Euclides Mance
Curitiba, 09/04/2020
Considerando o número de 1,15 milhão de pessoas que podem vir a óbito no Brasil em razão da Covid-19, conforme estudo de cientistas do Imperial College de Londres (WALKER; WHITTAKER; WATSONET, 2020), há três perguntas básicas que algum jornalista deveria fazer ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Segundo as estimativas que norteiam as ações do Governo Federal, considerando as semanas já transcorridas de contágio, casos severos, casos críticos e mortes relacionadas à pandemia:
1. que porcentagem da população do país será possivelmente infectada pelo novo Coronavírus?
2. que porcentagem dessa população infectada será possivelmente acometida de maneira severa e crítica pela Covid-19?
3. que porcentagem, dos que desenvolverem de maneira severa e critica a doença, chegará possivelmente a óbito?
Se o ministério não tiver respostas para essas três perguntas e não indicar projeções mínimas, médias e máximas para elas, significa que, possivelmente, o país esteja perdido em sua estratégia de enfrentamento da pandemia.
Porém, pelas próprias declarações de Jair Bolsonaro, Henrique Mandetta e Paulo Guedes e pelos padrões de contágio e de letalidade da doença, estudados nos demais países, é possível responder, preliminarmente, a essas três questões.
1. Ao que tudo indica, no essencial, o presidente da República e os ministros da Saúde e da Economia divergem apenas no tempo de execução da mesma estratégia adotada pelo Governo Federal desde o início da pandemia, conhecida por “imunidade de rebanho” (herd immunity). Em vez de conter a propagação do vírus e evitar que as pessoas sejam infectadas, eles esperam que, com exceção dos idosos e doentes crônicos a serem protegidos do vírus pelos familiares, a maior parte da população seja infectada. Bolsonaro deseja que isso ocorra o mais rápido possível e pressiona de todas as formas para suspender o isolamento social. Mandetta deseja que o ritmo seja mais lento, para não colapsar o sistema de saúde. Com base nessa lógica, por exemplo, ele propõe que se suspenda o isolamento social nos municípios ou localidades onde o sistema de saúde não esteja sobrecarregado, mesmo tendo informado anteriormente que o primeiro pico da pandemia no país ocorrerá em abril e que a propagação se tornará mais lenta após o contágio alcançar a 50%, 60% ou 70% da população, (RODRIGUES, 22/03/2020). E Guedes, por sua vez, espera que, na fase 2 da pandemia, sejam testados milhões de brasileiros para identificar os que já foram infectados e possuam anticorpos para o novo Coronavírus, para dar-lhes um “passaporte da imunidade”, que lhes permita voltar ao trabalho (AGÊNCIA ESTADO, 04/04/2020). Em outras palavras, para obter esse “passaporte” e voltar ao trabalho é necessário que a pessoa tenha anticorpos para o coronavírus em seu organismo e isso só ocorrerá depois que for infectada por ele. Assim, ter sido infectada e ter sobrevivido ao Coronavírus é condição para a pessoa obter o tal “passaporte”. Ao final desse processo, de forma mais rápida ou mais lenta, todo o “rebanho” (exceto os idosos e doentes crônicos) teria o certificado de sua “imunidade”. Mas, quantas pessoas do “rebanho” serão acometidas, de maneira crítica e severa, pela Covid-19 se forem infectadas?
2. Com base no que se tem de informação sobre os demais países, estima-se que 80% da população não teria maiores complicações e que 20% da população evoluiria para alguma forma mais severa ou crítica da doença:
“Segundo o levantamento realizado em diferentes partes do mundo e com bases nos dados de serviços de saúde, constata-se que 5% de todos os infectados passam por uma situação “crítica”, exigindo ventilação mecânica. Outros 15% desenvolvem a doença de maneira “severa”, com a necessidade de terapia de oxigênio.” [CHADE, 20/03/2020 ]
Mas, destes 20%, quantos chegariam a óbito?
3. A letalidade da doença varia de país a país, dependendo de muitos fatores, envolvendo características de sua população, a capacidade das autoridades sanitárias de monitorar e evitar a propagação acentuada dos contágios, condição de infraestrutura, moradia e disposição de meios que permitam às famílias realizarem adequadamente a prevenção e tratamento da doença (considerando as infecções de garganta e pulmão) bem como a capacidade do sistema de saúde de atender e salvar os pacientes infectados que tenham desenvolvido a doença de maneira severa ou crítica. A taxa de letalidade mundial, conforme os dados publicados no relatório da OMS para o dia de hoje, 09/04/2020, é de 7,463. A taxa brasileira para esse mesmo dia é 5,023 e continua subindo ao longo da série.
Com base nessas informações, pode-se projetar cenários a respeito da propagação do novo Coronavírus, dos casos severos e críticos e de óbitos que possam ocorrer no Brasil em razão da Covid-19.
Considerando a afirmação do ministro Mandetta de que o primeiro pico da doença ocorre em abril e que a propagação se tornará mais lenta após o contágio alcançar a 50%, 60% ou 70% da população, pode-se imaginar que ao menos 50% da população esteja infectada até o final desse mês, e, considerando que o primeiro caso foi reportado em 26 de fevereiro, pode-se projetar a progressão do número acumulado de pessoas infectadas no país, a uma razão de 1,354 em relação ao dia anterior. Com isso, no dia 30/04 teríamos, ao menos, 106 milhões de pessoas infectadas. E para a data de hoje, 09/04, esse número seria de 183.970. Possivelmente, o isolamento social promovido por governadores e prefeitos retardou essa propagação. Ver a planilha em anexo, ao final.
Podemos projetar o número aproximado de óbitos para o dia de hoje de dois modos, chegando aos valores máximo, mínimo e médio. Mas, para isso, precisamos calcular a taxa de letalidade média para o conjunto da propagação da pandemia no país e não apenas tomar a última taxa verificada como referência.
Isso é necessário, pois a progressão dos casos graves e do número de óbitos ocorre com oscilações diárias, para mais ou para menos. Assim, necessitamos definir uma taxa média, considerando o conjunto das taxas de letalidade para todos os dias, diluindo essas oscilações, considerando o conjunto da série.
No primeiro caso, calculamos a taxa de letalidade, considerando o número de mortes acumuladas em relação ao número de casos acumulados reportados a cada dia. Assim, temos que:
Taxa de Letalidade 1 = mortes acumuladas / casos acumulados * 100
A taxa média será obtida somando os valores de todas as taxas diárias da série e dividindo o resultado obtido pelo número total de dias da série que apresentem uma taxa maior que zero. Para o dia de hoje esse valor médio é: 4,045%
No segundo caso, calculamos a taxa considerando o número de mortes acumuladas em relação ao número total de pessoas possivelmente infectadas no país, conforme a projeção diária. Assim, temos que:
Taxa de Letalidade 2 = mortes acumuladas / total da população possivelmente infectada * 100
Também aqui a taxa média será obtida somando-se os valores de todas as taxas diárias da série, que será dividido pelo número total de dias da série que apresentem uma taxa maior que zero. Para o dia de hoje, esse valor médio é: 0,908%
Com base nessas taxas, podemos estimar duas diferentes projeções para o número de óbitos acumulados no país para as próximas 24 horas.
No primeiro caso, estimando que 20% da população infectada desenvolva a doença em suas formas mais graves e que 183.970 pessoas já tenham sido infectadas até o dia de hoje, então 36.794 pessoas já teriam sido acometidas de maneira mais severa ou crítica pela doença no país. Considerando que a taxa média de letalidade sobre os casos reportados seja de 4,045%, então o número reportado de óbitos amanhã seria, no máximo, de 1.488. Mas, se a progressão dos infectados foi reduzida pelas medidas de contenção adotadas, esse número seria alcançado em 48 horas ou um pouco mais. Por outra parte, se a progressão do contágio estiver correta e o número reportado à OMS for menor, a diferença apurada poderia ser de óbitos subnotificados por falta de exames que comprovem a causa da morte. No dia 01/04, somente em São Paulo, havia 201 óbitos que aguardavam o resultado do exame para saber se a causa da morte era ou não o novo Coronavírus (COTES, 01/04/2020).
No segundo caso, estimando que o número de pessoas infectadas no país no dia hoje seja de 183.970 e considerando que a Taxa de Letalidade 2 sobre a população infectada seja de 0,908%, temos que o número total de óbitos acumulados na série a ser reportado para o dia amanhã seria, no máximo, de 1.671. Também aqui, como na projeção anterior, esse número poderia vir a ser alcançado em 48 horas ou um pouco mais pelos mesmos motivos citados anteriormente e as diferenças apuradas a menos poderiam ser, igualmente, problemas de subnotificação.
Os valores de ambas as projeções divergem um pouco e, para cada qual, podem ser considerados, diariamente, valores mínimo, médio e máximo. O valor mínimo para um determinado dia é o valor projetado como máximo para o final do dia anterior, já com as taxas médias novamente ajustadas. O valor máximo é o valor que resulta da projeção para o final do dia em questão.
Assim, considerando o primeiro caso, a mínima de mortes acumuladas pela Covid-19 a ser reportada no dia 10/09 seria de 1.099 e a máxima seria de 1.488 e a média seria de 1.293. Mas a depender da velocidade de progressão da pandemia, das medidas de contenção e subnotificações por falta de materiais para a testagem dos pacientes que vieram a óbito, o valor mínimo poderia ser alcançado no relatório do dia seguinte, 11/04.
Por outra parte, considerando as projeções para os diferentes dias e os números oficiais informados à OMS pelo país, pode-se tomar como projeção, para o valor mínimo, o mais próximo da série de projeção que tenha superado o valor informado no último relatório da OMS e, como máximo, o valor previsto para o próximo dia em relação ao mínimo selecionado. Nesse caso, considerando a Taxa Média de Letalidade 1, aplicada sobre o número de casos graves, o número mínimo acumulado até o presente dia seria de 812 óbitos, o máximo seria de 1.099 e o número médio seria 956 – ver tabela no Anexo.
Por fim, se os dados reportados à OMS forem completos e eles ficarem fora dos parâmetros mínimo e máximo projetados, deve-se ajustar o coeficiente de progressão, pois a velocidade de contágio a cada dia e, consequentemente, o número da população infectada, foram alterados pelas medidas de contenção adotadas.
Uma tragédia ainda maior que a anunciada
Se a progressão dessa pandemia seguir com esses padrões e alcançar a quase totalidade dos habitantes no país sob a estratégia de “imunização de rebanho”, as mortes poderão ultrapassar a cifra de 1.152.283 pessoas, estimada por um grupo de 47 cientistas do Imperial College de Londres (WALKER; WHITTAKER; WATSONET, 2020).
Isso é também comprovado pela nossa projeção que, com base na Taxa Média de Letalidade 1 de hoje, aplicada sobre a projeção de casos graves totais, chegaria à cifra mínima de 1.584.637 e a uma cifra máxima de 1.700.111 óbitos, quando o contágio alcançasse todo o conjunto da população residente no Brasil. A projeção que fazemos, entretanto, varia a cada dia, conforme os dados reportados pelo Brasil à OMS. Esperamos que essas cifras não sejam alcançadas e que o Governo Federal altere, o quanto antes, a estratégia geral de combate da pandemia no país, passando a evitar o contágio da população pelo vírus, em vez permitir a sua expansão lenta ou rápida pelo país.
Para reduzir o número de mortes é preciso evitar que a população contraia o vírus, contendo os focos de sua propagação, com todas as medidas necessárias de testagem massiva, rastreamento do contágio, isolamento dos casos e quarentena das pessoas que tiveram contato com as pessoas infectadas. A preocupação com o atendimento dos doentes graves no sistema de saúde é da maior importância. Bem como a preocupação em evitar o contágio da população, incluindo os profissionais de saúde, pois essa é a única medida que poderá impedir que aproximadamente 42 milhões de habitantes do Brasil venham a desenvolver as formas críticas e severas da Covid-19 e que mais de um milhão de pessoas venham a óbito em nosso país acometidas por essa doença.
Se medidas urgentes não forem tomadas nos próximos dias nesse sentido, em mais algumas semanas elas poderão vir tarde demais.
Como essas projeções se referem a fenômenos complexos, pode ser que a partir de algum momento passe a ocorrer algum desvio nos resultados gerados na planilha em anexo. Cabe fortemente ressaltar que essa planilha se trata apenas de uma ferramenta de projeção, ainda não validada entre pares, a ser confrontada com outras, não devendo servir de base exclusiva para qualquer tomada de decisão de qualquer natureza.
Compartilhamos esse estudo, no estágio preliminar em que se encontra, na esperança de que ele seja útil para compreender a gravidade do momento que o país atravessa e para que milhares de mortes possam ser evitadas no Brasil nos próximos meses.
Anexo 1
A planilha, em anexo nesse link, permite atualizar as referidas projeções a cada dia e seus resultados têm valor apenas hipotético e, tão somente, para o caso de que seja mantida a atual estratégia de “imunidade de rebanho” adotada pelo Governo Federal, que cogita conceder certificado de imunização à população que desenvolva naturalmente anticorpos ao coronavírus, com base em sua prévia infecção por ele, e que, evidentemente, sobreviva à Covid-19, caso tal infecção venha a evoluir para as formas severa e crítica dessa doença.
A planilha deve ser alimentada com os dados sobre novos casos e novas mortes relacionados à Covid-19 no Brasil, atualizados diariamente pela OMS e que podem ser descarregados nesse link. A introdução de novos valores na planilha leva a uma atualização de todas as séries de projeção de óbitos acumulados, reordenando os padrões de progressão, com base na nova informação agregada, que altera os valores considerados como mínimo e máximo, em relação às datas presente e futuras.
Descrição das Colunas
A – Data de Referência
B – Novos Casos, conforme relatório publicado diariamente pela OMS
C – Novas Mortes, conforme relatório publicado diariamente pela OMS
D – Total de Casos Acumulados, somatória da série completa de novos casos
E – Total de Mortes Acumuladas, somatória da série completa de novas mortes
F3 – Taxa Média de Letalidade 1, com base nas taxas de letalidade ao longo da série da coluna F.
G – População Infectada Acumulada: valores absolutos projetados com base na razão de 1,354 ao dia em relação ao dia anterior, para alcançar metade da população do país em 30/04/2020 partindo do primeiro caso registrado em 26/02/2020.
H3 – Taxa Média de Letalidade 2, com base nas taxas de letalidade ao longo da coluna H, calculadas considerando os Totais de Mortes Acumuladas em relação aos Totais de População Infectada Acumulada.
I – Total de Casos Graves Acumulados: estimativa de 20% da População Infectada Acumulada. Inclui os casos severos e críticos.
J – Total de Casos Severos Acumulados: estimativa de 15% da População Infectada Acumulada
K – Total de Casos Críticos Acumulados: estimativa de 5% da População Infectada Acumulada
L – Total de Mortes Absolutas Acumuladas – Projeção 1: baseada na Taxa Média de Letalidade 1 aplicada sobre o Total de Casos Graves Acumulados
M – Total de Mortes Absolutas Acumuladas – Projeção 2: baseada na Taxa Média de Letalidade 2 aplicada sobre População Infectada Acumulada
Referências Bibliográficas
AGÊNCIA ESTADO. Guedes sugere “passaporte de imunidade” para reabertura econômica. 04/04/2020. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/guedes-sugere-passaporte-de-imunidade-para-reabertura-economica/. Acesso em 09/04/2020.
CHADE, Jamil. Proliferação de vírus acelera e gera 20% de casos severos e críticos. 20/03/2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/03/20/coronavirus-pode-gerar-20-de-casos-severos-ou-criticos-diz-oms.htm Acesso em 09/04/2020
COTES, Paloma. Duzentos corpos em São Paulo aguardam resultado para exame do novo coronavírus. O Estado de S.Paulo. 01/04/2020. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,duzentos-corpos-em-sao-paulo-aguardam-resultado-para-exame-novo-coronavirus,70003256477 . Acesso em: 09/04/2020
MANCE, Euclides. Novo Coronavírus e Teorias de Rede – Enfrentamento da Pandemia e da Crise Econômica no Contexto Brasileiro. 26/03/2020. Disponível em: https://www.alainet.org/sites/default/files/coronavirus-e-teorias-de-rede.pdf. Acesso em: 09/04/2020
MANCE, Euclides. Coronavírus – O Capital ou a Vida. 17/03/2020. Disponível em: http://euclidesmance.net/wp/index.php/2020/03/17/coronavirus-o-capital-ou-a-vida/. Acesso em 09/04/2020.
OMS. Download today’s data on the geographic distribution of COVID-19 cases worldwide. Disponível em: https://www.ecdc.europa.eu/en/publications-data/download-todays-data-geographic-distribution-covid-19-cases-worldwide. Acesso em 09/04/2020
RODRIGUES, Eduardo. Mandetta: quando chegar em 50% das pessoas infectadas ritmo vai diminuir. UOL, 22/03/2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2020/03/22/mandetta-quando-chegar-em-50-das-pessoas-infectadas-ritmo-vai-diminuir.htm> Acesso em: 26/03/2020
WALKER, Patrick; WHITTAKER, Charles; WATSONET, Oliver et al.The Global Impact of COVID-19 and Strategies for Mitigation and Suppression. Imperial College London (2020). Disponível em: https://doi.org/10.25561/77735 . Acesso em: 09/04/2020
Uma resposta para “Coronavírus: o Brasil avança para uma tragédia ainda maior.”