A Estratégia Democrático-Popular

Euclides André Mance
23 de Março de 2017

Introdução

A estratégia democrático-popular, elaborada no seio da esquerda brasileira na década de 1980, tem sua formulação inicial marcada por aquele momento histórico. Na década seguinte ela foi aperfeiçoada em vários aspectos, com a elaboração coletiva sobre os desdobramentos de sua própria execução pelos atores do campo democrático e popular. Em síntese, ela apresenta uma alternativa às estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade socialista.1

A partir do final dos anos 90, entretanto, essa estratégia foi gradativamente abandonada pelos setores hegemônicos da esquerda no Brasil, em favor de composições pragmáticas cada vez mais amplas com os então chamados setores progressistas do empresariado nacional. A fragilização do campo democrático-popular, resultante desse abandono, facilitou a consumação do golpe de estado jurídico parlamentar de 2016.

Nas páginas deste artigo, apresentamos apenas alguns elementos gerais e introdutórios ao tema.

Democracia e Socialismo

Ao longo do tempo, a democracia assumiu diversas formas de realização histórica. Embora signifique etimologicamente o poder (kratos) do povo (demos), geralmente as formas de intermediação para a sua realização institucional são marcadas por contradições entre classes sociais, nas quais o poder do Estado não é, em maior medida, posto ao serviço do interesse público – isto é, do povo, do bem comum, do bem público – mas ao serviço de interesses privados das classes economicamente dominantes que o hegemonizam.

Contrapondo-se ao uso do Estado pelas forças do capital, os setores populares da sociedade civil em diferentes países – isto é, a população organizada em movimentos sociais, entidades e partidos que defendem projetos políticos e sociais que atendam aos interesses das classes trabalhadoras e da maioria da população em geral, particularmente das populações mais empobrecidas, vulneráveis, excluídas e negadas em sua dignidade humana – conformam o que se pode denominar como campo democrático e popular. Construindo e consolidando o poder público não-estatal – isto é, o poder do povo, o poder popular – buscam ampliar sempre mais a participação institucional das classes populares na definição e gestão das políticas públicas, estatais e não-estatais, através de mecanismos como fóruns, redes, plenárias, conferências, conselhos, orçamentos participativos, plebiscitos, referendos, etc.

Busca-se, portanto, a consolidação da democracia e a sustentação das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas de todos, sob os aspectos econômico, político, social e cultural, assegurando-se, entre outras coisas,  a liberdade de pensamento, de expressão e de organização, a pluralidade de partidos políticos e de representação, a composição solidária das formas de apropriação pessoal, associativa e pública de meios produtivos e de intercâmbio, a defesa da autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades para o desenvolvimento sustentável de suas iniciativas e de seus territórios, a educação permanente de todos, a transparência  e o acesso público à informação de qualidade e a democratização da comunicação para tomadas de decisão criteriosas e bem fundamentadas.

Diferentemente da social-democracia ou da ditadura do proletariado, que aspiram reformar ou revolucionar o modo de produção capitalista e sua formação social pelo uso hegemônico dos aparelhos de Estado, a estratégia democrático-popular, numa de suas vertentes, assenta-se em tecer, consolidar e expandir o poder público não-estatal a partir do setor democrático e popular das sociedades, com suas redes econômicas, de poder e de conhecimento, que vão transformando as relações econômicas de produção, intercâmbio, consumo e financiamento, as relações políticas e culturais da sociedade numa perspectiva libertadora, introduzindo e expandindo em todos os espaços possíveis os elementos de um novo modo de produção, autogestionado pelos trabalhadores e por suas comunidades, de um novo sistema de intercambio, fundado no valor de uso como satisfator das necessidades humanas, e de uma nova formação social, substantivamente democrática.

Somente acumulando forças cada vez maiores no seio da sociedade civil em torno de eixos estratégicos de luta, que se materializam em formas de ação direta – nos campos econômico, político e cultural –, de elaboração de políticas públicas e de confronto com o Estado ou de participação institucional estatal, torna-se possível ampliar o poder popular no controle interno dos aparelhos de Estado. A eleição de governos democráticos e populares, como consequência desse acúmulo de forças convertido em poder popular, tem por objetivo central – com a ampla participação institucional dos setores democráticos e populares – desprivatizar o Estado, colocando-o ao serviço do interesse público e da proteção do bem comum, suprimindo pois a sua subordinação aos interesses do capital.

Poder Público Estatal e Poder Público Não-Estatal

A distinção qualitativa realizada na estratégia democrático-popular entre força e poder, entre acúmulo de forças e conquista do poder, mantém uma distinção clássica entre sociedade civil e Estado. Mas é um equívoco considerar que a conquista do poder se refira exclusivamente à conquista do controle dos aparelhos de Estado. Pois o acúmulo de forças na disputa de hegemonia não visa apenas o controle desses aparelhos, mas a real transformação da sociedade como um todo, seu modo de produção, seu sistema de intercâmbio e sua formação social.

Como o novo modo de produção e de intercâmbio deve ser organizado por livres produtores associados, eles estão na base do novo poder público que se constrói. A livre associação dos produtores é elemento central da economia solidária, cujo caráter transformador se revela quando é praticada como economia de libertação e não apenas como forma de sobrevivência ou de resistência.

Assim, o poder do povo, o poder popular, o poder público é a base fundante da democracia, que sustenta e protege as liberdades públicas e pessoais de todos e não os interesses do capital. Quando a acumulação de forças na sociedade civil resulta em organizações sociais de caráter permanente, democraticamente autogestionadas pelos seus participantes com uma perspectiva de libertação da classe trabalhadora para a realização de tais liberdades, essa acumulação de forças resulta em poder popular. Ao atuar na defesa do interesse público, do bem comum, com autodeterminação de fins e autogestão de meios, esse poder popular se converte em expressão do poder público não-estatal. A consolidação desse poder público não-estatal depende da atuação conjunta e colaborativa dessas organizações, somando suas forças e seus poderes para expandir o projeto de sociedade que defendem.

A grande ilusão alimentada nas estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado é que o poder está centralmente objetivado no Estado. E que, com a conquista dos aparelhos de Estado, torna-se possível efetivar a revolução socialista. Pois, como a experiência histórica demonstrou, o poder de Estado, resumido ao poder exercido através dos aparelhos do Estado, é apenas uma face do exercício do poder político – entendendo-se político como poder determinado pela contradição entre classes. E que ele é insuficiente para instituir, consolidar e proteger um novo modo de produção e um novo sistema de intercambio, ante as pressões internas e externas do capital.

Diferentemente, a estratégia democrático-popular, em determinada perspectiva, enfatiza o papel da acumulação de forças e da construção autogestionada do poder público não-estatal como condição essencial, para que a eleição de governos democráticos-populares resultem efetivamente no avanço e consolidação do novo modo de produção, do novo sistema de intercâmbio e da nova formação social, que vão sendo construídos e consolidados ao mesmo tempo em que se travam as lutas no plano político em torno de eixos de luta estratégicos2 .

Sob a estratégia democrático-popular, formulada em 1987, um governo assim eleito deve, ser capaz de

realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio […]: é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, […] que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; […] a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões […] na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”3.

Eixos de Luta e Programa de Transição

Na definição mais elementar dos anos 1980, “acumular forças […] é acumular experiências de lutas bem-sucedidas e acumular vitórias.”4 Uma luta bem-sucedida, entretanto, não apenas alcança seus objetivos imediatos e conjunturais mas, contribui para a realização de objetivos estratégicos e estruturais.

No aprofundamento de como articular as lutas populares dessa maneira, surgiu a noção de eixo de lutas5. Um eixo de lutas possui quatro características básicas: mobiliza amplos segmentos sociais em sua defesa, atende a demandas imediatas desses segmentos, combate as estruturas capitalistas que geram a insatisfação dessas demandas e introduz formas pós-capitalistas de atendê-las. Como exemplos de eixos de luta, citamos apenas três: a reforma agrária, a reforma urbana e a economia solidária.

As reformas agrária e urbana atendem às demandas imediatas de terra para plantar e para morar, confrontam o latifúndio rural e a especulação imobiliária urbana. Mas, somente se consolidam como eixos de luta, se desenvolvem formas pós-capitalistas de realizarem a produção e o intercâmbio dos frutos da reforma agrária, a produção autogestionada de moradias e a organização do poder popular na autogestão democrática e participativa de seu território.

No caso da economia solidária, ela somente pode ser considerada eixo de lutas quando realiza a libertação de forças produtivas. Nesse caso ela atende a demandas imediatas de consumo, produção, intercâmbio e financiamento de iniciativas populares e solidárias. Além disso, combate as formas de alienação no consumo, a exploração do trabalho pelo capital produtivo e pelo capital mercantil, a expropriação dos consumidores pelo capital comercial na obtenção dos meios econômicos para a satisfação de suas necessidades e a espoliação pelo capital financeiro no pagamento de dívidas. Ela igualmente introduz estruturas pós-capitalistas, ao realizar a produção, o intercâmbio e o financiamento de forma autogestionada por trabalhadores e trabalhadoras; ao desenvolver um novo sistema de intercâmbio compondo simultaneamente compras, trocas e dádivas, libertando a capacidade produtiva de criação de valor de uso da realização do valor de troca, que ficaria restrita aos limites de dinheiro disponíveis para o intercâmbio dos bens e serviços produzidos ou produzíveis se não entrassem em operação os mecanismos de intercâmbio não-monetário e de dádivas em circuitos econômicos solidários; compartilhando, em fundos solidários de caráter público não-estatal, recursos excedentes gerados na reprodução ampliada do valor, que permitem a realização da libertação das forças produtivas, com a realização de investimentos para a expansão das capacidades de produção, intercâmbio e desenvolvimento tecnológico do setor, passando a produzir não apenas bens de consumo final, mas igualmente meios de produção e novas tecnologias.

Nos anos 90, outros eixos de luta estavam em construção. Movimentos que enfrentavam a discriminação de gênero, racial, sexual e cultural vão concebendo eixos de luta buscando o atendimento de suas pautas imediatas, o combate às ideologias racistas, machistas e preconceituosas, o combate à moral autoritária e ao direito injusto que legitimam práticas opressivas contra essas populações e a afirmação de uma nova ética na sociedade civil que defenda as liberdades de todos e a afirmação de novos direitos no plano do estado, objetivando-se em lei a garantia dessas novas condutas. Na época, aplicava-se a esse eixo de lutas o conceito de cidadania.

Estava claro para esses movimentos que a mudança desejada no exercício de poder nas práticas cotidianas no seio da sociedade – com o respeito e acolhimento da dignidade humana vivida em sua plena diversidade – não se faz pela imposição de um direito estatal, mas pelo resgate da sensibilidade ética de todos frente a dignidade humana de cada pessoa, sensibilidade essa mutilada pela cultura de dominação existente. Isso exigia, portanto, uma crítica da cultura de massas e dos elementos reacionários da cultura popular, gerando-se assim uma cultura popular que revolucionasse o capitalismo, o machismo, o racismo e todas as formas de exercício autoritário do poder nas relações micropolíticas do cotidiano. Em outras palavras, não se tratava apenas de “eliminar do cotidiano a discriminação e o preconceito, mas fundamentalmente de construir novas relações interpessoais liberadas de todos os códigos culturais opressivos, possibilitando a vazão do desejo em práticas singularizantes que, sendo incompatíveis com as dinâmicas e códigos de reprodução do capitalismo, avancem como revolução cultural, afirmando uma nova sensibilidade ética e estética”6 – horizonte tido como necessário a um novo projeto político.

Assim, o programa democrático e popular não se reduz a um programa de transição no sentido clássico, isto é, “um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”7.

E não corresponde ao que na social-democracia se denominava programa mínimo, com reformas limitadas ao quadro da sociedade burguesa, nem ao chamado programa máximo, prometido para um futuro incerto, quando seria realizada a superação do capitalismo pelo socialismo.

A elaboração do programa democrático e popular é realizada pelos próprios setores democráticos e populares da sociedade civil organizada, que formalizam, em qualidade e escala, suas próprias demandas, que as reformulam dialogicamente em politicas públicas e que concebem as formas de atendê-las de maneira autogestionada, com o fortalecimento do poder público não-estatal e a participação do poder estatal, quando esta participação seja possível.

Assim, a natureza das demandas varia conforme variam as bandeiras de luta dos diferentes movimentos sociais-populares. A partir da explicitação coletiva dessas demandas e das interfaces que elas mantém entre si, elas são integradas em eixos de luta estratégicos, que tanto contribuem para a unificação social das lutas, como para a atividade educativa de politização da sociedade – considerando as estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais a serem superadas e as novas a serem construídas para o atendimento dessas demandas –, como também para a intervenção política de confronto com o Estado ou de intervenção no seu próprio interior, seja pelos mecanismos de participação institucional conquistados, seja pela eleição de governos democráticos e populares que devem pautar suas ações visando reforçar e consolidar a hegemonia dos atores democrático-populares na sociedade em torno desses objetivos estratégicos.

Modo de Produção Socialista e Economia Solidária

Na década de 80, após a anistia (1979) e a organização de novos partidos, forças do campo democrático e popular concentraram esforços na organização da Central Única dos Trabalhadores e, posteriormente, na Central de Movimentos Populares. É nesse contexto que se delineia a formulação inicial da estratégia democrático-popular de construção do socialismo.

Naquela época não havia o acúmulo, hoje existente, sobre como os empreendimentos econômicos solidários – de produção, intercâmbio, consumo e financiamento – podem ser capazes de avançar, em seu conjunto, na libertação das forças produtivas, com a reprodução ampliada do valor econômico que eles podem realizar ao atuar de maneira colaborativa entre si; ou sobre como podem participar ativamente na organização de um modo de produção e de intercâmbio de caráter socialista, pelo contínuo desenvolvimento de suas forças produtivas em contradição com as forças do capital.

Focada na análise do funcionamento do capital e na crítica das relações capitalistas de produção, todas as formas de economia popular, familiar ou comunitária, que proliferaram a partir dos anos 80, não mereceram, inicialmente, maior atenção na estratégia democrático-popular. Elas eram agrupadas com outras atividades econômicas de pequeno porte, nas quais ocorre a exploração capitalista do trabalho subordinado, identificando-se indistintamente a esses milhões de pequenas empresas, negócios, serviços e trabalhadores autônomos com a etiqueta de pequena burguesia8, considerada, entretanto, aliada estratégica dos trabalhadores assalariados para a construção do socialismo democrático.

Afirmava-se em 1987 que:

a pequena produção serve para que a sociedade desenvolva suas forças produtivas, contribua para que não haja escassez de bens e serviços e permita incorporar ao trabalho o conjunto da população economicamente ativa, sem prejudicar a eficiência das empresas socialistas nem a constante redução da jornada de trabalho. Essa política de desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade, utilizando todas as forças econômicas, é a base da aliança dos trabalhadores assalariados com a pequena burguesia urbana e rural. Essa aliança é, pois, uma questão estratégica, referente tanto à destruição do capitalismo quanto à construção do socialismo9.

Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90, retomando-se elaborações de diferentes matrizes teóricas e de práticas históricas de organização dos trabalhadores, vão sendo delineados na América Latina distintos conceitos de economia popular e solidária, possibilitando melhor compreender as diferentes particularidades desses atores econômicos associativos em relação aos demais. Em 2008, a Constituição do Equador, em seu artigo 283, por exemplo, reconhece que “o sistema econômico se integrará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária.”

Numa das definições de economia solidária recorrentes na América Latina, a ênfase recai na autodeterminação de fins e na autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades, conceito que se difunde a partir do socialismo autogestionado, praticado nas nações que compunham a Iugoslávia, após o seu rompimento com o stalinismo em 1950. Nessa definição,

a autogestão é, antes de tudo, uma relação socioeconômica entre os homens que se funda no principio da distribuição segundo o trabalho e não sobre a base do capital […]. A autogestão é […] uma categoria socialista. A mesma só pode desenvolver-se no campo da propriedade social, isto é, em relações de propriedade em que os meios de produção e o capital social não são propriedade privada do capitalista nem de grupos de trabalhadores de determinadas empresas, nem objeto de gestão monopólica do aparato burocrático ou tecnocrático do Estado.”10

A noção de autogestão, amplamente difundida, refere-se à gestão dos trabalhadores sobre as atividades de produção econômica com base nos princípios de autonomia, horizontalidade, democracia direta ou delegada, revogabilidade de mandato e rotatividade de funções. Mas também é compreendida, em algumas abordagens, tanto como uma forma possível de transição para a superação do capitalismo quanto a forma realizada do modo de produção e de intercambio da nova sociedade pós-capitalista.

Alguns supõem que a mera multiplicação de iniciativas de autogestão em meio ao capitalismo possibilitaria aos trabalhadores e às suas comunidades conquistarem a autonomia econômica e política – a sociedade dos produtores livremente associados – sem que para isso fosse necessário realizar uma ruptura do poder político e econômico do capital, exercido por ele sobre o Estado e a sociedade. Diferentemente disso, a estratégia democrático-popular salienta a necessidade de realização dessa ruptura, como já explicitado anteriormente.

A recente retomada do debate sobre a estratégia democrático-popular em partidos de esquerda no Brasil, ao mesmo tempo em que apontou limitações históricas em sua formulação original também permitiu recolher importantes aprendizados sobre os avanços e reveses das lutas da classe trabalhadora em nosso país, permitindo abrir novas e diferentes perspectivas de atualização dessa estratégia de construção do socialismo democrático.

Conclusões

Houve um importante acúmulo teórico e prático nos Brasil, nos anos 80 e 90, sobre a estratégia democrático-popular para a consolidação de um poder popular, fundado na autonomia das organizações e na sua integração em ações diretas e institucionais, visando atender a demandas imediatas da população, combater estruturas de dominação econômica, política e cultural e construir um modo de produção, um sistema de intercâmbio e uma formação social socialistas.

Mas, infelizmente, os governos de centro-esquerda no Brasil, nos diferentes níveis da federação, apesar dos processos de participação popular e dos avanços sociais alcançados com as diferentes políticas públicas adotadas, abandonaram progressivamente a estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, de realização de um programa mínimo, circunscrito aos limites de um desenvolvimento econômico nacional, totalmente subordinado às forças do capital produtivo, comercial e financeiro, tanto nacional quanto internacional.

Pareceram haver esquecido que sem a consolidação de um poder público não-estatal, ficariam totalmente vulneráveis frente as contradições entre os próprios setores hegemônicos do capital, particularmente em meio às disputas entre o capital produtivo e o capital mercantil pela maior acumulação possível – com sua disputa na realização de lucros – da mais-valia gerada pelo trabalho produtivo; ou frente as disputas e alianças entre setores do capital nacional e internacional quanto aos rumos da economia do país, em função de seus interesses privados sobre os ativos nacionais.

Pareceram haver esquecido, pois, da velha máxima socialista: que a burguesia sempre retoma no futuro com a sua mão direita o que concede no presente com sua mão esquerda, por meio de diferentes mecanismos de exploração, expropriação, espoliação e exclusão, que invariavelmente sempre atingem em cheio as classes trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

ANAMPOS. Relatórios dos Encontros Nacionais – 1980 a 1989. Cadernos de Textos, N. 6. Cefuria, Curitiba, s.d. Disponível em: http://solidarius.net/mance/biblioteca/anampos.pdf Acesso em: 22/03/2017

MACHADO, João. O que foi o “Programa Democrático e Popular” do PT? Disponível em: http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/O que foi o PDP.pdf Acesso em 22/03/2017

MANCE, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

PT. Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional. Brasília, 1987. Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acesso em: 22/03/2017

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Notas:

1 Um dos primeiros documentos de elaboração coletiva em que ela é abordada em suas linhas gerais e pode ser tomado como ponto de partida para sua posterior problematização e crítica, constitui-se das Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em dezembro de 1987.

2 Claro está que esse conceito de poder púbico não estatal nada tem a ver com o conceito de público não estatal utilizado por Fernando Henrique Cardoso e Bresser Pereira em sua política neoliberal de desestatização, que passou a transferir recursos estatais para organizações sociais de interesse público prestarem serviços até então realizados pelo estado. Lei n.º 9.637/1998

3 Resoluções Políticas, par. 75

4 http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf

5 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

6 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

7  https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm

8  “Os setores que chamamos normalmente de camadas médias e pequena burguesia — sendo, estes últimos, trabalhadores e também proprietários de seus meios de produção — embora tenham interesses comuns com a burguesia (por exemplo, algumas camadas de pequenos proprietários vivem da exploração do trabalho assalariado, ainda que em pequena escala) têm, também, profundas contradições com o capitalismo, que os coloca cotidianamente sob ameaça de arruinamento e de proletarização.” Resoluções Políticas, par. 92

9  Resoluções Políticas, par. 42

10  Edições CLAS (Cuestiones Actuales del Socialismo). “Autogestão Socialista Iugoslava. Noções Fundamentais”. Belgrado, 1980. Apud NASCIMENTO, Claudio. Autogestão: Economia Solidária e Utopia. In: Outra Economía – Volumen II – No 3 – 2o semestre/ 2008, p. 28

Senadores golpistas admitem que Dilma não cometeu crime de responsabilidade

Euclides Mance
2 de Setembro de 2016

Dois senadores que votaram pelo impeachment admitiram publicamente — em entrevista e nota abaixo anexadas — que a presidente Dilma Rousseff não cometeu crime de responsabilidade. Ora, se ela não cometeu os crimes que se lhe imputavam, eles não poderiam, como juízes, votar por sua condenação, exceto violando as bases legais do julgamento, agindo, portanto, em flagrante desrespeito à lei.

Assim, embora ambos senadores, por esse motivo, devessem perder o seu mandato parlamentar, pois sua conduta  violou o juramento de cumprir a Constituição, realizado na cerimônia de sua posse, muito possivelmente nada lhes ocorrerá.

Sabe por que? Porque a Constituição será rasgada outra vez, pois estamos vivendo sob um regime de exceção, engendrado por um Golpe de Estado Parlamentar.

O período da Nova República, iniciado em 1985, infelizmente acabou. Entramos em uma nova fase da história política do país, com o golpe desfechado contra a Constituição em 31 de Agosto de 2016.

Anexos:

 

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Qual é o SEU voto?

Euclides André Mance
31 de Agosto de 2016

Hoje, os  senadores deverão responder sim ou não à seguinte pergunta, enunciada pelo Ministro Ricardo Lewandowski, que conduz a sessão do impeachment:

“Cometeu a acusada, a Senhora Presidente da República, Dilma Vana Rousseff, os crimes de responsabilidade correspondentes à tomada de empréstimos junto à instituição financeira controlada pela União (art. 11, item 3, da Lei nº 1.079/50) e à abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional (art. 10, item 4 e art. 11, item 2, da Lei nº 1.079/50), que lhe são imputados e deve ser condenada à perda do seu cargo, ficando, em consequência, inabilitada para o exercício de qualquer função pública pelo prazo oito anos?”

Responda você mesmo, você mesma!

Quando você atrasa o pagamento de uma conta de telefone ou de qualquer outro serviço contratado, o que são os juros de mora que incidem sobre essa conta? Está claro, são juros de mora, referentes, portanto, a atraso. Os  juros de mora devidos à companhia telefônica ou à empresa que lhe prestou o serviço correspondem a algum empréstimo em dinheiro que elas fizeram a você? A lei brasileira é clara: diz que não. Não fosse assim, todas empresas registrariam  em suas contabilidades, para cada atraso de pagamento, uma correspondente operação de crédito, no exato valor do juro de mora pago, tendo como credor do empréstimo a empresa que lhe prestou o serviço que foi pago em atraso. Os juros de mora do Plano Safra, pagos pelo Governo Dilma, referem-se, igualmente, ao atraso de pagamentos ao prestador do serviço que fornece crédito aos agricultores, pois são juros de mora, não tendo havido empréstimo de dinheiro do prestador do serviço ao Governo Federal.

Quanto à segunda pergunta, sobre a “abertura de créditos sem autorização do Congresso Nacional” leia você mesmo, você mesma, essa autorização, que está publicada no Diário Oficial da União, no dia 22/04/2015. Ela está nesse link no site da Câmara dos Deputados e diz: “Art. 4º Fica autorizada a abertura de créditos suplementares, restritos aos valores constantes desta Lei, excluídas as alterações decorrentes de créditos adicionais, desde que as alterações promovidas na programação orçamentária sejam compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015 e sejam observados o disposto no parágrafo único do art. 8º da LRF e os limites e as condições estabelecidos neste artigo, vedado o cancelamento de valores incluídos ou acrescidos em decorrência da aprovação de emendas individuais, para o atendimento de despesas:

As alterações dessa lei, aprovadas pelo Congresso, estão neste outro link da Câmara dos Deputados. Leia e comprove que os créditos suplementares abertos pelo Governo Dilma, com base nessa autorização, previamente recebida do Congresso e publicada no Diário Oficial da União, estão “compatíveis com a obtenção da meta de resultado primário estabelecida para o exercício de 2015. A lei não exige que a compatibilidade seja bimestral  mas anual: para o exercício de 2015. E por que o faz? Porque é impossível saber, de antemão, quanto será arrecadado ao final de cada bimestre, cabendo ao governante, pelo monitoramento da arrecadação realizada ao longo do ano, ajustar os gastos, sem extrapolar, no exercício anual, o limite autorizado pela lei orçamentária.

No presente momento, nem mesmo o Tribunal de Contas da União tem uma decisão final sobre o exercício de 2015, pois o prazo para o envio de documentos solicitados, a serem apreciados pelo Tribunal, foi estendido até 8 de Setembro. Assim, qual é a base legal para a reprovação das contas de 2015?

Como você pode ver, a resposta para as duas perguntas iniciais é: não. Não há crime de responsabilidade apurado nesse processo. Esse impeachment, se for aprovado, por qualquer outra razão que seja, é um Golpe de Estado. É uma violação do meu voto e do seu voto, não importa em quem tenhamos votado.

Se qualquer maioria eventual de parlamentares puder destituir um presidente, governador ou prefeito com o apoio dos que foram derrotados nas urnas, usando para tanto algum pretexto que sirva a esse propósito sem que se comprove a existência de crime de responsabilidade, quanto não será pago em negociatas, a partir de agora, pelos interessados em apossar-se dos governos, para derrubar prefeitos, governadores ou futuros presidentes?

Julgue você mesmo! Julgue você mesma!

O Estranho Humanismo de Cristovam Buarque

Euclides André Mance
28 de Agosto de 2016

Prezado Senador Cristovam Buarque

A condição primeira para qualquer condenação legal não é o fato de haver sido assegurado o amplo direito de defesa ao réu, mas o fato deste haver cometido algum crime tipificado em lei.

Estranho humanista é o senhor.

Durante a última ditadura em nosso pais já houve quem esposasse um “humanismo bélico”.

A história, nas próximas décadas, ou mesmo em alguns anos,  saberá adjetivar corretamente o seu humanismo, capaz de tergiversar sobre esse fundamento mais básico da justiça, possivelmente para atender a algum propósito outro, que somente o senhor sabe qual é.

Pela sua biografia, espero que não esteja envolvido nos esquemas de corrupção dos que lutam desesperadamente  para salvar os corrompidos e os corruptores, abrigados no bote salva-vidas do Governo Temer, que desejam  eliminar a Lava Jato e “estancar essa sangria”, nas palavras de outro senador, igualmente defensor do impeachment.

Na Ação Penal 470, ministros do Supremo adotaram a tese de que é justo condenar o réu mesmo na ausência de provas. Bastariam, para tanto, indícios de algum crime, cuja materialidade não seria mais necessário ou possível comprovar.

Agora, no processo de impeachment, acusa-se a presidente de haver cometido o delito de infringir uma norma do TCU que nem sequer existia quando dos fatos imputados. E argumenta-se que os juros de mora, os mesmos que nos são cobrados quando atrasamos o pagamento de uma conta de telefone, são a prova cabal de uma operação de crédito.

Se essas duas teses fossem válidas, senador, o senhor e eu teríamos de pagar multas por haver dirigido em rodovias com faróis apagados antes da entrada em vigor da nova lei que exige acendê-los durante o dia. E ninguém mais poderia cobrar juros de mora no país, exceto quem tenha autorização legal para realizar operações de crédito. E o balanço contábil de todas as empresas no Brasil deverá ser reprovado, exigindo-se, igualmente, que pagamentos atrasados, em que incidiram juros de mora, fiquem associados contabilmente a lançamentos de tomada de empréstimo no sistema financeiro. E, assim, a partir do impeachment da presidente Dilma, será eliminado pelo Congresso a distinção legal no pais, que é adotada em todo o mundo, entre juros compensatórios que remuneram algum capital empregado e juros moratórios, que indenizam o atraso no pagamento de alguma dívida.

Infelizmente, senador, essa teia de dislates agora se amplia com a sua própria contribuição. Além da jurisprudência que permite, em alguns casos, condenar qualquer brasileiro sem provas, bastando indícios; ou de que se possa condenar alguém por infringir uma norma que ainda não existe; ou de suprimir a distinção legal entre objetos distintos (como juros compensatórios ou moratórios) se isso for conveniente para algum propósito político, o senhor ampliou a extensão desse novo humanismo jurídico, ao afirmar que se ao réu for concedida a ampla defesa, torna-se possível, então, condená-lo, mesmo sem a comprovação de algum crime previsto em lei.

Além desse argumento, de concessão de ampla defesa ao réu, o senhor aduziu outros dois, para o seu juízo condenatório, referentes à situação atual de crise econômica no Brasil. Isso, senador, é uma confissão de culpa do senhor: pois, se este for o motivo de seu voto, estará votando em desrespeito à Constituição do país, pois ela não prevê impeachment do governante para solucionar crises econômicas. Tratar-se-á de desvio de finalidade, de sua parte, o emprego desse instrumento constitucional visando alcançar esse fim. E isso é crime, senador. Ou deveria ser, se vivêssemos num Estado Democrático de Direito.

Mas, entrando no mérito substantivo de seus dois outros alegados motivos, imagino que o senhor não acredite que a crise econômica na Rússia ou que a queda no PIB da China ou que a estagnação da economia na Europa seja consequência da má gestão do Governo Dilma. Se o senhor investigar quais são as reais causas da crise econômica da Rússia, da redução da atividade econômica na China ou da estagnação da Europa, talvez consiga compreender melhor as causas da crise econômica no Brasil.

Em cinco palavras lhe antecipo o diagnóstico básico: recomposição da taxa de lucro.

Sempre foi assim ao longo de toda a história do capitalismo, senador. No momento de crescimento econômico as empresas reduzem suas taxas de lucros, adotam preços mais competitivos, aumentam suas vendas, seu faturamento e a magnitude de seus ganhos. É a lei da concorrência, senador. Mas como a maior parte do valor gerado nessa expansão econômica se concentra ao invés de ser distribuída, pessoas e empresas contraem dívidas para ampliar o seu consumo e o seu investimento na expectativa de solvência futura — a chamada “confiança dos mercados”. Sempre foi assim ao longo do capitalismo e é por isso que os ganhos do sistema financeiro como um todo nunca cessam, tanto na bonança quanto na crise, mesmo que alguns bancos ou agentes financeiros entrem em default. Veja-se o balanço dos maiores bancos brasileiros, apontando ganhos que bateram recordes no primeiro semestre do ano passado e que lucraram juntos R$ 13,46 bilhões de abril a junho do presente ano.

Mas quando as dívidas se tornam quase impagáveis, senador,  e o dinheiro dos atores econômicos flui em maior medida para o sistema financeiro, o consumo final e produtivo se reduz e as empresas vendem menos.

Então, para manter suas operações e pagar suas dívidas, as empresas têm de recompor suas taxas de lucro, pois devem cobrir seus custos totais com um volume menor de vendas e, mesmo assim, assegurar os ganhos para proprietários e acionistas. Por sua vez, aquelas empresas que dispõem de reservas, investem-nas no sistema financeiro, aguardando que as taxas de lucros subam em direção das taxas de juros, razão pela qual vários países mantém atualmente taxas de juros reais negativas tentando forçar a recuperação da atividade econômica.

É por isso, senador, que o Brasil atravessa um momento de recessão com inflação. Pois embora as empresas estejam produzindo menos e vendendo menos, elas continuam subindo seus preços para recompor suas taxas de lucros. E isso nada tem a ver com os gastos dos governos.

Dizer que a presidente Dilma é responsável por esse fenômeno é o mesmo que dizer que as crises cíclicas,  marcadas pela contração da atividade econômica após os ciclos de sua expansão sob o capitalismo, que seguem  ao longo da história, foram responsabilidade dos governantes, quando na verdade elas são fruto da própria dinâmica intrínseca de concorrência dos atores econômicos nos mercados, movidos pela busca de lucro e de proteção dos ganhos acumulados.

Fique atento senador, pois o que o Governo Temer busca é exatamente suprimir direitos históricos da população brasileira para assegurar a recomposição da taxa de lucro das empresas, ampliando a acumulação de capitais, a concentração de renda no Brasil e a subordinação da economia brasileira ao capital internacional.

É triste ver sua pessoa envolvida nesse caudal de condenação sem provas, por um suposto crime em que não há lei violada, escorando-se  num argumento econômico legalmente inválido para justificar um impeachment, que, ao fim e ao cabo, visa reconcentrar a riqueza no país e entregar as jazidas do pré-sal a grupos internacionais. É triste ouvir de sua boca que o elemento decisivo para  o seu voto tenha sido a concessão de um formal direito de defesa à presidente eleita, num processo de impeachment que se caracteriza plenamente como Golpe de Estado, à luz da ciência política contemporânea.

Estranho humanismo o seu, senador.

A Memória de Nossos Filhos

Euclides Andre Mance
Curitiba, 11/maio/2016

 

Agoniza hoje uma jovem democracia, de 27 anos (*1989 +2016), nascida do enfrentamento da ditadura mais cruel que já tivemos. Perdurou pouco o contrato de respeitar o resultado das urnas.

Sinto tristeza e revolta.

Tão logo os golpistas assumam, o relógio da história retrocederá. Parece o feitiço do tempo, que não mais tem fim: “Um, dois, três, quatro, cinco mil: queremos eleger o presidente do Brasil!”

Os golpistas creem em seu próprio poder. E apenas invocam suas divindades para esconder seu real culto e adoração ao dinheiro. Não passam, entretanto, de serviçais, lacaios, capachos subordinados ao domínio econômico dos mais fortes. Aos poucos, todos eles serão descartados, como bagaço de fruta. Um por um. Cairão todos, quando deixarem de ser úteis ao propósito da mão invisível que os comanda. A história lhes será implacável.  

A corrupção vestiu-se de verde e o golpismo de amarelo. Dançaram na praça, embalados pela Globo. Eram milhões de Cunhas, cobertos pelo manto da mentira e ungidos com o óleo da calúnia.

Sergio Moro já tem seu lugar na memória eterna do Brasil: o juiz que violou a lei, a toga e a hermenêutica, para consolidar o golpe com seu ilegal grampo salvador da pátria e sua  interpretação jurídica sobre as sombras.

“Vai acabar o quê? Vai acabar o quê? A ditadura militar.” — clamávamos pelas ruas.

Quando será que os juízes do Supremo farão a si mesmos a “delação premiada” do que passa em suas próprias consciências? Não terão coragem! No último suspiro de suas vidas, no aconchego de seus familiares, lembrarão da sua omissão vergonhosa e de que não estiveram à altura do Poder que lhes foi confiado.  

Parece que eles não entenderam que a Constituição não é um livro. É um modo de viver em sociedade. E foi isso que eles ajudaram a rasgar: o contrato da democracia em nosso país. Quem vence a eleição, governa. Quem perde, disputa a próxima.
 
Mas essa regra, a partir de 2016, está definitivamente abolida, sempre que houver um bloco de poder capaz de compor as forças para um novo golpe de Estado jurídico-parlamentar.

Essas forças, que se uniram em bloco, tentarão golpear tudo o que seja contrário aos interesses da mão invisível que os comanda.

Talvez consigam entregar o pré-sal a corporações estrangeiras, privatizar empresas estatais e abolir direitos históricos da classe trabalhadora.
 
Mas não conseguirão destruir a nossa capacidade de resistir e de lutar.

Acima de tudo, não golpearão a memória de nossos filhos: “Michel Temer nunca será presidente. Será eternamente um golpista.”
 
Fonte: http://f.i.uol.com.br/folha/poder/images/16132290.jpeg

TV Globo: um impeachment em causa própria?

Euclides André Mance
Curitiba, 1/Maio/2016

Dado o modo como os jornalistas e comentaristas contratados pelo Grupo Globo, no exercício de suas funções, defendem o impeachment da presidente Dilma e o modo como essa organização se empenha em difundir a tese de que esse impeachment não é um golpe institucional, cabe perguntar quais são as suas razões para estar na linha de frente do bloco que defende a deposição da atual presidente.

A resposta é, possivelmente, menos verde e amarela do que imagina uma parte dos que marcham pelas ruas e polemizam em redes sociais, reproduzindo as teses, interpretações e versões veiculadas pela TV Globo. Talvez, a questão se resuma mesmo à cifra dos bilhões de reais que a emissora perdeu e continuaria perdendo com a desconcentração da publicidade do governo federal iniciada na gestão Lula, aprofundada na gestão Dilma e que prosseguiria em posteriores governos conduzidos pelo PT — com ou sem a aprovação do PL 7.460/2014, apresentado pelos deputados Jorge Bittar (PT) e Luciana Santos (PCdoB), que converte essa desconcentração em lei, desdobrando-a em vários aspectos.

De fato, a fortuna dos três sócios majoritários do Grupo Globo, os irmãos Marinho, encolheu no ano passado mais de 10 bilhões de dólares, considerando os dados divulgados pela Revista Forbes. A redução de ganhos com a publicidade federal correspondeu apenas a uma pequena parte dessa perda. Embora a metodologia da revista não seja cientificamente confiável, essa informação porém revela o absurdo da acentuada concentração de renda no Brasil: a fortuna de três irmãos teria encolhido mais de 10 mil milhões de dólares em um ano! Considerando o câmbio e a inflação (com valores atualizados para 31/12/2015 pelo IGP-M), a perda teria girado em torno do equivalente a 22 bilhões de reais.

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Parte da fortuna dos três irmãos é composta por ações da OGP Organizações Globo Participações S.A., que é uma empresa holding, na forma de sociedade anônima de capital fechado, com todas as ações pertencendo aos membros da família Marinho. Conforme os balanços publicados, essa “companhia possui […] como principais negócios: um grupo de emissoras de televisão aberta; empresas de jornalismo; negócios de internet; negócios de programação e distribuição de TV por assinatura; e publicação de revistas.

Atualizando-se os valores desses balanços pelo IGP-M, percebe-se claramente uma redução de lucros nos últimos quatro anos. Os valores estão em bilhões de reais.

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Como se vê, em 2014 a receita do Grupo aumentou, mas dada a elevação de custos de vendas, publicidade e serviço, o lucro apurado diminuiu. Este valor foi 9% menor que o obtido em 2013. Em 2015, a receita foi menor que em 2014 e o lucro líquido caiu quase pela metade.

Descontando-se do lucro liquido alcançado em 2015 os resultados obtidos com investimentos financeiros (receita – despesa), chega-se a R$ 765 milhões. Em outras palavras, a queda importante de receita com as atividades finais do Grupo — muito superior à queda de 3,8% do PIB —, somente foi compensada pelos ganhos obtidos com aplicações financeiras, o que correspondeu a 45% do lucro líquido em 2015.

Quando analisamos a situação da TV aberta, vemos que ela tem perdido espaço para a Internet. Por isso, o Grupo Globo, com grandes investimentos, vem acelerando sua oferta de conteúdos via web para ampliar as receitas nesse meio. Mas, embora em 2014, no conjunto dos diferentes meios, tenha aumentado a sua receita líquida com vendas, publicidade, serviços e também direitos sobre a copa do mundo, o Grupo continuou perdendo sua participação na publicidade do governo federal.

Ainda que as cinco emissoras de TV da Globo (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília e Recife) tenham arrecadado o correspondente a R$ 6,2 bilhões em publicidade federal nos governos Lula e Dilma (2003-2014), os percentuais vieram caindo no período, como mostra a tabela abaixo, com dados oficiais sobre a publicidade da administração direta e das estatais no período de 2000 a 2014, fornecidos pela Secom — Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, obtidos pelo UOL e analisados pelo jornalista Fernando Rodrigues. Para comparação, os valores foram corrigidos usando-se o IGP-M.

Publicidade Federal na TV Globo

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Destaca o jornalista que “apesar do valor expressivo destinado à Globo, há uma nítida trajetória de queda quando se considera a proporção que cabe à emissora no bolo total dessas verbas. As emissoras globais terminaram o governo do tucano Fernando Henrique Cardoso, em 2002, com 49% das verbas estatais […]. No ano seguinte, em 2003, já com o petista Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência, a fatia da Globo pulou para 59% […] Nos anos seguintes […] a curva global foi decrescente. No ano passado, 2014, a Globo ainda liderava (recebeu R$ 453,5 milhões), mas chegou ao seu nível baixo de participação no bolo estatal federal entre TVs abertas: 36% do total da publicidade.

Participação Percentual das 5 emissoras da TV Globo
na Publicidade Federal no Setor TV entre 2000 e 2014

Para efeitos de comparação, no período de 2003 a 2014 foram gastos R$ 13,9 bilhões em publicidade televisiva, ficando a Record com R$ 2 bilhões, SBT com R$ 1,6 bilhão e Band com R$ 1 bilhão.

Conforme Roberto Messias, então Secretário-Executivo da SECOM, do total de verbas programadas para publicidade federal em 2012 para o meio televisão, “43% foram investidos na emissora líder […]. Este índice chegou a ser de mais de 60% em 2003. A participação nos demais canais abertos, emissoras regionais e de TV fechada subiu de 39% para 57% nos últimos nove anos“.

Mas antes de explicarmos essa queda, é importante entender porque essa concentração chegou a mais de 60%. Afinal, se os ministérios, autarquias e empresas estatais realizam licitações para a contratação das agências de propaganda encarregadas de produzir e contratar a veiculação da publicidade, por que as verbas destinadas à veiculação acabavam sendo concentradas de tal modo nos grandes veículos, particularmente do Grupo Globo?

Um dos instrumentos para assegurar tal concentração é a chamada Bonificação (ou Bônus) de Volume, usado pelas empresas de comunicação para captar as campanhas publicitárias das agências. Quando uma agência leva para o veículo diferentes campanhas, a partir de um certo volume de clientes e valores, ela passa a ter direito a uma cifra sobre os valores contratados.

Assim, do montante de recursos pagos pela agência para a emissora veicular a campanha, uma parte é restituída à própria agência. E, quanto maior o volume contratado, maior sua bonificação. Desse modo, os grandes veículos, particularmente a Globo, disputam o mercado concentrando a veiculação das campanhas publicitárias. De sua parte, os veículos menores, para utilizarem a bonificação de modo eficiente, necessitam praticar índices inviáveis à sustentação da sua própria atividade. Em razão disso, as campanhas publicitárias tendem a se concentrar nos grandes veículos que possuem melhores margens de negociação.

Esse expediente, que resulta na apropriação pela agência de uma parte do valor contratado para a veiculação de publicidade federal mediante o bônus de volume, foi objeto de controvérsias no julgamento da Ação Penal 470 (julgamento do Mensalão), em 2007. Ele foi considerado, por alguns Ministros do STF, como crime de corrupção, sob o argumento de que o valor recebido como bônus pela agência tem origem no recurso transferido a ela pelo órgão do governo ou estatal que contratou a campanha. E, portanto, deveria ser totalmente gasto na cobertura dos custos da campanha, não podendo ser apropriado em parte pela própria agência de propaganda.

Três anos depois, entretanto, essa prática de bonificação por volume, também conhecida como plano de incentivo, foi regulamentada pela Lei nº 12.232/2010 que, em seu artigo 15 tipificou o que caberia ao contrante da campanha — “as vantagens obtidas em negociação de compra de mídia diretamente ou por intermédio de agência de propaganda, incluindo os eventuais descontos e as bonificações na forma de tempo, espaço ou reaplicações […] concedidos pelo veículo de divulgação”— e, no artigo 18, o que caberia à agência de publicidade: “é facultativa a concessão de planos de incentivo por veículo de divulgação e sua aceitação por agência de propaganda, e os frutos deles resultantes constituem, para todos os fins de direito, receita própria da agência […]“.

Assim, com o mecanismo de bonificação de volume, TV Globo expandiu seu faturamento de difusão publicitária em geral e concentrou a veiculação de publicidade federal até 2003. Mas nos últimos 12 anos a redução de sua participação nessa publicidade deveu-se tanto à progressiva perda de um terço de sua audiência, que caiu de 18% para 12%, quanto às medidas adotadas pelo governo federal para a desconcentração e pulverização da publicidade da administração direta e indireta, visando com isso alcançar o conjunto do país, particularmente, veículos regionais e menores, bem como mídias alternativas.

Até 2002, os órgãos da administração direta e indireta negociavam individualmente suas campanhas publicitárias, com menor eficiência no uso do dinheiro empregado e com perda de visibilidade das ações. A partir de 2003, o governo Lula estabeleceu critérios visando otimizar os gastos, estabelecendo uma nova gestão de contratação de mídia, considerando o governo federal como grande anunciante, estabelecendo critérios técnicos na aplicação dos recursos. Buscou, igualmente, a desconcentração e regionalização de suas ações na área da comunicação. Com essa perspectiva e com os critérios técnicos de inclusão, consolidou-se em 2009 um cadastro nacional de veículos. Em 2013, esse cadastro alcançou os municípios com mais de 5 mil habitantes, tendo 9 mil veículos cadastrados, que mantém seus dados atualizados e comprovam a regularidade e o volume de veiculação realizada.

Essa desconcentração, em 2012, resultou em que as ações publicitárias do governo federal foram veiculadas por aproximadamente 5 mil veículos. Salientou Roberto Messias que “a desconcentração de ações em veículos e praças, com destaque para valorização das mídias regionais, a partir de critérios técnicos de planejamento, é uma das diretrizes de atuação da Secom. […] Por isso, a Secom recomenda a todos os órgãos e entidades federais o uso do maior número possível de veículos em suas campanhas, garantido impacto significativo das mensagens junto à população, apoiada na grande força dos veículos regionais, principalmente nos meios jornal e rádio, e também nos somatórios das audiências dos diferentes tipos e tamanhos de veículos.

Com isso, não apenas a participação da TV Globo nesse mercado caiu de 49% em 2002 para 36% no final de 2014, mas igualmente a participação da Revista Veja, que chegou receber o equivalente, em valores corrigidos pelo IGP-M, a R$ 43,7 milhões em verbas de publicidade federal em 2009, caiu para R$ 19,9 milhões em 2014, oscilando de 23% a 18% a sua participação no percentual total de gastos federais em publicidade em revistas.

A política de desconcentração da publicidade federal (direta e indireta) levou, desse modo, a uma perda de receita para os veículos do oligopólio de mídias de massa que hegemoniza a comunicação e a interpretação da informação no país.

Na mesma perspectiva dessa política de desconcentração da publicidade, foi apresentado o PL 7.460/2014 — por Jorge Bittar e Luciana Santos — que contraria frontalmente os interesses econômicos do grupo dominante de empresas de mídia no país, particularmente, os interesses do Grupo Globo. Com a aprovação desse projeto de lei, 30% das verbas federais de publicidade devem ser destinadas para as regiões norte, nordeste e centro-oeste e 30% das verbas para mídias alternativas. O projeto institui o Serviço de Radiodifusão Comunitária e estabelece “critérios para promover a desconcentração, pela administração pública, da contratação dos serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda“. Com base nos critérios desse projeto — em estimativa preliminar que fazemos —, as cinco emissoras da Rede Globo não receberiam R$ 6,2 bilhões em 12 anos, mas, mantidos os mesmos níveis de audiência, teriam recebido algo próximo a R$ 3 bilhões (considerando R$ 6,2 bilhões x 70% x 70%).

Essa desconcentração de publicidade federal, convertida em lei, contribuiria para diminuir a hegemonia do reduzido grupo de empresas de mídia que domina a comunicação de massa no Brasil. Não por acaso, é esse mesmo grupo que, no atual momento histórico, difunde a narrativa de não ser golpe de Estado a realização de um impeachment sem a comprovação necessária de algum crime de responsabilidade previsto na Lei Nº 1.079/1950, em seu artigo 4. De fato, na denúncia acolhida pela Câmara dos Deputados, não há crime algum que justifique a deposição da presidente, dado que não houve descumprimento por ela da lei orçamentaria.

Entretanto, com a deposição do Governo Dilma, a grande mídia em geral, controlada por umas poucas famílias em nosso país, e a Globo em particular, saem vitoriosas e poderão, provavelmente, recuperar o faturamento que haviam perdido com a desconcentração da publicidade realizada pela administração federal direta (ministérios, autarquias etc.) e indireta (estatais).

A reconcentração da publicidade federal — resultando na recuperação da participação da Globo e dos grandes veículos nesse mercado, voltando aos índices que possuíam durante o Governo de Fernando Henrique Cardoso — seria uma provável consequência do golpe institucional de 2016, apoiado por essas empresas. E, consolidando a hegemonia conservadora no país, as forças do golpe sepultariam de vez, com aval da grande mídia, o PLS 315/2015, do senador Paulo Paim (PT), que institui imposto de 1% sobre as grandes fortunas, regulamentando o Art. 153 da Constituição Federal. Considerando que 1% sobre a fortuna dos três irmãos Marinho, corresponderia a algo como 129 milhões de dólares, entende-se claramente o que está envolvido no debate sobre a concentração ou desconcentração da riqueza e das oportunidades em nosso país.

Não seria, pois, um verdadeiro impeachment em causa própria?

Publicado em:

http://www.euclidesmance.net/docs/tvglobo.pdf

http://www.euclidesmance.net/docs/tvglobo.htm

Plano Temer – Ganhadores e Perdedores

Euclides André Mance
Curitiba, 20/Abril/2016

Três grupos se uniram pelo impeachment da presidente Dilma. O primeiro compõe grandes empresas nacionais, desejosas de elevar suas taxas de lucro, particularmente da grande indústria, do agronegócio, do setor de mídia e do capital financeiro, representados pela CNI, CNA, FIESP, Febraban e outras entidades de classe empresariais. O segundo compõe corporações petroleiras e outras empresas transnacionais, interessadas no pré-sal e nas privatizações. Algumas delas financiam entidades sediadas nos Estados Unidos que promovem o impeachment em nosso país através de seus coordenadores locais. O terceiro grupo é composto por partidos políticos que desejam ocupar postos-chave no comando do governo federal e por mais de cem parlamentares, citados em processos judiciais, que estão interessados em escapar do combate à corrupção, com um novo governo que ponha fim às operações em curso da Polícia Federal.

Tais forças, com outros associados, pretendem alçar Michel Temer à condição de presidente, para que tenha o poder de sancionar os projetos que interessam a essa coalização.

O Pato Amarelo da FIESP, reproduzido em milhares de unidades pelo país e em peças publicitárias pró-impeachment que custaram milhões de reais, simboliza bem essa aliança e representa o conjunto das propostas agrupadas no Plano Temer. Trata-se, em razão do conteúdo dessas medidas, de um verdadeiro Pato de Troia — em analogia ao cavalo de madeira com guerreiros em seu interior, levado para dentro da fortaleza troiana e que causou a sua ruína.

O Plano Temer, intitulado Uma Ponte para o Futuro, engloba propostas de vários projetos de lei que estão em tramitação, muitos dos quais poderão ser aprovados rapidamente pelo novo governo. Em sua essência, ele torna sem efeitos a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, põe fim à exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal e abre brechas para a transferência de ativos do Estado para a iniciativa privada, podendo resultar na privatização completa da Petrobras. Citaremos, aqui, apenas sete pontos desse programa e alguns de seus principais impactos. Recomendamos, porém, para a elaboração de um juízo próprio e bem fundamentado pelo leitor sobre o assunto, a análise atenta não apenas do Plano Temer mas, igualmente, da Agenda Brasil, de Renan Calheiros, dos projetos de lei e de outros documentos aqui referidos.

[1] “na área trabalhista, permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”

O resultado dessa proposta é, para efeitos práticos, o fim da CLT. Pois, tudo o que for negociado nas convenções ficará acima do que está previsto nas normas legais. Como nem a Constituição, a legislação ordinária ou o Plano Temer tipificam quais são os direitos básicos não afetados por esses acordos, a referência a eles é vazia do ponto de vista legal. O que a Constituição, de fato, estabelece são Direitos Fundamentais (Art. 5º), Direitos Sociais (Art. 6º) e Direitos dos Trabalhadores Urbanos e Rurais (Art. 7º).

Assim, na medida em que “as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais“, elas podem tornar sem efeito os direitos estabelecidos no Art. 7º da Constituição, que incluem, entre outros, o direito ao salário mínimo, jornada de trabalho normal não superior a oito horas diárias, repouso semanal remunerado, férias anuais remuneradas, proteção contra demissão arbitrária, aviso prévio, seguro-desemprego, fundo de garantia, piso salarial, décimo terceiro salário, salário-família, participação nos lucros, licença à gestante, licença-paternidade e aposentadoria.

Desse modo, se houver uma negociação homologada que estipule um salário de valor inferior ao estabelecido por lei ou qualquer outra cláusula em contrariedade com as normas legais vigentes na área trabalhista, tal acordo será plenamente válido, pois a convenção coletiva irá prevalecer por sobre essas normas legais.

Outra forma de eliminar a vigência prática dos direitos trabalhistas é simplesmente sancionar o Projeto de Lei 4.330/2004, que expande o conceito de trabalho terceirizado e que foi aprovado na Câmara em 2015. Como o artigo 3º desse projeto de lei não estabelece um número mínimo de sócios para a empresa que oferece o trabalho terceirizado e não impede ao sócio da empresa de prestar o serviço por ela oferecido, torna-se possível contratar o serviço de um trabalhador-associado, que apresente o CNPJ de sua empresa como prestadora legal do serviço realizado. O contrato não seria feito como ele, como pessoa física, e sim com sua empresa, como pessoa jurídica. Com isso, a empresa contratante se livra de toda a legislação trabalhista e o trabalhador, por ser sócio-proprietário da empresa contratada, não pode mais exigir o cumprimento dos direitos previstos na CLT ou no artigo 7º da Constituição. Pois como diz o Art. 2º, § 2º desse projeto de lei, “não se configura vínculo empregatício entre a empresa contratante e os trabalhadores ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo.” Não faria, pois, sentido em falar de vinculo empregatício com relação ao sócio da empresa se este não fosse o próprio trabalhador que presta o serviço.

Com essas duas medidas, deixa de ser necessário aprovar qualquer Proposta de Emenda à Constituição – PEC para alterar o seu artigo 7º. Tais direitos continuarão escritos na Constituição, mas na prática serão letra morta, não podendo ser invocados pelos trabalhadores associados da empresa que preste serviços terceirizados ou por categorias profissionais que deles abdicarem, por força de convenções coletivas, celebradas entre organizações patronais e sindicatos, federações ou confederações de trabalhadores .

[2] “fim de todas as indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais.”

Com isso, a regra de valorização do salário mínimo, criada pela Lei 12.382/2011, será abolida. Será, igualmente, eliminada a indexação de qualquer benefício em referência a ele. Desse modo, os valores das aposentadorias e auxílios a pessoas em condição de vulnerabilidade poderão ser estipulados independentemente da variação do próprio salário mínimo.

Na prática ele deixaria de ser elemento determinante para a definição dos salários vigentes no país, abrindo-se a possibilidade dos aposentados receberem benefícios menores que o seu valor. Tais benefícios, inclusive, poderão sofrer reajustes abaixo da própria inflação, pois será abolida a indexação presente no Art. 41-A da Lei N. 11.430/2006, que assegurava o seu reajuste anual com base no INPC – Índice Nacional de Preços ao Consumidor.

[3] “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos e retorno a regime anterior de concessões na área de petróleo, dando-se a Petrobras o direito de preferência”

Transferência de ativos públicos à iniciativa privada é outro modo de se referir à privatização desses ativos. A parcela de ações da Petrobras, pertencente à União, pode estar incluída entre os ativos a serem privatizados, como desejam as lideranças do Movimento Brasil Livre que defendem abertamente a privatização da Petrobras e dos Correios. Cabe lembrar que algumas desses lideranças, que promovem o impeachment de Dilma, para que Temer assuma a presidência e implante esse programa privatizante, são apoiadas pela organização Students for Liberty, sediada em Washington, que recebe recursos de diferentes entidades, algumas delas ligadas a indústrias petroleiras norte-americanas.

Sobre o “retorno ao regime anterior de concessões na área de petróleo”, essa medida prevê claramente revogar o modelo aprovado no Governo Lula, que estabeleceu a Petrobras como única operadora, “responsável pela condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção” referentes ao pré-sal Lei 12.351/2010, Art. 2, inciso 6.

O retorno ao regime anterior, defendido no Plano Temer, vai na mesma linha do PL 4.567/2016 que dá continuidade, na Câmara, à tramitação do Projeto N.131/2015 de autoria de José Serra, já aprovado no Senado. Esse projeto retira da Petrobras a condição de única operadora na exploração do pré-sal e permite que empresas estrangeiras possam formar consórcios para explorar essas jazidas, facultando à Petrobras participar ou não desses consórcios, criando assim as condições legais para a existência de consórcios de empresas estrangeiras que explorem o pré-sal sem a participação da Petrobras.

Conforme noticiou a imprensa, lideres do PSDB afirmaram que o partido poderia aderir ao Governo Temer, caso José Serra fosse Ministro da Fazenda. Com isso, Serra teria papel relevante na definição de políticas econômicas envolvendo também a licitação de blocos do pré-sal, que poderiam ser vencidas por consórcios de empresas estrangeiras sem a participação da Petrobras, e explorados não mais sob o modelo de partilha instituído no Governo Lula mas sob o modelo de concessão vigente no Governo Fernando Henrique Cardoso. Com isso, o país cederia o petróleo ao consórcio estrangeiro em troca dos valores contratados, mas perderia o direito a qualquer quota do próprio petróleo extraído pelo consórcio.

Por sua vez, sobre as “parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”, isso implicaria, por exemplo, em repassar menos recursos ao SUS para transferi-los à rede privada de saúde, fragilizando os serviços públicos nessa área e fortalecendo a empresas que atuam com fins lucrativos no setor. O mesmo poderia ocorrer com relação ao ensino superior ou qualquer outro serviço público. A prestação de tais serviços pelas empresas parceiras, com fins lucrativos, implicaria, possivelmente, na cobrança de uma parte do serviço a ser paga pelo usuário e de outra parte a ser coberta pelo Estado.

Cabe lembrar que a Agenda Brasil, documento apresentado em agosto de 2015 por Renan Calheiros, propunha o debate sobre a extinção da gratuidade no serviço público de saúde, com a “possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda”.

Por outra parte, está em tramitação a PEC 451/2014, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que altera o Art. 7º da Constituição, incluindo o inciso 35, instituindo um “plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica.” Com isso, todas as empresas deveriam contratar um plano de assistência à saúde para os seus trabalhadores. E esse plano passaria a ser considerado como forma de garantia fundamental” no asseguramento do direito à saúde. Com isso, retira-se do Estado a obrigação de assegurar o direito social à saúde, gratuito e universal, por meio de sistema público — no caso, o SUS — e cria-se um plano de assistência à saúde, a ser assegurado pelo setor privado para quem esteja empregado. Cumpre recordar que o PL 930/2011, que visava “instituir dedução do imposto de renda das pessoas jurídicas, das despesas com plano de saúde pagas pelo empregador em benefício do empregado” foi arquivado, em 2013, por não indicar o impacto orçamentáriofinanceiro da renúncia de impostos. Mas nada impede que ele seja ressuscitado, com algumas alterações, sob a lógica de estabelecer “parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”.

Essas três propostas — de Temer, Renan e Cunha — tergiversam sobre o Artigo 196 da Constituição, que afirma: “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”. Assim, cada cidadão, pagando impostos, financia o SUS e tem o mesmo direito que qualquer outra pessoa em usufruir do sistema, em igualdade de condições, segundo a sua necessidade, recebendo a prestação de um serviço público que deve ser de boa qualidade. Qualquer alteração da lei precisa visar à melhoria da qualidade do serviço público oferecido e não ao aumento dos lucros do setor privado nessa área.

[4] “construir uma trajetória de equilíbrio fiscal duradouro, com superávit operacional e a redução progressiva do endividamento público;”

Como há uma redução de receitas do Governo Federal em razão da crise econômica, esse equilíbrio será realizado cortando gastos. Mas, seguramente, não serão cortados os pagamentos da dívida pública, que remuneram investidores privados com as taxas de juros praticadas pelo Banco Central, e sim os gastos de custeio e das políticas sociais, afetando os serviços oferecidos à classe média e às populações mais pobres do país.

[5] “estabelecer um limite para as despesas de custeio inferior ao crescimento do PIB, através de lei, após serem eliminadas as vinculações e as indexações que engessam o orçamento

Com a eliminação das vinculações e indexações, cria-se um novo regime orçamentário, que põe fim ao modelo atual de financiamento da Educação e da Saúde Pública.

No caso da educação, o Art. 212 da Constituição estabelece aos municípios e estados a aplicação de no mínimo 25% da receita de impostos e de transferências recebidas. Para a União, o percentual é de 18%. No caso da saúde, a Lei Complementar Nº 141/2012 estabelece aos municípios e Distrito Federal a aplicação mínima de 15% da arrecadação dos impostos e, aos estados, 12%. Já no caso da União, o valor corresponde ao montante empenhado no último exercício, acrescido, no mínimo, do percentual de variação do PIB no ano anterior ao da lei orçamentaria.

Com o Plano Temer, serão abolidas essas vinculações e indexações. Por outra parte, a evolução das despesas de custeio, necessárias à prestação de serviços de saúde, educação, etc, será sempre menor que o crescimento do PIB, justamente para que sobre mais recursos para o pagamento das dívidas aos especuladores no sistema financeiro.

[6] “realizar a inserção plena da economia brasileira no comércio internacional, com maior abertura comercial e busca de acordos regionais de comércio em todas as áreas econômicas relevantes – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – com ou sem a companhia do Mercosul, embora preferencialmente com eles.”

Com essa medida, ao invés do fortalecimento do Bloco dos Brics ou do Mercosul, busca-se a inclusão do Brasil, de forma subordinada e plena, aos acordos econômicos que os Estados Unidos hegemonizam no âmbito da Ásia e no Atlântico Norte. Tem-se, portanto, uma regressão nos acordos do Mercosul em favor de acordos com a Europa e os Estados Unidos.

[7] “promover a racionalização dos procedimentos burocráticos e assegurar ampla segurança jurídica para a criação de empresas e para a realização de investimentos, com ênfase nos licenciamentos ambientais que podem ser efetivos sem ser necessariamente complexos e demorados; “

Com a alteração dos licenciamentos ambientais, simplificando-os e agilizando-os para facilitar investimentos do capital nacional e internacional, o Brasil poderá, de fato, retroceder muito nas poucas conquistas que tivemos nessa matéria, a duras penas, nos últimos governos. O vazamento da lama da Samarco e da Vale do Rio Doce é uma prova cabal de como a simplificação de assuntos complexos e a falta de um monitoramento público sobre as ações dessas empresas privadas podem gerar impactos irreparáveis, a comunidades humanas e aos ecossistemas.

Em síntese, quem ganha e quem perde com um possível Governo de Michel Temer?

Sob o aspecto econômico, ganham: os grandes grupos privados, com a eliminação ou redução de encargos trabalhistas e com a redução de impostos, aumentando suas taxas de lucro; as companhias estrangeiras que atuam no ramo de petróleo e derivados, que poderão atuar como operadoras na exploração do pre-sal; corporações internacionais favorecidas com as privatização de ativos da União; investidores nas bolsas de valores, com o movimento dos capitais externos que entrem no país; os especuladores com a política cambial; os grandes bancos e especuladores com a política monetária; e os grandes grupos de mídia, com a reconcentração das verbas de publicidade do Governo Federal em seus veículos, pondo fim ao processo de desconcentração e pulverização desses recursos, adotado pelos governos Lula e Dilma — e que foi aprofundado a partir de 2015 —, visando distribuir esse recurso pelo território nacional e alcançar veículos regionais e menores.

Somente a TV Globo e suas cinco emissoras receberam R$ 6,2 bilhões por veiculação de publicidade federal nas gestões de Lula e Dilma, até 2014. A revista Veja recebeu R$ 700 milhões. Cerca de R$ 730 milhões foram para os jornais O Globo, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e Valor Econômico. Com o processo de desconcentração e pulverização da publicidade federal, as emissoras da Globo que detinham 49% de toda verba estatal de publicidade em 2002, no final do governo de Fernando Henrique Cardoso, e que a chegaram a 59% no governo Lula, caíram para 36% no final do primeiro Governo Dilma. A revista Veja, que chegou receber R$ 43,7 milhões de verbas federais em 2009, caiu para R$ 19,9 milhões em 2014. Foi uma perda de receita muito grande para os veículos desse oligopólio de mídias de massa.

Vale lembrar que o PL 7.460/2014 — apresentado por Jorge Bittar (PT) e Luciana Santos (PCdoB) — contrariava frontalmente os interesses econômicos do grupo dominante de empresas de mídia no país, particularmente, os interesses do Grupo Globo. Com a aprovação desse projeto de lei, o Governo Federal passaria a destinar 30% das verbas de publicidade para as regiões norte, nordeste e centro-oeste e 30% das verbas para mídias alternativas. O projeto instituía o Serviço de Radiodifusão Comunitária e estabelecia “critérios para promover a desconcentração, pela administração pública, da contratação dos serviços de publicidade prestados por intermédio de agências de propaganda”. Embora tenha tido parecer favorável na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em 4/12/2014, o projeto de lei foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara dos Deputados menos de um mês depois, em 31/01/2015. Com base nesses critérios, a Rede Globo, que recebeu R$ 6,2 bilhões em 12 anos, receberia algo como R$ 3 bilhões — mesmo mantendo sua política de bônus de volume, que atrai para si a veiculação das campanhas das agências de propaganda, que ficam com um percentual do dinheiro público destinado a essa veiculação. Essa desconcentração de publicidade federal acabaria por diminuir a hegemonia do reduzido grupo de empresas de mídia que domina a comunicação de massa no Brasil.

Assim, com a deposição do Governo Dilma, a grande mídia em geral, controlada por umas poucas famílias em nosso país, e a Globo em particular, saem vitoriosas, e poderão recuperar o faturamento que haviam perdido com a desconcentração da publicidade do Governo Federal e das empresas estatais.

Por outro lado, ainda sob o aspecto econômico, perde a maior parte da população brasileira, com a redução de direitos sociais e trabalhistas. O fim da exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal, o fim do regime de partilha do petróleo extraído e a possível privatização dessa empresa como ativo a ser transferido à iniciativa privada, suprimem a soberania energética do Brasil na área do petróleo e impactam sobre o Fundo Social, que destina 50% de seus valores para a aplicação integral nas políticas de educação. Por sua vez a redução de impostos fará com que haja menos dinheiro para o orçamento do Governo Federal e com isso, como não será reduzido o pagamento da dívida pública, haverá menos recurso para saúde, educação e políticas de transferência de renda. Isso impacta sobre a classe média e os micro-empresários, pois com a redução do poder de compra da maioria da população, inverte-se a lógica de crescimento com distribuição de renda que marcou o período de 2003 a 2014. Perdem, igualmente, os veículos de comunicação regionais e menores, alcançados pela desconcentração de recursos da publicidade federal que deve ser abolida com o novo governo.

Sob o aspecto político, quem mais se beneficia com o impeachment são os partidos que ocuparão o governo com suas medidas privatizantes e os políticos e empresários que desejam pôr fim às investigações de corrupção no país. Como os Governos Lula e Dilma fortaleceram os instrumentos de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011) e empoderaram a Polícia Federal na luta contra a corrupção, trata-se de depor o atual governo para que não se aprofunde a investigação sobre todos os partidos, empresas, políticos e empresários envolvidos em processos de corrupção.

Por outra parte, não havendo crime de responsabilidade da presidente, como tipificado na Lei 1.079/1950, a sua deposição, com o emprego arbitrário e ilegal do instrumento do impeachment, converte tal deposição em golpe de Estado. Perdem com isso, todas as forças políticas que defendem a democracia no Brasil. A intolerância política tende a se acirrar, juntamente com diferentes formas de preconceito e discriminação contra os segmentos sociais que eram o público de diferentes programas que serão abolidos ou terão seus recursos drasticamente reduzidos.

Esses sete pontos que analisamos são apenas uma pequena amostra do recheio amargo do Pato de Troia, que a FIESP infla à frente de sua sede na Avenida Paulista, em todas as manifestações pró-impeachment por ela convocadas juntamente com outras entidades, que lutam por esse golpe em favor de seus interesses privados e contra a democracia e o povo brasileiro.

Mais do que nunca, cabe a sociedade se informar por meio de fontes diversas, averiguar criticamente as informações recebidas e se mobilizar para conter esse golpe jurídico-parlamentar. Pois como se vê, quem pagará o pato do Plano Temer é a maioria da população brasileira, especialmente a classe trabalhadora e os segmentos mais empobrecidos.

Publicado em:

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/plano_temer.pdf

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/plano_temer.htm

Inflação com Recessão e o Golpe do Impeachment

Euclides André Mance
Curitiba, 16/Abril/2016

Um dos argumentos apresentados em favor da deposição do atual Governo é a necessidade de reverter a crise econômica e conter a inflação, com um radical corte nos gastos públicos. Mas esse argumento é falho por dois motivos. Primeiro, porque a ocorrência de alguma crise econômica não está prevista em lei como justificativa para a realização de um impeachment, convertendo-o, se praticado por esse motivo, em golpe de Estado. Em segundo lugar, porque a existência simultânea de inflação com recessão demonstra que o motivo da crise que estamos vivendo não está no gasto do Governo e sim na busca de recomposição da taxa de lucro pelas empresas capitalizadas, como demonstraremos neste texto.

Dado que a economia brasileira é hegemonicamente capitalista, necessitamos analisar a relação existente entre oferta e demanda, produção e consumo, investimento e lucro para entendermos as razões de haver simultaneamente inflação e recessão.

Toda a produção econômica no país, sob a ótica do consumo, pode ser desagregada considerando-se os quatro componentes de demanda do Produto Interno Bruto PIB: consumo das famílias, consumo do governo, formação bruta de capital fixo (isto é, o investimento das empresas em instalações, máquinas, ferramentas e outros itens que ampliam a capacidade produtiva instalada) e a balança de importação e exportação. Em outras palavras, se uma empresa produz um bem ou serviço, quem o consome são famílias, governos, outras empresas ou atores externos.

Tabela 1 – Componentes da Demanda no PIB – 2000 / 2015

Fonte: IBGE

Quando aumenta a demanda por consumo em qualquer um desses segmentos mas não aumenta a oferta de produtos para o seu atendimento, os preços tendem a subir e temos a inflação por pressão de demanda. Mas, se o consumo total diminui e o PIB cai, como está acontecendo no Brasil, como pode haver inflação com o aumento de preços dos bens e serviços?

A causa desse fenômeno não é o consumo do Governo que recobre os gastos de todos os governos em nível municipal, estadual e federal. Pois como vemos na Tabela 1, ao longo desses 13 anos, esse consumo ficou ligeiramente abaixo do praticado em 2002, no último ano do governo Fernando Henrique Cardoso com uma única exceção em 2015, com uma variação de 0,4% acima.

Considerado em números absolutos, descontada a inflação do período, para comparação com os valores de 2013, percebe-se que esse valor se manteve praticamente estável, como mostra a Tabela 2. Portanto, a causa da inflação no país não é o consumo do Governo.

Tabela 2 – PIB e Consumo do Governo em Trilhões de Reais

– Base de Comparação 2013

Ano

PIB

Consumo do Governo

(Porcentagem)

Consumo do Governo

(Absoluto Nominal)

Inflação

Anual

Consumo do Governo

(Absoluto Real)

Base de comparação 2013

2013

5,316

19,0 %

1,010

6,2 %

1,010

2014

5,521

19,5 %

1,076

6,3 %

1,008

2015

5,904

20,2 %

1,192

9,0 %

1,015

A existência simultânea de recessão e de inflação no país somente pode ser compreendida quando analisamos a situação financeira geral das empresas e as taxas de lucro que elas praticam na concorrência de mercado para o atendimento das demandas existentes.

Em geral, do ponto de vista dessa concorrência, podemos dividir as empresas em dois grupos. Uma parte delas, dominando seus mercados, não está endividada e possui uma reserva de valor econômico para novos investimentos (fundo de investimento) e para cobrir o desgaste de sua estrutura produtiva (fundo de depreciação). Esse dinheiro, normalmente, está aplicado em algum investimento, seja de renda fixa, remunerado com juros, seja de renda variável, aplicado em ações ou dólar. Já o valor de seu capital de giro está investido em salários, matérias-primas e outros componentes de produção, resultando nos produtos que são vendidos, permitindo a obtenção de valores que asseguram um novo giro produtivo e a realização de um valor a mais, na forma de lucro. A relação entre o lucro obtido e o investimento total realizado no giro produtivo (incluindo todos os custos fixos e variáveis) é denominada taxa de lucros.

Outra parte das empresas, entretanto, perdendo mercado para essa primeira parcela, acaba endividada e sem reservas para novos investimentos ou para cobrir o desgaste de suas estruturas produtivas. Estas empresas não têm ganhos de aplicação financeira e, pelo contrário, necessitam pagar juros aos bancos pelos empréstimos contraídos. E, muitas vezes, por diferentes motivos, se endividam ainda mais, para recompor o seu próprio capital de giro e seguir produzindo e vendendo, mesmo operando com prejuízo, na esperança de obterem melhores resultados nos meses seguintes.

Ora, como o capitalismo, em qualquer lugar do mundo, funciona com base na taxa de lucros, ela é o elemento central para entender a crise, a inflação e a recessão, também no Brasil.

Durante 12 anos, o país, com alguma oscilação, esteve em trajetória de crescimento econômico, pois a distribuição de renda aumentou o consumo das famílias. O aumento desse consumo elevou a atividade do comércio e da produção e, com isso, também a arrecadação do Governo, permitindo expandir os serviços públicos em proporção estável ao crescimento do PIB. A política de comércio internacional incrementou as exportações do país, isto é, elevou o consumo externo da produção interna. E os empresários ampliaram a formação bruta de capital fixo, investindo em instalações, máquinas e ferramentas, alcançando melhor produtividade o que igualmente ativou as vendas dos fornecedores desses equipamentos. E, assim, a economia cresceu, distribuindo renda e ampliando a capacidade produtiva do pais, que alcançou a sexta posição entre as maiores economias do mundo, reduziu em 75% a pobreza extrema e retirou 36 milhões de pessoas da pobreza.

Como o volume total dos valores comercializados no país aumentou, ano a ano, as empresas capitalizadas, disputando mercados com a concorrência, foram abaixando suas taxas de lucros, o que lhes permitiu ampliar seus negócios e o seu volume total em vendas e, com isso, o volume total de lucros realizados. A lógica é simples. Se a empresa vende 200 com 5% de taxa de lucro, obtém 10 de benefício. Mas, se aproveitando a sua estrutura, amplia a escala de operação e vende 400 com 4% de taxa de lucro, obtém 16 de ganho. Esse incremento de escala das empresas capitalizadas lhes permitiu não apenas ampliar o seu capital de giro, mas, igualmente, o montante de valor preservado em seus fundos de investimento. Por outro lado, muitas empresas que perderam esses mercados se endividaram, tentando enfrentar a concorrência, praticando preços com margens de lucro cada vez menores e menos factíveis à sustentação de sua própria atividade.

Nesse contexto, a oferta abundante de crédito, com taxas de juros mais baixas, foi dirigida tanto para o consumo quanto para a produção. E, como resultado dessas operações, uma parte da população e uma parte das empresas se endividou para além da conta. Mas, como é intrínseco ao capitalismo, os ganhos seguintes com o recebimento dos salários e com a realização das vendas pagavam as dívidas anteriores. E, assim, a economia foi crescendo com os atores rolando seus compromissos de pagamento.

Porém, entre os fatores essenciais da produção e da logística estão a energia elétrica e os combustíveis. Sem eles, nada funciona. A partir de 2013, a falta de chuvas encareceu a energia elétrica no Brasil, com a ativação das termoelétricas, o que ampliou os custos produtivos e impactou na formação de preços dos produtos industrializados. Por outra parte, com a ampliação da produção do petróleo de xisto nos Estados Unidos, com a produção e venda de petróleo por grupos terroristas no Iraque e na Síria, capitalizando seus exércitos, e com a alteração de produção em países árabes visando enfrentar ambas situações, verificou-se uma queda acentuada no preço do petróleo no mercado internacional a partir de 2014 despencando o preço do barril brent de 119 dólares em junho daquele ano para 30 dólares em janeiro de 2016 , obrigando todas as empresas produtoras, inclusive a Petrobras, a recomporem suas estratégias e o preço dos combustíveis e derivados, para manterem sustentáveis as suas operações. Em maior ou menor medida, tais ajustes, de forma direta ou indireta, impactaram na inflação geral desses países.

Venezuela, Rússia e Irã, que têm no petróleo um dos principais elementos de sua pauta de exportações, foram drasticamente afetados. No caso do Brasil (13º produtor mundial, mas que não é grande exportador), estados e municípios, que tem nos royalties do petróleo uma de suas importantes fontes de arrecadação, sofreram uma redução drástica de seus orçamentos, levando a uma crise aguda na manutenção de serviços públicos como no caso do Rio de Janeiro, onde tal arrecadação caiu R$ 900 milhões em 2015.

Tabela 3 – Taxa de Inflação Anual

Pais

2013

2014

2015

Brasil

6,2

6,3

9,0

Rússia

6,8

7,8

15,5

Venezuela

40,6

62,2

N/D

Irã

39,3

17,2

13,7

No Brasil, o aumento nos preços de energia e de combustíveis foi responsável por um quarto da inflação apurada em 2015. Elevando custos produtivos e de logística, esse aumento pressionou para baixo as taxas de lucro das empresas. E para recompor suas margens de lucro, elas começaram a subir os preços dos produtos, pressionando a inflação para cima. Tal elevação, entretanto, não visava apenas repassar esses custos ao preço final, mas, igualmente, ampliar a própria taxa de lucro praticada, para alcançar margens maiores que as anteriores, pois começava a haver uma redução no consumo, em razão do limite de endividamento alcançado pelos consumidores, diminuindo com isso o faturamento das empresas.

Em 2013, o Banco Central havia começado um movimento de elevação da taxa de juros, para conter a inflação, chegando a 11,75% no final de 2014. No primeiro semestre de 2015, cedendo ao consenso do “mercado”, da mídia e da oposição, ele acentuou ainda mais essa elevação, chegando a 14,25% em julho. Mas o “mercado”, a mídia, a oposição e o Banco Central, estavam equivocados, por duas razões básicas.

Em primeiro lugar, porque a elevação de preços verificada em 2014 não resultava de um excesso de demanda em relação à oferta e sim, principalmente, em razão da elevação de custos produtivos e de comercialização, relacionados à energia e combustível, e da busca de uma recomposição da taxa de lucros pelas empresas.

Em segundo lugar, porque, estando as taxas de lucro em níveis baixos, a elevação da taxa de juros acabaria por reduzir a própria oferta de produtos. Em outras palavras, quando a taxa real de juros está acima da taxa real de lucros, as empresas diminuem o volume de produção e transferem uma parte do capital de giro para aplicações no sistema financeiro, desde que isso não acarrete em perda de seus mercados. Fazem isso porque os seus ganhos obtidos no sistema financeiro são maiores e mais seguros.

Essa redução da produção, por sua vez, implica necessariamente na diminuição da oferta de produtos, o que impacta igualmente na inflação. E, também, no aumento do desemprego que, por sua vez, reduz o consumo, que leva em seguida à redução de oferta e a uma migração ainda maior de valores, antes investidos em capital de giro, para serem alocados em aplicações financeiras.

Assim, a elevação da taxa de juros em 2015, não apenas não teve impacto imediato sobre a inflação pois tal elevação não reduziu o custo da energia, dos combustíveis ou dos derivados do petróleo na composição dos preços dos produtos básicos que a população necessariamente tem de continuar a consumir mas agravou, ainda mais, a situação das empresas endividadas e que disputavam mercados em condições subalternas.

Nesse novo cenário, de redução da atividade econômica, tais empresas começaram a quebrar, deixando mais mercado para as outras que tinham reservas aplicadas no sistema financeiro e que puderam, então, continuar a subir as taxas de lucros, aumentando os preços, pela falta de concorrentes. Em outras palavras, passou a haver inflação com recessão.

Parte desse fenômeno de elevação de preços, no caso das empresas endividadas, não resulta da ganância ou cupidez do empresário por lucros, mas porque, para algumas dessas empresas que operam no negativo, dado que o volume total comercializado diminuiu, não há mais como cobrir os seus custos e o pagamento dos empréstimos realizados sem aumentar o preço dos produtos comercializados.

Assim, pelas duas vias, seja reduzindo a produção para investir no sistema financeiro, seja pela quebra das empresas endividadas, tem-se o aumento do desemprego e a redução do consumo das famílias, reduzindo a arrecadação do Governo e forçando, igualmente, a redução de seu consumo. Essa redução do consumo das famílias e do consumo do Governo impacta diretamente na venda das empresas. Estas, por sua vez, com capacidade produtiva ociosa, não realizam investimento em formação bruta de capital fixo, caindo também esse componente do PIB. E as que estão endividadas, num ambiente de elevação de juros, buscam subir os preços para reequilibrar suas contas. Por fim, como o preço dos produtos exportados pelo país caiu no mercado externo, igualmente entrou menos recurso pela via da exportação, prejudicando também esse componente do PIB. A Vale do Rio Doce e suas associadas, por exemplo, com a redução do preço dos minérios no mercado internacional, tiveram de ampliar o volume de vendas para conseguir equilibrar suas posições. Porém, a barragem de Mariana não comportou o volume ampliado de lama nela depositado, resultante da ampliação dessa produção. E o resultado foi o rompimento da barragem.

Portanto, uma análise cuidadosa da economia real, com base em seus indicadores, absolutos e relativos, nos comprova que a oscilação positiva de 0,7 % no consumo do Governo em 2015 não pode ser a causa da inflação no país.

Do mesmo modo, quando analisamos com cuidado o Plano Temer, vemos que as medidas nele contidas estão focadas em esvaziar direitos trabalhistas e reduzir impostos, buscando, com isso, reduzir os custos das empresas capitalizadas e ampliar suas taxas de lucro. Visam, igualmente, reduzir os gastos do Governo com políticas sociais, para assegurar recursos necessários ao pagamento dos juros da dívida pública, remunerando títulos do Tesouro Nacional, que enriquecem investidores privados.

Em síntese, a persistência da inflação no atual ambiente de recessão econômica não é provocada pelo consumo do Governo, pois este, permaneceu relativamente estável nesse período, não representou uma demanda superior à capacidade de oferta existente e sustentou as vendas de uma parte importante das empresas no país, que, sem esse consumo, teria de gerar mais desemprego e recessão. Igualmente não é provocada pela parcela de micro e pequenas empresas endividadas que, para vender os seus produtos, buscam abaixar, ao máximo possível, os preços praticados, reduzindo as taxas de lucros. Mas pela parcela do grande capital e das micro, pequenas e médias empresas capitalizadas, que aproveitam o momento da crise para empoderar-se.

Esta parcela enxerga na atual crise econômica uma oportunidade para aumentar seus ganhos, transferindo para aplicações de renda fixa uma parte do que antes era investido como capital de giro na atividade produtiva, aguardando a quebra dos concorrentes endividados, para dominar os seus mercados. Aproveitam, igualmente, a atual crise política para forçar os governos a subtraírem direitos trabalhistas, reduzirem impostos e lhes concederem benefícios, para com isso ampliarem suas taxas de lucro e o volume total do lucro obtido. Desejam, pois, não importa como, ampliar as suas taxas de lucro, mesmo que seja com um golpe de Estado, operado através de um impeachment sem fundamento legal, que resulte na supressão de direitos trabalhistas, redução de impostos e transferência de ativos do Estado para a iniciativa privada.

Considerando a história da economia brasileira nos últimos 30 anos, o cenário ideal de acumulação de capital e de concentração de renda para essas empresas se caracteriza por taxas elevadas de lucro e de juros, que ampliem seus ganhos em suas duas formas básicas de operação, com relação ao seu capital de giro, investido na produção, e com relação ao seu fundo de investimento, aplicado no sistema financeiro, como se verificou, por vários anos, durante o Plano Real.

Sobre isso, vale recordar a análise de Theotônio dos Santos, em Os Fundamentos Teóricos do Governo Fernando Henrique Cardoso:

“[…] o mais grave é o efeito destas altíssimas taxas de juro (que chegam a passar de 50% ao ano […]) sobre a taxa de lucro média do país. Não é possível pedir lucros baixos a empresários que podem obter mais de 50% de juros anuais sem nenhum risco! […] Com a taxa média de juros que o governo assegura, a taxa de lucros terá que ser superior aos 60% , o que representa, em consequência, mais de 6 vezes a média mundial […]

Assim, o impeachment, sob o aspecto econômico, é um golpe contra os trabalhadores. Pois, se há inflação com recessão, isso resulta da ação das empresas em recompor seus preços para aumentar suas taxas de lucro. A pressão inflacionária, ocasionada pela elevação do preço da energia elétrica e do combustível em 2014, levou a uma necessária recomposição de custos e preços. Mas, a existência de inflação com recessão, após um ano dessa recomposição, comprova que o problema real é a busca pelas empresas em recompor a sua taxa de lucros em face da redução das vendas, tanto para as famílias, quanto para o exterior, quanto para as empresas, quanto para o Governo.

Reduzir o consumo do governo, como pretende a oposição, agravará ainda mais a crise, forçando a quebra das empresas mais frágeis para fortalecer as que estão capitalizadas. Esse agravamento, entretanto, é premeditado, para ampliar a concentração de capitais e para justificar as medidas a serem impostas, tanto de supressão de direitos trabalhistas e sociais que penalizarão aos trabalhadores e aos mais pobres — quanto de privatização de empresas públicas.

A solução do problema, em nossa visão, passa por outra lógica, requerendo o fortalecimento e multiplicação das empresas autogestionadas de economia solidária. Elas devem, preferencialmente, atuar em cadeias produtivas onde se verifique maior pressão inflacionária, criando alternativas de comercialização, produção e postos de trabalho. Partindo do que é demandado pelo Consumo das Famílias e pelo Consumo do Governo, elas organizam seus planos de produção sob demanda, ampliando a oferta, de maneira sustentável. Isso requer a organização de Circuitos Econômicos Solidários que gerenciam estruturas de comercialização, intercâmbio e fundos de investimento. Os recursos desses fundos, compostos pelos fundos de investimento das empresas participantes e pelos excedentes gerados no Circuito, são destinados, prioritariamente, à libertação de forças produtivas, isto é, para a implantação de novas instalações de comercialização e de produção ou para a aquisição de plantas já existentes de empresas endividadas, a serem convertidas ao modo de operação autogestionado da economia solidária. Pela mediação desses Circuitos, as empresas participantes são conectadas a Redes Colaborativas de Economia Solidária, que as integram a provedores, clientes e comunidades, ampliando desse modo a sua capacidade de sustentação e a geração coletiva de excedentes, que são canalizados ao Fundo de Investimento, ampliando a capacidade do próprio Circuito em realizar a libertação das forças produtivas, como analisamos em Uma Alternativa Econômica para o Brasil.

Esse é um caminho possível para a saída da crise econômica atual: investimento nas cadeias produtivas estratégicas para o atendimento do Consumo das Famílias e Consumo do Governo, promovendo a maior distribuição de renda possível com os resultados obtidos em ações de economia solidária — que não se reduz a uma economia de sobrevivência ou economia de resistência, mas que se expande sustentavelmente como economia de libertação.

Assim, os espaços deixados pela falta de investimento das empresas capitalistas nesse período de crise, podem ser cobertos por empresas autogestionadas da economia solidária, operando em redes colaborativas. O crescimento dessas redes possibilitará, progressivamente, expandir sua atuação pelo conjunto das cadeias de consumo, comercialização e produção no país. O resultado final desse processo deve ser a organização sistêmica de outro modo de apropriação do valor econômico e de outro modo de produzi-lo, fundados na autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades, que avança para a realização de uma outra formação social, plenamente democrática, justa e solidária.

Publicado em:

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/inflacao_com_recessao.pdf

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/inflacao_com_recessao.htm

Impeachment: de que lado o deputado estará?


Euclides André Mance
Curitiba, 15/Abril/2016
Senhor Deputado

 

Por que lideranças da organização Students for Liberty, sediada em Washington, operam no Brasil promovendo o impeachment da atual presidente e a privatização da Petrobras, recrutando e treinando jovens em favor dessa causa? É isso permitido por lei?

Somente no mês de janeiro deste ano foram capacitadas mais de 1.000 lideranças por essa organização em nosso país.

O treinamento político desses jovens talvez inclua o mesmo roteiro apresentado em evento realizado nos Estados Unidos, em Junho do ano passado, no qual Kim Kataguiri e Pedro Ferreira, na condição de Líderes do Movimento Brasil Livre, discorreram sobre as ações pró-impeachment, sendo uma delas a realização de lobby em Brasília.

Mas por qual motivo lideranças que desejam depor o atual governo e privatizar as empresas estatais, inclusive a Petrobras, são apoiadas com recursos vindos dos Estados Unidos, da Atlas e da Students For Liberty — organizações financiadas, entre outros patrocinadores, por entidades ligadas à indústria do petróleo?

Haveria nisso algum interesse de companhias petrolíferas norte-americanas, que poderiam ser beneficiadas com a aprovação do PL 4567/2016, que suprime a exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal, e com a privatização dessa empresa, como defendem os lideres do Students for Liberty em nosso país? Kim Kataguiri afirmou à Time, ao The Guardian e repete exaustivamente à imprensa brasileira: “Nós queremos […] a privatização de todas as empresas públicas.

Para entender melhor algumas ações dos Estados Unidos e de organizações norte-americanas em relação ao pré-sal e à Petrobras, basta recordar alguns acontecimentos.

Em 2007, o pré-sal é descoberto e o Governo Lula propõe um regime de exploração para essas jazidas, que dá à Petrobras a exclusividade como operadora, contrariando interesses de empresas norte-americanas.

Meses depois, o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Clifford Sobel, em mesa-redonda realizada no Rio com dirigentes da Chevron, Exxon Mobil, Devon Energy, Anadarko e Hess Corporation, oferece a atuação da Embaixada para agir como representante das companhias petrolíferas norte-americanas em negociações que visavam reverter o marco regulatório do pré-sal em debate. Na sequência, em 2008, os EUA reativam, depois de 58 anos, a sua 4ª Frota Naval (do Atlântico Sul) para patrulhar mares latino-americanos, o que inclui a área marítima do pré-sal.

Em 2010, ainda no segundo Governo Lula, aprovou-se o marco regulatório com a Lei 12.351/2010 estabelecendo, em seu Art. 2, inciso VI, a exclusividade da Petrobras como operadora dessas jazidas, “responsável pela condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção”. Nesse mesmo ano, o Brasil ampliou a fronteira marítima para proteger as reservas do pré-sal, mas os Estados Unidos permanecem contrários a essa medida. Em dezembro de 2010, o Wikileaks revelou conversas entre o senador José Serra e lobistas do petróleo, sobre reverter o regime de exploração do pré-sal.

De abril a junho de 2013 surgem as mobilizações contra o aumento das passagens de transporte e lideranças do Students for Liberty dão origem, na Internet, ao Movimento Brasil Livre para participar nesses protestos. Em junho, Edward Snowden revela informações confidenciais da NSA – Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos e descobre-se que o email e telefone da presidente Dilma estavam grampeados. Em agosto, o Brasil cobra os Estados Unidos pela espionagem contra a presidente. No Fantástico, em 8 de Setembro, aparecem documentos vazados por Snowden, mostrando que a espionagem americana tinha por alvos prioritários não apenas a presidente Dilma mas, igualmente, a Petrobras.

Ainda nesse mês, a presidente Dilma critica a espionagem americana no discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU. Em outubro ela cancela viagem oficial aos Estados Unidos. E, nesse mesmo mês, ocorre o leilão do primeiro bloco do Pré-Sal, sem a participação de petroleiras norte-americanas.


Em março de 2014 é iniciada a primeira fase ostensiva da Operação Lava Jato, para investigar a Petrobras. Em fevereiro de 2015, José Serra apresenta o PL N.131/2015 que muda a Lei do Pré-Sal, argumentando, entre outras coisas, que “as investigações da justiça sobre negócios da Petrobras que se desenrolam desde meados de 2014 […] têm afetado a estatal, gerando cancelamentos, atrasos e desorganização de suas atividades. A sucessão de escândalos […] criaram uma situação quase insustentável […] “ para alcançar as metas previstas. E, assim, o melhor seria extinguir a exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal, com a alteração do Art. 2, inciso VI, da Lei 12.351/2010.


A partir de Abril de 2015, lideranças do Students for Liberty, na condição de líderes do Movimento Brasil Livre, conclamam a sociedade para o impeachment e pela privatização das empresas públicas. E, após um ano de mobilizações pela deposição da presidente e de vazamentos da Operação Lava Jato, com graves prejuízos à Petrobras, o Senado aprovou, em 26 de fevereiro deste ano, o projeto de lei de José Serra, dando origem ao PL 4567/2016 que agora tramita na Câmara.

Senhor Deputado, a decisão de evitar esse trágico desfecho está em suas mãos e a história cobrará, de cada parlamentar, a sua posição nesse momento de tal gravidade. Pois, como diz o juiz Márlon Reis, idealizador do projeto da Ficha Limpa, “do ponto de vista constitucional, não há cabimento para o pedido [de impeachment], porque se baseia numa falha administrativa, que apesar de considerável, jamais poderia autorizar a destituição da titular do mais alto cargo da estrutura da República. Não há fundamentos para que possa ser sequer cogitado.

Um dos reais interesses desse impeachment sem fundamento — que, por isso mesmo se converte em golpe de Estado — reside no controle das gigantescas reservas de petróleo do país, em razão do qual líderes dessa organização sediada nos Estados Unidos, apoiados com recursos externos, estariam agindo de maneira tão aberta e intensa, mobilizando a sociedade e fazendo lobby em Brasília, para depor o atual Governo e para privatizar todas as empresas públicas em nosso país. Resta agora saber de que lado o senhor está.

Publicado em:
http://solidarius.com.br/mance/biblioteca/mensagem_deputados.htm

 

 

Impeachment como Eixo de Lutas — Disputa de Hegemonia e Produção de Subjetividades

Euclides André Mance
Curitiba, 09/04/2016

Introdução

A disputas de hegemonia, na definição dos rumos adotados por uma nação, pode ser analisada sob diferentes abordagens teóricas. Cada uma delas tem suas vantagens e desvantagens. Todas, porém, tratam da correlação de forças entre atores na defesa ou combate de objetivos que se relacionam a diferentes projetos de sociedade. Um aspecto central dessa análise consiste em determinar os principais atores a serem considerados, sua identidade em relação às contradições e estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais, seu protagonismo com respeito aos acontecimentos e conflitos analisados e sua posição quanto aos objetivos e projetos de sociedade em disputa.

Considerando a conjuntura atual, tratei de alguns desses atores em O Quebra-cabeça do Golpe, evidenciando a existência de um arranjo de forças internas e externas, integradas na promoção do impeachment. Entre seus objetivos está o desmonte de direitos sociais e trabalhistas, a entrega do pré-sal a grupos internacionais com a aprovação do PL 4567/2016 de autoria do senador José Sera, que elimina a exclusividade da Petrobras na exploração dessas jazidas e a privatização de empresas públicas. Cabe salientar que a própria privatização da Petrobras e dos Correios, defendida pelo Movimento Brasil Livre, não está descartada pelo Plano Temer, pois este propõe “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias“. Sobre isso, Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre, afirma que “se o Temer for privatizar empresas públicas, […] como a privatização da Petrobras e dos Correios, nós o apoiaremos.”

Esse golpe contra a sociedade brasileira, que pretende abolir direitos dos trabalhadores, facultar a entrega do pré-sal a consórcios estrangeiros e privatizar ativos públicos, é retroalimentado, como analisei em As Provas de um Crime, por outro leque de atores que opera uma teia de violações legais, conectando vazamentos de operações judiciais, como a Lava Jato, com o poder de formação da opinião pública exercido por mídias de massa, particularmente pelo Grupo Globo, que se destaca em seu recorrente “acesso com exclusividade” a documentos sob sigilo judicial ou segredo de justiça. Exercendo esse poder, tais veículos difundem e retroalimentam uma interpretação hegemônica sobre acusações, fatos, supostos fatos, normas e valores que é favorável ao golpe.

O que pretendo desenvolver no presente texto é a reflexão sobre o modo como as forças econômicas, políticas e comunicativas que se uniram pelo impeachment, construíram um poderoso eixo de lutas que integra o combate à corrupção e a saída da crise econômica à deposição do atual governo, à extinção do PT e à execução do referido conjunto de medidas, que tramita no Congresso Nacional, agrupadas no Plano Temer.

Mais que isso, pretendo explicitar o modo como interpretantes emocionais, lógicos e (re)ativos são mobilizados para o engajamento de setores da sociedade na defesa do impeachment. E, por outra parte, apontar alguns aspectos sobre como desmontar esse eixo de lutas.

Escrevendo no calor dos acontecimentos e com o foco na análise de suas conexões, algumas passagens que seguem são compartilhadas como estão, embora a sua decantação e sua crítica rigorosa, em perspectiva histórica, seguramente permitirão no futuro reformulá-las em melhor maneira.

1. Diferentes Abordagens na Análise da Disputa de Hegemonia

O modo de analisar as disputas de hegemonia no seio das sociedades contemporâneas varia sensivelmente a depender do modelo teórico adotado. Mas, em todos eles, a identificação dos atores principais é elemento necessário para que se possa considerar a correlação de forças entre eles. Podemos mencionar, ao menos, três abordagens para identificar os atores fundamentais desses confrontos.

A primeira abordagem considera a contradição dialética entre os atores econômicos, compreendidos como mediações do capital e do trabalho, posicionando-os a partir do papel objetivo que desempenham nas relações sociais de produção do valor econômico, e no modo como se apropriam dos valores produzidos e dos meios requeridos para a sua produção, circulação e acumulação. Tais atores são agrupados em classes antagônicas, considerando, a partir de seu papel objetivo nesses processos, as contradições que tornam possível tanto a sua própria existência como atores reais, quanto a reprodução ampliada do capital com a exploração do trabalho subordinado. Tal agrupamento em classes antagônicas considera, igualmente, a práxis dos atores em relação a essas próprias contradições, pois, em razão dos fenômenos de alienação e de ideologia, eles podem atuar na defesa de objetivos específicos que são contraditórios aos interesses gerais de sua própria classe.

A partir da contradição essencial entre capital e trabalho e do modo como os atores se posicionam em relação a ela, busca-se analisar como tais classes de atores se comportam, tanto em relação à formação social existente, considerando suas dimensões econômica, politica, militar, social e cultural, quanto em relação aos diferentes projetos de sociedade em disputa, os quais compõem objetivos a serem alcançados nesses diferentes âmbitos, no curto, médio e longo prazos.

Analisam-se, igualmente, as alianças entre os atores nessas diferentes esferas, a partir de seu posicionamento em relação às contradições fundamentais do sistema, que engendram blocos sociais na forma de sujeitos coletivos, congregando conjuntos de grupos particulares, que sustentam ou almejam a hegemonia de um mesmo projeto político como referência para a organização da sociedade.

A disputa de hegemonia, assim compreendida, ocorre tanto na esfera da sociedade civil, com ações econômicas e culturais, quanto no seio do Estado, por meio de seus aparelhos, mesclando-se processos de formação de consensos e de ação coercitiva, visando a realização dos objetivos compostos no projeto político defendido. A disputa de hegemonia não se refere, portanto, apenas ao Estado em sentido estrito, mas ao próprio bloco histórico em sentido amplo, como unidade real que compõe as relações sociais nos campos econômico, politico e cultural, a teoria e a prática dos atores, as forças materiais e a força das ideologias.

Uma segunda abordagem, por sua vez, parte dos conflitos existentes nas diferentes esferas da sociedade que dão origem a distintos movimentos e organizações de caráter cultural, social, político e econômico. A partir desses conflitos, centrados sobre diferentes demandas específicas, identificam-se os atores em confronto. Estes, por sua vez, são agrupados investigando-se características e posições similares ou comuns, assumidas com respeito ao restante dos conflitos, em favor da manutenção ou da transformação de estruturas e padrões organizativos da sociedade, que causam a própria insatisfação das demandas e levam ao surgimento dos conflitos. Em seguida, são investigadas as múltiplas relações de confronto e de solidariedade que esses movimentos e grupos de atores mantém entre si, considerando como buscam manter ou subverter, coletivamente, tais aspectos da formação social existente.

Analisa-se, em seguida, o modo como suas demandas e propostas são reformuladas politicamente por eles mesmos ou por terceiros e os projetos de sociedade que resultam da articulação orgânica dessa reformulação, os quais apontam para a manutenção ou transformação das relações econômicas, políticas, culturais e sociais vigentes. Investiga-se, então, em que medida a correlação de forças entre esses conjuntos de atores, considerando as plataformas que contemplam os seus principais objetivos e bandeiras, avança ou não na transformação das estruturas e padrões organizativos da sociedade, e qual dos projetos políticos em disputa é melhor atendido com a sua realização.

Em, síntese, partindo-se dos conflitos nos âmbitos econômicos da produção e reprodução social e nos campos cultural, social e político, investiga-se a posição dos atores quanto a esses diferentes conflitos, as alianças que eles estabelecem entre si conformando blocos que defendem plataformas comuns, compondo diversos objetivos particulares desses diversos atores, como referência de horizonte a ser alcançado para a organização da sociedade, na perspectiva dos projetos políticos em disputa.

Sob uma terceira abordagem é possível realizar a análise de hegemonia considerando-se os fluxos materiais, de poder e de conhecimento a partir dos quais os atores sociais se constituem e retroalimentam suas iniciativas de luta pelo próprio controle sobre a produção, apropriação e destinação dos diferentes recursos movimentados nesses fluxos, que são a sua própria condição de existência ou, dito de outro modo, a base de sua própria realidade, reprodução e expansão. Assim, analisando a conexão e retroalimentação, tanto dos fluxos de meios econômicos e de valores econômicos, sua produção, distribuição e apropriação, quanto dos fluxos de poder político e social, como também dos fluxos de informação, sua interpretação e comunicação — considerando as múltiplas interdependências e retroalimentação entre todos esses fluxos — pode-se identificar diferentes classes e grupos de atores, que as conexões desses fluxos fazem surgir. Pode-se, identificar, também as relações de contradição desses atores com outros que lhes antagônicos ou de colaboração entre pares. E, igualmente, identificar como a reorganização dos fluxos materiais, de poder e de conhecimento dos quais participam permite empoderar ou enfraquecer atores, fortalecer ou debilitar estruturas sociais, reproduzir a formação social existente ou dar origem a uma nova formação social.

Essa abordagem permite compreender os eixos de luta em torno dos quais os atores organizam sua práxis, para expandir a sua hegemonia sobre as atividades econômicas, politicas e culturais ou para contrapor-se à hegemonia adversária, obrigando o deslocamento de suas forças e de sua atenção para outro campo ou foco dos confrontos. Permite compreender também o caráter de afirmação ou de antagonismo desses eixos de luta em relação aos diferentes projetos de sociedade em disputa e em relação à formação social existente.

Nessas três abordagens, identificados os principais atores, busca-se, na análise de um dado período, selecionar os principais acontecimentos de natureza econômica, social, política e cultural, identificando mediações que apontam para tendências de seu desdobramento em possíveis cenários, destacando o que muda e o que não muda em relação à situação analisada, relacionando cada um desses acontecimentos aos cenários de conjunto e reformulando tais cenários a partir da evolução dos acontecimentos. Desse modo, busca-se perceber como a alteração na correlação de forças entre os atores aponta para realização de um ou outro desses cenários, destacando a sincronia de um jogo de ocorrências para sua realização e a diacronia da evolução desses cenários com a sua transformação. O embasamento requerido para a projeção desses cenários repousa nos dados da realidade analisada — isto é, na informação mediada por índices (signos indicadores) da realidade concreta. E como essa realidade está em constante movimento, é necessário ajustar permanentemente esses cenários que embasam as decisões dos atores sobre ela.

2. Eixos de Luta na Disputa por Hegemonia

Embora nenhuma abordagem teórica seja capaz de dar conta de toda a complexidade do real, a disputa por hegemonia no seio das sociedades contemporâneas se organiza basicamente em torno de eixos de luta. Embora eles sejam constituídos a partir de interesses relacionados a projetos antagônicos de sociedade, eles condensam o foco das ações sobre objetivos políticos específicos, associados a demandas gerais da sociedade. É na luta pelo atingimento desses objetivos, associados a tais demandas, que as hegemonias se constituem no horizonte desses projetos de sociedade em disputa.

Os atores, operando em redes constituídas em torno de eixos de luta, integram seus diferentes fluxos materiais, de poder e de conhecimento para consolidar e expandir novos de campos de possibilidade para a realização de seus próprios objetivos, imediatos e estratégicos. A conexão desses fluxos possibilita o surgimento e integração de novos atores que, conectados nessas mesmas redes, empoderam-se a si mesmos na exata medida em que as empoderam. A depender dos elementos implicados, a realização desses objetivos impõe um revés à capacidade dos adversários em realizar os seus próprios eixos de luta. E, portanto, impõe um revés à implementação do projeto de sociedade defendido por seus adversários.

Esses eixos de luta podem ter um caráter ético ou cínico, a depender de como efetivamente contribuem para expandir as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas do conjunto da sociedade ou apenas para expandir o poder de uma parcela da sociedade que, com a realização dos objetivos condensados no eixo de luta, amplia ainda mais o seu controle e domínio sobre um volume maior de fluxos materiais, de poder e de conhecimento. Neste caso, tais fluxos, que poderiam, distributivamente, contribuir para o atendimento de demandas do conjunto da sociedade, são prioritariamente canalizados para o empoderamento dos projetos dessa parcela de atores que sobre eles ampliou o seu domínio.

Assim, em um eixo de lutas, as demandas da sociedade são sempre reformuladas politicamente, conectando-as a objetivos estratégicos. Porém, tal reformulação tanto pode ocorrer de modo ético, com a participação dos setores populares da sociedade civil como sujeito dessa reformulação, visando atender da melhor maneira possível às demandas do bem comum, quanto pode ocorrer de maneira cínica, sem a participação popular, visando servir da melhor maneira possível aos interesses privados de quem as reformula e as atende.

Um eixo de lutas se compõe basicamente de quatro elementos: uma demanda imediata do segmento da sociedade que se deseja mobilizar (e quanto maior for esse segmento, mais forte tende a ser o eixo de lutas); a sua capacidade em desencadear interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos em torno dele mesmo, resultando na mobilização de grandes contingentes da sociedade em seu favor; a indicação clara, como causa dos problemas por ele enfrentados, de uma ou mais estruturas de natureza econômica, social, política ou cultural que se deseja enfraquecer, destruir ou fazer desaparecer; e a indicação clara de uma ou mais estruturas que se deseja fortalecer, construir ou fazer emergir com a sua realização, para a solução dos problemas e a satisfação da demanda. Usamos aqui a expressão estrutura no sentido de alguma propriedade estável ou permanente de caráter econômico, político, cultural ou social, sobre a qual se assentam outros elementos que, em seu conjunto, compõem a formação social vigente.

Nos anos 80 do século passado, um os principais eixos de luta da classe economicamente dominante integrava: a demanda social pelo fim da inflação; a difusão de uma série de interpretantes emocionais, (re)ativos e mentais a respeito dela; a apresentação da inflação como consequência da intervenção do Estado na economia; e a eliminação da inflação com a privatização de empresas públicas, redução de impostos, a abertura dos mercados aos produtos externos e o ajuste da taxa de juros e do cambio como âncoras para a estabilidade de preços. Assim, as sociedades, desejosas de pôr fim à inflação, mobilizadas em sua emoção, compreensão e reação em torno desse objetivo, apoiaram planos econômicos que desmontaram estruturas públicas e fortaleceram grandes grupos econômicos privados, transferindo recursos e poderes do Estado para os atores do mercado, isto é, para a iniciativa privada.

A força de um eixo de lutas está em eleger uma demanda imediata, a cujo atendimento ninguém, de boa fé, poderia se opor. E o grande trabalho dos atores que colaboram na consolidação do eixo de lutas, articulando seus fluxos materiais, de poder e de conhecimento em torno dele, está em desencadear na sociedade pensamentos, emoções e (re)ações em torno do atendimento dessa demanda na perspectiva de suprimir as causas do problema e de instituir ou fazer surgir o aquilo que soluciona o problema, conforme explicitado no próprio eixo de lutas.

O caráter ético ou cínico de um eixo de lutas se revela, tanto pelo modo como apresenta as conexões entre os problemas, suas causas e soluções, de maneira crítica ou ideológica, quanto pelos meios que usa em sua difusão e efetivação, como também pelo resultados objetivos de sua realização. Se os fluxos materiais, de poder e de conhecimento resultantes de sua consumação efetivam um maior compartilhamento dos recursos econômicos, políticos, educativos, informativos e comunicativos em favor do bem comum, suprimindo assimetrias de poder entre as pessoas e organizações e amplia as condições de realização das liberdades públicas e privadas para o bem-viver de todos, trata-se de um eixo de lutas de caráter ético e democrático. Por outra parte, se efetivam uma maior concentração desses recursos em favor do interesse privado de uma parcela de atores, ampliando a assimetria de poder deste grupo em relação ao restante da sociedade e amplia igualmente as condições de expandir a realização de sua liberdade privada em detrimento das liberdades públicas, trata-se de um eixo de lutas de caráter cínico e não-democrático.

O sucesso de um eixo de lutas no embate das forças sociais está, pois, diretamente relacionado à capacidade dos diferentes movimentos, setores ou classes sociais em disputa, em obter o engajamento emocional, mental e ativo das subjetividades em seu favor, consolidando, palmo a palmo, a integração de segmentos cada vez maiores da sociedade em sua defesa.

Tal engajamento não significa apenas em aderir ao enfrentamento do problema selecionado como objetivo estratégico de intervenção, mas em considerar como verdadeiras e corretas as conexões apresentadas, que co-relacionam o problema às suas causas estruturais e que co-relacionam a solução do problema ao conjunto de medidas, apresentadas no eixo de lutas, como necessárias para alcançá-la.

A consideração sobre a verdade e correção dessas conexões tanto pode ser fruto de um processo educativo libertador, necessariamente ético e não-manipulador, fundado na crítica dialógica e na problematização da realidade e das propostas para transformá-la, quanto de um processo educativo de dominação, anti-ético e manipulador, fundado na propaganda do que deve ser considerado verdadeiro e correto. Como as teses e argumentos, nesta segunda perspectiva, não possuem consistência em sua relação com a realidade, busca-se nesse caso ativar os interpretantes emocionais e (re)ativos para o engajamento das condutas, cabendo aos interpretantes lógicos operarem apenas como representações ideológicas e não como conceitos críticos.

A linha básica que demarca, pois, o exercício ético da política em relação aos eixos de luta, ante o seu exercício cínico, está diretamente relacionada à prática da problematização, do diálogo e do respeito à palavra do outro na produção coletiva e na comunicação crítica do conhecimento assim produzido, que se valida por sua conexão com a realidade e pela práxis de libertação para o bem-viver de todos — com o melhor compartilhamento possível dos meios (materiais, políticos, educativos, comunicativos e informativos) que são requeridos à expansão das liberdades públicas e privadas de todos, éticamente exercidas. Com essa problematização e diálogo os atores da práxis de libertação contribuem na reformulação política das demandas integradas no próprio eixo de lutas, isto é, explicitando, dialógica e coletivamente, o modo como essas demandas devem ser atendidas, fazendo do eixo de lutas a expressão de uma elaboração política, substantivamente democrática, em que se constrói um poder verdadeiramente público, verdadeiramente popular. Pois, como dizia Paulo Freire, ninguém ninguém liberta, ninguém se liberta sozinho: os seres humanos se libertam em comunhão.

Mas, se ao invés da comunicação crítica tem-se a propaganda ideológica, se ao invés do respeito à palavra do outro difunde-se a intolerância e o ódio contra o diferente, se o conhecimento é validado não pela práxis que o confirma mas pela autoridade da fonte que o proclama, se o bem-viver de todos é negado em favor de preservar o bem-estar de uma parcela da sociedade, se os recursos requeridos à expansão das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas são carreados para a realização de interesses de grupos privados, então a política torna-se a expressão do cinismo. E o eixo de lutas assim construído é necessariamente um instrumento de dominação

Na propagação cínica de um eixo de lutas no interior da sociedade, as causas e as soluções para os problemas são apresentadas, já de princípio, como verdadeiras e inquestionáveis. O esforço será produzir sempre mais elementos para confirmar a sua verdade e não a problematização e a crítica desses elementos, que poderiam evidenciar suas possíveis falhas e inconsistências. O diálogo e a problematização que, criticando o conhecimento existente, permitem formular um novo conhecimento vão sendo suprimidos, por onde essa cultura de dominação cognitiva se alastra. E, sob essa lógica, quem não esteja de acordo com a verdade da interpretação da realidade, das causas do problema focado no eixo de lutas e das soluções nele inscritas, é tomado como o inimigo a ser vencido e silenciado, seja pela ironia, pelo deboche, pelo insulto, pela ameaça ou pela agressão.

Em outras palavras, são duas formas totalmente diferentes de realizar a ação política em torno dos eixos de lutas. As duas operam processos distintos de subjetivação, de produção de subjetividades. Esse tema, que desenvolvemos de maneira ampla em outras oportunidades, particularmente em nossa dissertação de mestrado, será aqui resumido em poucas palavras, para não perdermos o fio condutor do argumento.

3. A produção de Subjetividades e as Semióticas do Capital

Compreender, a partir de diferentes abordagens, quais são os principais atores na disputa pela hegemonia em torno de eixos de luta e quais os diferentes projetos de sociedade associados a esses eixos é um exercício analítico relevante para entender os processos históricos, os conflitos e contradições em uma dada sociedade. E, especialmente, para uma tomada de posição, crítica e ética, em relação a esses eixos e projetos.

Porém, a compreensão que os atores possuem de si mesmos no seio dessas relações sociais é, igualmente, fruto de uma auto-interpretação, resultante da aplicação sobre si mesmos de interpretantes emocionais, lógicos e (re)ativos, que são socialmente produzidos, sobre os quais os indivíduos exercem maior ou menor interferência.

De fato, todo conhecimento resulta de uma intrincada teia de relações entre objetos dinâmicos, signos e interpretantes. A nossa própria subjetividade, nossa identidade e modo de ser, não escapam a essa teia semiótica. O modo recorrente como costumamos sentir, pensar e agir sobre eventos de natureza idêntica em nosso dia-a-dia nos permite constituir uma identidade sobre nós próprios e projetar uma auto-imagem de nós mesmos. Com base nesses interpretantes e auto-imagem, conectamos nosso presente ao nosso passado, percebendo um fio condutor na afirmação de nossa própria identidade.

Mas, do mesmo modo que nenhum signo representa totalmente o seu objeto, nós próprios não somos aquilo que pensamos de nós mesmos, não havendo pois total congruência desse auto-ícone com o que realmente somos, nem da interpretação de nossa história com o que foi realmente vivido em nosso passado. No seio das relações que vivemos no presente, diferentes eventos desencadeiam em nós emoções, ideias e ações que vão sendo incorporadas em nossa memoria afetiva, energética e mental e que são, igualmente, integradas em nossa auto-imagem, como reconhecimento de nós próprios naquilo que sentimos, pensamos e fazemos que abrem novas possibilidades de reinterpretação de nossa própria história.

Porém, no último século e, particularmente, nas últimas décadas, muito conhecimento foi produzido nos campos da psicologia, publicidade, propaganda, economia, sociologia, ciência política, etc, possibilitando organizar formas cada vez mais eficientes de agenciar emoções, ideias e ações, para conectar nossas auto-imagens, nossas identidades e nossas liberdades à compra de produtos, à eleição de candidatos, a opções de trabalho e a muitos outros engajamentos subjetivos, mentais, emocionais e (re)ativos.

Assim, os interpretantes com os quais nos acoplamos ao ambiente social e natural, com os quais (re)agimos nas mais diferentes situações e nos compreendemos como nós mesmos nessas (re)ações, com os quais interpretamos os fatos, as normas e os valores, deixam de estar modelados basicamente pelas famílias, escolas e outras comunidade de proximidade geográfica, mas, especialmente, por meios de comunicação de massa que nos integram a fluxos materiais, de poder ou de conhecimento de grandes grupos econômicos, políticos ou comunicativos e por diferentes comunidades virtuais, organizadas através de redes sociais.

Félix Guattari nos ensinou muito sobre as semióticas do capital e como elas operam a produção de subjetividades, não apenas agenciando intensidades (particularmente desejos) que serão associadas a marcas e produtos, resultando na produção de consumidores para esses produtos e objetos-sígnicos, mas também na modelização da subjetividade para a produção de produtores, que devem possuir as habilidades emocionais, mentais e de ação requeridas para a produção do capital, segundo processos tecnológico-produtivos que estão em constante transformação.

Podemos dizer que se trata de um movimento (-dução) que lança à frente (pro-) a realização do modo de ser (sistere) que nos integra ao ambiente externo (­ex-) em que vivemos, sendo pois, um modo de produção da existência das pessoas. Esse movimento tanto pode ser de alienação e dominação, quanto pode ser de singularização e libertação.

A consolidação de eixos de luta, tanto de forma ética quanto de forma cínica, implica em desencadear o movimento de interpretantes mentais (lógicos), emocionais e energéticos (isto é, de ação e reação) que se relacionam aos problemas, às suas causas e às suas soluções.

A abordagem cínica opera, nessa consolidação, uma produção de subjetividade que, modelizando emoções, ideias e atitudes, engaja as pessoas na reprodução dessa mesma abordagem, propagada como verdadeira através de aparelhos de comunicação hegemônicos. Combate, igualmente, toda crítica recebida, associando tal crítica à perpetuação daquilo que deve ser eliminado para que os problemas enfrentados sejam resolvidos.

Por sua vez, a abordagem ética, na consolidação dos eixos de luta, busca realizar a crítica e a subversão das semióticas de dominação e o desencadeamento de subjetivações em que as emoções, ideias e atitudes escapem das semióticas econômicas e políticas do capital, das semióticas machistas e racistas e de todas as diferentes semióticas autoritárias, num movimento de desalienação e de singularização das pessoas. Trata-se de subverter os modos alienantes e autoritários de produção da existência das pessoas e todos os regimes de signos que, sobrecodificando as auto-imagens que as pessoas fazem de si mesmas, levam-nas, inconscientemente ou não, a submeter-se a relações autoritárias de poder, em que são reduzidas a coisas que podem ser postas ou dispostas em função do interesse alheio.

Assim, trata-se não apenas da problematização da realidade ou da produção dialógica de novo conhecimento. Mas, igualmente, de um movimento que permita às pessoas compreenderem a si mesmas com maior autonomia e liberdade, de redescobrirem o seu direito à diferença, o direito de pensar e de agir em função de seu próprio bem-viver, no exercício ético de suas liberdades, respeitando por isso mesmo o bem-viver de todos, subvertendo a prática de compreenderem a si mesmas em função do que as semióticas hegemônicas capitalistas, machistas, consumistas, segregadoras, enfim, autoritárias, estabelecem como auto-imagem para a realização de suas vidas.

Todavia, a depender do grau de intervenção realizado na produção cínica de subjetividades, a argumentação crítica, que a enfrenta dialogicamente, pode ser ineficaz para desencadear processos de subjetivação subversiva. Pois a argumentação lógica, por si mesma, tende a ser incapaz de re-singularizar os interpretantes emocionais e energéticos envolvidos na propagação cínica do eixo de lutas. Pelo contrário, os diálogos tendem, facilmente, a descambar para polêmicas que se convertem em agressões emocionais, consolidando, ainda mais, a convicção sobre o eixo de lutas já adotado para a solução dos problemas, comprovando, emocionalmente e (re)ativamente, que a proposição defendida pelo antagonista deve ser realmente combatida e eliminada.

Por isso, as abordagens estéticas, compondo diversas formas de arte capazes de desencadear processos de subjetivação que subvertem essas semióticas autoritárias são elementos essenciais às práticas de educação popular. Não se trata, contudo, de realizar qualquer tipo de arte mensageira, isto é, que pretenda transmitir algum conteúdo como sendo a resposta verdadeira a algum problema. Mas, sim, de romper as recapturas dos interpretantes emocionais e energéticos, realizadas pelas semióticas hegemônicas.

Do ponto de vista micro-político, tal ruptura busca abrir espaços para a redescoberta das próprias pessoas sobre as diferentes possibilidades de realização de sua própria existência. E, com isso, criar as condições subjetivas favoráveis para que elas possam perceber, sentir e reagir de outros modos, em relação a si mesmas e em relação às outras pessoas modos que sejam mais livres e melhores para elas próprias, em seu cotidiano tornar-se pessoa, em sua cotidiana humanização.

A adesão a um eixo de lutas de caráter ético e libertador não pode ser resultado de uma prática pedagógica de dominação, mas de uma abertura a diferentes modos de pensar o mundo e de nele existir, movida pelo desejo de que cada ser humano possa realizar-se, em sua dignidade e diferença, em sua singularidade e distinção. De fato, cada pessoa jamais se reduz ao que pensamos dela, do mesmo que nossa auto-imagem não corresponde ao que nós somos. Por sua condição de alteridade, isto é, por sua condição de ser outro, as pessoas podem nos ensinar aquilo que ainda não sabemos e podem despertar em nós emoções e reações que ainda não vivemos e que, por isso mesmo, podem ampliar a nossa própria liberdade de realizar o nosso bem-viver. Sob o aspecto ético e libertador, esse movimento de adesão, abertura e singularização se desdobram na necessidade de reorganizar os fluxos materiais, de poder e de conhecimento em nossas sociedades, em proveito do bem-viver de todos e não do empoderamento de uma pequena parcela que luta por controlá-los em função de seus interesses privados.

Assim, a construção ética de eixos de luta, embora estabeleça objetivos específicos em torno dos quais, os atores colaboram com seus fluxos materiais, de poder e de conhecimento, para disputar um projeto de sociedade exige, tanto no processo da formulação desses eixos quanto de sua realização, um movimento pedagógico libertador. Esse movimento afeta não apenas a consciência, mas as demais dimensões da subjetividade, particularmente os interpretantes emocionais e (re)ativos.

Isso é necessário para que o resultado dos processos de mobilização, organização e educação não se voltem apenas ao combate de estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais e à afirmação de novas estruturas em seu lugar, mas igualmente em suprimir todas as formas autoritárias de produção de subjetividades, substituindo-as por agenciamentos de livre subjetivação. A superação de estruturas opressivas e a supressão de formas autoritárias de produção de subjetividade devem contribuir para que as pessoas possam realizar, de modo pessoal e coletivo, a sua própria libertação, construindo uma nova formação social que possibilite realizar eticamente, da forma mais ampla possível, as liberdades públicas e privadas de todos.

Trata-se, portanto, de subverter as diferentes estruturas e códigos de poder autoritários, que reproduzem relações sociais de exploração e dominação. Trata-de de um movimento de desalienação, de singularização, em que a pessoa se descobre como sujeito singular e social de sua história pessoal e da história coletiva. E não como alguém que adotou uma interpretação dos signos de si mesmo e um determinado modo de pensar e de agir modelados sob diferentes semióticas hegemônicas opressivas, com o concurso de TVs, rádios, jornais, revistas, comunidades virtuais e de movimentos sociais e organizações políticas autoritárias que o engajam na defesa de um cínico eixo de lutas.

4. Redes Sociais e Produção de Subjetividades

Mas para bem entendermos as dinâmicas de produção de subjetividade associadas ao eixo de lutas pelo impeachment, há um elemento importante a destacar sobre as formas como as redes sociais filtram as informações que as pessoas recebem e como retroalimentam a produção de um mesmo tipo de subjetivação.

Quando alguém faz uma busca por determinado produto ou assunto na Internet, essa operação fica registrada em diferentes arquivos no aparelho em que foi realizada ou em arquivos, associados às suas contas, em nuvens de dados. Esses registros são usados automaticamente pelas empresas para monitorar os interesses dos usuários. Com base neles, as empresas selecionam as publicidades a serem veiculadas, exibindo propagandas de produtos e outros conteúdos correlatos nas maioria dos sites pelos quais o usuário navega. O mesmo ocorre com o monitoramento dos likes clicados, dos tweets e e-mails enviados e de outras atividades on line para identificar as preferências do usuário e filtrar a exibição conteúdos, destacando os que seriam de seu maior interesse.

Assim, quando alguém busca por um assunto ou produto, tende a receber conteúdo sobre ele. E quanto mais clicar sobre as publicidades e links que levam a documentos e produtos a respeito desse assunto, mais publicidades e links para textos e vídeos sobre ele a pessoa tende a receber, em razão da redundância na retroalimentação dos filtros de conteúdo.

Por outra parte, quando as pessoas organizam redes sociais com outras que pensam de forma semelhante a elas, todas as mensagens, imagens, piadas, textos nas diferentes áreas do conhecimento enviadas nessas comunidades tendem a expressar uma mesma afinidade com as perspectivas e valores desse grupo. Mas, também aqui, esses conteúdos sofrerão uma análise automática de palavras-chaves pelo programas de monitoramento, sendo tomadas pelo provedor do serviços como indicação de interesses prioritários para direcionamento de publicidade e conteúdo nessas comunidades.

Esses dois mecanismos de filtragem, tanto o automático que monitora conteúdos para deduzir interesses, quanto o social pelos likes e compartilhamento de arquivos no seio do grupo, faz com que exista um laço de auto-reforço, em que o fluxo de informação se concentra sobre alguns temas e sobre determinadas abordagens sobre eles. Como a identidade das pessoas se constrói a partir da sua recorrência aos interpretantes mentais (lógicos), emocionais e (re)ativos com os quais normalmente se conectam ao ambiente, a exposição continuada ao mesmo conteúdo sob abordagens idênticas tende a consolidar uma mesma disposição sobre ele, compartilhada no seio das comunidades por meio das quais as pessoas se integram ao mundo, particularmente no que se refere aos fluxos de conhecimento. A manifestação pública dessa disposição em relação a esses conteúdos, retroalimenta a afirmação da auto-imagem que as pessoas têm de si mesmas, reafirmando a identidade comum que integra o indivíduo à sua comunidade.

Assim, se alguém busca informações sobre um determinado assunto, mais informações receberá sobre ele. E quanto mais compartilhamentos sejam feitos de resultados obtidos, em razão de serem interpretados por diversos sujeitos com um jogo afim de interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos, tanto mais esses interpretantes se consolidam e se difundem como padrões de interpretação dos fatos aos quais eles se aplicam. Porém, como não há uma investigação maior pela maioria das pessoas sobre possíveis fraturas na conexão entre os fatos (objetos dinâmicos) e as informações (signos) que os representam, tem-se uma produção de subjetividade em torno do acoplamento estrutural dessas subjetividades ao ambiente mediado por esses signos, interpretados no seio dessas comunidades, sob mecanismos de auto-reforço.

Assim, a comunidade reforça a identidade do indivíduo e este reforça a identidade da comunidade pela abordagem similar dos conteúdos compartilhados. Como as fendas ao diferente vão desaparecendo pela lógica mesma dos filtros de informação, com os likes ou curtidas que posicionam os conteúdos de maior afinidade com essa mesma identidade no topo da linha do tempo desses participantes, passa a existir um produção de subjetividade que leva não apenas a sentir e compreender os acontecimentos, mas especialmente a reagir a eles, com uma mesma afinidade coletiva, reproduzida de maneira redundante, nesses grupos e comunidades.

Em outras palavras, a abertura à diferença vai desaparecendo pelo reforço de uma mesma identidade. Do ponto de vista da formação humana das pessoas isso é uma grande perda, pois elas acabam se convencendo de que o modo justo e certo de pensar o mundo é esse que elas constroem, compartilhando todas as reportagens, noticiais, memes, imagens, vídeos e links que reproduzem o mesmo sistema modelizante e interpretativo do grupo a que pertencem. Se alguém discordar frontalmente de algo, subvertendo pois o regime de signos e a interpretação realizada na espiral que elimina a diferença e repõe a redundância, haverá uma fratura dos interpretantes hegemônicos do grupo com relação ao seu sentir, pensar e (re)agir em relação a esse conteúdo e, igualmente, em relação a essa pessoa. Surge, então, um problema ou conflito que, a depender das proporções alcançadas, pode fraturar essas comunidades ou mesmo outras tramas de relações sociais vividas por essas pessoas por desdobramento dos conflitos nessas comunidades.

Assim, o grau de redundância na auto-afirmação da identidade de um sujeito em relação a um grupo social, no modo de compreender a si mesmo, sua auto-imagem e o seu próprio papel histórico no mundo — pela experiência comum vivida na interpretação emocional, mental e (re)ativa sobre os objetos compartilhados pelo grupo — pode levar uma pessoa, por exemplo, a romper relações com a própria família, pois sua auto-imagem vai se distanciando dos interpretantes anteriormente assumidos, pelos quais se reconhecia como si mesma ao longo de sua história.

As mídias de massa e essas comunidades sociais, realimentadas por elas, são espaços de produção de subjetividade que, em geral, estão subordinados a empresas econômicas que provem serviços informativos, comunicativos, de hospedagem de comunidades e de ofertas de conteúdo segmentado. Mais do que captar audiência, essas empresas operam, por meio desses serviços, na produção de subjetividades das pessoas como consumidoras. Mas, igualmente, atuam na produção de interpretantes lógicos, emocionais e energéticos que resultam em posicionamentos afins aos próprios interesses dessas empresas.

Assim, quando fazemos uma análise dos fluxos de informação em movimentos de disputa de hegemonia, podemos identificar um jogo de retroalimentação de interpretantes sobre acontecimentos, resultando numa redundância interpretativa reafirmada em vários veículos de grupos afins, fazendo crer que, pelo fato de uma mesma informação ser divulgada em diferentes fontes sob uma mesma abordagem interpretativa, tal interpretação hegemônica da informação corresponda à verdade dos próprios acontecimentos aos quais a interpretação se refere.

É necessário expandir a análise desses mecanismos de redundância na produção de subjetividades, particularmente no caso das redes sociais, investigando-se os procedimentos de manipulação de conteúdo operados pelas empresas que oferecem os serviços ou por terceiros que deles se valem.

É de conhecimento público que o Facebook realizou experiências com milhares de usuários, concluindo que o humor destes podia ser modificado, positiva ou negativamente, influenciando-se suas próprias postagens, a depender do que aparecia com prioridade na linha do tempo em suas contas. Dado que os likes que posicionam conteúdos nesse serviço podem ser obtidos mediante pagamento, pode-se posicionar determinados conteúdos na linha do tempo dos usuários, elegendo-se palavras-chaves específicas e pagando-se para melhor posicioná-los. A reação mental, emocional e energética a esses conteúdos, quando a subjetividade é exposta de forma recorrente a eles, pode desdobrar-se no engajamento da pessoa à abordagem dos problemas e ao modo de solucioná-los, segundo o eixo de lutas que se propaga por meio desses conteúdos.

Outro mecanismo, que passou a ser adotado no Brasil em algumas campanhas eleitorais, é o uso de robôs que possibilitam disseminar conteúdos pela Internet, particularmente nas redes sociais. Trata-se de programas que automaticamente disparam mensagens que replicam outras de origem humana, segundo critérios de seleção embutidos no programa. É muito provável que tais mecanismos estejam sendo usados na propagação de eixos de luta de grandes grupos econômicos em todo o mundo, particularmente na América Latina.

De fato, na Colômbia, como a Bloomberg detalhou em ampla reportagem, está preso um hacker, condenado por crimes cibernéticos, que afirma ter utilizado vários mecanismos de Internet para interferir no resultado de eleições na América Latina, com a postagem de conteúdos dirigidos em diferentes serviços, manipulando redes sociais, criando e propagando sentimentos de entusiasmo ou de escárnio com relação a conteúdos de campanhas políticas.

5. O impeachment como eixo de lutas

Assim, chegamos ao eixo de lutas do golpe em curso no Brasil, que associa as causas da corrupção e da crise econômica no país a um determinado partido político e defende, como solução do problema, o impeachment da atual presidente, abrindo espaço para a realização de um amplo conjunto de medidas econômicas, apresentadas como a “ponte para o futuro“.

Os quatro elementos básicos do eixo de lutas do impeachment são: a demanda imediata pelo fim da corrupção e pelo fim da crise da econômica; a ampla mobilização da sociedade desencadeando interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos em torno disso; a indicação clara de que o Partido dos Trabalhadores e, por extensão, o atual governo são os principais responsáveis pela corrupção e pela crise econômica no país, em função da gestão ineficiente e fraudulenta do Governo Federal, sendo necessário, portanto, depor o atual governo e, em seguida, eliminar o registro do PT; e, por fim, implantar um conjunto de medidas para tirar o Brasil da crise, que estão agrupadas no Plano Temer e, aos poucos, ir concluindo as operações de combate à corrupção, que, por haverem desmascarado e ajudado a extirpar a organização criminosa que se apossara do Estado, já teriam cumprido a sua função.

O grau de força potencial desse eixo de lutas é bastante elevado, pois ninguém, de boa fé, se oporia ao combate à corrupção ou ao fim da crise econômica no Brasil.

O trabalho dos atores que colaboram na consolidação desse eixo de lutas, articula fluxos materiais, de poder e de conhecimento em torno dele. Investigando tais fluxos chegamos aos principais atores da rede que o propaga. Não faremos aqui uma analise aprofundada de todos esses fluxos, apenas realizamos algumas indicações a seu respeito. Parte dos atores a que chegamos pela análise desses fluxos está identificada, com detalhes, em O Quebra-Cabeça do Golpe e As Provas de um Crime e não repetiremos aqui o que lá já está. Nesses dois textos estão muitos links para documentos e fontes de dados que suportam essa análise de fluxos.

Seguramente, um trabalho coletivo de investigação com esse método, poderia resultar em uma análise bastante surpreendente, mapeando as múltiplas conexões desses atores com outros, que vão sendo identificados, aos quais estão conectados por fluxos materiais, de poder e de conhecimento, desenhando-se, ao final, uma ampla figura de rede, em que esses atores operam como nodos de circuitos de poder muito mais complexos, constituídos em torno de diferentes hubs.

Investigando os fluxos materiais, relacionados a propaganda, infra-estrutura disponibilizada e materiais produzidos para a difusão da campanha pelo impeachment, chegamos, por exemplo, a Federações de Industrias e organizações empresariais no Brasil, a organizações estrangeiras que apoiam lideranças que defendem a “privatização de todas as empresas publicas” e que “Brasil livre é Brasil sem PT“, bem como a grandes grupos empresariais de comunicação que colocam seu poder de mídia serviço dessa causa.

Investigando os fluxos de poder, chegamos a um conjunto de partidos políticos de oposição e de parlamentares sob investigação em casos de corrupção. Chegaríamos, possivelmente, a juízes e membros da Polícia Federal e do Ministério público que, por ação ou omissão, poderiam ser responsáveis pelo recorrente vazamento ilegal de trechos de documentos que têm, por alvo prioritário, acusações contra o PT e seus membros. Chegaríamos, possivelmente, a Ministros do STF, que pouco fariam para conter esses vazamentos e que aceitam, como provas para elemento de juízo, gravação resultante de grampo telefônico, colhida sem o devido amparo legal, e divulgada à sociedade em flagrante violação do Art. 5 da Constituição. Chegamos também ao Movimento Brasil Livre, principal articulador do movimento pelo impeachment e que pretende formar uma bancada no congresso com os políticos que elegerá por diferentes partidos políticos.

Investigando os fluxos de conhecimento, isto é, os fluxos de informação, de comunicação e da interpretação dos fatos, normas e valores, em favor do impeachment e que o retroalimentam, encontramos grandes grupos de mídia no Brasil, com destaque para o Grupo Globo, Veja e outros, com seu recorrente “acesso com exclusividade” a documentos sob sigilo judicial ou segredo de justiça, que somente podem ter a sua reprodução realizada graças ao cometimento, por alguém, de algum crime relacionado ao seu vazamento e à sua reprodução não-autorizada. Igualmente, encontramos inúmeras comunidades em redes sociais, especialmente organizadas para a promoção do impeachment. Encontramos a participação da organização Students for Liberty no Brasil, aglutinando e formando jovens na defesa da “privatização de todas as empresas públicas” e na difusão da tese de que “Brasil Livre é Brasil sem PT“.

Sobre isso, é interessante analisar o fluxo de lideranças, de recursos humanos, aglutinadas no Movimento Brasil Livre, compreendendo onde ocorre a sua produção de subjetividade, com quais recursos materiais e como são apoiadas posteriormente. Conforme o site da Students for Liberty, seu nodo brasileiro treinou, em janeiro de 2016, a quinta turma do Programa de Coordenadores Locais, com a participação de mais de 1.000 coordenadores. A matéria prossegue dizendo que a maioria dos institutos liberais no Brasil têm líderes treinados por essa organização.

Por sua vez, sobre as redes sociais e o uso da Internet para o fortalecimento desse eixo de lutas, uma busca no Google com a expressão anti-PT resultou em 286 milhões de documentos e com a expressão “pro-impeachment” resultou em 11 milhões.

Uma parte desses resultados advém de uma reflexão crítica em que essas expressões são mencionadas. Mas, a produção de redundância interpretativa sobre esses termos e de seus conteúdos correlatos, recapturando toda e qualquer linha de fuga que os subverta, é elemento central para a reprodução da convicção sobre o acerto do eixo de lutas do impeachment. É muito provável que exista o uso de robôs e de atores especializados na propagação pela Internet desse conteúdo e de interpretantes a ele associados, com as técnicas que analisamos na seção anterior.

Por outra parte a produção e comercialização de pixulecos e camisetas anti-pt encontra, entre suas diferentes fontes, o próprio Movimento Brasil Livre e membros do Students For Liberty. Na loja.mbl.org.br, onde se encontram à venda esses artigos, o rodapé apresenta a titularidade do copyright da página como pertencente a Kim Kataguiri, líder de ambas as organizações.

A ideologia difundida em torno desse eixo de lutas pelo impeachment está associada, pois, ao que se quer implantar: a privatização de todas as empresas públicas, a redução de impostos, a eliminação de vários direitos sociais e trabalhistas. Por outra parte, para consolidar a adesão a esse eixo, que ao final criaria melhores condições para a realização desses objetivos, movem-se os interpretantes emocionais e energéticos das pessoas, retroalimentados pelo fluxo de informações, previamente interpretadas pelos veículos associados à sua propagação.

Os atores atingidos por esses fluxos, tomando posição sobre o impeachment e manifestando-se favoráveis ou contrários a ele, constroem uma auto-imagem sobre sua própria atitude, sobre sua prática, sobre si mesmos, sobre seus discursos, interpretados não apenas com elementos lógicos mas, igualmente, com emoções e reações corporais. Nesse processo de interpretação, diferentes memórias de vivências passadas e interpretantes emocionais e energéticos se relacionam, desencadeando devires, muitas vezes inesperados, para as próprias pessoas e para quem as conhece.

Um exemplo interessante, para ilustrar esse fenômeno, foi o desfecho de um discurso da co-autora do pedido de impeachment, Janaina Paschoal, há poucos dias. Os movimentos de seu corpo são uma reação energética à semiose de seu próprio discurso, com emoções que se misturam a interpretantes familiares e religiosos, resultando num desfecho de metáforas bíblicas que operam como interpretantes lógicos em seu raciocínio. Não seria surpreendente tal discurso se fosse realizado por alguma liderança eclesial. Mas o é, por tratar-se de uma advogada, professora de direito na USP, e pelo argumento ser apresentado no ato de Juristas pelo Impeachment na própria Faculdade de Direito dessa universidade:

“É o momento de discutir a que Deus queremos servir. É ao dinheiro? Nós queremos servir a uma cobra? O Brasil não é a República da cobra. […] Nós não vamos deixar essa cobra continuar dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens. […] Eles querem nos deixar cativos. Mas nós não vamos abaixar a cabeça. Porque desde pequenininha que o meu pai me diz ‘Janaína, Deus não dá asa para cobra’. E eu digo pra ele: ‘Mas Pai, às vezes, a cobra cria asa. Mas, quando isso acontece, Deus manda uma legião para cortar as asas da cobra’. Nós queremos libertar o nosso país do cativeiro de almas e mentes. Não vamos abaixar a cabeça para essa gente que se acostumou com o discurso único. Acabou a República da cobra.”

O registro religioso, contrapondo Deus e a cobra, associa a figura desta ao demônio e este a Lula, contra o qual Deus enviará sua legião, para libertar o país do cativeiro das almas e mentes, da República da cobra. Esse componente de auto-imagem messiânica, de ser mediadora de uma missão redentora do país com a realização do impeachment, também está difuso numa parcela desse movimento, em que arquétipos de natureza religiosa operam na compreensão das condutas assumidas.

É importante destacar que nessa forma de disputa por hegemonia, não é necessário que todos os atores participem de um mesmo partido ou organização. Eles não necessitam realizar alguma convenção para decidir sobre o eixo que os une. Uma vez detectado o engajamento da sociedade em torno de objetivos imediatos a serem alcançados (o combate à corrupção e o enfrentamento da crise econômica), uma vez associados esses objetivos ao impeachment, os diferentes atores passam a organizar os fluxos de materiais, de poder e de conhecimento para consolidar esse eixo, vinculado-os ao que se quer abolir e ao que se quer instituir.

Se um real crime de responsabilidade da presidente existe ou não, isso não será problema para a sua deposição, conquanto haja a difusão de uma interpretação hegemônica sobre algum fato, o mais suscetível de ser interpretado como crime, como se o fosse em realidade, ainda que efetivamente não o seja.

Assim, o vazamento de uma acusação publicado numa revista é reproduzido na TV; o que é publicado na TV é retomado nas revistas; e a informação segue circulando, por jornais, Internet, rádios e diferentes mídias, agregando-se novos interpretantes, consonantes à necessidade de realização do impeachment para a solução dos problemas enfrentados. A maior parte da informação dissonante é descartada ou publicada apenas de passagem e sem qualquer destaque, para evitar o enfraquecimento da adesão da população ao eixo defendido nessa disputa de hegemonia. Mas quando essas informações dissonantes circulam, busca-se reduzir sua importância, difundindo-se interpretantes sobre elas, evitando que se propaguem linhas de fuga ou dissonâncias cognitivas que fraturem a unidade interna do eixo de lutas que aparenta conectar os problemas às suas causas e às suas soluções.

A técnica de reproduzir a redundância e de suprimir a dissonância na interpretação dos fatos leva a situações paradoxais. Assim, por exemplo, dois partidos recebem dinheiro de uma mesma empresa para uma mesma campanha eleitoral, para a disputa de um mesmo cargo eletivo e, igualmente, declaram esse recebimento do mesmo modo ao TSE. Mas o juiz interpreta que o dinheiro recebido pelo partido A era doação legal de campanha. E o dinheiro recebido pelo partido B era propina, fruto de corrupção ainda que o partido A tenha recebido mais dinheiro que o partido B. Em outro momento, encontra-se uma lista com mais de 300 nomes de políticos citados em recebimento de dinheiro de uma empresa. Cruzam-se os valores indicados e a prestação de contas dessas campanhas e não se encontra a indicação, junto ao TSE, dessas doações recebidas em muitas dessas campanhas. Então, a mídia afirma que: “Não é possível, de antemão, saber se os pagamentos são doação eleitoral legal ou propina. É que mesmo que não estejam na prestação de contas registrada pelo Tribunal Superior Eleitoral, existem formas de pagamento chamadas de “doações ocultas”. São repasses feitos de forma legal aos partidos, que só depois se destinam aos candidatos.”

Assim, como se vê, graças à interpretação hegemônica, as coisas ficam claramente invertidas. Aquilo que está legalmente declarado é crime para um, mas não o é para outro. E aquilo que não está legalmente declarado, pode ser uma “doação oculta”, porém legal, para um e ser interpretado como crime para outro. Assim, na difusão cínica desse eixo de lutas, menos importam os fatos do que a interpretação sobre eles.

A ênfase das semioses recai sempre sobre o problema a ser enfrentado (a corrupção e a crise econômica), a causa desse problema (o PT e o atual governo) e a solução do problema (o impeachment). E quanto mais as semioses enfatizam o tamanho da corrupção e o tamanho da crise, mais a convicção de que o impeachment deve ser realizado é reforçada por aqueles que adotam essa interpretação como verdadeira.

Porém, como a explicitação dos elementos a serem realizados no pós-impeachment — supressão de direitos sociais e trabalhistas com o Plano Temer e fim da exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal poderia gerar interpretantes de rejeição do próprio impeachment, isso não é o objeto central das semioses dos veículos de comunicação alinhados na defesa desse eixo de lutas.

Trata-se, pois, de um eixo de lutas cínico, por fazer crer que as causas da corrupção e da crise econômica no Brasil repousam num determinado partido e no atual governo. E que, para sair da crise e combater a corrupção, é preciso realizar o impeachment do atual governo e cancelar o registro desse partido. De fato, o modo como são apresentadas as conexões entre a crise econômica e suas causas, entre a corrupção e suas causas, é plenamente ideológico, fundado em representações que não correspondem efetivamente à realidade, como o pode comprovar uma análise de indicadores internacionais a respeito de ambos os temas. As semioses hegemônicas, contudo, repetem essa conexão à exaustão. Se a crise e a corrupção fossem apresentados como sendo fruto das responsabilidades de diferentes atores econômicos e políticos no país, o público chegaria à conclusão de que o impeachment não traria a solução da crise econômica e nem seria um golpe fatal no combate à corrupção.

É, igualmente, cínico pois os fluxos materiais, de poder e de conhecimento que resultam de sua consumação final ampliam a concentração de recursos sob o domínio de grandes grupos econômicos e a assimetria de poder desses grupos em relação ao restante da sociedade. E por outro lado, reduzem os volumes de recursos destinados ao atendimento das necessidades das populações mais pobres no país, fazendo regredir a sua já precária condição de vida.

A propagação desse eixo de lutas, portanto, é semelhante à de um vírus de computador, embutido numa bela imagem de plano de fundo. Uma vez instalado, as rotinas que estão nele escondidas passam a funcionar sem que se perceba, para realizar coisas que as pessoas nunca imaginaram que aconteceria.

Porém, embora esse eixo de lutas tenha conseguido consolidar-se amplamente, ele possui vulnerabilidades que permitem fragilizá-lo e derrotá-lo.

6. Como enfrentar esse eixo de lutas

Há duas frentes de atuação, uma junto à sociedade e outra em relação aos parlamentares. Ambas são importantes, pois, crescendo a reação ao impeachment no seio da sociedade, menos parlamentares tenderão a apoiá-lo.

Há vários aspectos a considerar no enfrentamento desse eixo de lutas, particularmente os seus quatro elementos constitutivos (seu objeto imediato, o agenciamento coletivo, o que será eliminado e o que será instituído), a forma como ele está sendo retroalimentado e os seus principais signos de referência.

6.1 Interpretantes Lógicos

Sob o aspecto dos interpretantes lógicos ou mentais, é importante realizar a problematização sobre quem são os ganhadores e os perdedores com a aprovação do impeachment e sobre o que eles ganham ou perdem. Um detalhamento disso, fazendo referência aos projetos de lei em tramitação e diversas propostas inscritas na “Ponte para o Futuro“, está realizado em O Quebra-Cabeça do Golpe. Resumimos abaixo alguns elementos desse texto.

– Quem serão os grupos econômicos mais beneficiados pelo impeachment?

Entre eles estão grandes grupos econômicos, no país, favorecidos pelo Plano Temer; companhias estrangeiras que atuam no ramo de petróleo e derivados, que poderão explorar o pre-sal; corporações internacionais favorecidas com as privatização de ativos da União; os investidores nas bolsas de valores; os especuladores com a política cambial; os grandes bancos com a política monetária; as grandes empresas com a redução de impostos; e os grupos de mídia que desejam reforçar os seus monopólios.

– Quem são são os grupos políticos mais beneficiados pelo impeachment?

Entre eles se incluem os políticos corruptos que desejam pôr fim às investigações de corrupção no país. Como o Governo Dilma fortaleceu os instrumentos de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011) e empoderou a luta contra a corrupção, é preciso depor esse governo para que não se aprofunde a investigação sobre todos os partidos e se mantenha o foco das atenções apenas no PT e nos seus aliados. Serão beneficiados também os candidatos lançados pelo Movimento Brasil Livre através de diferentes partidos, particularmente PSDB, Partido Novo, DEM, PSD, PSC e PPS. E, ainda, o Movimento Brasil Livre, como tal, que futuramente pretende montar uma bancada liberal no Congresso Nacional, com os parlamentares que irá eleger nos próximos anos por diferentes partidos. Assim, aproveitando-se das mobilizações iniciais do passe-livre e das mobilizações que vieram depois, as lideranças desse movimento pró-impeachment, tornando-se políticos profissionalizados, levarão para dentro do congresso, de forma permanente, suas propostas de “privatizar todas as empresas públicas” — e, portanto, também a Petrobras e os Correios —, de reduzir impostos e o gasto com políticas sociais e de suprimir politicas de transferências de renda destinadas ao auxílio dos mais pobres.

– Quem serão os mais prejudicados economicamente pelo impeachment?

A maior parte da população brasileira, com a redução de direitos sociais e trabalhistas previstos no Plano Temer. O fim da exclusividade da Petrobras na exploração do pré-sal, como aprovado no senado, e sua possível privatização como ativo a ser transferido à iniciativa privada, suprimem a soberania energética do Brasil na área do petróleo e impactam sobre o Fundo Social, que destina 50% de seus valores para a aplicação integral nas políticas de educação. Por sua vez a redução de impostos fará com que haja menos dinheiro para o orçamento federal e com isso, como não será reduzido o pagamento da dívida pública, haverá menos recurso para saúde, educação e políticas de transferência de renda. Isso impacta sobre a classe média e os micro-empresários, pois com a redução do poder de compra da maioria da população, inverte-se a lógica de crescimento com distribuição de renda que marcou o período de 2003 a 2014.

– Quem serão os mais prejudicados politicamente pelo impeachment?

Não havendo crime de responsabilidade da presidente, o impeachment é um golpe de estado. Se esse golpe for dado, perdem todas as forças políticas que defendem a democracia no Brasil, inclusive o partido da atual presidente. A intolerância política tende a se acirrar, juntamente com diferentes formas de preconceito e discriminação contra os segmentos sociais que eram o público de diferentes programas que serão abolidos ou terão seus recursos drasticamente reduzidos.

6.2 Interpretantes Emocionais e (Re)ativos

O enfrentamento emocional e reativo desse eixo de lutas requer subjetivações criativas que escapem da semiótica hegemônica de intolerância e de agressão propagada pelos seus defensores. Como analisado anteriormente, não se pode adotar o mesmo modo cínico de desencadear emoções e reações para enfrentar qualquer eixo de lutas. Pelo contrário, deve-se combater toda forma de manipulação de interpretantes emocionais e (re)ativos que busca o engajamento alienado das pessoas a qualquer causa.

Nisso é fundamental uma abordagem estética de reinterpretação dos principais signos mediadores das semióticas hegemônicas do impeachment. Com imagens, músicas, poesias, vídeos etc, tais signos podem ser reconectados a outros interpretantes, relacionados ao futuro que a implementação do Plano Temer e do Projeto do Serra traz escondido dentro do Pato Amarelo da Fiesp. Qual é o recheio do Pato Amarelo? O que vem escondido por dentro do Pato de Tróia?

O patrão lhe deu um pato amarelo,

como se fosse peru de natal.

Enfeitiçado por seu encanto,

entregou aos gringos o pré-sal.

6.3 Explicitar as conexões internas do Impeachment como eixo de lutas

O resultado da problematização sobre as conexões entre semioses e fatos, abordando os aspectos lógicos ou mentais a seu respeito, e da singularização dos interpretantes emocionais e (re)ativos sobre eles deve contribuir, dialogicamente, para desvendar a trapassa desse eixo de lutas.

Essa trapaça do impeachment consiste em fazer crer que a realização de seu objeto imediato, o combate à corrupção e à crise econômica, tal como mobilizado pelos empresários no Brasil e por movimentos que tem lideranças apoiadas por organizações com sede nos Estados Unidos, seria alcançado com a deposição do atual governo e a extinção do PT. Isso, entretanto, não acabaria com a corrupção que está disseminada entre muitos partidos nem resolveria a crise econômica, que afeta, em maior ou menor medida, a todos os países no mundo, particularmente aos Brics.

Porém, o grupo que assumirá o governo, com esse golpe, terá condições de implementar uma série de projetos de lei, em tramitação no Congresso, agrupados no Plano Temer, que trarão profundos reveses para a maioria da população brasileira. Tais projetos suprimem ou esvaziam direitos sociais e trabalhistas, retiram da Petrobras a condição de operadora exclusiva da exploração do pré-sal, facultando a sua participação ou não nos blocos licitados. Temer prevê, igualmente, realizar a transferência de ativos públicos à iniciativa privada, isto é, privatizar tais ativos. Isso poderia incluir a privatização da Petrobras e dos Correios, como defendido pelas lideranças do Movimento Brasil Livre.

Eis o recheio do pato amarelo, servido como peru de natal.

6.4 Disputar a Hegemonia Contrapondo Eixos de Luta

Além de desmontar o eixo de lutas do impeachment, a Frente do Povo sem Medo e a Frente Brasil Popular, em minha opinião, devem construir em diálogo com os movimentos e organizações populares e sindicais, envolvendo suas bases e lideranças, alguns eixos de luta para aglutinar e unificar a disputa de hegemonia em todo o país. Tais eixos devem partir das demandas imediatas da população, para serem capazes de mobilizar um amplo conjunto de atores populares em sua defesa; apresentar com clareza as estruturas de exploração e de dominação econômica, política e cultural que são geradoras de tais problemas e que, portanto, devem ser suprimidas; e apresentar com clareza as novas estruturas a serem construídas, possibilitando fazer surgir um novo modo de produção e de apropriação econômica e uma nova formação social.

Esses eixos de luta devem incidir sobre os fluxos materiais, de poder e de conhecimento que reproduzem as formas de opressão, exploração e dominação do sistema capitalista e as diversas semióticas opressivas de produção de subjetividade. Eles devem, igualmente, retroalimentar os fluxos de materiais, de poder e de conhecimento que possibilitam a construção de sociedades pós-capitalistas, que assegurem, para todas as pessoas, pela sua satisfatória participação nesses fluxos, na condição de sujeitos históricos, o exercício ético e mais pleno possível de suas liberdades, públicas e privadas, na realização de seu próprio bem-viver e do bem-viver de todos.

Nesse esforço é preciso reconstruir o conteúdo substantivo de alguns eixos de luta, tais como, reforma agrária, reforma urbana, economia solidária, cidadania, reforma tributária, reforma do sistema financeiro, reforma do sistema de comunicação e o combate à corrupção.

Para cada eixo desses, é necessário associar as demandas sociais imediatas e bandeiras de movimentos populares e sindicais que serão por eles atendidos; as causas dos problemas relacionadas a estruturas e dispositivos econômicos, políticos, culturais e legais que deverão ser abolidos; formular coletivamente as propostas que devem ser implementadas para o atendimento dessas demandas, que resultarão nas novas estruturas e dispositivos econômicos, políticos, culturais e legais que deverão ser implementados com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito em mosso país.

Cabe salientar, porém, que tais eixos de luta não se direcionam ao Estado em sentido restrito, mas à construção do Poder Público em sentido amplo, à construção do Poder Popular, em sentido próprio, devendo tais eixos, naquilo que for possível, serem implementados pela sociedade, com ou sem a participação do Estado.

7. Consolidar e Avançar o Combate à Corrupção

O governo Dilma fortaleceu o instrumento de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e instituiu o instrumento do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011), empoderando, com tais instrumentos, as operações de combate à corrupção no país. É preciso, agora, avançar no fortalecimento, qualificação e acompanhamento das instituições, para impedir que esses instrumentos sejam usados com fins espúrios, quando associados à violação da lei, como no caso do “acesso com exclusividade” por grupos de mídia a documentos de delação premiada, que tramitam sob sigilo processual ou segredo de justiça.

O combate contra a corrupção é um grande avanço na sociedade brasileira, devendo ser intensificado e alcançar a todas as suas ramificações em nossa sociedade. A Operação Lava Jato, apurando os crimes ocorridos na Petrobras, denunciando empresários, gestores e políticos, julgando, punindo os culpados e obtendo a reparação parcial dos danos causados à empresa, tornou-se uma das mais importantes investigações na história da nossa República. Por outra parte, a instrumentalização política dessa Operação acabou por resultar em violações da lei, com escutas ilegais e vazamentos seletivos, que ferem a Constituição e o Código do Processo Penal.

Sendo essa Operação de grande importância para o pais, ela não pode ser fragilizada ou prejudicada pela condução indevida das ações, cabendo apurar as possíveis violações legais nela ocorridas, devendo os responsáveis serem denunciados, julgados e punidos nos termos da lei. Pois, num Estado Democrático de Direito, devem ser respeitados todos os procedimentos legais, tanto para a realização das investigações quanto dos julgamentos, para que sejam corretos e justos. Igualmente, todos os direitos e garantias legais devem ser assegurados aos investigados, reafirmando a presunção de sua inocência enquanto não haja condenação criminal transitada em julgado.

8. O Enfrentamento da Crise Econômica

Sobre à crise econômica e como enfrentá-la, remeto o leitor às análises e propostas apresentadas no texto Uma Alternativa Econômica para o Brasil, que possibilitam ativar diferentes cadeias produtivas, ao conectá-las a Circuitos Econômicos Solidários, os quais mostram-se capazes de operar a libertação de forças produtivas, operacionalizando um Fundo Nacional de Investimento da Economia Solidária e assegurando o consumo sustentado da produção realizada por essas forças produtivas.

A saída da crise não pode ser alcançada pelo caminho da recomposição da taxa de lucro das empresas, através da elevação de preços dos produtos, da sonegação ou da elisão fiscal e da subtração de direitos dos trabalhadores pela via da terceirização.

9. A Deposição de Governos na América Latina pela via Jurídico-Parlamentar

Do mesmo modo que nos anos 60 e 70 do século passado vários governos foram depostos por golpes militares na América Latina, em nossa atualidade estão sendo aperfeiçoados os mecanismos de deposição de governos pela via jurídico-parlamentar.

O golpe de estado em Honduras, que destituiu o presidente Manuel Zelaya em 2009 parece ter sido uma transição entre os dois modos de atuação, tendo sido caracterizado como golpe militar pela Onu. Porém, o que o torna idêntico ao método que passou a ser usado desde então, é o fato de ter sido formalmente operado pela via das instituições, com a participação do poder judiciário e parlamentar.

O golpe de estado no Paraguai, que destituiu Fernando Lugo em 2012, contou com a anuência desses mesmos poderes e completou a transição, com o uso da figura formal do impeachment e a deposição do presidente pelo senado em processo que durou 24 horas. O Mercosul identificou tal processo como “ruptura da ordem democrática” e o Paraguai foi suspenso do bloco por um ano, por haver desrespeitado o Compromisso Democrático no Mercosul, firmado em 1998. A Unasul, igualmente, se posicionou contra o processo e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA manifestou que o julgamento, político e sumário, afetou o Estado de Direito no país. Cabe igualmente agregar que o motivo evocado para o impeachment, o “mau desempenho” de suas funções pelo presidente, era inconsistente sob o aspecto material para a adoção dessa medida.

Uma análise de hegemonia, nos dois casos, nos revela que tais golpes ocorreram como desdobramento de crises políticas, assentadas no fato de que os setores progressistas conquistaram a presidência do país mas não obtiveram uma maioria parlamentar de esquerda. Assim, a correlação de forças desfavorável possibilitou a ocorrência dos golpes.

Essa mesma condição se verifica atualmente no Brasil e na Venezuela, que também fazem parte do Mercosul. No caso brasileiro, instaurou-se o processo de impeachment. No caso venezuelano, a oposição busca aprovar uma lei que permita realizar o referendo revogatório. Em ambos os casos, a tentativa de deposição dos governos constrói um eixo de lutas que apresenta a deposição desses governos como condição de superar a crise econômica, a recessão e a inflação.

A atitude do Mercosul na suspensão do Paraguai por um ano nas decisões do bloco é um marco histórico importante no enfrentamento dessa prática. Pois, embora aparentemente legal, o impeachment realizado, tanto por seu procedimento formal quanto por seu objeto material, violou a democracia no país.

Paradoxalmente, entretanto, uma possível suspensão do Brasil no Mercosul, caso o impeachment venha a ser aprovado, contribuiria com o próprio objetivo das forças golpistas em enfraquecer o bloco.

O aprofundamento da reflexão sobre os golpes jurídico-parlamentares, associados a processos de impeachment, é urgente e necessário, pois esse mesmo mecanismo poderá ser usado contra outros governos democraticamente eleitos na América Latina.

Concluindo

O impeachment da presidente Dilma, sem a comprovação de crime de responsabilidade, corresponde a um golpe de Estado jurídico-parlamentar. Essa técnica de deposição de governos está sendo aprimorada a cada uso que dela se faz na América Latina. Assim, diferentemente do Paraguai, os prazos legais estão sendo cumpridos em nosso país. Porém, o objeto material invocado para a destituição da presidente não corresponde ao exigido pela lei 1.079/1950 como crime de responsabilidade.

Esse uso do impeachment, como golpe de Estado, não apenas está sendo aprimorado em sua forma de execução institucional, mas igualmente no modo como a adesão social a esse eixo de lutas é obtido, com o concurso das mídias de massa e da Internet, particularmente, de comunidades virtuais em redes sociais.

A forma de enfrentar esse eixo de lutas exige conectar os fluxos materiais, de poder e de conhecimento dos setores democráticos da sociedade, para desencadear ações coletivas na disputa de hegemonia, explicitando as conexões internas desse eixo de lutas, que o vincula à realização das medidas do Plano Temer, incluindo a supressão de direitos sociais e trabalhistas, o fim da exclusividade da Petrobras na exploração do pré-sal com a aprovação do projeto de José Serra e a possibilidade de transferência de ativos da União à iniciativa privada, entre os quais a Petrobras e os Correios.

Na explicitação dessas conexões é necessário trabalhar pedagogicamente com os interpretantes lógicos, emocionais e energéticos de maneria tal a subverter as semióticas hegemônicas que operam na interpretação ideológica dos fatos, normas e valores. Isso exige o uso de formas estéticas apropriadas para realizar a critica, sem reforçar a negação ao diferente, tendo como alvo os principais signos mediadores do eixo de lutas do impeachment, difusos na sociedade.

O aprofundamento dos estudos sobre esse tema no Brasil é de interesse geral para a América Latina, pois essa técnica de golpe de estado tende a se propagar por diferentes países na região, sempre que se elejam governos progressistas mas não se consiga eleger uma maioria de esquerda no congresso, que evitaria o uso fraudado desse instrumento.

Publicado em:

http://www.solidarius.com.br/mance/biblioteca/impeachment.pdf

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