Euclides Mance
02/03/2024
Durante a Segunda Guerra Mundial, um soldado judeu, que atuava como intérprete de russo e alemão, nascido na Lituânia e naturalizado francês, foi feito prisioneiro e levado a um campo de concentração nazista, em Hannover, lá permanecendo de 1940 a 1945. Seu nome era Emmanuel Levinas. Nessa condição e nessa circunstância, ele formulou as teses básicas de um livro, publicado em 1947, intitulado Da Existência ao Existente. Nele Levinas argumenta que o existente, que dá sentido aos entes compreendidos em seu mundo, estaria numa impessoalidade, árida, neutra, que somente poderia ser superada no ser-para-o-outro, como momento ético de respeito à alteridade. De fato, no projeto existencial de qualquer pessoa, povo ou Estado, quando o outro é convertido numa coisa, transformado em meio para a realização de algum propósito, a ética já está violada. Portanto, uma existência, mesmo autêntica, autônoma e racionalmente fundada, pode carecer de eticidade.
Anos depois, em Totalidade e Infinito (1961), Levinas afirma que o móbile da conduta ética não é a razão, que dá sentido ao que se vê no horizonte do mundo, a partir de algum projeto como seu fundamento, mas o desejo do outro em sua alteridade; desejo que conduz à proximidade do ser humano, no face-a-face, com outro ser humano. Desejo do Invisível, pois o outro nunca se resume ao que vemos dele. Desejo do Infinito, pois o outro se revela infinitamente outro em sua liberdade. Desejo Metafísico, pois nenhum ser humano se reduz à materialidade de seu corpo.
Levinas relata, em entrevista a François Poirié (1987, p. 21), que quando os prisioneiros retornavam diariamente da jornada de trabalho forçado para os alojamentos no campo de concentração, eles eram vistos das janelas pelos alemães, em silêncio. Não havia xingamentos ou insultos. Mas não eram vistos como seres humanos. Eram vistos como judeus. Quem os reconhecia como seres humanos era um cachorro, que os recebia saltitando, latindo alegremente, querendo brincar: “Para ele – era indiscutível – éramos seres humanos”, afirma Levinas (2006, p. 234).
Hoje, nas telas de televisores e aparelhos celulares, como janelas do que se passa em Gaza, vemos o genocídio em curso do povo palestino, deslocado de suas casas e ofícios pelas forças militares de um Estado sionista. Vemos pessoas famintas, desesperadas, correndo em busca de ajuda humanitária, mortas por soldados que apenas estariam a cumprir ordens, realizando da melhor maneira o seu trabalho, como argumentou o nazista Adolf Eichmann, quando julgado em Jerusalém pelo crime de genocídio, conforme relata Hannah Arendt (2014) em A banalidade do Mal. Soldados que estariam a cumprir o seu dever com “excelência”, pois essa matança de pessoas desarmadas, que corriam em busca de alimento – cujas imagens aéreas jamais deverão ser esquecidas, como não devem ser esquecidas as do genocídio contra o povo judeu – foi assim elogiada pelo Ministro da Segurança Nacional: “agiram de forma excelente contra uma multidão de Gaza que tentou prejudicá-los” (UOL, 2024). De sua parte, o embaixador israelense no Brasil afirmou que descrever como genocídio as ações atualmente praticadas pelo Estado de Israel, que vitimam milhares de civis inocentes em Gaza, é “cuspir no rosto dos judeus” (DW, 2024)
O que o embaixador talvez espere é que fiquemos mudos nas janelas, assistindo a mais de um milhão de pessoas serem varridas de suas casas para a fronteira com o Egito, vendo palestinos serem alvejados pelos soldados israelenses, por correr de um lado a outro e aglomerar-se em torno de caminhões em busca de comida, ou serem mortos pelos bombardeios constantes das forças armadas de seu país, que deixam atrás de si um rastro de completa destruição nos territórios evacuados. O que o embaixador espera, com seu discurso coercitivo, é que fiquemos silenciosos diante do morticínio de milhares de mulheres e crianças indefesas e de mais de uma centena de jornalistas e médicos que perderam heroicamente a vida no cumprimento de seus ofícios. Em síntese, o que ele espera é que fiquemos calados diante dos crimes de guerra e do genocídio em curso, perpetrados pelo Estado de Israel contra o povo palestino.
É preciso reafirmar, uma vez mais, o que já asseveramos outras vezes: do mesmo modo como condenamos claramente os ataques terroristas do Hamas contra o povo de Israel e exortamos pela imediata libertação dos reféns israelenses, condenamos igualmente o genocídio em curso do povo palestino pelas forças armadas do Estado de Israel e conclamamos a um cessar-fogo imediato, à libertação de palestinos aprisionados ao longo dos anos por Israel, em clara violação do direito internacional, e à retirada das tropas de Israel dos territórios palestinos, por ele ilegalmente ocupados há décadas.
Como ensinou Levinas, os seres humanos não podem ser vistos das janelas – ou pelas câmeras dos drones – como coisas, como insetos a que se possa esmagar, reduzidos a meios que se possa eliminar, se o projeto totalitário de algum Estado assim o exigir.
Conclamamos os governos de todas as nações a se posicionarem abertamente, em declarações públicas, contra a continuidade do genocídio em Gaza e a tomarem medidas políticas e econômicas que forcem os Estados Unidos a aprovarem uma resolução pelo cessar-fogo imediato. Que Israel abandone todos os territórios palestinos por ele ocupados, assumindo como fronteiras de seu país os limites estabelecidos pela resolução 181 da ONU, que criou Estado de Israel em 1947, e reconheça os territórios do Estado Palestino, definidos nesta mesma resolução, em sua parte II, seção A. Que haja o reconhecimento recíproco dos Estados Palestino e Israelense, num acordo de paz que permita a seus povos viverem e prosperarem pacificamente em seus territórios, podendo estabelecer, no respeito recíproco de suas autonomias, a Jerusalém Oriental como capital do Estado Palestino e a Jerusalém Ocidental como capital do Estado Israelense. Apelamos, igualmente, a que todas as denúncias de crimes, cometidos de parte a parte, sejam objeto de rigorosa apuração e de julgamentos justos no Tribunal Internacional de Justiça, em Haia.
Referências Citadas
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2014
DW. Mauro Vieira rechaça críticas de ministro israelense a Lula. 21/02/2024. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/mauro-vieira-recha%C3%A7a-novas-cr%C3%Adticas-de-ministro-israelense-a-lula/a-68313621. Acesso em: 02/03/2024
LEVINAS, Emmanuel. De l’existence à l’existant. Paris: Vrin, 1947
LEVINAS, Emmanuel. Totalité et infini. Essai sur l’extériorité. La Haye: Martinus Nijhoff, 1961
LEVINAS, Emmanuel. Nom d’un chien ou le droit naturel. In: LEVINAS, Emmanuel. Difficile liberté: essais sur le judaïsme. Paris: Albin Michel, 2006
POIRIÉ, François. Emmanuel Lévinas – Qui êtes-vous?, Lyon, La Manufacture, 1987
ONU. Resolução Número 181/1947. Disponível em: https://undocs.org/Home/Mobile?FinalSymbol=A%2FRES%2F181(II). Acesso em: 02/03/2024
UOL. Após mais de 100 mortes, ministro de Israel defende fim de ajuda a Gaza. 29/02/2024. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2024/02/29/apos-mortes-palestinos-ministro-israel-defende-fim-de-ajuda-a-gaza.htm. Acesso em: 02/03/2024