Euclides André Mance
28 de Agosto de 2016
Prezado Senador Cristovam Buarque
A condição primeira para qualquer condenação legal não é o fato de haver sido assegurado o amplo direito de defesa ao réu, mas o fato deste haver cometido algum crime tipificado em lei.
Estranho humanista é o senhor.
Durante a última ditadura em nosso pais já houve quem esposasse um “humanismo bélico”.
A história, nas próximas décadas, ou mesmo em alguns anos, saberá adjetivar corretamente o seu humanismo, capaz de tergiversar sobre esse fundamento mais básico da justiça, possivelmente para atender a algum propósito outro, que somente o senhor sabe qual é.
Pela sua biografia, espero que não esteja envolvido nos esquemas de corrupção dos que lutam desesperadamente para salvar os corrompidos e os corruptores, abrigados no bote salva-vidas do Governo Temer, que desejam eliminar a Lava Jato e “estancar essa sangria”, nas palavras de outro senador, igualmente defensor do impeachment.
Na Ação Penal 470, ministros do Supremo adotaram a tese de que é justo condenar o réu mesmo na ausência de provas. Bastariam, para tanto, indícios de algum crime, cuja materialidade não seria mais necessário ou possível comprovar.
Agora, no processo de impeachment, acusa-se a presidente de haver cometido o delito de infringir uma norma do TCU que nem sequer existia quando dos fatos imputados. E argumenta-se que os juros de mora, os mesmos que nos são cobrados quando atrasamos o pagamento de uma conta de telefone, são a prova cabal de uma operação de crédito.
Se essas duas teses fossem válidas, senador, o senhor e eu teríamos de pagar multas por haver dirigido em rodovias com faróis apagados antes da entrada em vigor da nova lei que exige acendê-los durante o dia. E ninguém mais poderia cobrar juros de mora no país, exceto quem tenha autorização legal para realizar operações de crédito. E o balanço contábil de todas as empresas no Brasil deverá ser reprovado, exigindo-se, igualmente, que pagamentos atrasados, em que incidiram juros de mora, fiquem associados contabilmente a lançamentos de tomada de empréstimo no sistema financeiro. E, assim, a partir do impeachment da presidente Dilma, será eliminado pelo Congresso a distinção legal no pais, que é adotada em todo o mundo, entre juros compensatórios que remuneram algum capital empregado e juros moratórios, que indenizam o atraso no pagamento de alguma dívida.
Infelizmente, senador, essa teia de dislates agora se amplia com a sua própria contribuição. Além da jurisprudência que permite, em alguns casos, condenar qualquer brasileiro sem provas, bastando indícios; ou de que se possa condenar alguém por infringir uma norma que ainda não existe; ou de suprimir a distinção legal entre objetos distintos (como juros compensatórios ou moratórios) se isso for conveniente para algum propósito político, o senhor ampliou a extensão desse novo humanismo jurídico, ao afirmar que se ao réu for concedida a ampla defesa, torna-se possível, então, condená-lo, mesmo sem a comprovação de algum crime previsto em lei.
Além desse argumento, de concessão de ampla defesa ao réu, o senhor aduziu outros dois, para o seu juízo condenatório, referentes à situação atual de crise econômica no Brasil. Isso, senador, é uma confissão de culpa do senhor: pois, se este for o motivo de seu voto, estará votando em desrespeito à Constituição do país, pois ela não prevê impeachment do governante para solucionar crises econômicas. Tratar-se-á de desvio de finalidade, de sua parte, o emprego desse instrumento constitucional visando alcançar esse fim. E isso é crime, senador. Ou deveria ser, se vivêssemos num Estado Democrático de Direito.
Mas, entrando no mérito substantivo de seus dois outros alegados motivos, imagino que o senhor não acredite que a crise econômica na Rússia ou que a queda no PIB da China ou que a estagnação da economia na Europa seja consequência da má gestão do Governo Dilma. Se o senhor investigar quais são as reais causas da crise econômica da Rússia, da redução da atividade econômica na China ou da estagnação da Europa, talvez consiga compreender melhor as causas da crise econômica no Brasil.
Em cinco palavras lhe antecipo o diagnóstico básico: recomposição da taxa de lucro.
Sempre foi assim ao longo de toda a história do capitalismo, senador. No momento de crescimento econômico as empresas reduzem suas taxas de lucros, adotam preços mais competitivos, aumentam suas vendas, seu faturamento e a magnitude de seus ganhos. É a lei da concorrência, senador. Mas como a maior parte do valor gerado nessa expansão econômica se concentra ao invés de ser distribuída, pessoas e empresas contraem dívidas para ampliar o seu consumo e o seu investimento na expectativa de solvência futura — a chamada “confiança dos mercados”. Sempre foi assim ao longo do capitalismo e é por isso que os ganhos do sistema financeiro como um todo nunca cessam, tanto na bonança quanto na crise, mesmo que alguns bancos ou agentes financeiros entrem em default. Veja-se o balanço dos maiores bancos brasileiros, apontando ganhos que bateram recordes no primeiro semestre do ano passado e que lucraram juntos R$ 13,46 bilhões de abril a junho do presente ano.
Mas quando as dívidas se tornam quase impagáveis, senador, e o dinheiro dos atores econômicos flui em maior medida para o sistema financeiro, o consumo final e produtivo se reduz e as empresas vendem menos.
Então, para manter suas operações e pagar suas dívidas, as empresas têm de recompor suas taxas de lucro, pois devem cobrir seus custos totais com um volume menor de vendas e, mesmo assim, assegurar os ganhos para proprietários e acionistas. Por sua vez, aquelas empresas que dispõem de reservas, investem-nas no sistema financeiro, aguardando que as taxas de lucros subam em direção das taxas de juros, razão pela qual vários países mantém atualmente taxas de juros reais negativas tentando forçar a recuperação da atividade econômica.
É por isso, senador, que o Brasil atravessa um momento de recessão com inflação. Pois embora as empresas estejam produzindo menos e vendendo menos, elas continuam subindo seus preços para recompor suas taxas de lucros. E isso nada tem a ver com os gastos dos governos.
Dizer que a presidente Dilma é responsável por esse fenômeno é o mesmo que dizer que as crises cíclicas, marcadas pela contração da atividade econômica após os ciclos de sua expansão sob o capitalismo, que seguem ao longo da história, foram responsabilidade dos governantes, quando na verdade elas são fruto da própria dinâmica intrínseca de concorrência dos atores econômicos nos mercados, movidos pela busca de lucro e de proteção dos ganhos acumulados.
Fique atento senador, pois o que o Governo Temer busca é exatamente suprimir direitos históricos da população brasileira para assegurar a recomposição da taxa de lucro das empresas, ampliando a acumulação de capitais, a concentração de renda no Brasil e a subordinação da economia brasileira ao capital internacional.
É triste ver sua pessoa envolvida nesse caudal de condenação sem provas, por um suposto crime em que não há lei violada, escorando-se num argumento econômico legalmente inválido para justificar um impeachment, que, ao fim e ao cabo, visa reconcentrar a riqueza no país e entregar as jazidas do pré-sal a grupos internacionais. É triste ouvir de sua boca que o elemento decisivo para o seu voto tenha sido a concessão de um formal direito de defesa à presidente eleita, num processo de impeachment que se caracteriza plenamente como Golpe de Estado, à luz da ciência política contemporânea.
Estranho humanismo o seu, senador.