“Sapientiam Autem Non Vincit Malitia” – Sobre o Autoengano na Arte de Argumentar

Euclides Mance
22/02/2022

É necessário reconhecer que Olavo de Carvalho, com suas teses e seus argumentos, numa extensão a ser ainda dimensionada, não apenas enganou a muitos como enganou a si próprio, se realmente foi sincero em suas afirmações publicadas.

A história nos mostra que pessoas com bons propósitos em defender a liberdade, a família e a pátria, mas que deixam de distinguir entre os conceitos objetivos (cuja consistência é verificável pelo exame indicial dos objetos) e as representações imaginárias das realidades que nomeiam com esses termos, são suscetíveis a levar-se pelo autoengano quanto mais a ele se entregam, confundindo a realidade mesma com a interpretação que dela fazem. Terminam, por fim, negando as propriedades reais dos objetos abordados em seus argumentos, para seguirem afirmando a verdade de suas crenças, fantasias e ilusões sobre eles.

Exemplo disso é o que Carvalho escreveu em sua conta no Twitter em 12 de maio de 2020: “O medo de um suposto vírus mortífero não passa de historinha de terror para acovardar a população e fazê-la aceitar a escravidão como um presente de Papai Noel”. A realidade dos fatos, entretanto, é que ele próprio morreu em 24 de janeiro de 2022, após receber o diagnóstico de Covid-19 no dia 15 daquele mês, não obstante acreditasse ter sido “[…] dotado da capacidade de fazer prognósticos históricos relativamente certos, não por adivinhação, nem por dons proféticos, mas por análise histórica muito bem fundamentada” (CARVALHO, 2007, 17m41s).

Qual seria, então, a falha de seu método de análise histórica para não reconhecer que o Coronavírus era realmente letal, que mais de 300 mil pessoas haviam morrido de Covid-19 no mundo todo até então, de acordo com as estatísticas oficiais, em meio a uma pandemia em expansão que poderia levar a óbito milhões de seres humanos se medidas sanitárias para prevenir o contágio não fossem adotadas? De fato, até a data de seu falecimento, mais de 5 milhões de pessoas haviam perdido a vida para essa doença.

Com base em seu livro O Jardim das Aflições e na aula 579 de seu Curso Online de Filosofia, pode-se afirmar que Carvalho leu superficialmente diversos livros e artigos, pinçando neles aquilo que lhe servia para confirmar suas convicções imaginárias sobre os objetos de seu discurso. E, ao que parece, não se deu ao trabalho de verificar com cuidado as fontes e os procedimentos de validação científica do que recolhia como verdadeiro, simplesmente pelo fato de tais acúmulos encontrados serem consonantes às suas sinceras convicções – como também parecem fazer os seus “discípulos” a respeito de suas próprias crenças. Disso não escapou o seu juízo sobre a Covid-19.

Para exemplificar o que digo sobre a ausência de verificação de fontes, levando-o a falsear a história do objeto sobre o qual argumenta, basta citar o famoso lema de seu site: “Sapientiam Autem Non Vincit Malitia” – “sobre a Sabedoria não prevalece o mal”. Em artigo publicado em O Globo, em 2003, intitulado a Velha Lenda, Carvalho (2003, n.p.) afirmou que “o apóstolo são Paulo” é o “autor” dessa máxima.

Talvez ele tenha morrido acreditando sinceramente nisso, sem questionar a veracidade do que afirmava convicto como verdadeiro. Mas, de fato, São Paulo não é o autor dessa frase, que pode ser encontrada já no Antigo Testamento, no livro da Sabedoria (Sb 7,29-30):

est enim haec speciosior sole et super omnem stellarum dispositionem luci conparata invenitur prior // illi enim succedit nox sapientiam autem non vincit malitia. (Ela é mais bela que o sol, supera todas as constelações: comparada à luz do dia sai ganhando, // pois a luz cede lugar à noite, ao passo que sobre a Sabedoria não prevalece o mal.)

Embora atribuído a Salomão, estudos históricos mostram que o livro da Sabedoria, em que essa passagem se encontra, teria sido escrito na segunda metade do século I antes de Cristo, não podendo portanto ser de sua autoria e muito menos do “apóstolo são Paulo”.

Aliás, poucas linhas antes dessa frase, como elogio da Sabedoria, afirma-se que “nela há um espírito […] benfazejo, amigo dos homens, firme, seguro, sereno” (Sb 7,22) – muito distante, pois, do discurso de rancor alimentado pela obra de Carvalho e que reverbera em seus seguidores.

A Sabedoria, continua a passagem bíblica, é “um reflexo da luz eterna, um espelho nítido da atividade de Deus e uma imagem de sua bondade” (Sb 7,26). Ora, que bondade haverá em destratar, ofender e insultar a quem pense diferente de si mesmo, com diversas classes de impropérios a que se possa recorrer no léxico do baixo calão? Seria o discurso de ódio, propagado por Carvalho e por seus seguidores contra adversários políticos, “um reflexo da luz eterna”, um “espelho” da “atividade de Deus”, coerente com a máxima “sapientiam autem non vincit malitia” adotada como lema de seu site?

As afirmações de Carvalho sobre a infiltração do comunismo na Igreja Católica e sua representação do comunismo como “a tentação final que completa uma descida ao inferno” (2007, 16m58s) são igualmente uma espécie de negacionismo histórico do próprio comunismo cristão, descrito nos Atos dos Apóstolos, em seu aspecto material, como ter tudo em comum e dividir os bens segundo as necessidades de cada um:

Todos os fiéis, unidos, tinham tudo em comum. Vendiam suas propriedades e bens, e dividiam o produto entre todos, segundo a necessidade de cada um. […] Tudo era comum entre eles. […] Não havia entre eles indigente algum, porquanto os que possuíam terras ou casas, vendiam-nas, traziam o dinheiro e o colocavam aos pés dos apóstolos; e distribuía-se a cada um segundo a sua necessidade (At 2,44-45; 4,32; 4,34-35).

O famoso lema do comunismo – “de cada um segundo a sua capacidade e a cada um segundo a sua necessidade” – reelaborado por diferentes autores, remonta, em uma de suas vertentes, a essa comunidade dos primeiros cristãos.

Aliás, sobre o que Carvalho chama de “descida ao inferno”, o que Jesus afirmou e mais se aproxima disso, segundo os Evangelhos, foi:

Retirai-vos de mim, malditos! Ide para o fogo eterno destinado ao demônio e aos seus anjos. Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; era peregrino e não me acolhestes; nu e não me vestistes; enfermo e na prisão e não me visitastes. […] Todas as vezes que fizestes isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim mesmo que o fizestes (Mt 25,34-40).

Em outras palavras, os “malditos” iriam para o “fogo eterno” justamente por não terem dividido o que era seu “segundo a necessidade de cada um” dos “mais pequeninos”, isto é, por não terem acolhido, na condição de seus “irmãos”, as pessoas em suas carências, sofrimentos e infortúnios, tais como a fome, a sede, a falta de abrigo, de roupas, de medicamentos e cuidados ou a privação da liberdade.

Assim, a despeito das convicções de Carvalho sobre o assunto, a deformação não parece ser a infiltração do comunismo no cristianismo ou na Igreja Católica mas o surgimento histórico de um cristianismo que nega o seu comunismo originário, tão claramente descrito nos Atos dos Apóstolos, e que foi uma das fontes inspiradoras do próprio surgimento do comunismo moderno.

A menos que, para Carvalho, seus discípulos e outros negacionistas, ter tudo em comum e dividir os bens entre todos segundo as necessidades de cada qual, como claramente o texto bíblico descreve a forma social de convivência dos primeiros cristãos, não sejam características essenciais de um modo de realização histórica do próprio comunismo.

De fato, o comunismo moderno – na maior parte de suas vertentes – é menos radical que o comunismo dos primeiros cristãos, pois não propõe que se deva ter tudo em comum e sim que apenas os meios econômicos de produção, de circulação e de crédito sejam de propriedade comum, em alguns casos como propriedade social de comunidades autogestionadas e, em outros casos, como propriedade pública.

É importante salientar que os documentos papais citados por Carvalho, em seu argumento, para combater o comunismo indistintamente, referem-se entretanto a uma determinada empostação desse sistema econômico, denominado no próprio título da encíclica Divinis Redemptoris, do Papa Pio XI, como “comunismo ateu”. Pelas leituras que fez de Aristóteles, Carvalho devia saber a distinção entre gênero e diferença específica. Sabia, pois, ser um sofisma estender ao conceito de comunismo em geral o que se aplica nos documentos eclesiásticos ao comunismo ateu e materialista em particular.

Cabe recordar que a Igreja Católica, em seus documentos oficiais, condena tanto a planificação centralizada no comunismo ateu como também a absolutização da lei do mercado no capitalismo: “Regular a economia só pela planificação centralizada perverte a base dos laços sociais: regulá-la só pela lei do mercado é faltar à justiça social, ‘porque há numerosas necessidades humanas que não podem ser satisfeitas pelo mercado’” (Catecismo Católico, 2022b, § 2425). E assevera que “uma teoria que faça do lucro a regra exclusiva e o fim último da atividade econômica, é moralmente inaceitável.” (Catecismo Católico, 2022b, § 2424)

Ante ambos os sistemas, na própria encíclica Divinis Redemptoris, mencionada por Carvalho, é feita a defesa da chamada Economia Social, nos mesmos termos de outra encíclica, a Quadragesimo Anno, de 1931:

A economia social estará solidamente constituída e obterá seus fins, só quando a todos e a cada um forem subministrados todos os bens que se podem conseguir com as forças e subsídios naturais, com a técnica, com a organização social do fator econômico. Esses bens devem ser em tanta quantidade, quanta é necessária, assim para satisfazer às necessidades e honestas comodidades, como para elevar os homens àquela condição de vida mais feliz, que, obtida e gozada de modo regrado e prudente, não só não é de obstáculo à virtude, mas até a favorece poderosamente. (Encíclica Quadragesimo Anno, apud PIO XI, 1937, § 52).

E, em defesa dos trabalhadores e trabalhadoras, asseverou o Sumo Pontífice nesse mesmo parágrafo:

Não se pode, porém, dizer que se satisfez à justiça social, se os operários não têm assegurada a sua própria sustentação e a de suas famílias com um salário proporcionado a este fim; se não se lhes facilita o ensejo de adquirir uma modesta fortuna, prevenindo assim a praga do pauperismo universal; se não se tomam providências a seu favor, com seguros públicos e privados, para o tempo da velhice, da doença ou do desemprego. (PIO XI, 1937, § 52).

Contudo, que o Poder Público favoreça o desenvolvimento de uma Economia Social, voltada a produzir com abundância e a subministrar “a todos e a cada um” “todos os bens” que atendam às suas “necessidades” e “honestas comodidades” e a elevar os “salários” para que os trabalhadores e trabalhadoras possam, como resultado de seu próprio trabalho, atender a estas necessidades e comodidades e a “adquirir uma modesta fortuna”, com base no princípio ético de que o lucro não pode ser o fim último da atividade econômica”, e que o Estado implemente políticas públicas de seguridade social, voltadas às pessoas que se encontrem na “velhice” ou em situação de “doença”, “desemprego”, extrema pobreza ou de insegurança alimentar, é algo combatido pelos seguidores de Carvalho como orientações comunistas que estariam sendo infiltradas na Igreja Católica, quando na verdade são medidas preconizadas pela própria doutrina oficial dela mesma, explicitada nos documentos que eles mesmos citam em seu combate ao comunismo, mas parecem não ter lido com atenção.

De fato, em sua argumentação, unindo fragmentos dispersos de suas leituras com fantasias totalizantes, Carvalho (2015) dá a entender que o “comunismo” estaria sendo imposto globalmente com base num método de manipulação de massas, valendo-se de “meios de subjugar a mente humana” (p.61) compondo um arsenal de técnicas que teriam sido desenvolvidas no século XX com a participação de “governos, partidos políticos, organizações religiosas e pseudo-religiosas, empresas e sindicatos” (p.61) que envolveriam diferentes técnicas, como “reflexos condicionados, lavagem cerebral, guerra psicológica, influência subliminar, controle do imaginário, engenharia comportamental, informação dirigida, Programação Neurolinguística, hipnose instantânea, estimulação por feromônios […]” e outras mais (p.61).

A sua crença no amplo emprego dessas técnicas por esses diferentes atores, leva Carvalho (2015, p.63) a se perguntar se

seria concebível que populações submetidas incessantemente a esse massacre psicológico pudessem conservar intactas por muito tempo as faculdades intuitivas e valorativas em cuja perda Lorenz enxerga o começo da demolição da espécie humana? Não é antes mais provável que a humanidade assim manipulada, estonteada, ludibriada vinte e quatro horas por dia acabe por entrar num estado crônico de autoengano?

Ao compor o seu mosaico, escolhendo em diferentes estudos, pesquisas e outras fontes as peças que melhor se encaixam para fazer surgir a figura que deseja, conclui Carvalho (2015, p.79-80) que:

1. Pode-se mudar a personalidade e as convicções de um homem levando-o ao esgotamento resultante da estimulação contraditória (Pavlov). // 2. Uma vez produzida uma descarga emocional por esses meios, a mesma reação pode ser repetida mediante estímulos cada vez mais fracos. A pessoa submetida a esse tratamento torna-se dócil, crédula e dependente (Sargant). // 3. A estimulação contraditória pode ser produzida por meios subliminares, sem que a vítima se dê conta do que se passa (Bandler e Grinder). // 4. A técnica pode ser aplicada simultaneamente a todos os membros de uma coletividade, desde que se sintam cortados de suas raízes sociais e afetivas (Conway e Siegelman). Os resultados serão mais rápidos do que no indivíduo sozinho. // 5. O fator decisivo é o controle planejado do fluxo de informações, que pode ser realizado à distância (IBM). // Não é preciso enfatizar as facilidades que, hoje em dia, a rede das telecomunicações e a informatização da sociedade oferecem para a aplicação dessa receita em escala nacional, continental ou planetária.

Mas com base em quê Carvalho saberia não incorrer em erro, em autoengano, ao afirmar algo como verdadeiro se, em alguma medida, também ele estaria afetado por esses fluxos de informação que teriam nele desencadeado reações que o levaram à escrita do próprio livro O Jardim das Aflições? Uma resposta a essa pergunta está na aula 579 de seu Curso, em que afirma o seguinte:

a sinceridade é a base da inteligência. A inteligência é a capacidade que o ser humano tem de captar a verdade. Você não pode captar nenhuma verdade sobre a sociedade humana sobre a história ou mesmo sobre as ciências se você não é capaz de captar a sua própria verdade. E a sua própria verdade se traduz na narrativa que você faz dos fatos internos e externos da sua vida para você mesmo e para o próprio Deus. Porque Deus é o observador onisciente que não permite que você se engane. (CARVALHO, 2007, 54m45s).

Assim, segundo Carvalho, se for realmente sincera a relação do indivíduo para com Deus, Deus não permitirá que o indivíduo se engane em sua narrativa e, portanto, sua narrativa será verdadeira. Desse modo, não poderia haver o autoengano do sujeito, ao defender a verdade de sua narrativa, pois Deus, como observador onisciente, não permitiria que o sujeito se enganasse a si próprio em sua relação sincera para com ele.

Em síntese, em última instância, haveria um fundamentalismo religioso subjetivista para o asseguramento da verdade das narrativas dos que têm por missão, entre outras coisas, não apenas salvar o país, mas também a Igreja, do comunismo.

Explicando que a confissão sincera seria a técnica basilar do aprendizado e da filosofia, Carvalho associa esse presumido modo de obter a verdade à expressão bíblica de que “Abrahão caminhava diante de Deus”:

Abrahão estava consciente de que Deus sabia o que ele estava fazendo, o que ele estava pensando e que Deus sabia mais sobre ele do que ele mesmo. Portanto, na medida em que ele se abrisse para Deus, ele não ia mostrar para Deus só aquilo que ele sabia de si mesmo, mas aquilo que o próprio Deus estava lhe revelando dele mesmo nessa mesma hora. (CARVALHO, 2007, 55m20s).

E conclui o argumento afirmando:

quando você conta a sua vida para Deus, Deus conta para você muito mais sobre você mesmo do que você poderia contar para ele. Então, a sinceridade e, portanto, a confissão é a técnica do aprendizado, é a técnica fundamental da filosofia. (CARVALHO, 2007, 55m43s).

Em resumo, no momento da confissão sincera, como “técnica filosófica”, a pessoa tomaria consciência daquilo que Deus lhe revelaria como verdade a respeito de si mesma e de sua realidade.

Percebe-se, por esse argumento, que Carvalho utiliza a expressão “técnica filosófica” de modo indevido, pois a filosofia não valida afirmações ou negações recorrendo a técnicas que lhe deem acesso a revelações divinas sobre os objetos da sua argumentação. Pelo contrário, coloca à prova da razão as crenças e mitos, sopesando a validade das teses e argumentos no plano racional.

Como afirma a Declaração de Paris para a Filosofia, redigida e aprovada no Encontro Internacional sobre Filosofia e Democracia no Mundo, promovido pela UNESCO em 1995,

a atividade filosófica, que não subtrai nenhuma ideia à livre discussão, que se esforça em precisar as definições exatas das noções utilizadas, em verificar a validade dos raciocínios, em examinar com atenção os argumentos dos outros, permite a cada um aprender a pensar por si mesmo (Declaración…, 1995, p.19).

Justamente por isso, “o ensino de filosofia favorece a abertura do espírito, a responsabilidade cívica, a compreensão e a tolerância entre os indivíduos e entre os grupos” (p.19) e não o contrário. Para tanto, o ensino da filosofia “deve ser assegurado por professores competentes, especialmente formados para esse fim, e não pode estar subordinado a nenhum imperativo econômico, técnico, religioso, político ou ideológico” (p.20).

Sublinha igualmente o documento que

[…] a educação filosófica, formando espíritos livres e reflexivos – capazes de resistir às diversas formas de propaganda, de fanatismo, de exclusão e de intolerância – contribui para a paz e prepara cada um a assumir suas responsabilidades face às grandes interrogações contemporâneas, notadamente no domínio da ética (Declaración…, 1995, p.20).

Carvalho, entretanto, denomina por filosofia algo diverso. Ele associa seus seminários de filosofia a uma forma de apostolado leigo, como atividade cristã, política e intelectual, que criaria uma “nova cultura brasileira”, assentada em verdades alcançadas mediante a confissão sincera, e que se superporia ao que ele denomina como falsa cultura existente:

fazer da prática da sinceridade interior a base da autoeducação, esta era e é a norma central do Seminário de Filosofia. […] A atividade intelectual assim concebida é uma atividade voltada para a salvação de um país que está se desgraçando. É a qualificação de pessoas para o exercício de uma função de emergência. Portanto, é uma educação para pessoas que estão dispostas a entrar nisso com verdadeiro espírito missionário. […] O que nós precisamos nesse seminário são pessoas que têm uma noção da altíssima missão da vida intelectual. Entendem que ela é nada mais nada menos do que apostolado leigo. […] Ela é parte da atividade cristã. […] Não é porque não estou falando em linguagem de Bíblia, em linguagem religiosa, que a minha atividade não é apostolado. É apostolado sim, meus filhos. […] A salvação desse país depende muito mais desta atividade do que a atividade formalmente religiosa que muitos estão desempenhando. […] Aqui estamos praticando a arte da verdadeira descoberta de si e da verdadeira confissão. Este é o espírito da filosofia e sobretudo da filosofia cristã. E sem isso você não é absolutamente nada. Se vocês querem se inspirar leiam os pensamentos de Pascal e as Confissões de Santo Agostinho […] ou então os Diálogos de Sócrates. E vocês vão entender que a sinceridade, quer dizer, a capacidade de você declarar o que realmente sabe, o que realmente você está percebendo […], e você conseguir raciocinar a partir da realidade e não de palavras ouvidas, é a base da filosofia. […] Isso é uma disciplina de vida, isso é uma norma moral. […] Tão logo você tiver acendido a luz da sua consciência e a luz da sua consciência tenha iluminado a parcela da realidade e você esteja em condição de verbalizar isto, não de dar opinião mas de verbalizar uma efetiva experiência interior da realidade, nós teremos criado uma nova cultura brasileira e ela se superporá a essa falsa cultura automaticamente, […] sem nenhum esforço de propaganda (CARVALHO, 2007, 56m07s).

Em síntese, parece tratar-se de uma espécie de retorno a teses do chamado tradicionalismo filosófico do século XIX, que surgiu como recurso de forças reacionárias em seu enfrentamento das vertentes do pensamento moderno. Nele argumenta-se que a revelação é a fonte primordial do conhecimento, buscando com isso reafirmar teses peculiares ao senso comum tradicional, que seriam expressão autêntica da verdade, pois teriam por origem a primitiva revelação feita pelo Criador ao ser humano no momento de sua criação. Como a revelação seria a fonte do conhecimento, o afastamento dessa verdade seria uma fonte de erro.

Frei Antonio Itaparica (apud Paim, 2007, p.136), arauto dessa concepção, interroga em seu Compêndio de Filosofia Elementar, publicado em 1852:

Quando em vez de divagar ou estranhar-se em um mare magnum de doutrinas ou sonhos dissolventes, subversivos e perigosíssimos ao gênero humano, há de ela conduzir-se pelo farol da Revelação?

Assim, se a maioria dos “missionários”, formados por Carvalho, que teriam se colocado diante de Deus em sua “confissão” com “sinceridade”, afirmar uníssona em alguma rede social uma mesma narrativa sobre a sociedade, essa concordância coletiva confirmaria que tal narrativa estaria validada em sua verdade, pois Deus, onisciente, não permitiria que uma multidão de pessoas sinceras, que se colocaram honestamente diante dele buscando a verdade de si mesmas e dos fatos exteriores que afetam a sua vida, se autoenganasse coletivamente.

Esse tipo de fundamentalismo religioso, realimentado em sistemas de rede, costuma derivar em formas de agressão verbal, intolerância e outros tipos de violência contra pessoas e instituições que são consideradas adversárias religiosas, políticas e culturais a serem combatidas em nome da salvação do país, da família, da liberdade, da cultura e, particularmente, na defesa da religião própria, que estaria ameaçada por diferentes atores que pensam e vivem de modo dissonante aos valores e condutas defendidas por esses “missionários” em seu “apostolado leigo”.

Se Olavo de Carvalho considerava verdadeiro ou não o que dizia sobre os objetos de seu discurso, não há como saber.

Se não dava por verdadeiro o que afirmava como certo ao conduzir os outros ao engano, não haveria nisso autoengano de sua parte, mas cinismo, movendo a conduta alheia para a realização de objetivos e interesses dele próprio ou de redes políticas, religiosas e de outras ordens com as quais colaborava.

Se ele criou um personagem público de si mesmo, ajustando o seu perfil e conduta nas redes sociais para atrair a mais de um milhão de seguidores, que seria diferente de sua própria personalidade real, no modo de viver a sua vida privada e administrar seus afazeres, somente as pessoas de seu convívio íntimo poderão dizer.

Se para ampliar e fidelizar seu público ele usou uma ou mais das técnicas do “lava-rápido cerebral” que combatia em seu discurso (CARVALHO, 2015, p.75s), somente estudos específicos poderão concluir.

Mas se, por hipótese, houve sinceridade de sua parte ao realizar as afirmações aqui analisadas, cabe repetir que Olavo de Carvalho não apenas enganou a muitos, como enganou a si próprio, com a sua interpretação subjetivista de “sapientiam autem non vincit malitia”. Na prática, não poucos seguidores seus – que tenham adotado o negacionismo sobre a letalidade do Coronavírus, inspirados na técnica que ele propôs de como chegar à compreensão verdadeira de si e dos fatos, crendo colocar-se sinceramente na presença de Deus e, por isso mesmo, possuir uma verdade revelada e incontestável a respeito dessa pandemia – podem ter morrido de Covid-19 ou estar a sofrer atualmente sequelas dessa doença.

Assim, contrariamente ao que afirma o lema por ele adotado, o mal dessa presunção sincera de possuir verdades reveladas que contradizem a ciência acabou por vencer a própria sabedoria com a adoção de um método eficaz de autoengano.

Carvalho parece ter negligenciado que, na doutrina do catolicismo evocada por ele em sua aula 579, a fé e a ciência se complementam. Como afirma o § 159 do Catecismo Católico (2022a), recuperando passagens dos Concílios Vaticano I e II:

«Muito embora a fé esteja acima da razão, nunca pode haver verdadeiro desacordo entre ambas: o mesmo Deus, que revela os mistérios e comunica a fé, também acendeu no espírito humano a luz da razão. E Deus não pode negar-Se a Si próprio, nem a verdade pode jamais contradizer a verdade» […]. «É por isso que a busca metódica, em todos os domínios do saber, se for conduzida de modo verdadeiramente científico e segundo as normas da moral, jamais estará em oposição à fé: as realidades profanas e as da fé encontram a sua origem num só e mesmo Deus. […]»

Por fim, cabe salientar que o conceito de autoengano é bastante controverso no campo da filosofia. Conforme a Stanford Encyclopedia of Philosophy, ele caracteriza a ação de

[…] uma pessoa que parece adquirir e manter alguma crença falsa diante de evidência em contrário e que o faz em consequência de alguma motivação, podendo exibir um comportamento que sugere alguma consciência da verdade (DEWEESE-BOYD, 2021, n.p.).

Com isso a pessoa nega ou considera como irrelevante qualquer prova ou argumento lógico em contrário daquilo em que acredita, convencendo-se de possuir uma verdade que, de fato, não possui, para não reconhecer o próprio engano de sua crença.

Não se trata de uma mentira, pois nesse caso a pessoa saberia que está mentido. No autoengano ela, inconscientemente, toma como verdadeiro algo que é falso e, mantendo a consonância cognitiva de suas crenças com respeito ao objeto dessa falsa verdade, recusa a validade de qualquer argumentação em contrário, negando a validez do que seja apresentado em defesa de posição adversa.

A depender do grau de autoengano, a pessoa chega a acreditar plenamente em fenômenos inexistentes, ensejando com isso, entretanto, a satisfação de desejos e fantasias suas a respeito deles.

Não se trata, portanto, apenas de um problema de natureza filosófica, podendo ser igualmente um problema de natureza psíquica a requerer tratamento adequado para que a pessoa possa recuperar a distinção perdida entre a realidade e a fantasia a respeito dela.

Referências Citadas

CARVALHO, Olavo. Velha lenda. In: O Globo. 01/11/2003 Disponível em: https://olavodecarvalho.org/velha-lenda/. Acesso em: 21/02/2022

CARVALHO, Olavo. O Jardim das Aflições. 3a. Edição. Campinas: Vide Editorial, 2015. [Edição Eletrônica] Disponível em: https://www.academia.edu/36925194/O_Jardim_das_Aflicoes_Olavo_de_Carvalho. Acesso em 20/02/2022

CARVALHO, Olavo. Uma Mensagem para Alunos e Leitores – Aula 579 do COF, 2007. Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=fP3D6IV2e78 Disponível em: 20/02/2022

“Declaración de Paris por la Filosofía”. In: DROIT, Roger Paul. Filosofía y Democracia en el Mundo. Ediciones UNESCO, Ediciones Colihue, 1995, p.1

DEWEESE-BOYD, Ian. Self-Deception. In: The Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2021. Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/sum2021/entries/self-deception/ . Acesso em 20/02/2022

Catecismo da Igreja Católica. Primeira Parte – A Profissão da Fé. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p1s1c3_142-184_po.html. Acesso em: 19/02/2022a

Catecismo da Igreja Católica. Terceira Parte – A Vida em Cristo. Disponível em: https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/p3s2cap2_2196-2557_po.html Acesso em: 19/02/2022b

PAIM, Antonio. História das Ideias Filosóficas no Brasil. 6ª Ed. Revista – Vol. II – As Correntes. Londrina: Edições Humanidades, 2007

PIO XI, Papa. (1937) Carta Encíclica Divinis Redemptoris […] Sobre o Comunismo Ateu. Disponível em: https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19370319_divini-redemptoris.pdf Acesso em: 19/02/2022

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