em razão disso, se creem no dever de  passar por cima das leis do país, condenando pessoas sem provas com base em supostos “indícios” noticiados pela mídia; ou, mesmo, de violar o Artigo 5º da Constituição e dispositivos do processo judicial ao divulgar ilegalmente grampos telefônicos de conversas privadas; ou, ainda, de  julgar como válido constitucionalmente um Golpe de Estado parlamentar, sob a alegação de um pretenso crime de responsabilidade fiscal — ainda que certos parlamentares, minutos após terem votado em favor do impeachment, dessem entrevistas à imprensa afirmando abertamente que a presidente não havia cometido crime algum, apenas perdido o apoio parlamentar da maioria no Congresso[3].

Em consequência desses votos e decisões favoráveis obtidas no poder  judiciário para consolidar o golpe, formalmente realizado como um impeachment, o partido econômico do capital guindou ao comando do poder executivo da República o despachante das reformas que lhe interessam — despachante que jamais poderá tocar nos lucros do sistema financeiro, que deve implementar reformas para aumentar a taxa de lucro das empresas  e que negocia, no varejo, benesses a empresários em particular, que são retribuídas com generosas porções de alpiste, como vemos nas imagens abaixo.

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Preposto do presidente Michel Temer recebendo R$ 500 mil em propinas da JBS [4].

Se perguntado em juízo, talvez Sergio Moro não saiba dizer de memória, sem antes consultar a sua agenda, de quantos eventos empresariais tenha participado nos últimos quatro anos, em que os aplausos recebidos dos convidados do grande capital projetaram a sua fama em manchetes de primeira página de jornais e no horário nobre das TVs, para tornar-se um dos 100 homens mais influentes do mundo, segundo a revista Time. Uma simples busca no Google sobre “Moro é homenageado” resulta em mais de 11 mil resultados. E nas fotografias que surgem, há algumas muito ilustrativas,  em que ele aparece à frente de painéis de patrocinadores dos eventos de que participou, que assim associam suas logomarcas à imagem do juiz, mesmo que, por hipótese, algumas delas pudessem estar financiando a compra de votos de deputados ou a produção de adesivos verde-amarelos em favor da Lava Jato ou de pixulecos e outdoors daqueles que poderiam ser condenados com o seu imparcial julgamento, interpretado como a realização de um bem ao país – mesmo que, para isso, faltem provas e sobrem convicções aos procuradores da Lava Jato sobre  atores, eventos  e particularidades de matérias correlatas.

Mas, afinal, quem paga pelas viagens, hotéis, translados e cerimônias em que o juiz é homenageado?
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Em cinco casos, as fotos são bem  ilustrativas para supormos uma resposta. Pelo que aparece na foto da esquerda, possivelmente seriam o Citibank, a empresa fabricante do whisky Johnny Walker e os controladores da revista Time na condição de patrocinadores daquele evento.  Nas fotos do centro a Confederação Nacional da Indústria, Kia Motors e os grupos que controlam as revistas Dinheiro, Isto é e Veja.  Nas fotos da direita, o Grupo Globo que lhe concedeu o premio Faz Diferença – também  concedido a Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia. E na última delas, que possivelmente não envolveu  gastos de viagens, hotéis, etc., o juiz recebe uma homenagem da Federação do Comércio do Paraná. Ou será que todas as despesas de sua participação nesses eventos nacionais e internacionais terão sido custeadas pelo próprio juiz?

Ora, porque os controladores do capital das empresas que patrocinam esses eventos investem tanto dinheiro para conceder essas premiações a juízes e a outras autoridades que operam no seio do Estado? Porque se trata de um investimento em capital político que pode se reverter em ganhos econômicos, seja com o marketing social, ao associar sua imagem a essas figuras veiculadas como heróis que fazem a diferença no país e no mundo, seja porque, ao gerar afinidades e sentimentos de gratidão nesses seres humanos, criam um ambiente de interpretação favorável aos seus interesses.

A tal ponto os interpretantes gerais desses atores vão sendo modelados por lógicas disseminadas por esses meios, que a Força Tarefa da Lava Jato adotou uma definição muito simples a respeito do que é doação legal de campanha e o que é propina:

“Se eu quero doar para um candidato, isso é regular, é legal. Outra coisa é pagar propina disfarçada de doação eleitoral” [5].

Mas como saber se o que um partido recebeu era propina ou doação legal, se tudo foi devidamente registrado conforme a lei exige e aprovado na prestação de contas da campanha eleitoral?

Ora, para tanto, nessa abordagem, bastaria saber quem está na situação ou na oposição e relacionar, por proximidade temporal, a data de alguma doação à data de aprovação de algum projeto ou medida que teria beneficiado direta ou indiretamente o doador — ainda que não haja qualquer prova material de conexão causal entre os fatos.

Em razão desse método de trabalho adotado na Lava Jato, Deltan Dallagnol, ao ser questionado porque o Ministério Público não investigava políticos do PSDB, particularmente Aécio Neves,  acusado pela Odebrecht de receber R$ 50 milhões em propina, simplesmente  respondeu:

“O PSDB não fazia parte da base aliada do governo do PT. Como o PSDB não fazia parte dessa base aliada, não foram indicadas pessoas do PSDB [para cargos] por exemplo como diretores da Petrobras. Não tem como achar na Petrobras corrupção de um diretor ou presidente até porque não existia diretores do PSDB”[6].

Dallagnol parece, pois, enxergar o mundo ao revés. Não percebe que os políticos corruptos estão a serviço do poder do capital e não o contrário. Parece não perceber que, por isso, o poder do capital compra votos corrompidos tanto da situação quanto da oposição, conforme a conveniência de aprovar ou rejeitar aquilo que é de seu interesse, para ampliar ou preservar os seus ganhos, não importando a coloração das  legendas partidárias de seus ativos políticos, mobilizados nessas votações conforme suas necessidades.

A origem dessa inversão talvez seja uma possível leitura religiosa da prosperidade econômica, que estaria presente no imaginário do procurador, segundo a qual, o enriquecimento do capitalista seria fruto da graça de Deus que o abençoa e não da exploração do trabalho alheio que ele contrata, do qual extrai a mais-valia que não paga ao trabalhador e que acumula como propriedade sua.

Assim, do pedestal da ingenuidade coletiva ou do cúmulo do cinismo político, operadores da  Lava Jato, adotando esse método de investigação foram usados, na primeira hipótese, ou atuaram  cinicamente, na segunda, como um braço  político —  apoiado pelo partido econômico do capital, com adesivos amarelos espalhados pelo país em favor da Operação, com homenagens e premiações conferidas a seus ícones em eventos patrocinados por grandes empresas nacionais e multinacionais, com direito a capas de revistas e farta propaganda – para a difusão de convicções, sem provas, sobre crimes de corrupção que conduziram a opinião pública do país ao apoio de um golpe de Estado parlamentar, capitaneado por  Aécio Neves (PSDB),  Michel Temer e Eduardo Cunha (PMDB) e legitimado pelo Supremo Tribunal Federal.

Porém, graças a decisões do ministro Teori Zavascki  — que talvez tenha pago com a própria vida pela coragem de havê-las tomado — e do ministro Edson Fachin, abandonou-se  a metodologia defendida por Dallagnol e assumida pela Força Tarefa da Lava Jato, de não se investigar políticos e partidos  que não compusessem a base aliada do PT  — metodologia essa que continuava a ser defendida publicamente pelo procurador,  mesmo depois da apreensão de planilhas, na casa de um ex-executivo da Odebrecht,  que detalhavam valores ligados a 316 políticos de 24  partidos [7].

Assim, abandonado o método de investigar somente a base aliada dos governos petistas, em poucos semanas de investigação sobre fatos e não sobre suposições, a Polícia Federal comprovou, materialmente, atos de corrupção envolvendo Aécio Neves e Michel Temer, os dois principais protagonistas do Golpe de Estado de 2016, que deverão agora defender-se em  juízo.

No presente momento, entretanto, ao partido econômico do capital não interessa proteger esse ou aquele preposto, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário. O importante para ele — no emprego de seu capital político, isto é, no uso do poder dos votos que tem no Congresso e no Judiciário — é consolidar os objetivos de seu projeto econômico de privatizar tudo o que puder, repetido à exaustão pelos dirigentes,  analistas e jornalistas das empresas que compõem esse bloco hegemônico de poder por meio de todos os canais de mídia de que dispõe.

Por isso, como estampam alguns jornais, os  empresários elevam sua pressão pela aprovação das reformas previdenciária e trabalhista, destacando que as “reformas são mais importantes […] do que preservar Temer”, pois sem elas o país não geraria empregos, a previdência quebraria e não sairíamos da crise — como repete o mantra da ideologia que se pretende impor como verdade absoluta. Porém tais medidas visam basicamente aumentar a acumulação de capitais por agentes privados com o pagamento de juros pelo Estado, forçar o aumento da demanda por previdência privada com a   reintrodução da moderna lei dos sexagenários (em que o assalariado de hoje, como o escravo no Brasil imperial, somente poderá deixar de trabalhar aos 65 anos de idade) e com o aumento da taxa de lucro das empresas, a ser obtido cortando-se custos com a supressão de direitos históricos dos trabalhadores.

Mas qual é o principal instrumento de pressão que um empresário possui para tanto? Seria apenas um voto na próxima eleição, como qualquer cidadão comum? Não! Seu instrumento de pressão é a magnitude do seu capital para, entre outras coisas, financiar ou não as próximas campanhas eleitorais de seus representantes, para investir ou não na  região em que o  parlamentar atua,  para convidá-lo ou não a programas de rádio e TV, para fazer cobertura positiva ou negativa de seu mandato nas páginas de jornais e revistas.

Afirma-se textualmente numa dessas matérias que “empresas que faturam mais de R$ 1 bilhão […] orientaram seus interlocutores no Congresso a pressionar pela continuidade de votações”[8].

E assim, legendas partidárias, reputações pessoais e instituições sociais são trituradas, para que as dívidas dos bancos e do agronegócio junto ao erário  sejam perdoadas, para que os campos do pré-sal sejam entregues a corporações estrangeiras, para que quase 50% das verbas do orçamento público sejam destinadas religiosamente a remunerar o capital financeiro e para que as verbas de publicidade federal sejam ainda mais reconcentradas nos veículos hegemônicos do partido econômico do capital.

O que fica claro, para qualquer pessoa de bom senso, é que, para reverter a destruição em curso de nossa democracia pelas forças do capital, não basta trocar os personagens no comando do Estado, se eles continuarem a encenar o mesmo texto redigido por esse bloco hegemônico.

Para reverter esse quadro é necessário realizar eleições diretas e gerais, assegurando-se a posse de um novo presidente e de um novo Congresso, segundo a vontade popular,  acumulando forças para realizar um programa de medidas voltadas à desprivatização do Estado e à libertação das forças produtivas no país, sob o controle autogestionado dos trabalhadores e de suas comunidades. Isso possibilitará que o desenvolvimento econômico nacional ocorra de forma sustentável, assegurando-se maior igualdade na apropriação social dos meios de produção e de intercâmbio e da riqueza socialmente produzida no país.

É preciso, igualmente, realizar, junto dessa mesma eleição, um Referendo Revogatório em que se delibere pela revogação das alterações da Constituição, da alienação do patrimônio público e da supressão de direitos sociais realizadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer, que responde apenas aos interesses do capital, nacional e estrangeiro, e não ao bem comum do povo brasileiro.

É preciso seguir protestando, ocupando as ruas e aprofundando a reflexão  com o conjunto da sociedade sobre os projetos de país que estão em disputa. Desse modo, unindo mobilização, organização e educação popular torna-se possível acumular as forças necessárias para que não seja eleito, de maneira indireta pelo Congresso Nacional, como numa assembleia de acionistas, um outro presidente-despachante, num jogo de votos capitalizados, somando-se a maioria dos votos de parlamentares, já previamente convertidos em capital político pelas forças econômicas que atuam junto ao Congresso Nacional.

 

A Economia Solidária nas Teses apresentadas ao 6º Congresso do Partido dos Trabalhadores

Euclides André Mance
05 de Abril de 2017

No conjunto das dez teses apresentadas ao 6º Congresso do PT, a expressão “economia solidária” aparece apenas cinco vezes.

Isso revela a marginalidade do tema no debate estratégico em curso no interior do partido – mesmo após a realização no país de três Conferências Nacionais de Economia Solidária e de dois mapeamentos nacionais de Empreendimentos Econômicos Solidários que, segundo estudo publicado pelo IPEA, apontam a existência de mais de 1,4 milhão de trabalhadores diretamente atuantes nessas iniciativas autogestionárias1.

Por isso, cabe perguntar: em que medida o PT se reconhece como expressão política dessa parcela da classe trabalhadora brasileira e que papel ele atribui à autogestão da classe trabalhadora sobre os meios de produção e de intercâmbio como elemento estratégico para a realização da libertação das forças produtivas e para a construção do socialismo democrático no Brasil?

O que se vê nas teses apresentadas ao debate do 6º Congresso, em relação à segunda questão, está aquém do já acumulado, tanto nos documentos gerados e aprovados nacionalmente pelos atores da economia solidária, quanto no debate político e acadêmico sobre o caráter emancipatório da autodeterminação de fins e da autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades.

Das cinco passagens mencionadas, em duas delas a expressão economia solidária é usada apenas para caracterizar o desmonte de políticas públicas realizado pelo governo golpista de Michel Temer2. Numa terceira, aparece associada, genericamente, a valores do socialismo3.

Por sua vez, na quarta referência, no penúltimo parágrafo de uma tese, afirma-se que:

“É preciso […] constituir elementos materiais e imateriais novos tanto na economia como na vida social que fujam do controle do capital financeiro, enfrentem o mercado ou se autonomizem em relação aos monopólios e oligopólios (como a economia camponesa e as economias solidárias e a produção agroecológica); que construam estruturas coletivas de gestão dos bens comuns, sem transformá-los em mercadorias.” [Tese Alternativa: Crítica, Autocrítica e Utopia, parágrafo 107]

Por fim, na última referência, a economia solidária é relacionada às formas cooperativas de trabalhar, nos quadros de uma economia de transição ao socialismo:

“A economia de transição ao socialismo deve ser compreendida como a combinação de quatro setores fundamentais, regida por leis e direitos que regulem seu funcionamento: a propriedade estatal, as companhias mistas, as empresas privadas e as distintas formas cooperativas de trabalho. Nosso programa inclui o fortalecimento dos empreendimentos não-monopolistas e da economia solidária, estimulando a diversidade do dinamismo econômico e reduzindo o peso dos oligopólios privados.” [Optei – Em Defesa do PT, parágrafo 13]

A fragilidade na elaboração sobre esse tema, reduzido a duas frases em 10 documentos, necessita ser revertida até a conclusão do 6º Congresso, cabendo ao PT recuperar o acúmulo já existente sobre o assunto, para debatê-lo, criticá-lo e posicionar-se claramente, em sua estratégia política, sobre as duas questões anteriormente formuladas.

Além da leitura dos documentos das três Conferências Nacionais de Economia Solidária e dos resultados do mapeamento nacional de empreendimentos econômicos solidários, sugiro outros três textos para problematização e aprofundamento desse tema:

Nesses três textos, que elaboramos nos últimos anos, fica evidente como a economia solidária pode atuar na libertação das forças produtivas e na construção do socialismo democrático no Brasil.

________________________________________

NOTAS:

1 SILVA, Sandro Pereira; CARNEIRO, Leandro Marcondes. Os novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos – Relatório de Pesquisa. IPEA, 2016. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7410/1/RP_Os Novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil_2016.pdf Acesso em: 05/04/2017

2 O texto o faz nos seguintes termos:

“além disso, […] o governo golpista [….] rebaixou a Secretaria Especial de Economia Solidária. […]. A médio e longo prazo, assistiremos ao desmonte do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda, com a aprovação de propostas de focalização das políticas de emprego (seguro desemprego, abono salarial, etc.) e o fim dos Programas de Apoio e fortalecimento da Economia Solidária.” [Manifesto da CNB/PMB. Em defesa do Brasil, em defesa do PT, em defesa de Lula, parágrafos 73 e 82]

3 Nesta, afirma-se ser necessário

“retomar o PT como espaço de formação dos valores do socialismo: democracia participativa, socialização da produção, economia solidária […]”. [Tese Nacional – Mensagem ao Partido – Por um partido socialista e democrático! Por um governo democrático-popular!, parágrafo, 9]

A Estratégia Democrático-Popular

Euclides André Mance
23 de Março de 2017

Introdução

A estratégia democrático-popular, elaborada no seio da esquerda brasileira na década de 1980, tem sua formulação inicial marcada por aquele momento histórico. Na década seguinte ela foi aperfeiçoada em vários aspectos, com a elaboração coletiva sobre os desdobramentos de sua própria execução pelos atores do campo democrático e popular. Em síntese, ela apresenta uma alternativa às estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade socialista.1

A partir do final dos anos 90, entretanto, essa estratégia foi gradativamente abandonada pelos setores hegemônicos da esquerda no Brasil, em favor de composições pragmáticas cada vez mais amplas com os então chamados setores progressistas do empresariado nacional. A fragilização do campo democrático-popular, resultante desse abandono, facilitou a consumação do golpe de estado jurídico parlamentar de 2016.

Nas páginas deste artigo, apresentamos apenas alguns elementos gerais e introdutórios ao tema.

Democracia e Socialismo

Ao longo do tempo, a democracia assumiu diversas formas de realização histórica. Embora signifique etimologicamente o poder (kratos) do povo (demos), geralmente as formas de intermediação para a sua realização institucional são marcadas por contradições entre classes sociais, nas quais o poder do Estado não é, em maior medida, posto ao serviço do interesse público – isto é, do povo, do bem comum, do bem público – mas ao serviço de interesses privados das classes economicamente dominantes que o hegemonizam.

Contrapondo-se ao uso do Estado pelas forças do capital, os setores populares da sociedade civil em diferentes países – isto é, a população organizada em movimentos sociais, entidades e partidos que defendem projetos políticos e sociais que atendam aos interesses das classes trabalhadoras e da maioria da população em geral, particularmente das populações mais empobrecidas, vulneráveis, excluídas e negadas em sua dignidade humana – conformam o que se pode denominar como campo democrático e popular. Construindo e consolidando o poder público não-estatal – isto é, o poder do povo, o poder popular – buscam ampliar sempre mais a participação institucional das classes populares na definição e gestão das políticas públicas, estatais e não-estatais, através de mecanismos como fóruns, redes, plenárias, conferências, conselhos, orçamentos participativos, plebiscitos, referendos, etc.

Busca-se, portanto, a consolidação da democracia e a sustentação das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas de todos, sob os aspectos econômico, político, social e cultural, assegurando-se, entre outras coisas,  a liberdade de pensamento, de expressão e de organização, a pluralidade de partidos políticos e de representação, a composição solidária das formas de apropriação pessoal, associativa e pública de meios produtivos e de intercâmbio, a defesa da autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades para o desenvolvimento sustentável de suas iniciativas e de seus territórios, a educação permanente de todos, a transparência  e o acesso público à informação de qualidade e a democratização da comunicação para tomadas de decisão criteriosas e bem fundamentadas.

Diferentemente da social-democracia ou da ditadura do proletariado, que aspiram reformar ou revolucionar o modo de produção capitalista e sua formação social pelo uso hegemônico dos aparelhos de Estado, a estratégia democrático-popular, numa de suas vertentes, assenta-se em tecer, consolidar e expandir o poder público não-estatal a partir do setor democrático e popular das sociedades, com suas redes econômicas, de poder e de conhecimento, que vão transformando as relações econômicas de produção, intercâmbio, consumo e financiamento, as relações políticas e culturais da sociedade numa perspectiva libertadora, introduzindo e expandindo em todos os espaços possíveis os elementos de um novo modo de produção, autogestionado pelos trabalhadores e por suas comunidades, de um novo sistema de intercambio, fundado no valor de uso como satisfator das necessidades humanas, e de uma nova formação social, substantivamente democrática.

Somente acumulando forças cada vez maiores no seio da sociedade civil em torno de eixos estratégicos de luta, que se materializam em formas de ação direta – nos campos econômico, político e cultural –, de elaboração de políticas públicas e de confronto com o Estado ou de participação institucional estatal, torna-se possível ampliar o poder popular no controle interno dos aparelhos de Estado. A eleição de governos democráticos e populares, como consequência desse acúmulo de forças convertido em poder popular, tem por objetivo central – com a ampla participação institucional dos setores democráticos e populares – desprivatizar o Estado, colocando-o ao serviço do interesse público e da proteção do bem comum, suprimindo pois a sua subordinação aos interesses do capital.

Poder Público Estatal e Poder Público Não-Estatal

A distinção qualitativa realizada na estratégia democrático-popular entre força e poder, entre acúmulo de forças e conquista do poder, mantém uma distinção clássica entre sociedade civil e Estado. Mas é um equívoco considerar que a conquista do poder se refira exclusivamente à conquista do controle dos aparelhos de Estado. Pois o acúmulo de forças na disputa de hegemonia não visa apenas o controle desses aparelhos, mas a real transformação da sociedade como um todo, seu modo de produção, seu sistema de intercâmbio e sua formação social.

Como o novo modo de produção e de intercâmbio deve ser organizado por livres produtores associados, eles estão na base do novo poder público que se constrói. A livre associação dos produtores é elemento central da economia solidária, cujo caráter transformador se revela quando é praticada como economia de libertação e não apenas como forma de sobrevivência ou de resistência.

Assim, o poder do povo, o poder popular, o poder público é a base fundante da democracia, que sustenta e protege as liberdades públicas e pessoais de todos e não os interesses do capital. Quando a acumulação de forças na sociedade civil resulta em organizações sociais de caráter permanente, democraticamente autogestionadas pelos seus participantes com uma perspectiva de libertação da classe trabalhadora para a realização de tais liberdades, essa acumulação de forças resulta em poder popular. Ao atuar na defesa do interesse público, do bem comum, com autodeterminação de fins e autogestão de meios, esse poder popular se converte em expressão do poder público não-estatal. A consolidação desse poder público não-estatal depende da atuação conjunta e colaborativa dessas organizações, somando suas forças e seus poderes para expandir o projeto de sociedade que defendem.

A grande ilusão alimentada nas estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado é que o poder está centralmente objetivado no Estado. E que, com a conquista dos aparelhos de Estado, torna-se possível efetivar a revolução socialista. Pois, como a experiência histórica demonstrou, o poder de Estado, resumido ao poder exercido através dos aparelhos do Estado, é apenas uma face do exercício do poder político – entendendo-se político como poder determinado pela contradição entre classes. E que ele é insuficiente para instituir, consolidar e proteger um novo modo de produção e um novo sistema de intercambio, ante as pressões internas e externas do capital.

Diferentemente, a estratégia democrático-popular, em determinada perspectiva, enfatiza o papel da acumulação de forças e da construção autogestionada do poder público não-estatal como condição essencial, para que a eleição de governos democráticos-populares resultem efetivamente no avanço e consolidação do novo modo de produção, do novo sistema de intercâmbio e da nova formação social, que vão sendo construídos e consolidados ao mesmo tempo em que se travam as lutas no plano político em torno de eixos de luta estratégicos2 .

Sob a estratégia democrático-popular, formulada em 1987, um governo assim eleito deve, ser capaz de

realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio […]: é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, […] que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; […] a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões […] na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”3.

Eixos de Luta e Programa de Transição

Na definição mais elementar dos anos 1980, “acumular forças […] é acumular experiências de lutas bem-sucedidas e acumular vitórias.”4 Uma luta bem-sucedida, entretanto, não apenas alcança seus objetivos imediatos e conjunturais mas, contribui para a realização de objetivos estratégicos e estruturais.

No aprofundamento de como articular as lutas populares dessa maneira, surgiu a noção de eixo de lutas5. Um eixo de lutas possui quatro características básicas: mobiliza amplos segmentos sociais em sua defesa, atende a demandas imediatas desses segmentos, combate as estruturas capitalistas que geram a insatisfação dessas demandas e introduz formas pós-capitalistas de atendê-las. Como exemplos de eixos de luta, citamos apenas três: a reforma agrária, a reforma urbana e a economia solidária.

As reformas agrária e urbana atendem às demandas imediatas de terra para plantar e para morar, confrontam o latifúndio rural e a especulação imobiliária urbana. Mas, somente se consolidam como eixos de luta, se desenvolvem formas pós-capitalistas de realizarem a produção e o intercâmbio dos frutos da reforma agrária, a produção autogestionada de moradias e a organização do poder popular na autogestão democrática e participativa de seu território.

No caso da economia solidária, ela somente pode ser considerada eixo de lutas quando realiza a libertação de forças produtivas. Nesse caso ela atende a demandas imediatas de consumo, produção, intercâmbio e financiamento de iniciativas populares e solidárias. Além disso, combate as formas de alienação no consumo, a exploração do trabalho pelo capital produtivo e pelo capital mercantil, a expropriação dos consumidores pelo capital comercial na obtenção dos meios econômicos para a satisfação de suas necessidades e a espoliação pelo capital financeiro no pagamento de dívidas. Ela igualmente introduz estruturas pós-capitalistas, ao realizar a produção, o intercâmbio e o financiamento de forma autogestionada por trabalhadores e trabalhadoras; ao desenvolver um novo sistema de intercâmbio compondo simultaneamente compras, trocas e dádivas, libertando a capacidade produtiva de criação de valor de uso da realização do valor de troca, que ficaria restrita aos limites de dinheiro disponíveis para o intercâmbio dos bens e serviços produzidos ou produzíveis se não entrassem em operação os mecanismos de intercâmbio não-monetário e de dádivas em circuitos econômicos solidários; compartilhando, em fundos solidários de caráter público não-estatal, recursos excedentes gerados na reprodução ampliada do valor, que permitem a realização da libertação das forças produtivas, com a realização de investimentos para a expansão das capacidades de produção, intercâmbio e desenvolvimento tecnológico do setor, passando a produzir não apenas bens de consumo final, mas igualmente meios de produção e novas tecnologias.

Nos anos 90, outros eixos de luta estavam em construção. Movimentos que enfrentavam a discriminação de gênero, racial, sexual e cultural vão concebendo eixos de luta buscando o atendimento de suas pautas imediatas, o combate às ideologias racistas, machistas e preconceituosas, o combate à moral autoritária e ao direito injusto que legitimam práticas opressivas contra essas populações e a afirmação de uma nova ética na sociedade civil que defenda as liberdades de todos e a afirmação de novos direitos no plano do estado, objetivando-se em lei a garantia dessas novas condutas. Na época, aplicava-se a esse eixo de lutas o conceito de cidadania.

Estava claro para esses movimentos que a mudança desejada no exercício de poder nas práticas cotidianas no seio da sociedade – com o respeito e acolhimento da dignidade humana vivida em sua plena diversidade – não se faz pela imposição de um direito estatal, mas pelo resgate da sensibilidade ética de todos frente a dignidade humana de cada pessoa, sensibilidade essa mutilada pela cultura de dominação existente. Isso exigia, portanto, uma crítica da cultura de massas e dos elementos reacionários da cultura popular, gerando-se assim uma cultura popular que revolucionasse o capitalismo, o machismo, o racismo e todas as formas de exercício autoritário do poder nas relações micropolíticas do cotidiano. Em outras palavras, não se tratava apenas de “eliminar do cotidiano a discriminação e o preconceito, mas fundamentalmente de construir novas relações interpessoais liberadas de todos os códigos culturais opressivos, possibilitando a vazão do desejo em práticas singularizantes que, sendo incompatíveis com as dinâmicas e códigos de reprodução do capitalismo, avancem como revolução cultural, afirmando uma nova sensibilidade ética e estética”6 – horizonte tido como necessário a um novo projeto político.

Assim, o programa democrático e popular não se reduz a um programa de transição no sentido clássico, isto é, “um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”7.

E não corresponde ao que na social-democracia se denominava programa mínimo, com reformas limitadas ao quadro da sociedade burguesa, nem ao chamado programa máximo, prometido para um futuro incerto, quando seria realizada a superação do capitalismo pelo socialismo.

A elaboração do programa democrático e popular é realizada pelos próprios setores democráticos e populares da sociedade civil organizada, que formalizam, em qualidade e escala, suas próprias demandas, que as reformulam dialogicamente em politicas públicas e que concebem as formas de atendê-las de maneira autogestionada, com o fortalecimento do poder público não-estatal e a participação do poder estatal, quando esta participação seja possível.

Assim, a natureza das demandas varia conforme variam as bandeiras de luta dos diferentes movimentos sociais-populares. A partir da explicitação coletiva dessas demandas e das interfaces que elas mantém entre si, elas são integradas em eixos de luta estratégicos, que tanto contribuem para a unificação social das lutas, como para a atividade educativa de politização da sociedade – considerando as estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais a serem superadas e as novas a serem construídas para o atendimento dessas demandas –, como também para a intervenção política de confronto com o Estado ou de intervenção no seu próprio interior, seja pelos mecanismos de participação institucional conquistados, seja pela eleição de governos democráticos e populares que devem pautar suas ações visando reforçar e consolidar a hegemonia dos atores democrático-populares na sociedade em torno desses objetivos estratégicos.

Modo de Produção Socialista e Economia Solidária

Na década de 80, após a anistia (1979) e a organização de novos partidos, forças do campo democrático e popular concentraram esforços na organização da Central Única dos Trabalhadores e, posteriormente, na Central de Movimentos Populares. É nesse contexto que se delineia a formulação inicial da estratégia democrático-popular de construção do socialismo.

Naquela época não havia o acúmulo, hoje existente, sobre como os empreendimentos econômicos solidários – de produção, intercâmbio, consumo e financiamento – podem ser capazes de avançar, em seu conjunto, na libertação das forças produtivas, com a reprodução ampliada do valor econômico que eles podem realizar ao atuar de maneira colaborativa entre si; ou sobre como podem participar ativamente na organização de um modo de produção e de intercâmbio de caráter socialista, pelo contínuo desenvolvimento de suas forças produtivas em contradição com as forças do capital.

Focada na análise do funcionamento do capital e na crítica das relações capitalistas de produção, todas as formas de economia popular, familiar ou comunitária, que proliferaram a partir dos anos 80, não mereceram, inicialmente, maior atenção na estratégia democrático-popular. Elas eram agrupadas com outras atividades econômicas de pequeno porte, nas quais ocorre a exploração capitalista do trabalho subordinado, identificando-se indistintamente a esses milhões de pequenas empresas, negócios, serviços e trabalhadores autônomos com a etiqueta de pequena burguesia8, considerada, entretanto, aliada estratégica dos trabalhadores assalariados para a construção do socialismo democrático.

Afirmava-se em 1987 que:

a pequena produção serve para que a sociedade desenvolva suas forças produtivas, contribua para que não haja escassez de bens e serviços e permita incorporar ao trabalho o conjunto da população economicamente ativa, sem prejudicar a eficiência das empresas socialistas nem a constante redução da jornada de trabalho. Essa política de desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade, utilizando todas as forças econômicas, é a base da aliança dos trabalhadores assalariados com a pequena burguesia urbana e rural. Essa aliança é, pois, uma questão estratégica, referente tanto à destruição do capitalismo quanto à construção do socialismo9.

Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90, retomando-se elaborações de diferentes matrizes teóricas e de práticas históricas de organização dos trabalhadores, vão sendo delineados na América Latina distintos conceitos de economia popular e solidária, possibilitando melhor compreender as diferentes particularidades desses atores econômicos associativos em relação aos demais. Em 2008, a Constituição do Equador, em seu artigo 283, por exemplo, reconhece que “o sistema econômico se integrará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária.”

Numa das definições de economia solidária recorrentes na América Latina, a ênfase recai na autodeterminação de fins e na autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades, conceito que se difunde a partir do socialismo autogestionado, praticado nas nações que compunham a Iugoslávia, após o seu rompimento com o stalinismo em 1950. Nessa definição,

a autogestão é, antes de tudo, uma relação socioeconômica entre os homens que se funda no principio da distribuição segundo o trabalho e não sobre a base do capital […]. A autogestão é […] uma categoria socialista. A mesma só pode desenvolver-se no campo da propriedade social, isto é, em relações de propriedade em que os meios de produção e o capital social não são propriedade privada do capitalista nem de grupos de trabalhadores de determinadas empresas, nem objeto de gestão monopólica do aparato burocrático ou tecnocrático do Estado.”10

A noção de autogestão, amplamente difundida, refere-se à gestão dos trabalhadores sobre as atividades de produção econômica com base nos princípios de autonomia, horizontalidade, democracia direta ou delegada, revogabilidade de mandato e rotatividade de funções. Mas também é compreendida, em algumas abordagens, tanto como uma forma possível de transição para a superação do capitalismo quanto a forma realizada do modo de produção e de intercambio da nova sociedade pós-capitalista.

Alguns supõem que a mera multiplicação de iniciativas de autogestão em meio ao capitalismo possibilitaria aos trabalhadores e às suas comunidades conquistarem a autonomia econômica e política – a sociedade dos produtores livremente associados – sem que para isso fosse necessário realizar uma ruptura do poder político e econômico do capital, exercido por ele sobre o Estado e a sociedade. Diferentemente disso, a estratégia democrático-popular salienta a necessidade de realização dessa ruptura, como já explicitado anteriormente.

A recente retomada do debate sobre a estratégia democrático-popular em partidos de esquerda no Brasil, ao mesmo tempo em que apontou limitações históricas em sua formulação original também permitiu recolher importantes aprendizados sobre os avanços e reveses das lutas da classe trabalhadora em nosso país, permitindo abrir novas e diferentes perspectivas de atualização dessa estratégia de construção do socialismo democrático.

Conclusões

Houve um importante acúmulo teórico e prático nos Brasil, nos anos 80 e 90, sobre a estratégia democrático-popular para a consolidação de um poder popular, fundado na autonomia das organizações e na sua integração em ações diretas e institucionais, visando atender a demandas imediatas da população, combater estruturas de dominação econômica, política e cultural e construir um modo de produção, um sistema de intercâmbio e uma formação social socialistas.

Mas, infelizmente, os governos de centro-esquerda no Brasil, nos diferentes níveis da federação, apesar dos processos de participação popular e dos avanços sociais alcançados com as diferentes políticas públicas adotadas, abandonaram progressivamente a estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, de realização de um programa mínimo, circunscrito aos limites de um desenvolvimento econômico nacional, totalmente subordinado às forças do capital produtivo, comercial e financeiro, tanto nacional quanto internacional.

Pareceram haver esquecido que sem a consolidação de um poder público não-estatal, ficariam totalmente vulneráveis frente as contradições entre os próprios setores hegemônicos do capital, particularmente em meio às disputas entre o capital produtivo e o capital mercantil pela maior acumulação possível – com sua disputa na realização de lucros – da mais-valia gerada pelo trabalho produtivo; ou frente as disputas e alianças entre setores do capital nacional e internacional quanto aos rumos da economia do país, em função de seus interesses privados sobre os ativos nacionais.

Pareceram haver esquecido, pois, da velha máxima socialista: que a burguesia sempre retoma no futuro com a sua mão direita o que concede no presente com sua mão esquerda, por meio de diferentes mecanismos de exploração, expropriação, espoliação e exclusão, que invariavelmente sempre atingem em cheio as classes trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

ANAMPOS. Relatórios dos Encontros Nacionais – 1980 a 1989. Cadernos de Textos, N. 6. Cefuria, Curitiba, s.d. Disponível em: http://solidarius.net/mance/biblioteca/anampos.pdf Acesso em: 22/03/2017

MACHADO, João. O que foi o “Programa Democrático e Popular” do PT? Disponível em: http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/O que foi o PDP.pdf Acesso em 22/03/2017

MANCE, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

PT. Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional. Brasília, 1987. Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acesso em: 22/03/2017

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Notas:

1 Um dos primeiros documentos de elaboração coletiva em que ela é abordada em suas linhas gerais e pode ser tomado como ponto de partida para sua posterior problematização e crítica, constitui-se das Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em dezembro de 1987.

2 Claro está que esse conceito de poder púbico não estatal nada tem a ver com o conceito de público não estatal utilizado por Fernando Henrique Cardoso e Bresser Pereira em sua política neoliberal de desestatização, que passou a transferir recursos estatais para organizações sociais de interesse público prestarem serviços até então realizados pelo estado. Lei n.º 9.637/1998

3 Resoluções Políticas, par. 75

4 http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf

5 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

6 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

7  https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm

8  “Os setores que chamamos normalmente de camadas médias e pequena burguesia — sendo, estes últimos, trabalhadores e também proprietários de seus meios de produção — embora tenham interesses comuns com a burguesia (por exemplo, algumas camadas de pequenos proprietários vivem da exploração do trabalho assalariado, ainda que em pequena escala) têm, também, profundas contradições com o capitalismo, que os coloca cotidianamente sob ameaça de arruinamento e de proletarização.” Resoluções Políticas, par. 92

9  Resoluções Políticas, par. 42

10  Edições CLAS (Cuestiones Actuales del Socialismo). “Autogestão Socialista Iugoslava. Noções Fundamentais”. Belgrado, 1980. Apud NASCIMENTO, Claudio. Autogestão: Economia Solidária e Utopia. In: Outra Economía – Volumen II – No 3 – 2o semestre/ 2008, p. 28

Senadores golpistas admitem que Dilma não cometeu crime de responsabilidade

Euclides Mance
2 de Setembro de 2016

Dois senadores que votaram pelo impeachment admitiram publicamente — em entrevista e nota abaixo anexadas — que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. Ora, se ela não cometeu os crimes que se lhe imputavam, eles não poderiam, como juízes, votar por sua condenação, exceto violando as bases legais do julgamento, agindo, portanto, em flagrante desrespeito à lei.

Assim, embora ambos senadores, por esse motivo, devessem perder o seu mandato parlamentar, pois sua conduta  violou o juramento de cumprir a Constituição, realizado na cerimônia de sua posse, muito possivelmente nada lhes ocorrerá.

Sabe por que? Porque a Constituição será rasgada outra vez, pois estamos vivendo sob um regime de exceção, engendrado por um Golpe de Estado Parlamentar.

O período da Nova República, iniciado em 1985, infelizmente acabou. Entramos em uma nova fase da história política do país, com o golpe desfechado contra a Constituição em 31 de Agosto de 2016.

Anexos:

 

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Qual é o SEU voto?

Euclides André Mance
31 de Agosto de 2016

Hoje, os  senadores deverão responder sim ou não à seguinte pergunta, enunciada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que conduz a sessão do impeachment:

“Cometeu a acusada, a Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União (art. 11, item 3, da Lei nº 1.079/50) e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional (art. 10, item 4 e art. 11, item 2, da Lei nº 1.079/50), que lhe são imputados e deve ser condenada à perda do seu cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo oito anos?”

Responda você mesmo, você mesma!

Quando você atrasa o pagamento de uma conta de telefone ou de qualquer outro serviço contratado, o que são os juros de mora que incidem sobre essa conta? Está claro, são juros de mora, referentes, portanto, a atraso. Os  juros de mora devidos à companhia telefônica ou à empresa que lhe prestou o serviço correspondem a algum empréstimo em dinheiro que elas fizeram a você? A lei brasileira é clara: diz que não. Não fosse assim, todas empresas registrariam  em suas contabilidades, para cada atraso de pagamento, uma correspondente operação de crédito, no exato valor do juro de mora pago, tendo como credor do empréstimo a empresa que lhe prestou o serviço que foi pago em atraso. Os juros de mora do Plano Safra, pagos pelo Governo Dilma, referem-se, igualmente, ao atraso de pagamentos ao prestador do serviço que fornece crédito aos agricultores, pois são juros de mora, não tendo havido empréstimo de dinheiro do prestador do serviço ao Governo Federal.

Quanto à segunda pergunta, sobre a “abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional” leia você mesmo, você mesma, essa autorização, que está publicada no Diário Oficial da União, no dia 22/04/2015. Ela está nesse link no site da Câmara dos Deputados e diz: “Art. 4º Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8º da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas:

As alterações dessa lei, aprovadas pelo Congresso, estão neste outro link da Câmara dos Deputados. Leia e comprove que os créditos suplementares abertos pelo Governo Dilma, com base nessa autorização, previamente recebida do Congresso e publicada no Diário Oficial da União, estão “compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015. A lei não exige que a compatibilidade seja bimestral  mas anual: para o exercício de 2015. E por que o faz? Porque é impossível saber, de antemão, quanto será arrecadado ao final de cada bimestre, cabendo ao governante, pelo monitoramento da arrecadação realizada ao longo do ano, ajustar os gastos, sem extrapolar, no exercício anual, o limite autorizado pela lei orçamentária.

No presente momento, nem mesmo o Tribunal de Contas da União tem uma decisão final sobre o exercício de 2015, pois o prazo para o envio de documentos solicitados, a serem apreciados pelo Tribunal, foi estendido até 8 de Setembro. Assim, qual é a base legal para a reprovação das contas de 2015?

Como você pode ver, a resposta para as duas perguntas iniciais é: não. Não há crime de responsabilidade apurado nesse processo. Esse impeachment, se for aprovado, por qualquer outra razão que seja, é um Golpe de Estado. É uma violação do meu voto e do seu voto, não importa em quem tenhamos votado.

Se qualquer maioria eventual de parlamentares puder destituir um presidente, governador ou prefeito com o apoio dos que foram derrotados nas urnas, usando para tanto algum pretexto que sirva a esse propósito sem que se comprove a existência de crime de responsabilidade, quanto não será pago em negociatas, a partir de agora, pelos interessados em apossar-se dos governos, para derrubar prefeitos, governadores ou futuros presidentes?

Julgue você mesmo! Julgue você mesma!

O Estranho Humanismo de Cristovam Buarque

Euclides André Mance
28 de Agosto de 2016

Prezado Senador Cristovam Buarque

A condição primeira para qualquer condenação legal não é o fato de haver sido assegurado o amplo direito de defesa ao réu, mas o fato deste haver cometido algum crime tipificado em lei.

Estranho humanista é o senhor.

Durante a última ditadura em nosso pais já houve quem esposasse um “humanismo bélico”.

A história, nas próximas décadas, ou mesmo em alguns anos,  saberá adjetivar corretamente o seu humanismo, capaz de tergiversar sobre esse fundamento mais básico da justiça, possivelmente para atender a algum propósito outro, que somente o senhor sabe qual é.

Pela sua biografia, espero que não esteja envolvido nos esquemas de corrupção dos que lutam desesperadamente  para salvar os corrompidos e os corruptores, abrigados no bote salva-vidas do Governo Temer, que desejam  eliminar a Lava Jato e “estancar essa sangria”, nas palavras de outro senador, igualmente defensor do impeachment.

Na Ação Penal 470, ministros do Supremo adotaram a tese de que é justo condenar o réu mesmo na ausência de provas. Bastariam, para tanto, indícios de algum crime, cuja materialidade não seria mais necessário ou possível comprovar.

Agora, no processo de impeachment, acusa-se a presidente de haver cometido o delito de infringir uma norma do TCU que nem sequer existia quando dos fatos imputados. E argumenta-se que os juros de mora, os mesmos que nos são cobrados quando atrasamos o pagamento de uma conta de telefone, são a prova cabal de uma operação de crédito.

Se essas duas teses fossem válidas, senador, o senhor e eu teríamos de pagar multas por haver dirigido em rodovias com faróis apagados antes da entrada em vigor da nova lei que exige acendê-los durante o dia. E ninguém mais poderia cobrar juros de mora no país, exceto quem tenha autorização legal para realizar operações de crédito. E o balanço contábil de todas as empresas no Brasil deverá ser reprovado, exigindo-se, igualmente, que pagamentos atrasados, em que incidiram juros de mora, fiquem associados contabilmente a lançamentos de tomada de empréstimo no sistema financeiro. E, assim, a partir do impeachment da presidente Dilma, será eliminado pelo Congresso a distinção legal no pais, que é adotada em todo o mundo, entre juros compensatórios que remuneram algum capital empregado e juros moratórios, que indenizam o atraso no pagamento de alguma dívida.

Infelizmente, senador, essa teia de dislates agora se amplia com a sua própria contribuição. Além da jurisprudência que permite, em alguns casos, condenar qualquer brasileiro sem provas, bastando indícios; ou de que se possa condenar alguém por infringir uma norma que ainda não existe; ou de suprimir a distinção legal entre objetos distintos (como juros compensatórios ou moratórios) se isso for conveniente para algum propósito político, o senhor ampliou a extensão desse novo humanismo jurídico, ao afirmar que se ao réu for concedida a ampla defesa, torna-se possível, então, condená-lo, mesmo sem a comprovação de algum crime previsto em lei.

Além desse argumento, de concessão de ampla defesa ao réu, o senhor aduziu outros dois, para o seu juízo condenatório, referentes à situação atual de crise econômica no Brasil. Isso, senador, é uma confissão de culpa do senhor: pois, se este for o motivo de seu voto, estará votando em desrespeito à Constituição do país, pois ela não prevê impeachment do governante para solucionar crises econômicas. Tratar-se-á de desvio de finalidade, de sua parte, o emprego desse instrumento constitucional visando alcançar esse fim. E isso é crime, senador. Ou deveria ser, se vivêssemos num Estado Democrático de Direito.

Mas, entrando no mérito substantivo de seus dois outros alegados motivos, imagino que o senhor não acredite que a crise econômica na Rússia ou que a queda no PIB da China ou que a estagnação da economia na Europa seja consequência da má gestão do Governo Dilma. Se o senhor investigar quais são as reais causas da crise econômica da Rússia, da redução da atividade econômica na China ou da estagnação da Europa, talvez consiga compreender melhor as causas da crise econômica no Brasil.

Em cinco palavras lhe antecipo o diagnóstico básico: recomposição da taxa de lucro.

Sempre foi assim ao longo de toda a história do capitalismo, senador. No momento de crescimento econômico as empresas reduzem suas taxas de lucros, adotam preços mais competitivos, aumentam suas vendas, seu faturamento e a magnitude de seus ganhos. É a lei da concorrência, senador. Mas como a maior parte do valor gerado nessa expansão econômica se concentra ao invés de ser distribuída, pessoas e empresas contraem dívidas para ampliar o seu consumo e o seu investimento na expectativa de solvência futura — a chamada “confiança dos mercados”. Sempre foi assim ao longo do capitalismo e é por isso que os ganhos do sistema financeiro como um todo nunca cessam, tanto na bonança quanto na crise, mesmo que alguns bancos ou agentes financeiros entrem em default. Veja-se o balanço dos maiores bancos brasileiros, apontando ganhos que bateram recordes no primeiro semestre do ano passado e que lucraram juntos R$ 13,46 bilhões de abril a junho do presente ano.

Mas quando as dívidas se tornam quase impagáveis, senador,  e o dinheiro dos atores econômicos flui em maior medida para o sistema financeiro, o consumo final e produtivo se reduz e as empresas vendem menos.

Então, para manter suas operações e pagar suas dívidas, as empresas têm de recompor suas taxas de lucro, pois devem cobrir seus custos totais com um volume menor de vendas e, mesmo assim, assegurar os ganhos para proprietários e acionistas. Por sua vez, aquelas empresas que dispõem de reservas, investem-nas no sistema financeiro, aguardando que as taxas de lucros subam em direção das taxas de juros, razão pela qual vários países mantém atualmente taxas de juros reais negativas tentando forçar a recuperação da atividade econômica.

É por isso, senador, que o Brasil atravessa um momento de recessão com inflação. Pois embora as empresas estejam produzindo menos e vendendo menos, elas continuam subindo seus preços para recompor suas taxas de lucros. E isso nada tem a ver com os gastos dos governos.

Dizer que a presidente Dilma é responsável por esse fenômeno é o mesmo que dizer que as crises cíclicas,  marcadas pela contração da atividade econômica após os ciclos de sua expansão sob o capitalismo, que seguem  ao longo da história, foram responsabilidade dos governantes, quando na verdade elas são fruto da própria dinâmica intrínseca de concorrência dos atores econômicos nos mercados, movidos pela busca de lucro e de proteção dos ganhos acumulados.

Fique atento senador, pois o que o Governo Temer busca é exatamente suprimir direitos históricos da população brasileira para assegurar a recomposição da taxa de lucro das empresas, ampliando a acumulação de capitais, a concentração de renda no Brasil e a subordinação da economia brasileira ao capital internacional.

É triste ver sua pessoa envolvida nesse caudal de condenação sem provas, por um suposto crime em que não há lei violada, escorando-se  num argumento econômico legalmente inválido para justificar um impeachment, que, ao fim e ao cabo, visa reconcentrar a riqueza no país e entregar as jazidas do pré-sal a grupos internacionais. É triste ouvir de sua boca que o elemento decisivo para  o seu voto tenha sido a concessão de um formal direito de defesa à presidente eleita, num processo de impeachment que se caracteriza plenamente como Golpe de Estado, à luz da ciência política contemporânea.

Estranho humanismo o seu, senador.

A Memória de Nossos Filhos

Euclides Andre Mance
Curitiba, 11/maio/2016

 

Agoniza hoje uma jovem democracia, de 27 anos (*1989 +2016), nascida do enfrentamento da ditadura mais cruel que já tivemos. Perdurou pouco o contrato de respeitar o resultado das urnas.

Sinto tristeza e revolta.

Tão logo os golpistas assumam, o relógio da história retrocederá. Parece o feitiço do tempo, que não mais tem fim: “Um, dois, três, quatro, cinco mil: queremos eleger o presidente do Brasil!”

Os golpistas creem em seu próprio poder. E apenas invocam suas divindades para esconder seu real culto e adoração ao dinheiro. Não passam, entretanto, de serviçais, lacaios, capachos subordinados ao domínio econômico dos mais fortes. Aos poucos, todos eles serão descartados, como bagaço de fruta. Um por um. Cairão todos, quando deixarem de ser úteis ao propósito da mão invisível que os comanda. A história lhes será implacável.  

A corrupção vestiu-se de verde e o golpismo de amarelo. Dançaram na praça, embalados pela Globo. Eram milhões de Cunhas, cobertos pelo manto da mentira e ungidos com o óleo da calúnia.

Sergio Moro já tem seu lugar na memória eterna do Brasil: o juiz que violou a lei, a toga e a hermenêutica, para consolidar o golpe com seu ilegal grampo salvador da pátria e sua  interpretação jurídica sobre as sombras.

“Vai acabar o quê? Vai acabar o quê? A ditadura militar.” — clamávamos pelas ruas.

Quando será que os juízes do Supremo farão a si mesmos a “delação premiada” do que passa em suas próprias consciências? Não terão coragem! No último suspiro de suas vidas, no aconchego de seus familiares, lembrarão da sua omissão vergonhosa e de que não estiveram à altura do Poder que lhes foi confiado.  

Parece que eles não entenderam que a Constituição não é um livro. É um modo de viver em sociedade. E foi isso que eles ajudaram a rasgar: o contrato da democracia em nosso país. Quem vence a eleição, governa. Quem perde, disputa a próxima.
 
Mas essa regra, a partir de 2016, está definitivamente abolida, sempre que houver um bloco de poder capaz de compor as forças para um novo golpe de Estado jurídico-parlamentar.

Essas forças, que se uniram em bloco, tentarão golpear tudo o que seja contrário aos interesses da mão invisível que os comanda.

Talvez consigam entregar o pré-sal a corporações estrangeiras, privatizar empresas estatais e abolir direitos históricos da classe trabalhadora.
 
Mas não conseguirão destruir a nossa capacidade de resistir e de lutar.

Acima de tudo, não golpearão a memória de nossos filhos: “Michel Temer nunca será presidente. Será eternamente um golpista.”
 
Fonte: http://f.i.uol.com.br/folha/poder/images/16132290.jpeg

TV Globo: um impeachment em causa própria?

Euclides André Mance
Curitiba, 1/Maio/2016

Dado o modo como os jornalistas e comentaristas contratados pelo Grupo Globo, no exercício de suas funções, defendem o impeachment da presidente Dilma e o modo como essa organização se empenha em difundir a tese de que esse impeachment não é um golpe institucional, cabe perguntar quais são as suas razões para estar na linha de frente do bloco que defende a deposição da atual presidente.

A resposta é, possivelmente, menos verde e amarela do que imagina uma parte dos que marcham pelas ruas e polemizam em redes sociais, reproduzindo as teses, interpretações e versões veiculadas pela TV Globo. Talvez, a questão se resuma mesmo à cifra dos bilhões de reais que a emissora perdeu e continuaria perdendo com a desconcentração da publicidade do governo federal iniciada na gestão Lula, aprofundada na gestão Dilma e que prosseguiria em posteriores governos conduzidos pelo PT — com ou sem a aprovação do PL 7.460/2014, apresentado pelos deputados Jorge Bittar (PT) e Luciana Santos (PCdoB), que converte essa desconcentração em lei, desdobrando-a em vários aspectos.

De fato, a fortuna dos três sócios majoritários do Grupo Globo, os irmãos Marinho, encolheu no ano passado mais de 10 bilhões de dólares, considerando os dados divulgados pela Revista Forbes. A redução de ganhos com a publicidade federal correspondeu apenas a uma pequena parte dessa perda. Embora a metodologia da revista não seja cientificamente confiável, essa informação porém revela o absurdo da acentuada concentração de renda no Brasil: a fortuna de três irmãos teria encolhido mais de 10 mil milhões de dólares em um ano! Considerando o câmbio e a inflação (com valores atualizados para 31/12/2015 pelo IGP-M), a perda teria girado em torno do equivalente a 22 bilhões de reais.

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Parte da fortuna dos três irmãos é composta por ações da OGP Organizações Globo Participações S.A., que é uma empresa holding, na forma de sociedade anônima de capital fechado, com todas as ações pertencendo aos membros da família Marinho. Conforme os balanços publicados, essa “companhia possui […] como principais negócios: um grupo de emissoras de televisão aberta; empresas de jornalismo; negócios de internet; negócios de programação e distribuição de TV por assinatura; e publicação de revistas.

Atualizando-se os valores desses balanços pelo IGP-M, percebe-se claramente uma redução de lucros nos últimos quatro anos. Os valores estão em bilhões de reais.

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Como se vê, em 2014 a receita do Grupo aumentou, mas dada a elevação de custos de vendas, publicidade e serviço, o lucro apurado diminuiu. Este valor foi 9% menor que o obtido em 2013. Em 2015, a receita foi menor que em 2014 e o lucro líquido caiu quase pela metade.

Descontando-se do lucro liquido alcançado em 2015 os resultados obtidos com investimentos financeiros (receita – despesa), chega-se a R$ 765 milhões. Em outras palavras, a queda importante de receita com as atividades finais do Grupo — muito superior à queda de 3,8% do PIB —, somente foi compensada pelos ganhos obtidos com aplicações financeiras, o que correspondeu a 45% do lucro líquido em 2015.

Quando analisamos a situação da TV aberta, vemos que ela tem perdido espaço para a Internet. Por isso, o Grupo Globo, com grandes investimentos, vem acelerando sua oferta de conteúdos via web para ampliar as receitas nesse meio. Mas, embora em 2014, no conjunto dos diferentes meios, tenha aumentado a sua receita líquida com vendas, publicidade, serviços e também direitos sobre a copa do mundo, o Grupo continuou perdendo sua participação na publicidade do governo federal.

Ainda que as cinco emissoras de TV da Globo (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife) tenham arrecadado o correspondente a R$ 6,2 bilhões em publicidade federal nos governos Lula e Dilma (2003-2014), os percentuais vieram caindo no período, como mostra a tabela abaixo, com dados oficiais sobre a publicidade da administração direta e das estatais no período de 2000 a 2014, fornecidos pela Secom — Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, obtidos pelo UOL e analisados pelo jornalista Fernando Rodrigues. Para comparação, os valores foram corrigidos usando-se o IGP-M.

Publicidade Federal na TV Globo

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Destaca o jornalista que “apesar do valor expressivo destinado à Globo, há uma nítida trajetória de queda quando se considera a proporção que cabe à emissora no bolo total dessas verbas. As emissoras globais terminaram o governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, em 2002, com 49% das verbas estatais […]. No ano seguinte, em 2003, já com o petista Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, a fatia da Globo pulou para 59% […] Nos anos seguintes […] a curva global foi decrescente. No ano passado, 2014, a Globo ainda liderava (recebeu R$ 453,5 milhões), mas chegou ao seu nível baixo de participação no bolo estatal federal entre TVs abertas: 36% do total da publicidade.

Participação Percentual das 5 emissoras da TV Globo
na Publicidade Federal no Setor TV entre 2000 e 2014

Para efeitos de comparação, no período de 2003 a 2014 foram gastos R$ 13,9 bilhões em publicidade televisiva, ficando a Record com R$ 2 bilhões, SBT com R$ 1,6 bilhão e Band com R$ 1 bilhão.

Conforme Roberto Messias, então Secretário-Executivo da SECOM, do total de verbas programadas para publicidade federal em 2012 para o meio televisão, “43% foram investidos na emissora líder […]. Este índice chegou a ser de mais de 60% em 2003. A participação nos demais canais abertos, emissoras regionais e de TV fechada subiu de 39% para 57% nos últimos nove anos“.

Mas antes de explicarmos essa queda, é importante entender porque essa concentração chegou a mais de 60%. Afinal, se os ministérios, autarquias e empresas estatais realizam licitações para a contratação das agências de propaganda encarregadas de produzir e contratar a veiculação da publicidade, por que as verbas destinadas à veiculação acabavam sendo concentradas de tal modo nos grandes veículos, particularmente do Grupo Globo?

Um dos instrumentos para assegurar tal concentração é a chamada Bonificação (ou Bônus) de Volume, usado pelas empresas de comunicação para captar as campanhas publicitárias das agências. Quando uma agência leva para o veículo diferentes campanhas, a partir de um certo volume de clientes e valores, ela passa a ter direito a uma cifra sobre os valores contratados.

Assim, do montante de recursos pagos pela agência para a emissora veicular a campanha, uma parte é restituída à própria agência. E, quanto maior o volume contratado, maior sua bonificação. Desse modo, os grandes veículos, particularmente a Globo, disputam o mercado concentrando a veiculação das campanhas publicitárias. De sua parte, os veículos menores, para utilizarem a bonificação de modo eficiente, necessitam praticar índices inviáveis à sustentação da sua própria atividade. Em razão disso, as campanhas publicitárias tendem a se concentrar nos grandes veículos que possuem melhores margens de negociação.

Esse expediente, que resulta na apropriação pela agência de uma parte do valor contratado para a veiculação de publicidade federal mediante o bônus de volume, foi objeto de controvérsias no julgamento da Ação Penal 470 (julgamento do Mensalão), em 2007. Ele foi considerado, por alguns Ministros do STF, como crime de corrupção, sob o argumento de que o valor recebido como bônus pela agência tem origem no recurso transferido a ela pelo órgão do governo ou estatal que contratou a campanha. E, portanto, deveria ser totalmente gasto na cobertura dos custos da campanha, não podendo ser apropriado em parte pela própria agência de propaganda.

Três anos depois, entretanto, essa prática de bonificação por volume, também conhecida como plano de incentivo, foi regulamentada pela Lei nº 12.232/2010 que, em seu artigo 15 tipificou o que caberia ao contrante da campanha — “as vantagens obtidas em negociação de compra de mídia diretamente ou por intermédio de agência de propaganda, incluindo os eventuais descontos e as bonificações na forma de tempo, espaço ou reaplicações […] concedidos pelo veículo de divulgação”— e, no artigo 18, o que caberia à agência de publicidade: “é facultativa a concessão de planos de incentivo por veículo de divulgação e sua aceitação por agência de propaganda, e os frutos deles resultantes constituem, para todos os fins de direito, receita própria da agência […]“.

Assim, com o mecanismo de bonificação de volume, TV Globo expandiu seu faturamento de difusão publicitária em geral e concentrou a veiculação de publicidade federal até 2003. Mas nos últimos 12 anos a redução de sua participação nessa publicidade deveu-se tanto à progressiva perda de um terço de sua audiência, que caiu de 18% para 12%, quanto às medidas adotadas pelo governo federal para a desconcentração e pulverização da publicidade da administração direta e indireta, visando com isso alcançar o conjunto do país, particularmente, veículos regionais e menores, bem como mídias alternativas.

Até 2002, os órgãos da administração direta e indireta negociavam individualmente suas campanhas publicitárias, com menor eficiência no uso do dinheiro empregado e com perda de visibilidade das ações. A partir de 2003, o governo Lula estabeleceu critérios visando otimizar os gastos, estabelecendo uma nova gestão de contratação de mídia, considerando o governo federal como grande anunciante, estabelecendo critérios técnicos na aplicação dos recursos. Buscou, igualmente, a desconcentração e regionalização de suas ações na área da comunicação. Com essa perspectiva e com os critérios técnicos de inclusão, consolidou-se em 2009 um cadastro nacional de veículos. Em 2013, esse cadastro alcançou os municípios com mais de 5 mil habitantes, tendo 9 mil veículos cadastrados, que mantém seus dados atualizados e comprovam a regularidade e o volume de veiculação realizada.

Essa desconcentração, em 2012, resultou em que as ações publicitárias do governo federal foram veiculadas por aproximadamente 5 mil veículos. Salientou Roberto Messias que “a desconcentração de ações em veículos e praças, com destaque para valorização das mídias regionais, a partir de critérios técnicos de planejamento, é uma das diretrizes de atuação da Secom. […] Por isso, a Secom recomenda a todos os órgãos e entidades federais o uso do maior número possível de veículos em suas campanhas, garantido impacto significativo das mensagens junto à população, apoiada na grande força dos veículos regionais, principalmente nos meios jornal e rádio, e também nos somatórios das audiências dos diferentes tipos e tamanhos de veículos.

Com isso, não apenas a participação da TV Globo nesse mercado caiu de 49% em 2002 para 36% no final de 2014, mas igualmente a participação da Revista Veja, que chegou receber o equivalente, em valores corrigidos pelo IGP-M, a R$ 43,7 milhões em verbas de publicidade federal em 2009, caiu para R$ 19,9 milhões em 2014, oscilando de 23% a 18% a sua participação no percentual total de gastos federais em publicidade em revistas.

A política de desconcentração da publicidade federal (direta e indireta) levou, desse modo, a uma perda de receita para os veículos do oligopólio de mídias de massa que hegemoniza a comunicação e a interpretação da informação no país.

Na mesma perspectiva dessa política de desconcentração da publicidade, foi apresentado o PL 7.460/2014 — por Jorge Bittar e Luciana Santos — que contraria frontalmente os interesses econômicos do grupo dominante de empresas de mídia no país, particularmente, os interesses do Grupo Globo. Com a aprovação desse projeto de lei, 30% das verbas federais de publicidade devem ser destinadas para as regiões norte, nordeste e centro-oeste e 30% das verbas para mídias alternativas. O projeto institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e estabelece “critérios para promover a desconcentração, pela administração pública, da contratação dos serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda“. Com base nos critérios desse projeto — em estimativa preliminar que fazemos —, as cinco emissoras da Rede Globo não receberiam R$ 6,2 bilhões em 12 anos, mas, mantidos os mesmos níveis de audiência, teriam recebido algo próximo a R$ 3 bilhões (considerando R$ 6,2 bilhões x 70% x 70%).

Essa desconcentração de publicidade federal, convertida em lei, contribuiria para diminuir a hegemonia do reduzido grupo de empresas de mídia que domina a comunicação de massa no Brasil. Não por acaso, é esse mesmo grupo que, no atual momento histórico, difunde a narrativa de não ser golpe de Estado a realização de um impeachment sem a comprovação necessária de algum crime de responsabilidade previsto na Lei Nº 1.079/1950, em seu artigo 4. De fato, na denúncia acolhida pela Câmara dos Deputados, não há crime algum que justifique a deposição da presidente, dado que não houve descumprimento por ela da lei orçamentaria.

Entretanto, com a deposição do Governo Dilma, a grande mídia em geral, controlada por umas poucas famílias em nosso país, e a Globo em particular, saem vitoriosas e poderão, provavelmente, recuperar o faturamento que haviam perdido com a desconcentração da publicidade realizada pela administração federal direta (ministérios, autarquias etc.) e indireta (estatais).

A reconcentração da publicidade federal — resultando na recuperação da participação da Globo e dos grandes veículos nesse mercado, voltando aos índices que possuíam durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso — seria uma provável consequência do golpe institucional de 2016, apoiado por essas empresas. E, consolidando a hegemonia conservadora no país, as forças do golpe sepultariam de vez, com aval da grande mídia, o PLS 315/2015, do senador Paulo Paim (PT), que institui imposto de 1% sobre as grandes fortunas, regulamentando o Art. 153 da Constituição Federal. Considerando que 1% sobre a fortuna dos três irmãos Marinho, corresponderia a algo como 129 milhões de dólares, entende-se claramente o que está envolvido no debate sobre a concentração ou desconcentração da riqueza e das oportunidades em nosso país.

Não seria, pois, um verdadeiro impeachment em causa própria?

Publicado em:

http://www.euclidesmance.net/docs/tvglobo.pdf

http://www.euclidesmance.net/docs/tvglobo.htm

Plano Temer – Ganhadores e Perdedores

Euclides André Mance
Curitiba, 20/Abril/2016

Três grupos se uniram pelo impeachment da presidente Dilma. O primeiro compõe grandes empresas nacionais, desejosas de elevar suas taxas de lucro, particularmente da grande indústria, do agronegócio, do setor de mídia e do capital financeiro, representados pela CNI, CNA, FIESP, Febraban e outras entidades de classe empresariais. O segundo compõe corporações petroleiras e outras empresas transnacionais, interessadas no pré-sal e nas privatizações. Algumas delas financiam entidades sediadas nos Estados Unidos que promovem o impeachment em nosso país através de seus coordenadores locais. O terceiro grupo é composto por partidos políticos que desejam ocupar postos-chave no comando do governo federal e por mais de cem parlamentares, citados em processos judiciais, que estão interessados em escapar do combate à corrupção, com um novo governo que ponha fim às operações em curso da Polícia Federal.

Tais forças, com outros associados, pretendem alçar Michel Temer à condição de presidente, para que tenha o poder de sancionar os projetos que interessam a essa coalização.

O Pato Amarelo da FIESP, reproduzido em milhares de unidades pelo país e em peças publicitárias pró-impeachment que custaram milhões de reais, simboliza bem essa aliança e representa o conjunto das propostas agrupadas no Plano Temer. Trata-se, em razão do conteúdo dessas medidas, de um verdadeiro Pato de Troia — em analogia ao cavalo de madeira com guerreiros em seu interior, levado para dentro da fortaleza troiana e que causou a sua ruína.

O Plano Temer, intitulado Uma Ponte para o Futuro, engloba propostas de vários projetos de lei que estão em tramitação, muitos dos quais poderão ser aprovados rapidamente pelo novo governo. Em sua essência, ele torna sem efeitos a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, põe fim à exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal e abre brechas para a transferência de ativos do Estado para a iniciativa privada, podendo resultar na privatização completa da Petrobras. Citaremos, aqui, apenas sete pontos desse programa e alguns de seus principais impactos. Recomendamos, porém, para a elaboração de um juízo próprio e bem fundamentado pelo leitor sobre o assunto, a análise atenta não apenas do Plano Temer mas, igualmente, da Agenda Brasil, de Renan Calheiros, dos projetos de lei e de outros documentos aqui referidos.

[1] “na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”

O resultado dessa proposta é, para efeitos práticos, o fim da CLT. Pois, tudo o que for negociado nas convenções ficará acima do que está previsto nas normas legais. Como nem a Constituição, a legislação ordinária ou o Plano Temer tipificam quais são os direitos básicos não afetados por esses acordos, a referência a eles é vazia do ponto de vista legal. O que a Constituição, de fato, estabelece são Direitos Fundamentais (Art. 5º), Direitos Sociais (Art. 6º) e Direitos dos Trabalhadores Urbanos e Rurais (Art. 7º).

Assim, na medida em que “as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais“, elas podem tornar sem efeito os direitos estabelecidos no Art. 7º da Constituição, que incluem, entre outros, o direito ao salário mínimo, jornada de trabalho normal não superior a oito horas diárias, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, proteção contra demissão arbitrária, aviso prévio, seguro-desemprego, fundo de garantia, piso salarial, décimo terceiro salário, salário-família, participação nos lucros, licença à gestante, licença-paternidade e aposentadoria.

Desse modo, se houver uma negociação homologada que estipule um salário de valor inferior ao estabelecido por lei ou qualquer outra cláusula em contrariedade com as normas legais vigentes na área trabalhista, tal acordo será plenamente válido, pois a convenção coletiva irá prevalecer por sobre essas normas legais.

Outra forma de eliminar a vigência prática dos direitos trabalhistas é simplesmente sancionar o Projeto de Lei 4.330/2004, que expande o conceito de trabalho terceirizado e que foi aprovado na Câmara em 2015. Como o artigo 3º desse projeto de lei não estabelece um número mínimo de sócios para a empresa que oferece o trabalho terceirizado e não impede ao sócio da empresa de prestar o serviço por ela oferecido, torna-se possível contratar o serviço de um trabalhador-associado, que apresente o CNPJ de sua empresa como prestadora legal do serviço realizado. O contrato não seria feito como ele, como pessoa física, e sim com sua empresa, como pessoa jurídica. Com isso, a empresa contratante se livra de toda a legislação trabalhista e o trabalhador, por ser sócio-proprietário da empresa contratada, não pode mais exigir o cumprimento dos direitos previstos na CLT ou no artigo 7º da Constituição. Pois como diz o Art. 2º, § 2º desse projeto de lei, “não se configura vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo.” Não faria, pois, sentido em falar de vinculo empregatício com relação ao sócio da empresa se este não fosse o próprio trabalhador que presta o serviço.

Com essas duas medidas, deixa de ser necessário aprovar qualquer Proposta de Emenda à Constituição – PEC para alterar o seu artigo 7º. Tais direitos continuarão escritos na Constituição, mas na prática serão letra morta, não podendo ser invocados pelos trabalhadores associados da empresa que preste serviços terceirizados ou por categorias profissionais que deles abdicarem, por força de convenções coletivas, celebradas entre organizações patronais e sindicatos, federações ou confederações de trabalhadores .

[2] “fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais.”

Com isso, a regra de valorização do salário mínimo, criada pela Lei 12.382/2011, será abolida. Será, igualmente, eliminada a indexação de qualquer benefício em referência a ele. Desse modo, os valores das aposentadorias e auxílios a pessoas em condição de vulnerabilidade poderão ser estipulados independentemente da variação do próprio salário mínimo.

Na prática ele deixaria de ser elemento determinante para a definição dos salários vigentes no país, abrindo-se a possibilidade dos aposentados receberem benefícios menores que o seu valor. Tais benefícios, inclusive, poderão sofrer reajustes abaixo da própria inflação, pois será abolida a indexação presente no Art. 41-A da Lei N. 11.430/2006, que assegurava o seu reajuste anual com base no INPC – Índice Nacional de Preços ao Consumidor.

[3] “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”

Transferência de ativos públicos à iniciativa privada é outro modo de se referir à privatização desses ativos. A parcela de ações da Petrobras, pertencente à União, pode estar incluída entre os ativos a serem privatizados, como desejam as lideranças do Movimento Brasil Livre que defendem abertamente a privatização da Petrobras e dos Correios. Cabe lembrar que algumas desses lideranças, que promovem o impeachment de Dilma, para que Temer assuma a presidência e implante esse programa privatizante, são apoiadas pela organização Students for Liberty, sediada em Washington, que recebe recursos de diferentes entidades, algumas delas ligadas a indústrias petroleiras norte-americanas.

Sobre o “retorno ao regime anterior de concessões na área de petróleo”, essa medida prevê claramente revogar o modelo aprovado no Governo Lula, que estabeleceu a Petrobras como única operadora, “responsável pela condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção” referentes ao pré-sal Lei 12.351/2010, Art. 2, inciso 6.

O retorno ao regime anterior, defendido no Plano Temer, vai na mesma linha do PL 4.567/2016 que dá continuidade, na Câmara, à tramitação do Projeto N.131/2015 de autoria de José Serra, já aprovado no Senado. Esse projeto retira da Petrobras a condição de única operadora na exploração do pré-sal e permite que empresas estrangeiras possam formar consórcios para explorar essas jazidas, facultando à Petrobras participar ou não desses consórcios, criando assim as condições legais para a existência de consórcios de empresas estrangeiras que explorem o pré-sal sem a participação da Petrobras.

Conforme noticiou a imprensa, lideres do PSDB afirmaram que o partido poderia aderir ao Governo Temer, caso José Serra fosse Ministro da Fazenda. Com isso, Serra teria papel relevante na definição de políticas econômicas envolvendo também a licitação de blocos do pré-sal, que poderiam ser vencidas por consórcios de empresas estrangeiras sem a participação da Petrobras, e explorados não mais sob o modelo de partilha instituído no Governo Lula mas sob o modelo de concessão vigente no Governo Fernando Henrique Cardoso. Com isso, o país cederia o petróleo ao consórcio estrangeiro em troca dos valores contratados, mas perderia o direito a qualquer quota do próprio petróleo extraído pelo consórcio.

Por sua vez, sobre as “parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”, isso implicaria, por exemplo, em repassar menos recursos ao SUS para transferi-los à rede privada de saúde, fragilizando os serviços públicos nessa área e fortalecendo a empresas que atuam com fins lucrativos no setor. O mesmo poderia ocorrer com relação ao ensino superior ou qualquer outro serviço público. A prestação de tais serviços pelas empresas parceiras, com fins lucrativos, implicaria, possivelmente, na cobrança de uma parte do serviço a ser paga pelo usuário e de outra parte a ser coberta pelo Estado.

Cabe lembrar que a Agenda Brasil, documento apresentado em agosto de 2015 por Renan Calheiros, propunha o debate sobre a extinção da gratuidade no serviço público de saúde, com a “possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”.

Por outra parte, está em tramitação a PEC 451/2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que altera o Art. 7º da Constituição, incluindo o inciso 35, instituindo um “plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica.” Com isso, todas as empresas deveriam contratar um plano de assistência à saúde para os seus trabalhadores. E esse plano passaria a ser considerado como forma de garantia fundamental” no asseguramento do direito à saúde. Com isso, retira-se do Estado a obrigação de assegurar o direito social à saúde, gratuito e universal, por meio de sistema público — no caso, o SUS — e cria-se um plano de assistência à saúde, a ser assegurado pelo setor privado para quem esteja empregado. Cumpre recordar que o PL 930/2011, que visava “instituir dedução do imposto de renda das pessoas jurídicas, das despesas com plano de saúde pagas pelo empregador em benefício do empregado” foi arquivado, em 2013, por não indicar o impacto orçamentáriofinanceiro da renúncia de impostos. Mas nada impede que ele seja ressuscitado, com algumas alterações, sob a lógica de estabelecer “parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”.

Essas três propostas — de Temer, Renan e Cunha — tergiversam sobre o Artigo 196 da Constituição, que afirma: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Assim, cada cidadão, pagando impostos, financia o SUS e tem o mesmo direito que qualquer outra pessoa em usufruir do sistema, em igualdade de condições, segundo a sua necessidade, recebendo a prestação de um serviço público que deve ser de boa qualidade. Qualquer alteração da lei precisa visar à melhoria da qualidade do serviço público oferecido e não ao aumento dos lucros do setor privado nessa área.

[4] “construir uma trajetória de equilíbrio fiscal duradouro, com superávit operacional e a redução progressiva do endividamento público;”

Como há uma redução de receitas do Governo Federal em razão da crise econômica, esse equilíbrio será realizado cortando gastos. Mas, seguramente, não serão cortados os pagamentos da dívida pública, que remuneram investidores privados com as taxas de juros praticadas pelo Banco Central, e sim os gastos de custeio e das políticas sociais, afetando os serviços oferecidos à classe média e às populações mais pobres do país.

[5] “estabelecer um limite para as despesas de custeio inferior ao crescimento do PIB, através de lei, após serem eliminadas as vinculações e as indexações que engessam o orçamento

Com a eliminação das vinculações e indexações, cria-se um novo regime orçamentário, que põe fim ao modelo atual de financiamento da Educação e da Saúde Pública.

No caso da educação, o Art. 212 da Constituição estabelece aos municípios e estados a aplicação de no mínimo 25% da receita de impostos e de transferências recebidas. Para a União, o percentual é de 18%. No caso da saúde, a Lei Complementar Nº 141/2012 estabelece aos municípios e Distrito Federal a aplicação mínima de 15% da arrecadação dos impostos e, aos estados, 12%. Já no caso da União, o valor corresponde ao montante empenhado no último exercício, acrescido, no mínimo, do percentual de variação do PIB no ano anterior ao da lei orçamentaria.

Com o Plano Temer, serão abolidas essas vinculações e indexações. Por outra parte, a evolução das despesas de custeio, necessárias à prestação de serviços de saúde, educação, etc, será sempre menor que o crescimento do PIB, justamente para que sobre mais recursos para o pagamento das dívidas aos especuladores no sistema financeiro.

[6] “realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com eles.”

Com essa medida, ao invés do fortalecimento do Bloco dos Brics ou do Mercosul, busca-se a inclusão do Brasil, de forma subordinada e plena, aos acordos econômicos que os Estados Unidos hegemonizam no âmbito da Ásia e no Atlântico Norte. Tem-se, portanto, uma regressão nos acordos do Mercosul em favor de acordos com a Europa e os Estados Unidos.

[7] “promover a racionalização dos procedimentos burocráticos e assegurar ampla segurança jurídica para a criação de empresas e para a realização de investimentos, com ênfase nos licenciamentos ambientais que podem ser efetivos sem ser necessariamente complexos e demorados; “

Com a alteração dos licenciamentos ambientais, simplificando-os e agilizando-os para facilitar investimentos do capital nacional e internacional, o Brasil poderá, de fato, retroceder muito nas poucas conquistas que tivemos nessa matéria, a duras penas, nos últimos governos. O vazamento da lama da Samarco e da Vale do Rio Doce é uma prova cabal de como a simplificação de assuntos complexos e a falta de um monitoramento público sobre as ações dessas empresas privadas podem gerar impactos irreparáveis, a comunidades humanas e aos ecossistemas.

Em síntese, quem ganha e quem perde com um possível Governo de Michel Temer?

Sob o aspecto econômico, ganham: os grandes grupos privados, com a eliminação ou redução de encargos trabalhistas e com a redução de impostos, aumentando suas taxas de lucro; as companhias estrangeiras que atuam no ramo de petróleo e derivados, que poderão atuar como operadoras na exploração do pre-sal; corporações internacionais favorecidas com as privatização de ativos da União; investidores nas bolsas de valores, com o movimento dos capitais externos que entrem no país; os especuladores com a política cambial; os grandes bancos e especuladores com a política monetária; e os grandes grupos de mídia, com a reconcentração das verbas de publicidade do Governo Federal em seus veículos, pondo fim ao processo de desconcentração e pulverização desses recursos, adotado pelos governos Lula e Dilma — e que foi aprofundado a partir de 2015 —, visando distribuir esse recurso pelo território nacional e alcançar veículos regionais e menores.

Somente a TV Globo e suas cinco emissoras receberam R$ 6,2 bilhões por veiculação de publicidade federal nas gestões de Lula e Dilma, até 2014. A revista Veja recebeu R$ 700 milhões. Cerca de R$ 730 milhões foram para os jornais O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e Valor Econômico. Com o processo de desconcentração e pulverização da publicidade federal, as emissoras da Globo que detinham 49% de toda verba estatal de publicidade em 2002, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, e que a chegaram a 59% no governo Lula, caíram para 36% no final do primeiro Governo Dilma. A revista Veja, que chegou receber R$ 43,7 milhões de verbas federais em 2009, caiu para R$ 19,9 milhões em 2014. Foi uma perda de receita muito grande para os veículos desse oligopólio de mídias de massa.

Vale lembrar que o PL 7.460/2014 — apresentado por Jorge Bittar (PT) e Luciana Santos (PCdoB) — contrariava frontalmente os interesses econômicos do grupo dominante de empresas de mídia no país, particularmente, os interesses do Grupo Globo. Com a aprovação desse projeto de lei, o Governo Federal passaria a destinar 30% das verbas de publicidade para as regiões norte, nordeste e centro-oeste e 30% das verbas para mídias alternativas. O projeto instituía o Serviço de Radiodifusão Comunitária e estabelecia “critérios para promover a desconcentração, pela administração pública, da contratação dos serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda”. Embora tenha tido parecer favorável na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em 4/12/2014, o projeto de lei foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados menos de um mês depois, em 31/01/2015. Com base nesses critérios, a Rede Globo, que recebeu R$ 6,2 bilhões em 12 anos, receberia algo como R$ 3 bilhões — mesmo mantendo sua política de bônus de volume, que atrai para si a veiculação das campanhas das agências de propaganda, que ficam com um percentual do dinheiro público destinado a essa veiculação. Essa desconcentração de publicidade federal acabaria por diminuir a hegemonia do reduzido grupo de empresas de mídia que domina a comunicação de massa no Brasil.

Assim, com a deposição do Governo Dilma, a grande mídia em geral, controlada por umas poucas famílias em nosso país, e a Globo em particular, saem vitoriosas, e poderão recuperar o faturamento que haviam perdido com a desconcentração da publicidade do Governo Federal e das empresas estatais.

Por outro lado, ainda sob o aspecto econômico, perde a maior parte da população brasileira, com a redução de direitos sociais e trabalhistas. O fim da exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal, o fim do regime de partilha do petróleo extraído e a possível privatização dessa empresa como ativo a ser transferido à iniciativa privada, suprimem a soberania energética do Brasil na área do petróleo e impactam sobre o Fundo Social, que destina 50% de seus valores para a aplicação integral nas políticas de educação. Por sua vez a redução de impostos fará com que haja menos dinheiro para o orçamento do Governo Federal e com isso, como não será reduzido o pagamento da dívida pública, haverá menos recurso para saúde, educação e políticas de transferência de renda. Isso impacta sobre a classe média e os micro-empresários, pois com a redução do poder de compra da maioria da população, inverte-se a lógica de crescimento com distribuição de renda que marcou o período de 2003 a 2014. Perdem, igualmente, os veículos de comunicação regionais e menores, alcançados pela desconcentração de recursos da publicidade federal que deve ser abolida com o novo governo.

Sob o aspecto político, quem mais se beneficia com o impeachment são os partidos que ocuparão o governo com suas medidas privatizantes e os políticos e empresários que desejam pôr fim às investigações de corrupção no país. Como os Governos Lula e Dilma fortaleceram os instrumentos de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011) e empoderaram a Polícia Federal na luta contra a corrupção, trata-se de depor o atual governo para que não se aprofunde a investigação sobre todos os partidos, empresas, políticos e empresários envolvidos em processos de corrupção.

Por outra parte, não havendo crime de responsabilidade da presidente, como tipificado na Lei 1.079/1950, a sua deposição, com o emprego arbitrário e ilegal do instrumento do impeachment, converte tal deposição em golpe de Estado. Perdem com isso, todas as forças políticas que defendem a democracia no Brasil. A intolerância política tende a se acirrar, juntamente com diferentes formas de preconceito e discriminação contra os segmentos sociais que eram o público de diferentes programas que serão abolidos ou terão seus recursos drasticamente reduzidos.

Esses sete pontos que analisamos são apenas uma pequena amostra do recheio amargo do Pato de Troia, que a FIESP infla à frente de sua sede na Avenida Paulista, em todas as manifestações pró-impeachment por ela convocadas juntamente com outras entidades, que lutam por esse golpe em favor de seus interesses privados e contra a democracia e o povo brasileiro.

Mais do que nunca, cabe a sociedade se informar por meio de fontes diversas, averiguar criticamente as informações recebidas e se mobilizar para conter esse golpe jurídico-parlamentar. Pois como se vê, quem pagará o pato do Plano Temer é a maioria da população brasileira, especialmente a classe trabalhadora e os segmentos mais empobrecidos.

Publicado em:

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/plano_temer.pdf

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