Será o Fim do PSDB?

Euclides Mance
02/10/2018

Numa sociedade democrática os diferentes partidos políticos representam diferentes projetos de país, que se expressam em diferentes programas e maneiras de realizá-los.

Quando o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) nasceu, ele possuía um programa social-democrata e uma identidade própria no quadro político do país. Entre os objetivos de seu programa estavam: “defesa da renda dos trabalhadores, combate à pobreza, universalização do acesso à escola, aos serviços de saúde e à seguridade, modernização do estado e estabilização da economia […] a democracia, a justiça, o desenvolvimento e a soberania nacional.” [1]

Por isso, no segundo turno das eleições de 1989, com base em seu Programa, o PSDB apoiou o PT, em oposição ao projeto político representado por Fernando Collor de Mello.

Alguns anos depois, entretanto, no transcorrer dos governos de FHC (1995-2002), o PSDB renunciou progressivamente à social-democracia que leva em seu nome e assumiu o ideário neoliberal, defendendo extensas privatizações, um Estado mínimo e a abertura irrestrita do país ao capital internacional visando a internacionalização do mercado interno. Tornou-se, na prática, um partido neoliberal, representando interesses dos diferentes setores do capital, particularmente o financeiro e o internacional.

Ao renunciar à sua identidade social-democrata e mover-se ao sabor dos ventos do grande capital, o PSDB passou a aglutinar e expressar as forças que eram contrárias ao projeto político e ao programa democrático e popular defendidos pelo Partido dos Trabalhadores.

Derrotado nas urnas pelo PT e fazendo uma oposição errante, o PSDB perdeu definitivamente sua referência interna de coesão programática, para tonar-se um partido organizado em torno das orientações pessoais de suas principais lideranças, simplificando, externamente, o seu discurso eleitoral, apresentando-se como o polo anti-PT.

Incapaz de derrotar eleitoralmente o projeto político petista de crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, o PSDB, após quatro reveses consecutivos na disputa presidencial, conduziu o país ao trauma do impeachment, acolhido como um atalho para chegar ao poder. Coube ao partido, com seus vários ministérios no Governo Temer, entregar o pré-sal a grupos estrangeiros, privatizar refinarias e gasodutos, entregar o controle do satélite de defesa brasileiro a uma empresa norte-americana e aprovar várias reformas e medidas que eliminaram direitos dos trabalhadores, congelaram os gastos com saúde e educação por 20 anos e feriram a soberania nacional.

Com o fracasso retumbante do Governo Temer, o PSDB corre agora o risco de desaparecer como partido político e reduzir-se a uma sigla qualquer, após ter sido posto ao serviço de interesses de lideranças partidárias, que colocaram seus projetos pessoais acima dos interesses do país.

Veremos nas próximas semanas se o PSDB abdicará também do Democrático que leva em seu nome. Veremos se tomará posição, como partido, em defesa da democracia, orientando seus eleitores a não votarem em Bolsonaro/Mourão em razão destes defenderam tanto a legitimidade de um Autogolpe Militar, que poderia ser desfechado pelo presidente para conter a “anarquia” no país, quanto a possibilidade de elaboração de uma nova Constituição sem a participação de constituintes eleitos pelo povo, mas feita por “notáveis”, escolhidos pelo presidente para tornar o país governável; bem como, em razão dos seus elogios aos torturadores da última ditadura militar no Brasil e por defender que Pinochet deveria, no Chile, ter matado um maior número de opositores; enfim, em razão das posturas fascistas e preconceituosas defendidas por ambos.

Veremos se o PSDB aproveitará esse momento histórico para reassumir um projeto social-democrata em defesa da “renda dos trabalhadores” e não do lucro do capital financeiro, de “combate à pobreza” e não em defesa do capital internacional, de “universalização do acesso à escola, aos serviços de saúde e à seguridade” e não da privatização desses serviços, o que reduz o seu acesso a quem possa pagar por eles; em favor da “modernização do Estado e da estabilização da economia” que levaram o Brasil a 12 anos de crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social; em defesa da “democracia”, da “justiça”, do “desenvolvimento” e da “soberania nacional” e não do autoritarismo, da entrega das riquezas do país ao capital estrangeiro e do uso do poder judiciário para a prática da perseguição política,  num Estado de exceção, que viola liberdades fundamentais dos cidadãos, a sua intimidade e vida privada,  que viola a honra e a imagem das pessoas, solapando cada vez mais o Estado Democrático de Direito, para implantar, em seu lugar, um Estado Autoritário de caráter fascista, que exalta o uso das armas de fogo pela população para conter a violência com mais violência, com mais balas e vidas perdidas.

É hora do PSDB reencontrar o seu programa de origem, honrar os termos Social e Democracia que leva em seu nome e abandonar o caminho fácil de surfar nas ondas do mercado, do preconceito e da ignorância. Pois se não o fizer, estará extinto como partido político e terá se convertido apenas numa sigla coadjuvante de outra qualquer na encarnação do discurso preconceituoso anti-PT, afirmado na virulência de uma linguagem recheada de adjetivos grotescos; linguagem que, quanto mais chula, mais parece alcançar o inconsciente coletivo do ódio que se descarrega contra algum outro, convertido em bode expiatório de todos os males, dos quais o Brasil seria purificado com a eleição de um presidente fascista, vestido de verde e amarelo.

O Golpe – BRICS, Dólar e Petróleo

Euclides Mance
04 /08 / 2018

O livro “O Golpe – BRICS, Dólar e Petróleo” (ISBN: 978-85-69343-45-5) pode ser descarregado neste link:

http://www.euclidesmance.net/docs/o_golpe.pdf

Realizamos nessa obra uma análise muito detalhada e amplamente documentada do golpe de estado ocorrido no Brasil em 2016, abordando o contexto nacional e global em que ele foi consumado, alguns mecanismos adotados em sua execução e alguns objetivos já alcançados com a sua realização.

Preservando a cronologia dos acontecimentos e aprofundando os aspectos mais relevantes, o livro foi organizado em seis unidades de conteúdos.

Na primeira parte mostramos o impressionante crescimento econômico dos BRICS, desde a sua criação, e o modelo de desenvolvimento com distribuição de renda adotado pelo Brasil a partir de 2003. Mostramos como o crescimento econômico dos BRICS tornou-se um dos principais desafios à manutenção da hegemonia global norte-americana. Em seguida, detalhamos alguns elementos da crise econômica de 2015 no Brasil, a importância do pré-sal brasileiro para os Estados Unidos, os principais aspectos do cenário interno do golpe e a participação de empresas, organizações, agências e autoridades norte-americanas no desenrolar dos acontecimentos. Na sequência, explicitamos os principais instrumentos usados na realização do golpe e alguns de seus frutos para os Estados Unidos, suas empresas, organizações e investidores.

Na parte intermediária, tratamos do regime de exceção implantado no país a partir de 2016 e da violação de direitos humanos no Brasil atual. E, à luz do que ocorreu em outros países que viveram processos semelhantes, sintetizamos o que pode ser chamado de “Manual do Golpe”, detalhando os dez elementos metodológicos mais recorrentes em sua realização.

Na parte final, destacamos alguns aspectos dos golpes de estado recentemente executados na América Latina – Venezuela (2002), Haiti (2004), Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016) – e de intervenções similares ocorridas no Oriente Médio, no transcurso da Primavera Árabe.

Os elementos destacados nessa parte do livro servem de insumo para a projeção de cenários possíveis com respeito à movimentação das forças golpistas num futuro próximo, em que estas buscarão, a qualquer custo, impedir a retomada do desenvolvimento soberano do país com distribuição de renda e a recuperação, pelo Estado brasileiro, do domínio nacional tanto sobre a lavra de suas jazidas de petróleo e de gás natural quanto sobre a propriedade de gasodutos e refinarias, que foram transferidos ao controle estrangeiro pelas forças golpistas, lesando o patrimônio público e ferindo a soberania econômica nacional.

Se o leitor desejar retribuir ao autor por haver recebido gratuitamente o livro, pode realizar uma assinatura do site euclidesmance.net por um único mês, no valor de R$ 25,00, ou por um período maior à sua escolha.

O lançamento oficial do livro ocorrerá no dia 22/08/2018, às 19:00hs, numa aula do curso sobre o golpe, a realizar-se na Universidade Federal do Paraná, Edifício D.Pedro I, Anfiteatro 100.

 

Falácias de Moro

Euclides Mance
29 / 12 / 2017

O livro “Falácias de Moro” (ISBN: 978-85-69343-40-0) pode ser descarregado neste link:

http://www.euclidesmance.net/docs/livro_falacias_de_moro.pdf

Nele realizamos uma análise exaustiva das principais inconsistências lógicas, tanto semânticas quanto formais, presentes na sentença condenatória do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá.
 
O livro se divide em duas partes, demonstrando que os argumentos do juiz violam frequentemente as leis da lógica para obter conclusões que não podem ser validamente obtidas.

Na primeira parte, analisamos dez falácias, explicando-as uma a uma, indicando sua forma lógica e a nomenclatura  filosófica recorrente na tipificação desses raciocínios falhos, facilitando sua análise e estudo com base na tradição acadêmica.

Na segunda parte, percorremos a sentença como um todo, evidenciando os diferentes erros lógicos cometidos pelo juiz no transcorrer de sua argumentação. E mostramos como a condenação do ex-presidente está apoiada justamente nessas inconsistências lógicas.

A primeira versão desse estudo foi publicada em agosto de 2017 pela Agência Latino-Americana de Informação – ALAI. https://www.alainet.org/en/node/187329

Agradeço a interlocução realizada, nas semanas seguintes, com professores de lógica que trabalham em diferentes universidades no Brasil, possibilitando aperfeiçoar aquele estudo inicial, ora publicado como livro.

Boa leitura a todos/as.

 

 

O voto como capital político

Euclides André Mance
26 de Maio de 2017

O dinheiro somente funciona como capital quando é  investido num processo de produção e/ou de intercâmbio que visa resultar em mais dinheiro do que o inicialmente investido, sendo acumulado esse valor a mais, no todo ou em parte, por seus controladores.

Tudo o que possa ser capturado sob esse movimento de valorização e acumulação econômica pode se converter em capital. Assim, pessoas, comunidades e a inteligência humana se convertem em capital humano, capital social e capital intelectual, pois podem ser explorados na valorização do capital, tornado-se, desse modo, fatores de valorização do capital e de acumulação de riquezas.

Como temos visto no Brasil, esse mesmo movimento pode ocorrer pela subordinação dos votos, conferidos no interior dos aparelhos de Estado, ao processo econômico de acumulação de capitais, sendo pois convertidos em capital político à disposição de seus controladores.

O processo é similar ao modo como o grande capital, disputando mercados, busca obter o controle de empresas de capital aberto, comprando a maioria das ações ordinárias com direito a voto.

A diferença é que, neste caso, trata-se de obter o controle sobre decisões do Estado, financiando a maioria das campanhas eleitorais ou oferecendo propinas aos agentes públicos com poder de decisão, obtendo-se com tais investimentos — respectivamente, de longo e de curto prazos –, a quantidade de votos necessária à aprovação ou rejeição de projetos e programas em favor dos interesses dos controladores desse capital político, isto é, desse capital que, investido no processo político, resulta em acumulação econômica de mais capital.

Assim, na atividade de reprodução ampliada de seu poder político, como mediação para a reprodução ampliada de seu capital econômico, somente uma empresa, a  JBS, distribuiu propinas a 1.829 candidatos de 28 partidos, somando mais de R$ 600 milhões, fora as doações legais no financiamento de campanhas eleitorais [1].

Algumas grandes empresas chegaram mesmo a estruturar departamentos internos com funcionários destacados para cuidar de preservar seu capital político no interior do Estado, tanto pelo fluxo contínuo na eleição de candidatos comprometidos com suas pautas econômicas quanto pela posterior manutenção de sua lealdade através de pagamentos periódicos — para que atuassem como passarinhos felizes que cantam ao receber o alpiste [2].

Chegaríamos a uma cifra seguramente estarrecedora, se fosse possível saber e somar tudo o que foi investido pelo conjunto das empresas capitalistas  na eleição de parlamentares que operam como seus representantes no interior do Estado e na compra posterior de votos de outros parlamentares, não inicialmente financiados por elas, para aprovar seus projetos estratégicos ou para derrotar projetos que são contra os seus interesses  em câmaras de vereadores, assembleias legislativas e no Congresso Nacional .

Mas dado que no Reino dos Fins, como dizia Kant, tudo tem seu preço ou a sua dignidade, o capital nunca consegue comprar os votos de todos, pois a consciência e a dignidade de uma parte dos eleitos não estão à venda nesse mercado. E quando a sociedade, exercendo criticamente seu voto, elege como seus representantes — nas esferas do poder executivo e legislativo —  pessoas historicamente comprometidas com os interesses dos mais pobres e excluídos, com a defesa dos direitos dos trabalhadores e a justa distribuição da riqueza socialmente produzida, as bancadas do capital não conseguem exercer seu poder político como forças da situação. E, embora tentem cooptar os eleitos em tudo o que seja possível, agem de fato como forças de oposição.

Dessa forma, as organizações do grande capital montam sempre suas bancadas, maiores ou menores, financiando as campanhas de seus parlamentares, para atender aos interesses de suas empresas em particular e, no geral, aos interesses da classe econômica de que fazem parte. Cabe recordar que o próprio golpe de Estado, que deu origem à República Brasileira foi patrocinado por forças econômicas, particularmente latifundiários e cafeicultores, que aumentavam seus ganhos com a imigração de mão-de-obra europeia para suas lavouras, substituindo assim o trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Para a consumação daquele golpe de 1889, coube às forças políticas e militares imporem à sociedade a nova ordem que traria o progresso ao país.

Em nossa história, como na história dos demais países, as bancadas do grande capital, são compostas por parlamentares de diferentes partidos políticos. Para compreender isso, cabe recordar o sentido histórico e originário da palavra partido,  que significa uma parte da sociedade, que defende um mesmo projeto ou interesses comuns.

Tais parlamentares, independentemente de suas legendas partidárias, são braços do que se pode chamar, com propriedade, de partido econômico do capital, que conforme as conjunturas se agrupa ou se separa em diferentes agremiações políticas, conformando blocos com interesses comuns, sem eliminar contudo as divergências que mantêm entre si — particularmente na disputa travada pela acumulação da mais-valia entre o capital produtivo (agrário, industrial e de serviços) que produz valores de uso e o capital improdutivo (comercial, financeiro e de serviços), que opera somente na circulação dos valores econômicos.

Tais representantes políticos são eleitos para defender os objetivos estratégicos do capital em geral, favorecendo sempre aos interesses do capital produtivo, comercial e financeiro. Bem como, para derrotar quaisquer projetos que distribuam a riqueza, defendam a classe trabalhadora ou o interesse público, em detrimento da realização dos objetivos de acumulação privada do capital.

Esse partido econômico, no sentido sociológico de uma parte da sociedade, é constituído, em seu conjunto, por todos os grupos econômicos que defendem em linhas gerais o mesmo projeto capitalista de sociedade, baseado na acumulação privada de lucro com a exploração do trabalho subordinado ao capital.

Os braços desse partido econômico operam igualmente no executivo e no judiciário.

Dele fazem parte todos os grandes veículos de comunicação que operam via rádio, TVs, Internet ou mídia impressa e que, recaindo na mesma classe de empresas com fins lucrativos, atuam com a mesma lógica de maximização da acumulação privada de riqueza com a exploração do trabalho subordinado em suas áreas de atuação.

A participação desse setor de mídias no golpe de estado de 2016 pode ser verificada pelo que lhe coube do butim, como vemos na tabela abaixo, com a reconcentração da verba de publicidade federal nos grandes grupos de comunicação.

Em números absolutos, o aumento de seu faturamento com publicidade estatal, comprova que o golpe de estado foi um negócio bastante lucrativo para o Grupo Globo, principal expoente na propagação em todo o nosso país das teses defendidas pelo partido econômico do capital. Nisso se destaca o trabalho incansável dos comentaristas econômicos da Globo News e da rádio CBN — fazendo jus, ao Grupo, abocanhar uma grande parte desse butim, que depois será gasto, entre outras coisas, possivelmente, para oferecer prêmios a cidadãos que fazem a diferença no Brasil.

Mas também foi um bom investimento para o restante do andar de cima do poder de mídia desse mesmo partido, como se pode ver no gráfico a seguir.

A famosa foto do trio que teve papel relevante no golpe de Estado de 2016 foi registrada justamente num evento promovido pela Revista Isto é. Mas, como comprovar que o aumento de 1.384,1 % que a revista obteve no recebimento de verbas publicitárias do governo federal nos últimos 12 meses teria sido uma contrapartida de Michel Temer à empresa controladora dessa revista pelos bons serviços prestados ao conceder honrarias a tais personagens em sua tentativa de consolidar o golpe?

Não basta, porém, às forças desse partido econômico conquistar apenas o poder de decisão no interior do Congresso, somando os votos de seus representantes em favor de suas causas, ou no executivo com seu serviçal de ocasião, disposto a sancionar e despachar a realização de seus pleitos. Devem fazer o mesmo também no interior do poder judiciário.

Nesse caso, a  corrupção de um magistrado pode ocorrer pelo mesmo mecanismo da oferta de dinheiro ou de vantagens materiais em troca de sentenças – razão pela qual alguns juízes já foram condenados e presos no Brasil. Mas, por outra parte, a corrupção dos valores que norteiam um juiz também pode ocorrer de forma mais sutil, pela cooptação de sua interpretação sobre  atores, eventos  e sobre particularidades das matérias que irá julgar, para que seu juízo seja favorável aos interesses dos sujeitos que personificam o capital, como protagonistas do desenvolvimento econômico, cultural e social que deve ser apoiado e propagado em todo o país.

A estratégia adotada nesse caso é conceder ao magistrado prêmios e participação em eventos de ampla repercussão social, movendo a sua vaidade, autoestima e presunção, que acabam alimentando, em vários deles, até mesmo atitudes de pedantismo e jactância – peculiares a alguns juízes e ministros que se imaginam isentos de quaisquer interesses particulares em suas decisões.

Em razão disso, se creem no dever de  passar por cima das leis do país, condenando pessoas sem provas com base em supostos “indícios” noticiados pela mídia; ou, mesmo, de violar o Artigo 5º da Constituição e dispositivos do processo judicial ao divulgar ilegalmente grampos telefônicos de conversas privadas; ou, ainda, de  julgar como válido constitucionalmente um Golpe de Estado parlamentar, sob a alegação de um pretenso crime de responsabilidade fiscal — ainda que certos parlamentares, minutos após terem votado em favor do impeachment, dessem entrevistas à imprensa afirmando abertamente que a presidente não havia cometido crime algum, apenas perdido o apoio parlamentar da maioria no Congresso[3].

Em consequência desses votos e decisões favoráveis obtidas no poder  judiciário para consolidar o golpe, formalmente realizado como um impeachment, o partido econômico do capital guindou ao comando do poder executivo da República o despachante das reformas que lhe interessam — despachante que jamais poderá tocar nos lucros do sistema financeiro, que deve implementar reformas para aumentar a taxa de lucro das empresas  e que negocia, no varejo, benesses a empresários em particular, que são retribuídas com generosas porções de alpiste, como vemos nas imagens abaixo.

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Preposto do presidente Michel Temer recebendo R$ 500 mil em propinas da JBS [4].

Se perguntado em juízo, talvez Sergio Moro não saiba dizer de memória, sem antes consultar a sua agenda, de quantos eventos empresariais tenha participado nos últimos quatro anos, em que os aplausos recebidos dos convidados do grande capital projetaram a sua fama em manchetes de primeira página de jornais e no horário nobre das TVs, para tornar-se um dos 100 homens mais influentes do mundo, segundo a revista Time. Uma simples busca no Google sobre “Moro é homenageado” resulta em mais de 11 mil resultados. E nas fotografias que surgem, há algumas muito ilustrativas,  em que ele aparece à frente de painéis de patrocinadores dos eventos de que participou, que assim associam suas logomarcas à imagem do juiz, mesmo que, por hipótese, algumas delas pudessem estar financiando a compra de votos de deputados ou a produção de adesivos verde-amarelos em favor da Lava Jato ou de pixulecos e outdoors daqueles que poderiam ser condenados com o seu imparcial julgamento, interpretado como a realização de um bem ao país – mesmo que, para isso, faltem provas e sobrem convicções aos procuradores da Lava Jato sobre  atores, eventos  e particularidades de matérias correlatas.

Mas, afinal, quem paga pelas viagens, hotéis, translados e cerimônias em que o juiz é homenageado?
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Em cinco casos, as fotos são bem  ilustrativas para supormos uma resposta. Pelo que aparece na foto da esquerda, possivelmente seriam o Citibank, a empresa fabricante do whisky Johnny Walker e os controladores da revista Time na condição de patrocinadores daquele evento.  Nas fotos do centro a Confederação Nacional da Indústria, Kia Motors e os grupos que controlam as revistas Dinheiro, Isto é e Veja.  Nas fotos da direita, o Grupo Globo que lhe concedeu o premio Faz Diferença – também  concedido a Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia. E na última delas, que possivelmente não envolveu  gastos de viagens, hotéis, etc., o juiz recebe uma homenagem da Federação do Comércio do Paraná. Ou será que todas as despesas de sua participação nesses eventos nacionais e internacionais terão sido custeadas pelo próprio juiz?

Ora, porque os controladores do capital das empresas que patrocinam esses eventos investem tanto dinheiro para conceder essas premiações a juízes e a outras autoridades que operam no seio do Estado? Porque se trata de um investimento em capital político que pode se reverter em ganhos econômicos, seja com o marketing social, ao associar sua imagem a essas figuras veiculadas como heróis que fazem a diferença no país e no mundo, seja porque, ao gerar afinidades e sentimentos de gratidão nesses seres humanos, criam um ambiente de interpretação favorável aos seus interesses.

A tal ponto os interpretantes gerais desses atores vão sendo modelados por lógicas disseminadas por esses meios, que a Força Tarefa da Lava Jato adotou uma definição muito simples a respeito do que é doação legal de campanha e o que é propina:

“Se eu quero doar para um candidato, isso é regular, é legal. Outra coisa é pagar propina disfarçada de doação eleitoral” [5].

Mas como saber se o que um partido recebeu era propina ou doação legal, se tudo foi devidamente registrado conforme a lei exige e aprovado na prestação de contas da campanha eleitoral?

Ora, para tanto, nessa abordagem, bastaria saber quem está na situação ou na oposição e relacionar, por proximidade temporal, a data de alguma doação à data de aprovação de algum projeto ou medida que teria beneficiado direta ou indiretamente o doador — ainda que não haja qualquer prova material de conexão causal entre os fatos.

Em razão desse método de trabalho adotado na Lava Jato, Deltan Dallagnol, ao ser questionado porque o Ministério Público não investigava políticos do PSDB, particularmente Aécio Neves,  acusado pela Odebrecht de receber R$ 50 milhões em propina, simplesmente  respondeu:

“O PSDB não fazia parte da base aliada do governo do PT. Como o PSDB não fazia parte dessa base aliada, não foram indicadas pessoas do PSDB [para cargos] por exemplo como diretores da Petrobras. Não tem como achar na Petrobras corrupção de um diretor ou presidente até porque não existia diretores do PSDB”[6].

Dallagnol parece, pois, enxergar o mundo ao revés. Não percebe que os políticos corruptos estão a serviço do poder do capital e não o contrário. Parece não perceber que, por isso, o poder do capital compra votos corrompidos tanto da situação quanto da oposição, conforme a conveniência de aprovar ou rejeitar aquilo que é de seu interesse, para ampliar ou preservar os seus ganhos, não importando a coloração das  legendas partidárias de seus ativos políticos, mobilizados nessas votações conforme suas necessidades.

A origem dessa inversão talvez seja uma possível leitura religiosa da prosperidade econômica, que estaria presente no imaginário do procurador, segundo a qual, o enriquecimento do capitalista seria fruto da graça de Deus que o abençoa e não da exploração do trabalho alheio que ele contrata, do qual extrai a mais-valia que não paga ao trabalhador e que acumula como propriedade sua.

Assim, do pedestal da ingenuidade coletiva ou do cúmulo do cinismo político, operadores da  Lava Jato, adotando esse método de investigação foram usados, na primeira hipótese, ou atuaram  cinicamente, na segunda, como um braço  político —  apoiado pelo partido econômico do capital, com adesivos amarelos espalhados pelo país em favor da Operação, com homenagens e premiações conferidas a seus ícones em eventos patrocinados por grandes empresas nacionais e multinacionais, com direito a capas de revistas e farta propaganda – para a difusão de convicções, sem provas, sobre crimes de corrupção que conduziram a opinião pública do país ao apoio de um golpe de Estado parlamentar, capitaneado por  Aécio Neves (PSDB),  Michel Temer e Eduardo Cunha (PMDB) e legitimado pelo Supremo Tribunal Federal.

Porém, graças a decisões do ministro Teori Zavascki  — que talvez tenha pago com a própria vida pela coragem de havê-las tomado — e do ministro Edson Fachin, abandonou-se  a metodologia defendida por Dallagnol e assumida pela Força Tarefa da Lava Jato, de não se investigar políticos e partidos  que não compusessem a base aliada do PT  — metodologia essa que continuava a ser defendida publicamente pelo procurador,  mesmo depois da apreensão de planilhas, na casa de um ex-executivo da Odebrecht,  que detalhavam valores ligados a 316 políticos de 24  partidos [7].

Assim, abandonado o método de investigar somente a base aliada dos governos petistas, em poucos semanas de investigação sobre fatos e não sobre suposições, a Polícia Federal comprovou, materialmente, atos de corrupção envolvendo Aécio Neves e Michel Temer, os dois principais protagonistas do Golpe de Estado de 2016, que deverão agora defender-se em  juízo.

No presente momento, entretanto, ao partido econômico do capital não interessa proteger esse ou aquele preposto, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário. O importante para ele — no emprego de seu capital político, isto é, no uso do poder dos votos que tem no Congresso e no Judiciário — é consolidar os objetivos de seu projeto econômico de privatizar tudo o que puder, repetido à exaustão pelos dirigentes,  analistas e jornalistas das empresas que compõem esse bloco hegemônico de poder por meio de todos os canais de mídia de que dispõe.

Por isso, como estampam alguns jornais, os  empresários elevam sua pressão pela aprovação das reformas previdenciária e trabalhista, destacando que as “reformas são mais importantes […] do que preservar Temer”, pois sem elas o país não geraria empregos, a previdência quebraria e não sairíamos da crise — como repete o mantra da ideologia que se pretende impor como verdade absoluta. Porém tais medidas visam basicamente aumentar a acumulação de capitais por agentes privados com o pagamento de juros pelo Estado, forçar o aumento da demanda por previdência privada com a   reintrodução da moderna lei dos sexagenários (em que o assalariado de hoje, como o escravo no Brasil imperial, somente poderá deixar de trabalhar aos 65 anos de idade) e com o aumento da taxa de lucro das empresas, a ser obtido cortando-se custos com a supressão de direitos históricos dos trabalhadores.

Mas qual é o principal instrumento de pressão que um empresário possui para tanto? Seria apenas um voto na próxima eleição, como qualquer cidadão comum? Não! Seu instrumento de pressão é a magnitude do seu capital para, entre outras coisas, financiar ou não as próximas campanhas eleitorais de seus representantes, para investir ou não na  região em que o  parlamentar atua,  para convidá-lo ou não a programas de rádio e TV, para fazer cobertura positiva ou negativa de seu mandato nas páginas de jornais e revistas.

Afirma-se textualmente numa dessas matérias que “empresas que faturam mais de R$ 1 bilhão […] orientaram seus interlocutores no Congresso a pressionar pela continuidade de votações”[8].

E assim, legendas partidárias, reputações pessoais e instituições sociais são trituradas, para que as dívidas dos bancos e do agronegócio junto ao erário  sejam perdoadas, para que os campos do pré-sal sejam entregues a corporações estrangeiras, para que quase 50% das verbas do orçamento público sejam destinadas religiosamente a remunerar o capital financeiro e para que as verbas de publicidade federal sejam ainda mais reconcentradas nos veículos hegemônicos do partido econômico do capital.

O que fica claro, para qualquer pessoa de bom senso, é que, para reverter a destruição em curso de nossa democracia pelas forças do capital, não basta trocar os personagens no comando do Estado, se eles continuarem a encenar o mesmo texto redigido por esse bloco hegemônico.

Para reverter esse quadro é necessário realizar eleições diretas e gerais, assegurando-se a posse de um novo presidente e de um novo Congresso, segundo a vontade popular,  acumulando forças para realizar um programa de medidas voltadas à desprivatização do Estado e à libertação das forças produtivas no país, sob o controle autogestionado dos trabalhadores e de suas comunidades. Isso possibilitará que o desenvolvimento econômico nacional ocorra de forma sustentável, assegurando-se maior igualdade na apropriação social dos meios de produção e de intercâmbio e da riqueza socialmente produzida no país.

É preciso, igualmente, realizar, junto dessa mesma eleição, um Referendo Revogatório em que se delibere pela revogação das alterações da Constituição, da alienação do patrimônio público e da supressão de direitos sociais realizadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer, que responde apenas aos interesses do capital, nacional e estrangeiro, e não ao bem comum do povo brasileiro.

É preciso seguir protestando, ocupando as ruas e aprofundando a reflexão  com o conjunto da sociedade sobre os projetos de país que estão em disputa. Desse modo, unindo mobilização, organização e educação popular torna-se possível acumular as forças necessárias para que não seja eleito, de maneira indireta pelo Congresso Nacional, como numa assembleia de acionistas, um outro presidente-despachante, num jogo de votos capitalizados, somando-se a maioria dos votos de parlamentares, já previamente convertidos em capital político pelas forças econômicas que atuam junto ao Congresso Nacional.

 

A Economia Solidária nas Teses apresentadas ao 6º Congresso do Partido dos Trabalhadores

Euclides André Mance
05 de Abril de 2017

No conjunto das dez teses apresentadas ao 6º Congresso do PT, a expressão “economia solidária” aparece apenas cinco vezes.

Isso revela a marginalidade do tema no debate estratégico em curso no interior do partido – mesmo após a realização no país de três Conferências Nacionais de Economia Solidária e de dois mapeamentos nacionais de Empreendimentos Econômicos Solidários que, segundo estudo publicado pelo IPEA, apontam a existência de mais de 1,4 milhão de trabalhadores diretamente atuantes nessas iniciativas autogestionárias1.

Por isso, cabe perguntar: em que medida o PT se reconhece como expressão política dessa parcela da classe trabalhadora brasileira e que papel ele atribui à autogestão da classe trabalhadora sobre os meios de produção e de intercâmbio como elemento estratégico para a realização da libertação das forças produtivas e para a construção do socialismo democrático no Brasil?

O que se vê nas teses apresentadas ao debate do 6º Congresso, em relação à segunda questão, está aquém do já acumulado, tanto nos documentos gerados e aprovados nacionalmente pelos atores da economia solidária, quanto no debate político e acadêmico sobre o caráter emancipatório da autodeterminação de fins e da autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades.

Das cinco passagens mencionadas, em duas delas a expressão economia solidária é usada apenas para caracterizar o desmonte de políticas públicas realizado pelo governo golpista de Michel Temer2. Numa terceira, aparece associada, genericamente, a valores do socialismo3.

Por sua vez, na quarta referência, no penúltimo parágrafo de uma tese, afirma-se que:

“É preciso […] constituir elementos materiais e imateriais novos tanto na economia como na vida social que fujam do controle do capital financeiro, enfrentem o mercado ou se autonomizem em relação aos monopólios e oligopólios (como a economia camponesa e as economias solidárias e a produção agroecológica); que construam estruturas coletivas de gestão dos bens comuns, sem transformá-los em mercadorias.” [Tese Alternativa: Crítica, Autocrítica e Utopia, parágrafo 107]

Por fim, na última referência, a economia solidária é relacionada às formas cooperativas de trabalhar, nos quadros de uma economia de transição ao socialismo:

“A economia de transição ao socialismo deve ser compreendida como a combinação de quatro setores fundamentais, regida por leis e direitos que regulem seu funcionamento: a propriedade estatal, as companhias mistas, as empresas privadas e as distintas formas cooperativas de trabalho. Nosso programa inclui o fortalecimento dos empreendimentos não-monopolistas e da economia solidária, estimulando a diversidade do dinamismo econômico e reduzindo o peso dos oligopólios privados.” [Optei – Em Defesa do PT, parágrafo 13]

A fragilidade na elaboração sobre esse tema, reduzido a duas frases em 10 documentos, necessita ser revertida até a conclusão do 6º Congresso, cabendo ao PT recuperar o acúmulo já existente sobre o assunto, para debatê-lo, criticá-lo e posicionar-se claramente, em sua estratégia política, sobre as duas questões anteriormente formuladas.

Além da leitura dos documentos das três Conferências Nacionais de Economia Solidária e dos resultados do mapeamento nacional de empreendimentos econômicos solidários, sugiro outros três textos para problematização e aprofundamento desse tema:

Nesses três textos, que elaboramos nos últimos anos, fica evidente como a economia solidária pode atuar na libertação das forças produtivas e na construção do socialismo democrático no Brasil.

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NOTAS:

1 SILVA, Sandro Pereira; CARNEIRO, Leandro Marcondes. Os novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos – Relatório de Pesquisa. IPEA, 2016. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7410/1/RP_Os Novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil_2016.pdf Acesso em: 05/04/2017

2 O texto o faz nos seguintes termos:

“além disso, […] o governo golpista [….] rebaixou a Secretaria Especial de Economia Solidária. […]. A médio e longo prazo, assistiremos ao desmonte do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda, com a aprovação de propostas de focalização das políticas de emprego (seguro desemprego, abono salarial, etc.) e o fim dos Programas de Apoio e fortalecimento da Economia Solidária.” [Manifesto da CNB/PMB. Em defesa do Brasil, em defesa do PT, em defesa de Lula, parágrafos 73 e 82]

3 Nesta, afirma-se ser necessário

“retomar o PT como espaço de formação dos valores do socialismo: democracia participativa, socialização da produção, economia solidária […]”. [Tese Nacional – Mensagem ao Partido – Por um partido socialista e democrático! Por um governo democrático-popular!, parágrafo, 9]

A Estratégia Democrático-Popular

Euclides André Mance
23 de Março de 2017

Introdução

A estratégia democrático-popular, elaborada no seio da esquerda brasileira na década de 1980, tem sua formulação inicial marcada por aquele momento histórico. Na década seguinte ela foi aperfeiçoada em vários aspectos, com a elaboração coletiva sobre os desdobramentos de sua própria execução pelos atores do campo democrático e popular. Em síntese, ela apresenta uma alternativa às estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade socialista.1

A partir do final dos anos 90, entretanto, essa estratégia foi gradativamente abandonada pelos setores hegemônicos da esquerda no Brasil, em favor de composições pragmáticas cada vez mais amplas com os então chamados setores progressistas do empresariado nacional. A fragilização do campo democrático-popular, resultante desse abandono, facilitou a consumação do golpe de estado jurídico parlamentar de 2016.

Nas páginas deste artigo, apresentamos apenas alguns elementos gerais e introdutórios ao tema.

Democracia e Socialismo

Ao longo do tempo, a democracia assumiu diversas formas de realização histórica. Embora signifique etimologicamente o poder (kratos) do povo (demos), geralmente as formas de intermediação para a sua realização institucional são marcadas por contradições entre classes sociais, nas quais o poder do Estado não é, em maior medida, posto ao serviço do interesse público – isto é, do povo, do bem comum, do bem público – mas ao serviço de interesses privados das classes economicamente dominantes que o hegemonizam.

Contrapondo-se ao uso do Estado pelas forças do capital, os setores populares da sociedade civil em diferentes países – isto é, a população organizada em movimentos sociais, entidades e partidos que defendem projetos políticos e sociais que atendam aos interesses das classes trabalhadoras e da maioria da população em geral, particularmente das populações mais empobrecidas, vulneráveis, excluídas e negadas em sua dignidade humana – conformam o que se pode denominar como campo democrático e popular. Construindo e consolidando o poder público não-estatal – isto é, o poder do povo, o poder popular – buscam ampliar sempre mais a participação institucional das classes populares na definição e gestão das políticas públicas, estatais e não-estatais, através de mecanismos como fóruns, redes, plenárias, conferências, conselhos, orçamentos participativos, plebiscitos, referendos, etc.

Busca-se, portanto, a consolidação da democracia e a sustentação das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas de todos, sob os aspectos econômico, político, social e cultural, assegurando-se, entre outras coisas,  a liberdade de pensamento, de expressão e de organização, a pluralidade de partidos políticos e de representação, a composição solidária das formas de apropriação pessoal, associativa e pública de meios produtivos e de intercâmbio, a defesa da autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades para o desenvolvimento sustentável de suas iniciativas e de seus territórios, a educação permanente de todos, a transparência  e o acesso público à informação de qualidade e a democratização da comunicação para tomadas de decisão criteriosas e bem fundamentadas.

Diferentemente da social-democracia ou da ditadura do proletariado, que aspiram reformar ou revolucionar o modo de produção capitalista e sua formação social pelo uso hegemônico dos aparelhos de Estado, a estratégia democrático-popular, numa de suas vertentes, assenta-se em tecer, consolidar e expandir o poder público não-estatal a partir do setor democrático e popular das sociedades, com suas redes econômicas, de poder e de conhecimento, que vão transformando as relações econômicas de produção, intercâmbio, consumo e financiamento, as relações políticas e culturais da sociedade numa perspectiva libertadora, introduzindo e expandindo em todos os espaços possíveis os elementos de um novo modo de produção, autogestionado pelos trabalhadores e por suas comunidades, de um novo sistema de intercambio, fundado no valor de uso como satisfator das necessidades humanas, e de uma nova formação social, substantivamente democrática.

Somente acumulando forças cada vez maiores no seio da sociedade civil em torno de eixos estratégicos de luta, que se materializam em formas de ação direta – nos campos econômico, político e cultural –, de elaboração de políticas públicas e de confronto com o Estado ou de participação institucional estatal, torna-se possível ampliar o poder popular no controle interno dos aparelhos de Estado. A eleição de governos democráticos e populares, como consequência desse acúmulo de forças convertido em poder popular, tem por objetivo central – com a ampla participação institucional dos setores democráticos e populares – desprivatizar o Estado, colocando-o ao serviço do interesse público e da proteção do bem comum, suprimindo pois a sua subordinação aos interesses do capital.

Poder Público Estatal e Poder Público Não-Estatal

A distinção qualitativa realizada na estratégia democrático-popular entre força e poder, entre acúmulo de forças e conquista do poder, mantém uma distinção clássica entre sociedade civil e Estado. Mas é um equívoco considerar que a conquista do poder se refira exclusivamente à conquista do controle dos aparelhos de Estado. Pois o acúmulo de forças na disputa de hegemonia não visa apenas o controle desses aparelhos, mas a real transformação da sociedade como um todo, seu modo de produção, seu sistema de intercâmbio e sua formação social.

Como o novo modo de produção e de intercâmbio deve ser organizado por livres produtores associados, eles estão na base do novo poder público que se constrói. A livre associação dos produtores é elemento central da economia solidária, cujo caráter transformador se revela quando é praticada como economia de libertação e não apenas como forma de sobrevivência ou de resistência.

Assim, o poder do povo, o poder popular, o poder público é a base fundante da democracia, que sustenta e protege as liberdades públicas e pessoais de todos e não os interesses do capital. Quando a acumulação de forças na sociedade civil resulta em organizações sociais de caráter permanente, democraticamente autogestionadas pelos seus participantes com uma perspectiva de libertação da classe trabalhadora para a realização de tais liberdades, essa acumulação de forças resulta em poder popular. Ao atuar na defesa do interesse público, do bem comum, com autodeterminação de fins e autogestão de meios, esse poder popular se converte em expressão do poder público não-estatal. A consolidação desse poder público não-estatal depende da atuação conjunta e colaborativa dessas organizações, somando suas forças e seus poderes para expandir o projeto de sociedade que defendem.

A grande ilusão alimentada nas estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado é que o poder está centralmente objetivado no Estado. E que, com a conquista dos aparelhos de Estado, torna-se possível efetivar a revolução socialista. Pois, como a experiência histórica demonstrou, o poder de Estado, resumido ao poder exercido através dos aparelhos do Estado, é apenas uma face do exercício do poder político – entendendo-se político como poder determinado pela contradição entre classes. E que ele é insuficiente para instituir, consolidar e proteger um novo modo de produção e um novo sistema de intercambio, ante as pressões internas e externas do capital.

Diferentemente, a estratégia democrático-popular, em determinada perspectiva, enfatiza o papel da acumulação de forças e da construção autogestionada do poder público não-estatal como condição essencial, para que a eleição de governos democráticos-populares resultem efetivamente no avanço e consolidação do novo modo de produção, do novo sistema de intercâmbio e da nova formação social, que vão sendo construídos e consolidados ao mesmo tempo em que se travam as lutas no plano político em torno de eixos de luta estratégicos2 .

Sob a estratégia democrático-popular, formulada em 1987, um governo assim eleito deve, ser capaz de

realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio […]: é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, […] que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; […] a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões […] na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”3.

Eixos de Luta e Programa de Transição

Na definição mais elementar dos anos 1980, “acumular forças […] é acumular experiências de lutas bem-sucedidas e acumular vitórias.”4 Uma luta bem-sucedida, entretanto, não apenas alcança seus objetivos imediatos e conjunturais mas, contribui para a realização de objetivos estratégicos e estruturais.

No aprofundamento de como articular as lutas populares dessa maneira, surgiu a noção de eixo de lutas5. Um eixo de lutas possui quatro características básicas: mobiliza amplos segmentos sociais em sua defesa, atende a demandas imediatas desses segmentos, combate as estruturas capitalistas que geram a insatisfação dessas demandas e introduz formas pós-capitalistas de atendê-las. Como exemplos de eixos de luta, citamos apenas três: a reforma agrária, a reforma urbana e a economia solidária.

As reformas agrária e urbana atendem às demandas imediatas de terra para plantar e para morar, confrontam o latifúndio rural e a especulação imobiliária urbana. Mas, somente se consolidam como eixos de luta, se desenvolvem formas pós-capitalistas de realizarem a produção e o intercâmbio dos frutos da reforma agrária, a produção autogestionada de moradias e a organização do poder popular na autogestão democrática e participativa de seu território.

No caso da economia solidária, ela somente pode ser considerada eixo de lutas quando realiza a libertação de forças produtivas. Nesse caso ela atende a demandas imediatas de consumo, produção, intercâmbio e financiamento de iniciativas populares e solidárias. Além disso, combate as formas de alienação no consumo, a exploração do trabalho pelo capital produtivo e pelo capital mercantil, a expropriação dos consumidores pelo capital comercial na obtenção dos meios econômicos para a satisfação de suas necessidades e a espoliação pelo capital financeiro no pagamento de dívidas. Ela igualmente introduz estruturas pós-capitalistas, ao realizar a produção, o intercâmbio e o financiamento de forma autogestionada por trabalhadores e trabalhadoras; ao desenvolver um novo sistema de intercâmbio compondo simultaneamente compras, trocas e dádivas, libertando a capacidade produtiva de criação de valor de uso da realização do valor de troca, que ficaria restrita aos limites de dinheiro disponíveis para o intercâmbio dos bens e serviços produzidos ou produzíveis se não entrassem em operação os mecanismos de intercâmbio não-monetário e de dádivas em circuitos econômicos solidários; compartilhando, em fundos solidários de caráter público não-estatal, recursos excedentes gerados na reprodução ampliada do valor, que permitem a realização da libertação das forças produtivas, com a realização de investimentos para a expansão das capacidades de produção, intercâmbio e desenvolvimento tecnológico do setor, passando a produzir não apenas bens de consumo final, mas igualmente meios de produção e novas tecnologias.

Nos anos 90, outros eixos de luta estavam em construção. Movimentos que enfrentavam a discriminação de gênero, racial, sexual e cultural vão concebendo eixos de luta buscando o atendimento de suas pautas imediatas, o combate às ideologias racistas, machistas e preconceituosas, o combate à moral autoritária e ao direito injusto que legitimam práticas opressivas contra essas populações e a afirmação de uma nova ética na sociedade civil que defenda as liberdades de todos e a afirmação de novos direitos no plano do estado, objetivando-se em lei a garantia dessas novas condutas. Na época, aplicava-se a esse eixo de lutas o conceito de cidadania.

Estava claro para esses movimentos que a mudança desejada no exercício de poder nas práticas cotidianas no seio da sociedade – com o respeito e acolhimento da dignidade humana vivida em sua plena diversidade – não se faz pela imposição de um direito estatal, mas pelo resgate da sensibilidade ética de todos frente a dignidade humana de cada pessoa, sensibilidade essa mutilada pela cultura de dominação existente. Isso exigia, portanto, uma crítica da cultura de massas e dos elementos reacionários da cultura popular, gerando-se assim uma cultura popular que revolucionasse o capitalismo, o machismo, o racismo e todas as formas de exercício autoritário do poder nas relações micropolíticas do cotidiano. Em outras palavras, não se tratava apenas de “eliminar do cotidiano a discriminação e o preconceito, mas fundamentalmente de construir novas relações interpessoais liberadas de todos os códigos culturais opressivos, possibilitando a vazão do desejo em práticas singularizantes que, sendo incompatíveis com as dinâmicas e códigos de reprodução do capitalismo, avancem como revolução cultural, afirmando uma nova sensibilidade ética e estética”6 – horizonte tido como necessário a um novo projeto político.

Assim, o programa democrático e popular não se reduz a um programa de transição no sentido clássico, isto é, “um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”7.

E não corresponde ao que na social-democracia se denominava programa mínimo, com reformas limitadas ao quadro da sociedade burguesa, nem ao chamado programa máximo, prometido para um futuro incerto, quando seria realizada a superação do capitalismo pelo socialismo.

A elaboração do programa democrático e popular é realizada pelos próprios setores democráticos e populares da sociedade civil organizada, que formalizam, em qualidade e escala, suas próprias demandas, que as reformulam dialogicamente em politicas públicas e que concebem as formas de atendê-las de maneira autogestionada, com o fortalecimento do poder público não-estatal e a participação do poder estatal, quando esta participação seja possível.

Assim, a natureza das demandas varia conforme variam as bandeiras de luta dos diferentes movimentos sociais-populares. A partir da explicitação coletiva dessas demandas e das interfaces que elas mantém entre si, elas são integradas em eixos de luta estratégicos, que tanto contribuem para a unificação social das lutas, como para a atividade educativa de politização da sociedade – considerando as estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais a serem superadas e as novas a serem construídas para o atendimento dessas demandas –, como também para a intervenção política de confronto com o Estado ou de intervenção no seu próprio interior, seja pelos mecanismos de participação institucional conquistados, seja pela eleição de governos democráticos e populares que devem pautar suas ações visando reforçar e consolidar a hegemonia dos atores democrático-populares na sociedade em torno desses objetivos estratégicos.

Modo de Produção Socialista e Economia Solidária

Na década de 80, após a anistia (1979) e a organização de novos partidos, forças do campo democrático e popular concentraram esforços na organização da Central Única dos Trabalhadores e, posteriormente, na Central de Movimentos Populares. É nesse contexto que se delineia a formulação inicial da estratégia democrático-popular de construção do socialismo.

Naquela época não havia o acúmulo, hoje existente, sobre como os empreendimentos econômicos solidários – de produção, intercâmbio, consumo e financiamento – podem ser capazes de avançar, em seu conjunto, na libertação das forças produtivas, com a reprodução ampliada do valor econômico que eles podem realizar ao atuar de maneira colaborativa entre si; ou sobre como podem participar ativamente na organização de um modo de produção e de intercâmbio de caráter socialista, pelo contínuo desenvolvimento de suas forças produtivas em contradição com as forças do capital.

Focada na análise do funcionamento do capital e na crítica das relações capitalistas de produção, todas as formas de economia popular, familiar ou comunitária, que proliferaram a partir dos anos 80, não mereceram, inicialmente, maior atenção na estratégia democrático-popular. Elas eram agrupadas com outras atividades econômicas de pequeno porte, nas quais ocorre a exploração capitalista do trabalho subordinado, identificando-se indistintamente a esses milhões de pequenas empresas, negócios, serviços e trabalhadores autônomos com a etiqueta de pequena burguesia8, considerada, entretanto, aliada estratégica dos trabalhadores assalariados para a construção do socialismo democrático.

Afirmava-se em 1987 que:

a pequena produção serve para que a sociedade desenvolva suas forças produtivas, contribua para que não haja escassez de bens e serviços e permita incorporar ao trabalho o conjunto da população economicamente ativa, sem prejudicar a eficiência das empresas socialistas nem a constante redução da jornada de trabalho. Essa política de desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade, utilizando todas as forças econômicas, é a base da aliança dos trabalhadores assalariados com a pequena burguesia urbana e rural. Essa aliança é, pois, uma questão estratégica, referente tanto à destruição do capitalismo quanto à construção do socialismo9.

Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90, retomando-se elaborações de diferentes matrizes teóricas e de práticas históricas de organização dos trabalhadores, vão sendo delineados na América Latina distintos conceitos de economia popular e solidária, possibilitando melhor compreender as diferentes particularidades desses atores econômicos associativos em relação aos demais. Em 2008, a Constituição do Equador, em seu artigo 283, por exemplo, reconhece que “o sistema econômico se integrará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária.”

Numa das definições de economia solidária recorrentes na América Latina, a ênfase recai na autodeterminação de fins e na autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades, conceito que se difunde a partir do socialismo autogestionado, praticado nas nações que compunham a Iugoslávia, após o seu rompimento com o stalinismo em 1950. Nessa definição,

a autogestão é, antes de tudo, uma relação socioeconômica entre os homens que se funda no principio da distribuição segundo o trabalho e não sobre a base do capital […]. A autogestão é […] uma categoria socialista. A mesma só pode desenvolver-se no campo da propriedade social, isto é, em relações de propriedade em que os meios de produção e o capital social não são propriedade privada do capitalista nem de grupos de trabalhadores de determinadas empresas, nem objeto de gestão monopólica do aparato burocrático ou tecnocrático do Estado.”10

A noção de autogestão, amplamente difundida, refere-se à gestão dos trabalhadores sobre as atividades de produção econômica com base nos princípios de autonomia, horizontalidade, democracia direta ou delegada, revogabilidade de mandato e rotatividade de funções. Mas também é compreendida, em algumas abordagens, tanto como uma forma possível de transição para a superação do capitalismo quanto a forma realizada do modo de produção e de intercambio da nova sociedade pós-capitalista.

Alguns supõem que a mera multiplicação de iniciativas de autogestão em meio ao capitalismo possibilitaria aos trabalhadores e às suas comunidades conquistarem a autonomia econômica e política – a sociedade dos produtores livremente associados – sem que para isso fosse necessário realizar uma ruptura do poder político e econômico do capital, exercido por ele sobre o Estado e a sociedade. Diferentemente disso, a estratégia democrático-popular salienta a necessidade de realização dessa ruptura, como já explicitado anteriormente.

A recente retomada do debate sobre a estratégia democrático-popular em partidos de esquerda no Brasil, ao mesmo tempo em que apontou limitações históricas em sua formulação original também permitiu recolher importantes aprendizados sobre os avanços e reveses das lutas da classe trabalhadora em nosso país, permitindo abrir novas e diferentes perspectivas de atualização dessa estratégia de construção do socialismo democrático.

Conclusões

Houve um importante acúmulo teórico e prático nos Brasil, nos anos 80 e 90, sobre a estratégia democrático-popular para a consolidação de um poder popular, fundado na autonomia das organizações e na sua integração em ações diretas e institucionais, visando atender a demandas imediatas da população, combater estruturas de dominação econômica, política e cultural e construir um modo de produção, um sistema de intercâmbio e uma formação social socialistas.

Mas, infelizmente, os governos de centro-esquerda no Brasil, nos diferentes níveis da federação, apesar dos processos de participação popular e dos avanços sociais alcançados com as diferentes políticas públicas adotadas, abandonaram progressivamente a estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, de realização de um programa mínimo, circunscrito aos limites de um desenvolvimento econômico nacional, totalmente subordinado às forças do capital produtivo, comercial e financeiro, tanto nacional quanto internacional.

Pareceram haver esquecido que sem a consolidação de um poder público não-estatal, ficariam totalmente vulneráveis frente as contradições entre os próprios setores hegemônicos do capital, particularmente em meio às disputas entre o capital produtivo e o capital mercantil pela maior acumulação possível – com sua disputa na realização de lucros – da mais-valia gerada pelo trabalho produtivo; ou frente as disputas e alianças entre setores do capital nacional e internacional quanto aos rumos da economia do país, em função de seus interesses privados sobre os ativos nacionais.

Pareceram haver esquecido, pois, da velha máxima socialista: que a burguesia sempre retoma no futuro com a sua mão direita o que concede no presente com sua mão esquerda, por meio de diferentes mecanismos de exploração, expropriação, espoliação e exclusão, que invariavelmente sempre atingem em cheio as classes trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

ANAMPOS. Relatórios dos Encontros Nacionais – 1980 a 1989. Cadernos de Textos, N. 6. Cefuria, Curitiba, s.d. Disponível em: http://solidarius.net/mance/biblioteca/anampos.pdf Acesso em: 22/03/2017

MACHADO, João. O que foi o “Programa Democrático e Popular” do PT? Disponível em: http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/O que foi o PDP.pdf Acesso em 22/03/2017

MANCE, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

PT. Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional. Brasília, 1987. Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acesso em: 22/03/2017

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Notas:

1 Um dos primeiros documentos de elaboração coletiva em que ela é abordada em suas linhas gerais e pode ser tomado como ponto de partida para sua posterior problematização e crítica, constitui-se das Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em dezembro de 1987.

2 Claro está que esse conceito de poder púbico não estatal nada tem a ver com o conceito de público não estatal utilizado por Fernando Henrique Cardoso e Bresser Pereira em sua política neoliberal de desestatização, que passou a transferir recursos estatais para organizações sociais de interesse público prestarem serviços até então realizados pelo estado. Lei n.º 9.637/1998

3 Resoluções Políticas, par. 75

4 http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf

5 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

6 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

7  https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm

8  “Os setores que chamamos normalmente de camadas médias e pequena burguesia — sendo, estes últimos, trabalhadores e também proprietários de seus meios de produção — embora tenham interesses comuns com a burguesia (por exemplo, algumas camadas de pequenos proprietários vivem da exploração do trabalho assalariado, ainda que em pequena escala) têm, também, profundas contradições com o capitalismo, que os coloca cotidianamente sob ameaça de arruinamento e de proletarização.” Resoluções Políticas, par. 92

9  Resoluções Políticas, par. 42

10  Edições CLAS (Cuestiones Actuales del Socialismo). “Autogestão Socialista Iugoslava. Noções Fundamentais”. Belgrado, 1980. Apud NASCIMENTO, Claudio. Autogestão: Economia Solidária e Utopia. In: Outra Economía – Volumen II – No 3 – 2o semestre/ 2008, p. 28

Senadores golpistas admitem que Dilma não cometeu crime de responsabilidade

Euclides Mance
2 de Setembro de 2016

Dois senadores que votaram pelo impeachment admitiram publicamente — em entrevista e nota abaixo anexadas — que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. Ora, se ela não cometeu os crimes que se lhe imputavam, eles não poderiam, como juízes, votar por sua condenação, exceto violando as bases legais do julgamento, agindo, portanto, em flagrante desrespeito à lei.

Assim, embora ambos senadores, por esse motivo, devessem perder o seu mandato parlamentar, pois sua conduta  violou o juramento de cumprir a Constituição, realizado na cerimônia de sua posse, muito possivelmente nada lhes ocorrerá.

Sabe por que? Porque a Constituição será rasgada outra vez, pois estamos vivendo sob um regime de exceção, engendrado por um Golpe de Estado Parlamentar.

O período da Nova República, iniciado em 1985, infelizmente acabou. Entramos em uma nova fase da história política do país, com o golpe desfechado contra a Constituição em 31 de Agosto de 2016.

Anexos:

 

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Qual é o SEU voto?

Euclides André Mance
31 de Agosto de 2016

Hoje, os  senadores deverão responder sim ou não à seguinte pergunta, enunciada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que conduz a sessão do impeachment:

“Cometeu a acusada, a Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União (art. 11, item 3, da Lei nº 1.079/50) e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional (art. 10, item 4 e art. 11, item 2, da Lei nº 1.079/50), que lhe são imputados e deve ser condenada à perda do seu cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo oito anos?”

Responda você mesmo, você mesma!

Quando você atrasa o pagamento de uma conta de telefone ou de qualquer outro serviço contratado, o que são os juros de mora que incidem sobre essa conta? Está claro, são juros de mora, referentes, portanto, a atraso. Os  juros de mora devidos à companhia telefônica ou à empresa que lhe prestou o serviço correspondem a algum empréstimo em dinheiro que elas fizeram a você? A lei brasileira é clara: diz que não. Não fosse assim, todas empresas registrariam  em suas contabilidades, para cada atraso de pagamento, uma correspondente operação de crédito, no exato valor do juro de mora pago, tendo como credor do empréstimo a empresa que lhe prestou o serviço que foi pago em atraso. Os juros de mora do Plano Safra, pagos pelo Governo Dilma, referem-se, igualmente, ao atraso de pagamentos ao prestador do serviço que fornece crédito aos agricultores, pois são juros de mora, não tendo havido empréstimo de dinheiro do prestador do serviço ao Governo Federal.

Quanto à segunda pergunta, sobre a “abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional” leia você mesmo, você mesma, essa autorização, que está publicada no Diário Oficial da União, no dia 22/04/2015. Ela está nesse link no site da Câmara dos Deputados e diz: “Art. 4º Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8º da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas:

As alterações dessa lei, aprovadas pelo Congresso, estão neste outro link da Câmara dos Deputados. Leia e comprove que os créditos suplementares abertos pelo Governo Dilma, com base nessa autorização, previamente recebida do Congresso e publicada no Diário Oficial da União, estão “compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015. A lei não exige que a compatibilidade seja bimestral  mas anual: para o exercício de 2015. E por que o faz? Porque é impossível saber, de antemão, quanto será arrecadado ao final de cada bimestre, cabendo ao governante, pelo monitoramento da arrecadação realizada ao longo do ano, ajustar os gastos, sem extrapolar, no exercício anual, o limite autorizado pela lei orçamentária.

No presente momento, nem mesmo o Tribunal de Contas da União tem uma decisão final sobre o exercício de 2015, pois o prazo para o envio de documentos solicitados, a serem apreciados pelo Tribunal, foi estendido até 8 de Setembro. Assim, qual é a base legal para a reprovação das contas de 2015?

Como você pode ver, a resposta para as duas perguntas iniciais é: não. Não há crime de responsabilidade apurado nesse processo. Esse impeachment, se for aprovado, por qualquer outra razão que seja, é um Golpe de Estado. É uma violação do meu voto e do seu voto, não importa em quem tenhamos votado.

Se qualquer maioria eventual de parlamentares puder destituir um presidente, governador ou prefeito com o apoio dos que foram derrotados nas urnas, usando para tanto algum pretexto que sirva a esse propósito sem que se comprove a existência de crime de responsabilidade, quanto não será pago em negociatas, a partir de agora, pelos interessados em apossar-se dos governos, para derrubar prefeitos, governadores ou futuros presidentes?

Julgue você mesmo! Julgue você mesma!

O Estranho Humanismo de Cristovam Buarque

Euclides André Mance
28 de Agosto de 2016

Prezado Senador Cristovam Buarque

A condição primeira para qualquer condenação legal não é o fato de haver sido assegurado o amplo direito de defesa ao réu, mas o fato deste haver cometido algum crime tipificado em lei.

Estranho humanista é o senhor.

Durante a última ditadura em nosso pais já houve quem esposasse um “humanismo bélico”.

A história, nas próximas décadas, ou mesmo em alguns anos,  saberá adjetivar corretamente o seu humanismo, capaz de tergiversar sobre esse fundamento mais básico da justiça, possivelmente para atender a algum propósito outro, que somente o senhor sabe qual é.

Pela sua biografia, espero que não esteja envolvido nos esquemas de corrupção dos que lutam desesperadamente  para salvar os corrompidos e os corruptores, abrigados no bote salva-vidas do Governo Temer, que desejam  eliminar a Lava Jato e “estancar essa sangria”, nas palavras de outro senador, igualmente defensor do impeachment.

Na Ação Penal 470, ministros do Supremo adotaram a tese de que é justo condenar o réu mesmo na ausência de provas. Bastariam, para tanto, indícios de algum crime, cuja materialidade não seria mais necessário ou possível comprovar.

Agora, no processo de impeachment, acusa-se a presidente de haver cometido o delito de infringir uma norma do TCU que nem sequer existia quando dos fatos imputados. E argumenta-se que os juros de mora, os mesmos que nos são cobrados quando atrasamos o pagamento de uma conta de telefone, são a prova cabal de uma operação de crédito.

Se essas duas teses fossem válidas, senador, o senhor e eu teríamos de pagar multas por haver dirigido em rodovias com faróis apagados antes da entrada em vigor da nova lei que exige acendê-los durante o dia. E ninguém mais poderia cobrar juros de mora no país, exceto quem tenha autorização legal para realizar operações de crédito. E o balanço contábil de todas as empresas no Brasil deverá ser reprovado, exigindo-se, igualmente, que pagamentos atrasados, em que incidiram juros de mora, fiquem associados contabilmente a lançamentos de tomada de empréstimo no sistema financeiro. E, assim, a partir do impeachment da presidente Dilma, será eliminado pelo Congresso a distinção legal no pais, que é adotada em todo o mundo, entre juros compensatórios que remuneram algum capital empregado e juros moratórios, que indenizam o atraso no pagamento de alguma dívida.

Infelizmente, senador, essa teia de dislates agora se amplia com a sua própria contribuição. Além da jurisprudência que permite, em alguns casos, condenar qualquer brasileiro sem provas, bastando indícios; ou de que se possa condenar alguém por infringir uma norma que ainda não existe; ou de suprimir a distinção legal entre objetos distintos (como juros compensatórios ou moratórios) se isso for conveniente para algum propósito político, o senhor ampliou a extensão desse novo humanismo jurídico, ao afirmar que se ao réu for concedida a ampla defesa, torna-se possível, então, condená-lo, mesmo sem a comprovação de algum crime previsto em lei.

Além desse argumento, de concessão de ampla defesa ao réu, o senhor aduziu outros dois, para o seu juízo condenatório, referentes à situação atual de crise econômica no Brasil. Isso, senador, é uma confissão de culpa do senhor: pois, se este for o motivo de seu voto, estará votando em desrespeito à Constituição do país, pois ela não prevê impeachment do governante para solucionar crises econômicas. Tratar-se-á de desvio de finalidade, de sua parte, o emprego desse instrumento constitucional visando alcançar esse fim. E isso é crime, senador. Ou deveria ser, se vivêssemos num Estado Democrático de Direito.

Mas, entrando no mérito substantivo de seus dois outros alegados motivos, imagino que o senhor não acredite que a crise econômica na Rússia ou que a queda no PIB da China ou que a estagnação da economia na Europa seja consequência da má gestão do Governo Dilma. Se o senhor investigar quais são as reais causas da crise econômica da Rússia, da redução da atividade econômica na China ou da estagnação da Europa, talvez consiga compreender melhor as causas da crise econômica no Brasil.

Em cinco palavras lhe antecipo o diagnóstico básico: recomposição da taxa de lucro.

Sempre foi assim ao longo de toda a história do capitalismo, senador. No momento de crescimento econômico as empresas reduzem suas taxas de lucros, adotam preços mais competitivos, aumentam suas vendas, seu faturamento e a magnitude de seus ganhos. É a lei da concorrência, senador. Mas como a maior parte do valor gerado nessa expansão econômica se concentra ao invés de ser distribuída, pessoas e empresas contraem dívidas para ampliar o seu consumo e o seu investimento na expectativa de solvência futura — a chamada “confiança dos mercados”. Sempre foi assim ao longo do capitalismo e é por isso que os ganhos do sistema financeiro como um todo nunca cessam, tanto na bonança quanto na crise, mesmo que alguns bancos ou agentes financeiros entrem em default. Veja-se o balanço dos maiores bancos brasileiros, apontando ganhos que bateram recordes no primeiro semestre do ano passado e que lucraram juntos R$ 13,46 bilhões de abril a junho do presente ano.

Mas quando as dívidas se tornam quase impagáveis, senador,  e o dinheiro dos atores econômicos flui em maior medida para o sistema financeiro, o consumo final e produtivo se reduz e as empresas vendem menos.

Então, para manter suas operações e pagar suas dívidas, as empresas têm de recompor suas taxas de lucro, pois devem cobrir seus custos totais com um volume menor de vendas e, mesmo assim, assegurar os ganhos para proprietários e acionistas. Por sua vez, aquelas empresas que dispõem de reservas, investem-nas no sistema financeiro, aguardando que as taxas de lucros subam em direção das taxas de juros, razão pela qual vários países mantém atualmente taxas de juros reais negativas tentando forçar a recuperação da atividade econômica.

É por isso, senador, que o Brasil atravessa um momento de recessão com inflação. Pois embora as empresas estejam produzindo menos e vendendo menos, elas continuam subindo seus preços para recompor suas taxas de lucros. E isso nada tem a ver com os gastos dos governos.

Dizer que a presidente Dilma é responsável por esse fenômeno é o mesmo que dizer que as crises cíclicas,  marcadas pela contração da atividade econômica após os ciclos de sua expansão sob o capitalismo, que seguem  ao longo da história, foram responsabilidade dos governantes, quando na verdade elas são fruto da própria dinâmica intrínseca de concorrência dos atores econômicos nos mercados, movidos pela busca de lucro e de proteção dos ganhos acumulados.

Fique atento senador, pois o que o Governo Temer busca é exatamente suprimir direitos históricos da população brasileira para assegurar a recomposição da taxa de lucro das empresas, ampliando a acumulação de capitais, a concentração de renda no Brasil e a subordinação da economia brasileira ao capital internacional.

É triste ver sua pessoa envolvida nesse caudal de condenação sem provas, por um suposto crime em que não há lei violada, escorando-se  num argumento econômico legalmente inválido para justificar um impeachment, que, ao fim e ao cabo, visa reconcentrar a riqueza no país e entregar as jazidas do pré-sal a grupos internacionais. É triste ouvir de sua boca que o elemento decisivo para  o seu voto tenha sido a concessão de um formal direito de defesa à presidente eleita, num processo de impeachment que se caracteriza plenamente como Golpe de Estado, à luz da ciência política contemporânea.

Estranho humanismo o seu, senador.

A Memória de Nossos Filhos

Euclides Andre Mance
Curitiba, 11/maio/2016

 

Agoniza hoje uma jovem democracia, de 27 anos (*1989 +2016), nascida do enfrentamento da ditadura mais cruel que já tivemos. Perdurou pouco o contrato de respeitar o resultado das urnas.

Sinto tristeza e revolta.

Tão logo os golpistas assumam, o relógio da história retrocederá. Parece o feitiço do tempo, que não mais tem fim: “Um, dois, três, quatro, cinco mil: queremos eleger o presidente do Brasil!”

Os golpistas creem em seu próprio poder. E apenas invocam suas divindades para esconder seu real culto e adoração ao dinheiro. Não passam, entretanto, de serviçais, lacaios, capachos subordinados ao domínio econômico dos mais fortes. Aos poucos, todos eles serão descartados, como bagaço de fruta. Um por um. Cairão todos, quando deixarem de ser úteis ao propósito da mão invisível que os comanda. A história lhes será implacável.  

A corrupção vestiu-se de verde e o golpismo de amarelo. Dançaram na praça, embalados pela Globo. Eram milhões de Cunhas, cobertos pelo manto da mentira e ungidos com o óleo da calúnia.

Sergio Moro já tem seu lugar na memória eterna do Brasil: o juiz que violou a lei, a toga e a hermenêutica, para consolidar o golpe com seu ilegal grampo salvador da pátria e sua  interpretação jurídica sobre as sombras.

“Vai acabar o quê? Vai acabar o quê? A ditadura militar.” — clamávamos pelas ruas.

Quando será que os juízes do Supremo farão a si mesmos a “delação premiada” do que passa em suas próprias consciências? Não terão coragem! No último suspiro de suas vidas, no aconchego de seus familiares, lembrarão da sua omissão vergonhosa e de que não estiveram à altura do Poder que lhes foi confiado.  

Parece que eles não entenderam que a Constituição não é um livro. É um modo de viver em sociedade. E foi isso que eles ajudaram a rasgar: o contrato da democracia em nosso país. Quem vence a eleição, governa. Quem perde, disputa a próxima.
 
Mas essa regra, a partir de 2016, está definitivamente abolida, sempre que houver um bloco de poder capaz de compor as forças para um novo golpe de Estado jurídico-parlamentar.

Essas forças, que se uniram em bloco, tentarão golpear tudo o que seja contrário aos interesses da mão invisível que os comanda.

Talvez consigam entregar o pré-sal a corporações estrangeiras, privatizar empresas estatais e abolir direitos históricos da classe trabalhadora.
 
Mas não conseguirão destruir a nossa capacidade de resistir e de lutar.

Acima de tudo, não golpearão a memória de nossos filhos: “Michel Temer nunca será presidente. Será eternamente um golpista.”
 
Fonte: http://f.i.uol.com.br/folha/poder/images/16132290.jpeg