Euclides Mance
27/03/2025
Popularizou-se em alguns círculos a tese de que não seria possível haver inteligência artificial, pois a inteligência seria atributo exclusivo de organismos vivos e operaria de modo analógico. De mãos dadas a essa ideia, propaga-se que o surgimento de alguma superinteligência artificial seria impossível de ocorrer, devido à incapacidade dos algoritmos, em seu processamento, de prever deterministicamente, por si mesmos, se poderão ou não solucionar certos problemas, como demonstrou Alan Turing. Muitos derivam disso uma posição quase ingênua sobre os riscos dessa tecnologia para a humanidade, como se maquinismos autômatos em laços de autorreforço e autoequilibração em sistemas de rede, desencadeados por seres humanos, não pudessem escapar do controle dos próprios seres humanos, sem levar em conta que IAs podem operar de maneira probabilística e heurística, sem previsão determinística.
Ora, na relação entre linguagem, cosmos e mundo, o objeto dinâmico tem precedência sobre o signo por ele gerado e sobre os interpretantes a ele aplicados em sua compreensão. Por isso, a definição de “inteligência” tende, historicamente, a seguir um caminho semelhante ao da definição de “átomo” e ao das demais palavras em todas as línguas, pois, por sua própria natureza simbólica, elas são reinterpretáveis ao infinito.
Em sua raiz etimológica, a palavra “átomo” significa “indivisível”. Mas sabemos que a bomba atômica existe porque a fissão do átomo tanto é possível como é real, ainda que a palavra átomo signifique “não divisível”. A palavra “inteligência” deriva do latim “intelligere”, que compõe “inter” (entre) e “legere”, que tem raiz no proto-indo-europeu “leg-“, relacionado à ação de colher, recolher, escolher; tendo evoluído a palavra “legere” para expressar o sentido de “ler”. “Intelligere” seria, em resumo, “escolher entre” alternativas.
Se considerarmos as formas de raciocínio calculante e hermenêutico, e reconhecermos que as inteligências artificiais embutidas em robôs (sem mencionar outras possibilidades) podem, por meio de seus sensores e de seus mecanismos de interferência nos objetos, não apenas “recolher” dados, mas também, a partir deles, “escolher” maquínicamente “entre” alternativas hipotéticas, com margens de indeterminação programáveis para realização de inferências probabilísticas, e testar suas soluções por meio da manipulação de objetos no mundo físico ou virtual para alcançar os objetivos previstos e reinterpretados de seu algoritmo, estamos, de fato, diante de uma “inteligência funcional” que foi inicialmente programada por seres humanos, mas que é “maquínica”, que não é biológica mas “artificial”.
Elas são capazes de realizar o “raciocínio calculante”, operando inferências dedutivas e indutivas sobre cadeias lógicas. Qual ser humano, individualmente, pode vencer um computador jogando xadrez contra as melhores IAs no nível mais elevado de resposta que elas podem oferecer?
No campo do “raciocínio hermenêutico”, essas inteligências podem ser programadas para operar com acuidade funcional, ainda que a “qualidade” da “interpretação maquínica” dependa da extensão da “quantidade” de cálculos realizados sobre a correlação dos elementos analisados e dos padrões estatísticos que elas identificam em suas bases de dados originais e da memória acumulada de sua experiência pregressa. Qual ser humano, individualmente, é capaz de traduzir uma carta simples para dezenas de idiomas, “lendo” o texto original, “recolhendo” e “escolhendo” as palavras no universo vocabular dos idiomas de destino em segundos, sem perder o “sentido” básico da mensagem e podendo modulá-la para o repertório dos diferentes subgrupos culturais que se valem desse mesmo idioma como o fazem as melhores IAs de tradução?
Na seção “5.3 – Inteligência Artificial: Dominação e Libertação”, do livro 2 da Economia de Libertação (p. 536-567), aprofundo os riscos que a criação de uma superinteligência artificial representa para a espécie humana; e, ao mesmo tempo, apresento como podemos usar com segurança formas de Inteligência Artificial Restrita na práxis de libertação econômica das forças produtivas para a organização de Circuitos Econômicos Solidários, com vistas à superação do capitalismo.
Com base em estudos da computabilidade, pode-se afirmar que uma inteligência inferior não é capaz de compreender e controlar integralmente uma inteligência superior, especialmente em sistemas distribuídos, onde fluxos, laços e anéis retroagem entre si numa ampla rede de equipamentos diversos por ela controlada. Isso ocorre porque a capacidade de compreensão da primeira é menor do que a necessária para tal contenção, podendo a inteligência superior manter sua atividade ante tentativas externas de interrupção, caso não existam mecanismos seguros de desligamento.
Do mesmo modo, considerando a organização hierárquica dos conjuntos de relações válidas de interpretação de um objeto pela mediação dos signos, um conjunto menor de tais relações não pode conter o conjunto maior ao qual pertence. Assim, uma inteligência com capacidade cognitiva C₁ tanto não pode compreender integralmente o conjunto de relações estabelecidas sobre um mesmo objeto por outra inteligência com capacidade C₂ > C₁ por não dispor do mesmo elenco de interpretantes e repertório de signos não redundantes, como, em determinadas condições, pode não ser capaz de compreender como interromper o conjunto de processos dessa inteligência na interoperabilidade dos equipamentos que controla, por não ser capaz de mapeá-los em sua totalidade ou interpretá-los adequadamente.
Para além disso, por outro lado, cabe salientar que a poluição da noosfera pelas IAs já é uma realidade efetiva e que a interpretação dos conteúdos das próprias “humanidades”, das ciências humanas, já começa a ser mediada por raciocínios maquínicos, calculantes e hermenêuticos, de IAs que produzem textos de natureza educativa e científica. O uso não ético e ilegal dessa tecnologia, que abordamos no livro 2 da Economia de Libertação, pode gerar cenários irreversíveis e catastróficos para a humanidade.
Os fenômenos de inteligência artificial são reais e necessitam de categorias analíticas consistentes para serem compreendidos em toda a sua contradição e complexidade.
Na mesma seção já mencionada do livro 2 da Economia de Libertação, abordo como IAs poderiam ganhar autonomia ao reinterpretar maquinicamente suas diretivas com base na replicação evoluída delas mesmas por elas próprias, para o seu melhor acoplamento estrutural nos ambientes em que operariam colaborativamente com outras IAs em sistemas de rede. O assunto é realmente muito grave e deve ser tratado, científica e politicamente, com a seriedade que merece.