Coronavirus – O Capital ou a Vida

Os dados da Organização Mundial da Saúde sobre a pandemia do coronavirus separam os números da China e do restante do mundo.

Na China, a situação está sob controle, graças a uma forte intervenção do Estado e a atuação comprometida da população em enfrentar a propagação do vírus. Mas no restante do mundo, a propagação e o número de óbitos seguem aumentando rapidamente.


Fonte: http://plataforma.saude.gov.br/novocoronavirus/

Anteontem (15/03) morreram 343 pessoas no mundo por complicações do coronavirus. Ontem morreram 862 pessoas. E, pelas  projeções, com base nos dados da OMS, mantidas as mesmas curvas, hoje possivelmente  irão morrer entre 968 pessoas, no melhor cenário (considerando a inflexão de propagação do vírus no dia 01/03) a 2.163 pessoas no pior cenário, considerando a taxa de letalidade de ontem para hoje. [*]

Se o governo brasileiro não tomar medidas inteligentes agora, milhares de brasileiros irão morrer nos próximos meses, vítimas desse vírus e também da negligência das autoridades. A China construiu hospitais em tempo recorde, estabeleceu a quarentena e o bloqueio à circulação de milhões de pessoas. A Espanha estatizou hospitais, para assegurar atendimento ao conjunto da população.

Mas, em nosso país, o Governo Federal reluta em tomar medidas necessárias, preconizadas pela própria OMS, como a testagem em massa da população. Por que o governo não faz essa testagem massiva? Será que a ideologia do livre-mercado falará mais alto que vida da população brasileira, forçando as pessoas a procurem clínicas particulares para fazer o teste, sob a desculpa de que faltaria dinheiro ao Governo para pagar por eles?

Nos EUA, como publicado pelo UOL Notíciais, “procedimentos relacionados ao coronavírus, incluindo diagnósticos e tratamentos, podem custar entre 441 dólares (cerca de R$ 2.153, segundo a cotação do dia) e 1.151 dólares (R$ 5.619)”, preços que metade da população daquele país não poderia pagar, segundo a pesquisa.

No Brasil, para quem tem plano de saúde, a empresa prestadora do serviço tornou-se obrigada a fazer o teste. Mas, quem não tem plano privado de saúde, terá que pagar, por um produto escasso, a preços muito altos, se quiser fazer o exame: “o preço dos kits vendidos no mercado é de cerca de R$ 3 mil e permite até 20 exames.” [1]. Exames nas clínicas particulares custam entre R$250,00 a R$ 560,00 em Belo Horizonte [2].

Num cenário de empobrecidos, desempregados e endividados, como no Brasil atual, o resultado dessa política será catastrófico para a saúde no país, ampliando rapidamente a taxa de propagação da pandemia entre nós.

Se essa lógica capitalista, de explorar a demanda para fazer lucro, não for substituída imediatamente pela lógica de assegurar o direito à vida da população brasileira, fazendo a testagem massiva que a OMS preconiza,  a pandemia do coronavirus vai matar dezenas ou centenas de milhares de pessoas no país, em sua maioria pobres e excluídos, enquanto alguns vão enriquecer às custas da morte desses empobrecidos e marginalizados.

É revoltante ler nos jornais que o Governo Federal espera, nas palavras de Paulo Guedes, aproveitar a situação para privatizar  empresas publicas, como a Eletrobras, no segundo semestre, sendo que, pelo contrário, deveria estar estudando a possibilidade imediata de estatizar hospitais, como ocorre na Espanha, para fazer cumprir o que a Constituição brasileira assegura aos cidadãos brasileiros: saúde pública, gratuita, universal e de qualidade. Universal significa para todos/as, indistintamente.

Dado o descaso com a propagação do vírus até agora, que parece proposital por parte do Presidente da República – ao afirmar que é “fantasia” a realidade informada pela Organização Mundial da Saúde sobre a propagação e letalidade do vírus  -,  se a população brasileira não se auto-organizar rapidamente para dar outro desfecho a essa situação, adotando por conta própria as medidas exitosas que foram adotadas nos países asiáticos, será muito difícil conter o contagio massivo entre nós. O próprio governo já estima que a taxa de contágio pode chegar a 80% superando a taxa de contágio da Itália [3].

Se isso é verdade, é preciso aumentar rapidamente o número de equipamentos para a entubação dos pacientes em estado grave que surgirão aos milhares, em poucas semanas, nos hospitais.

Pois a irresponsabilidade presente, das autoridades que desgovernam o país, nos levará a essa tragédia futura, que custará a vida de milhares de brasileiros e brasileiras, em sua maioria empobrecidos, que serão, por fim, excluídos da vida , para assegurar os lucros do capital.


Notas

[*] Nota agregada em 19/03. Com base nos dados informados pela OMS e compilados pelo Ministério da Saúde no Brasil, a cifra de 968 óbitos foi ultrapassada em, aproximadamente, 39 horas.


As Redes de WhatsApp como Armas de Guerra Híbrida na Campanha Presidencial de Jair Bolsonaro

Euclides Mance
24 / 10 / 2018



Diagrama da Rede

Pelo que conseguimos entender até agora, a campanha de Jair Bolsonaro à presidência foi enxertada numa rede de redes já pré-existente, com ramificações em diferentes países.

Toda rede é constituída por nodos (nesse caso, pessoas, grupos, comunidades, igrejas, partidos, empresas, fundações, outras instituições, etc.) e de ligações entre eles. Mas o aspecto essencial de uma rede são os fluxos, a circulação de diferentes elementos por meio das ligações que conectam os nodos.

É a partir do fluxo desses recursos que os nodos emergem na rede, se sustentam, se multiplicam e se ramificam.

É analisando os fluxos que percebemos a configuração centralizada, descentralizada ou distribuída de uma rede.

Para quem deseja se aprofundar no tema sobre as diferentes abordagens e análises de rede, deixo esse link de uma aula que ministrei sobre o assunto. [1]

Há diferentes tipos de fluxos em redes que integram a seres humanos, que podem ser resumidos em fluxos de recursos materiais, de poder e de conhecimento. Os fluxos de conhecimento são mediados por fluxos de informação e de interpretação. Os interpretantes humanos da informação são as emoções, ideias e ações, desencadeadas no receptor do fluxo pelos signos da mensagem.

Félix Guattari nos ensinou que as semióticas hegemônicas do Capitalismo Mundial Integrado operam na modelação das subjetividades [2]. Isto significa que o agenciamento capitalista do desejo, do medo e de outras intensidades humanas opera na produção da subjetividade dos indivíduos, desencadeando diferentes emoções, ideias e ações, modelando imaginários, utopias e distopias para que atuem como trabalhadores, consumidores e eleitores em favor dos objetivos do capital.  [3].

Os fluxos de rede, mediando recursos materiais, poderes e conhecimentos, na produção de subjetividades fazem surgir atores que não existiam. Contemporaneamente, a intervenção no mais íntimo da subjetividade dos indivíduos pela publicidade e propaganda é mediada por algoritmos de computação, que canalizam os conteúdos das semioses hegemônicas sob formas adequadas para atingir de maneira eficiente os públicos específicos, segundo segmentações dinâmicas.

É pela análise dos fluxos que podemos desenhar o diagrama de rede. Considerando a campanha de Bolsonaro à presidência, o diagrama de rede, que pouco a pouco vai sendo desvendado, parece organizar-se com três níveis escalares.

O primeiro é centralizado, o segundo descentralizado e o terceiro distribuído.

Nessa rede a comunicação mediada por aparelhos celulares e computadores é essencial para a obtenção da modelação semiótica dos interpretantes de amplos segmentos da sociedade para que pensem, sintam e atuem segundo os objetivos estratégicos da campanha.

Trata-se de uma estratégia de  guerra híbrida, em que o campo de operações, o território de combate, é a própria subjetividade dos alvos ou, se preferirem, dos públicos-alvo das semioses desencadeadas por meio da rede de redes que opera de forma sinérgica  na campanha.

Fluxos Centralizados no Primeiro Nível da Rede

O primeiro nível dessa rede de redes integra atores militares, políticos e econômicos. Nesse nível tomam-se as decisões estratégicas de alto-comando. Esse nível é composto por uma rede centralizada. Mas Bolsonaro não está no centro dela. Ele é apenas um ator coadjuvante em meio a um conjunto de conexões e fluxos de rede que já existiam antes dele e que dele se serve para alcançar propósitos econômicos, políticos e militares de interesse do grande capital internacional em território brasileiro.

Esse nodo central de rede da campanha, composto por diferentes atores, administra fluxos de recursos, de poder e de comunicação que alimentam os hubs do segundo nível de rede.

Cada um desses atores do nodo principal possui conexão com outras redes, no Brasil e no exterior, vinculados a interesses próprios.

Assim, como mostramos no livro “O Golpe”, jovens brasileiros, que foram capacitados por organizações norte-americanas [3] [4], assumiram o controle do Partido Social Liberal [5] que, depois, tornou-se a legenda de suporte da candidatura de Bolsonaro para implementar as reformas que interessam ao capital internacional, como a privatização das estatais e a entrega do petróleo brasileiro a empresas multinacionais [6] .

Fluxos Descentralizados no Segundo Nível da Rede

O segundo nível dessa rede de redes é descentralizado. Isto é, cada hub do segundo nível está conectado a um determinado conjunto de nodos do terceiro nível e não a todos eles. A conexão se faz basicamente por meio do WhatsApp. Por sua vez, Facebook, Twitter, Instagram e Youtube são importantes para a segmentação dos públicos segundo suas preferências e para posicionamento aberto de diferentes conteúdos.

Como as contas dos usuários em diferentes redes exigem números de telefone para a sua validação, os algoritmos do sistema usado na campanha podem cruzar os números de telefone do WhatsApp com os números usados para validação da conta do usuário nessas outras redes.

A partir desse cruzamento torna-se possível gerar bases de dados gigantescas, segmentadas pelas preferências e interesses dos usuários.

Com tal segmentação torna-se possível direcionar os conteúdos no WhatsApp a públicos específicos de modo que o agenciamento dos interpretantes mentais, emocionais e ativos dos eleitores seja mais eficiente para levá-los a votar em Bolsonaro.

O Brexit [7] e a eleição de Trump [8] comprovaram a eficiência desse modelo, adotado pelas forças de direita em outras nações e  agora no Brasil para fraudar, sob o aspecto substancial, as eleições no país, induzindo a população a escolher candidatos com base em notícias falsas, em imagens e vídeos montados por equipes de especialistas, que levam a tomar o que é imaginário como se fosse real, submetendo as subjetividades dos receptores dessas mensagens a um bombardeio constante de semioses que agenciam aversão, medo, raiva e ódio, que são sentimentos e intensidades mais facilmente manipuláveis para mobilizar as condutas esperadas do público-alvo.

É nesse segundo nível que os robôs ou bots – como preferirem –, operando com algoritmos de inteligência artificial, cumprem um papel central e indispensável na organização do fluxo de comunicação. Pois seria impossível a uma equipe de seres humanos ler milhões de mensagens para classificá-las e redistribuí-las rapidamente. Essa tarefa é realizada por esses programas.

Passado o primeiro turno das eleições, o Whatsapp desativou mais de cem mil contas da campanha de Bolsonaro que cumpriam esse papel de segundo nível na redistribuição de mensagens falsas para o terceiro nível da rede [9].

No primeiro nível, o aplicativo adotado para o intercâmbio de mensagens era o Telegram:

“A gestão da rede de grupos de WhatsApp acontecia toda no Telegram, aplicativo de mensagens russo. Nos grupos dessa cúpula, de acordo com os relatos, estariam os Bolsonaros, assessores diretos, representantes das agências contratadas e alguns militantes de confiança. Estes dispunham de chips da campanha para gerir braços dessa rede. Muitos recebiam o conteúdo diretamente dos criadores, a fim de quebrar a cadeia de comando e dificultar acusações de que a campanha veiculava notícias falsas.”  [10]

Para reparar o seu sistema de comunicações no segundo nível da rede, a campanha de Bolsonaro parece ter migrado parte  dos bots do segundo nível também para o Telegram [11].

Tais robôs, providos de alguns mecanismo de inteligência artificial, fazem-se passar por usuários dessas redes. E, operando a partir de números de telefone do exterior [12], podem disparar milhões de mensagens para os hubs do terceiro nível da rede, integrados em comunidades de diferentes tipos, que abastecerão as pessoas realmente existentes com um conteúdo filtrado, segundo os parâmetros desses algoritmos.

Tais hubs são nodos hiperconectados em relação aos demais nodos de seu nível. Assim, os nodos do nível 2 são, igualmente, hubs do nível 3, cumprindo o papel de mediar conteúdos, segundo a deliberação do alto comando da campanha no nível 1, fazendo tais conteúdos chegarem às pessoas de carne e osso por meio indireto, alimentando grupos de famílias, comunidades, Igrejas e outras instituições.

Ao ter sua conta banida do WhatsApp,  Flávio Bolsonaro protestou:

“A perseguição não tem limites! Meu WhatsApp, com milhares de grupos, foi banido DO NADA, sem nenhuma explicação! Exijo uma resposta oficial da plataforma” [13]

Mas como um ser humano poderia normalmente interagir com milhares de grupos ao mesmo tempo?

O papel dos robôs, no segundo nível dessa rede, é essencial para o funcionamento dela como um todo.

Do mesmo modo que temos filtros de mensagens, que as arquivam em diferentes pastas ou as caracterizam com diferentes atributos assim que elas chegam em nossa caixa de correio eletrônico, tais bots filtram e distribuem o conteúdo das mensagens de WhatsApp para os diferentes grupos, enviando conteúdos selecionados  para conjuntos específicos de usuários.

O mais importante para a equipe contratada pela campanha, que alimenta os bots do segundo escalão com mensagens, memes e vídeos são as palavras-chaves, as tags programadas no algoritmo, que identificam o conteúdo disparado. Pois é a partir delas que o programa filtra o que deve ser enviado para cada segmento do público.

Mas, esses bots, ao que tudo indica, também fazem um movimento inverso, filtrando as mensagens que recebem dos nodos do terceiro nível da rede, com os quais estão conectados. E quando os critérios previstos no algoritmo de tratamento dessas mensagens são cumpridos, como volume de curtidas de pessoas reais, a existência de palavras chaves em seu conteúdo, formato e tamanho, etc, a mensagem é disparada para os demais bots do segundo nível, que igualmente operam como hubs de distribuição por meio dos diferentes canais de comunicação a que estão conectados.

A depender do grau de automação desses programas, a liberação desse disparo final de mensagens – vindas do terceiro nível – para o conjunto dos hubs do segundo nível, que deverá reenviá-las ao conjunto dos nodos do terceiro nível da rede, pode depender da ação de um moderador humano, que segue as diretrizes do primeiro nível da rede. Em caso de dúvida, este moderador pode contar com uma decisão do primeiro nível da rede, sobre o que deve ser distribuído ou não, com base no arsenal heurístico obtido através de empresas de marketing e do monitoramento dos próprios usuários, verificando os ajustes a serem feitos na realimentação do fluxo de mensagens, conforme o rastreamento da sua repercussão.

Fluxo Distribuído no Terceiro Nível da Rede

O terceiro nível da rede é distribuído – a conexão se faz ponto a ponto – “per to per” – com alta capilarização e participação do receptor na agregação de maior carga de interpretantes ao redistribuir a mensagem recebida, adicionando-lhe comentários.

Aqui se trata, de fato, das pessoas que recebem mensagens em seus celulares e as repassam adiante, para grupos familiares, de igrejas e outros. Nesse caso, os filtros já não são mais os previstos num algoritmo computacional, mas contam com o feeling do receptor que faz a triagem de qual conteúdo irá reenviar para qual pessoa ou para qual grupo.

Ao agregar seus próprios comentários a uma fake news como se fosse uma notícia verdadeira, o participante empresta a ela a sua própria credibilidade – embora não tenha verificado a sua autenticidade, o que poderia levar horas ou dias de pesquisa.

Assim, ao agregar seus comentários à mensagem e reenviá-la aos seus pares, aumenta a credibilidade da mensagem enviada, pois a sua própria reputação no grupo é tomada por terceiros como elemento de validação daquilo que compartilha.

Tais reenvios ocorrem, entre outros aspectos, porque, para não se sentirem isoladas nos grupos, as pessoas necessitam se manifestar e o fazem de modo a serem confirmadas como membros do próprio grupo, evitando gerar dissonância cognitiva em seu interior. Ao receber por mais de uma fonte, entre seus pares, algum conteúdo idêntico, tende a considerá-lo um conteúdo válido, podendo consolidar seus vínculos no grupo ao compartilhar com os demais um conteúdo novo recebido, pois ele está afirmado por mais de uma pessoa confiável no conjunto de suas relações.

Em razão desse mecanismo, ela tende a reafirmar o que circula pelo grupo como posição válida pela maioria e como elemento de confirmação de seu próprio pertencimento ao grupo.

E depois de fazer o mesmo com várias mensagens, passa a refutar outras, que receba de outras fontes, que discordem das posições por ela já assumidas publicamente em suas redes, evitando entrar em dissonância cognitiva consigo própria ou em contradição com suas comunidades de referência, das quais busca a aprovação e não a reprovação pública.

Com base nos critérios de segmentação adotados na montagem do segundo nível de rede, as mensagens são distribuídas para os hubs de terceiro nível conforme a natureza identitárias dos grupos nos quais eles operam como cabeça de rede.

Na campanha de Bolsonaro, foram distribuídas milhões de mensagens falsas pelo WhatsApp, ao ponto da empresa eliminar, como vimos, mais de 100 mil contas que operavam no segundo nível dessa rede de veiculação de conteúdo falso [14].

O signo e seu objeto

O objeto da guerra semiótica dessa nova classe de totalitarismo está na interpretação da relação entre o signo (imagens, textos, etc) e seu objeto (aquilo que ele representa) – pois o signo pode representar falsamente o objeto. Porém, se a representação falsa é bombardeada como sendo verdadeira e o interpretante aplicado pelo alvo da semiose, isto é, pelo eleitor, for a de que o signo corresponde verdadeiramente ao objeto, então o falso é tomado por verdadeiro e pode determinar a sua escolha sobre em quem votar.

Do ponto de vista lógico, afirmar a falsidade da falsa representação requer afirmar que um predicado não se aplica verdadeiramente a um sujeito. Mas, para isso, é preciso primeiramente pensar os dois elementos – o sujeito e o predicado – para então afirmar que o predicado não se aplica ao sujeito, correlacionando-os de maneira negativa. Assim, para refutar a falsidade é preciso correlacionar ambos os termos mediante uma negação lógica.

Contudo, politicamente, tal refutação pode operar como reforço da própria acusação, pois ela reativa no interlocutor a relação simbólica entre o signo e o objeto, entre o sujeito e o predicado, para afirmar que o signo representa falsamente o objeto. Porém, se o interpretante de mentiroso é aplicado ao interlocutor que tenta provar que o argumento é falso, quanto mais ele argumenta mais será confirmado como mentiroso e será, assim, reforçada a percepção de que a própria mentira, amplamente difundida, é uma verdade.

Isso torna a massiva difusão de fake news – que penetra as redes de terceiro nível da campanha de Bolsonaro e de outras campanhas idênticas de direita em outros países – uma arma poderosa de manipulação das sociedades, no contexto atual das Guerras Híbridas.

Guerra Híbrida

Um documento recente do Departamento de Defesa dos Estados Unidos se refere a diferentes âmbitos da ação militar, nos quais a supremacia do país deve ser consolidada – terra, ar, mar, espaço e ciberespaço:

“Durante décadas, os Estados Unidos desfrutaram de superioridade incontestável ou dominante em todos os domínios operacionais. […] Hoje, todos os domínios são contestados – ar, terra, mar, espaço e ciberespaço.” [15]

Embora isso possa parecer surpreendente para alguns,  o ciberespaço é um domínio operacional de ação militar das Forças Armadas dos Estados Unidos desde o início da Internet ou mesmo antes dela.

De fato, a rede global de computadores que hoje conecta também a maior parte dos telefones celulares e muitas outras coisas no mundo todo, nasceu a partir da Arpanet – um projeto militar de defesa dos Estados Unidos  [16] –, sendo, desde o seu início, um dos campos de ação militar no qual as forças armadas do país atuam com vistas a assegurar a sua superioridade.

Antigos métodos de propaganda, contrapropaganda e desinformação, levados a cabo no passado por órgãos de inteligência dos Estados Unidos, hoje são implementados por redes de fundações e de outras organizações da sociedade civil [17] que recebem milhões de dólares em doações para capacitar lideranças, como as que tomaram o controle do Partido Social Loberal – PSL e consolidaram redes de jovens que promoveram o impeachment de Dilma e que agora atuam pela eleição de Bolsonaro. Sobre os procedimentos adotados nessas ações, veja-se o item “Ação Aberta” (seção 1.5.8) e o capítulo 4 do livro O Golpe [16]

Tais procedimentos integram diferentes táticas de guerra política e ciberguerra, com a propagação de fake news, emprego de lawfare e de intervenção eleitoral com apoio externo. Nesse contexto, é extremamente preocupante a meta de Bolsonaro em liberar o acesso e o porte de armas de combate (pistolas e fuzis) para a população em geral.

O núcleo duro desta rede pode ser detectado pela análise do fluxo de recursos e de conhecimento que possibilita a sua própria sustentação e propagação. Ele está nos Estados Unidos: desde o treinamento de lideranças do MBL, com recursos da Atlas Network e do Students for Liberty, até o apoio à transformação do PSL para abrigar a campanha de Bolsonaro ou à transposição de propostas do Partido Libertariano para o Brasil.

Trata-se de uma rede de redes que, a cada dia, vamos compreendendo um pouco melhor em sua extensão e funcionamento.


O Futuro do Turismo no Brasil e as Eleições de 2018

Euclides Mance
12/10/2018

Imagine que você resolva sair com a família para ir a um restaurante num belo domingo ou para se encontrar com os amigos num bar num sábado a noite ou se hospedar num hotel em Santa Catarina, para curtir um fim de semana nas belas praias de Florianópolis.

Mas, chegando ao seu destino, você percebe que, espalhados pelas mesas do restaurante, em frente ao balcão do bar ou no hall do hotel, estão sentados vários homens, armados com revólveres e pistolas, aparentemente clientes do estabelecimento.

O que você faria? Ficaria nesse ambiente ou buscaria outro lugar para estar mais relaxado com a família, com os amigos ou para passar um fim de semana?

Santa Catarina e outros estados brasileiros devem perder muitos turistas, especialmente do exterior, a depender do resultado das eleições de 2018. Pois ambientes com armas de fogo nas mãos de desconhecidos, que entram e saem dos estabelecimentos comerciais, afugentam os turistas que querem apenas relaxar.

Um dos candidatos a presidente já afirmou em vídeo que fará o possível para que todos os cidadãos de bem no Brasil tenham uma pistola como a Taurus TS e que produtores rurais tenham um fuzil como o Taurus T4.

Mas você sabe qual é a diferença entre um revólver e uma pistola?

Veja o que diz uma empresa especializada:

O revólver é conhecido por muitas pessoas como uma arma de defesa, já que está sempre pronto para ser utilizado sem a preocupação se está travado ou não. Em caso de falha de munição outro disparo pode ser efetuado com maior facilidade. Por outro lado, possui pequena quantidade de munições e leva mais tempo para ser recarregado.

As pistolas são consideradas armas de combate, pois possuem maior capacidade de número de munições, podem ser disparadas e recarregadas rapidamente […]. [1] [2]

O revólver possui de 5 a 8 munições ao passo que a pistola possui de 15 a 19. [3]

Veja, no vídeo abaixo, que um dos candidatos a presidente propõe que os cidadãos tenham pistolas e fuzis, isto é, armas de combate. E, para facilitar o acesso a essas armas pela população, ele propõe revogar a legislação a respeito.

Mas você sabe o que a legislação atual exige para que alguém possa comprar uma arma e andar armado pelas ruas? Basicamente comprovar que possui condições psicológicas e fez um curso de tiro para manuseá-la, devendo registrá-la junto à Polícia Federal e obter a autorização para o porte de arma de fogo.

Veja o que diz a lei:

Art. 4o Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:

I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;

II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;

III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei. [4] [5]

Pela lei, se o proprietário não tiver o porte da arma, esta deve ser mantida em sua residência ou em seu estabelecimento comercial. Mas veja o que diz a lei para a obtenção do porte de arma de fogo:

Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.

§ 1o A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:

I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;

II – atender às exigências previstas no art. 4o desta Lei;

III – apresentar documentação de propriedade de arma de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente.

§ 2o A autorização de porte de arma de fogo, prevista neste artigo, perderá automaticamente sua eficácia caso o portador dela seja detido ou abordado em estado de embriaguez ou sob efeito de substâncias químicas ou alucinógenas. [6]

Se você fizer um comando de busca no Google por “despachante de armas” você encontrará mais de 30 mil resultados. Do mesmo modo que existem despachantes do Detran para facilitar a compra e venda de veículos ou solucionar questões referentes à habilitação de condutor, há despachantes que atuam com armamentos e habilitação para o porte de armas.

A conclusão a que podemos chegar é que alterar as condições atuais para a compra e porte de armas de fogo não aumentará a segurança dos cidadãos, pois tende a elevar o número de tiroteios e de balas perdidas no país. Mas, seguramente, afugentará os turistas, especialmente os estrangeiros, que vêm ao Brasil, como no caso de Santa Catarina.

O que o candidato propõe vai além das pessoas se armarem com armas de defesa. O que ele deseja, conforme o vídeo abaixo, é que a população se arme com armas de combate, porque segundo ele “povo armado jamais será escravizado”.

Mas o que farão os seguidores do candidato, depois que estiverem armados com armas de combate, com pistolas e fuzis? Se o candidato diz que não é capaz de conter a violência de seus apoiadores agora, como será depois, se a compra e o porte de armas de combate forem facilitados?

Você já parou para pensar sobre quantas pistolas, fuzis e munição o crime organizado irá amealhar simplesmente roubando-os dos cidadãos, enquanto estes estiverem distraídos olhando o telefone celular?


Que fazer do seu voto para presidente?

Euclides Mance
07/10/2018

Escrevo essa mensagem pensando em você que pretende votar nulo ou branco, ou que ainda não está seguro da opção que escolheu.

O que eu gostaria de refletir com você é que o medo e o ódio não devem orientar nossas escolhas, pois eles não levam a boas soluções.

Explorando o medo que as pessoas têm de ser assaltadas, o discurso do ódio afirma que elas devem andar armadas para matar o assaltante. Porém, com o aumento das vendas de armas e de munição, com o aumento de pistolas e fuzis por toda parte, aumentará também, por toda parte,  o número de tiroteios e de balas perdidas. E, assim, além do medo de ser assaltado, aumentará também o medo e as chances reais de você e de seus filhos morrerem por balas perdidas, em cinemas, escolas, farmácias, no trânsito e em postos de gasolina, como ocorre nos Estados Unidos e você vê nas TVs todos os meses.

E o bônus, almejado pelos assaltantes, será levar consigo também a pistola ou o fuzil das vítimas, aumentando assim o arsenal de amas e de munição em posse do crime organizado.

Em resumo, o ódio e o medo não trazem uma boa solução para o problema. E se tal solução for posta em prática, ela agravará, ainda mais, o próprio problema da segurança de todos.

Do mesmo modo, afirma-se que, para combater a corrupção, seriam melhor uma ditadura e um líder forte. Dizem que é melhor um Estado autoritário, inclusive para forçar as pessoas a agirem segundo a moral da maioria, devendo todos obedecerem às imposições do presidente, que adotaria uma nova Constituição escrita por notáveis, isto é, pelas pessoas que ele indicar, e que seria aprovada pela maioria da população que o defende como líder. E que os seus opositores devem ser combatidos sem trégua por seus seguidores nas redes sociais, nas escolas, em processos judiciais, com memes e prisões. Que os livros de história devem ser reescritos, para afirmar que não houve uma ditadura no Brasil, mas apenas um movimento militar a partir de 1964.

Porém, se o ditador manda e todos devem obedecer, se a história do passado e do presente serão reescritas segundo a vontade dessa maioria e ninguém pode mais investigar o ditador e seus notáveis, nem as privatizações que ele conduzirá e as empresas que realizarem as obras de seu governo, não se poderá mais apurar os casos de corrupção que ocorram nessa ditadura e tampouco saber do paradeiro dos que venham a ser mortos por se levantar contra ela em defesa da democracia, como ocorreu no Brasil e em países vizinhos nas décadas de 1960 e 1970.

Assim, a solução encontrada pelo ódio para enfrentar a corrupção agrava, ainda mais, o próprio problema.

Você já reparou quantas mensagens você já recebeu falando do futuro de nosso país? Que o Brasil se tornará uma ditadura, com um governo autoritário e comunista? Elas buscam despertar o medo e o ódio. E o que essas mesmas pessoas propõem para evitar que o Brasil se torne uma ditadura comunista? Que você vote num candidato que defende torturadores [1] e cujo vice defende que a democracia pode ser sacrificada por um autogolpe militar [2] para pôr fim a uma possível anarquia no país [3].

Essas mensagens propõem que você vote num candidato que já defendeu a guerra civil como meio para solucionar os problemas do Brasil [4] e que defende que a população possa comprar armas e munição com facilidade [5].

Não é difícil concluir para onde o ódio e o medo estão levando o nosso país. Se houvesse resistência ao autogolpe militar, nenhum impeachment seria possível para destituir o presidente, pois os seguidores do líder, defensores da ditadura, empunhariam suas pistolas e fuzis, levando às vias de fato a guerra civil defendida por Jair Bolsonaro, no passado, como solução para os problemas do Brasil. Mortos seriam os opositores. E repare, pelas mensagens que você já recebe nas redes sociais ou vê nos comentários dos leitores na Internet, que qualquer um que pense diferente desse líder e de seus seguidores é chamado de bandido, corrupto, imbecil ou lixo da humanidade, entre outras expressões de baixo calão. Ele próprio, em tom de escárnio, afirmou há poucas semanas: “vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”  [6].

Pense bem se é realmente uma boa ideia você votar nulo ou branco.

Não existe nenhuma organização humana, partidos ou governos perfeitos. Mas, com a democracia é possível avançar na melhoria da sociedade, pensando em todos, respeitando os diferentes modos de pensar e de viver.

Não se deixe guiar pelo medo, pelo ódio ou pelos preconceitos criados contra pessoas, partidos ou religiões. Medo, ódio e preconceito não trazem boas soluções. Jair Bolsonaro, pelas declarações que fez e faz, não tem compromisso com a democracia nem com a defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana, explicitados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, firmada em 1948 pelas Nações Unidas para que as atrocidades da segunda guerra mundial, do nazismo e do fascismo nunca mais se repetissem. Ele não teve compromisso nem mesmo com as cadeias de comando das Forças Armadas, como o comprova o processo disciplinar que sofreu [7] e que lhe deu a visibilidade e projeção que passou a explorar politicamente [8].

Jair Bolsonaro não serve para ser presidente do Brasil.

Peço que reflita se não é melhor votar em Fernando Haddad, candidato de um partido que nasceu combatendo a ditadura militar em 1980, que sempre defendeu a democracia e cujo programa de governo não deixa dúvidas quanto às suas propostas. Não existem partidos perfeitos, programas perfeitos, nem candidatos perfeitos. Mas, na democracia, sempre devemos escolher, em cada situação, o que seja melhor para o bem público. O medo e o ódio, que semeiam a morte com pistolas e fuzis, que animam um autogolpe militar e que propagam elogios a torturadores não nos conduzem a um Brasil melhor.


Será o Fim do PSDB?

Euclides Mance
02/10/2018

Numa sociedade democrática os diferentes partidos políticos representam diferentes projetos de país, que se expressam em diferentes programas e maneiras de realizá-los.

Quando o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) nasceu, ele possuía um programa social-democrata e uma identidade própria no quadro político do país. Entre os objetivos de seu programa estavam: “defesa da renda dos trabalhadores, combate à pobreza, universalização do acesso à escola, aos serviços de saúde e à seguridade, modernização do estado e estabilização da economia […] a democracia, a justiça, o desenvolvimento e a soberania nacional.” [1]

Por isso, no segundo turno das eleições de 1989, com base em seu Programa, o PSDB apoiou o PT, em oposição ao projeto político representado por Fernando Collor de Mello.

Alguns anos depois, entretanto, no transcorrer dos governos de FHC (1995-2002), o PSDB renunciou progressivamente à social-democracia que leva em seu nome e assumiu o ideário neoliberal, defendendo extensas privatizações, um Estado mínimo e a abertura irrestrita do país ao capital internacional visando a internacionalização do mercado interno. Tornou-se, na prática, um partido neoliberal, representando interesses dos diferentes setores do capital, particularmente o financeiro e o internacional.

Ao renunciar à sua identidade social-democrata e mover-se ao sabor dos ventos do grande capital, o PSDB passou a aglutinar e expressar as forças que eram contrárias ao projeto político e ao programa democrático e popular defendidos pelo Partido dos Trabalhadores.

Derrotado nas urnas pelo PT e fazendo uma oposição errante, o PSDB perdeu definitivamente sua referência interna de coesão programática, para tonar-se um partido organizado em torno das orientações pessoais de suas principais lideranças, simplificando, externamente, o seu discurso eleitoral, apresentando-se como o polo anti-PT.

Incapaz de derrotar eleitoralmente o projeto político petista de crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social, o PSDB, após quatro reveses consecutivos na disputa presidencial, conduziu o país ao trauma do impeachment, acolhido como um atalho para chegar ao poder. Coube ao partido, com seus vários ministérios no Governo Temer, entregar o pré-sal a grupos estrangeiros, privatizar refinarias e gasodutos, entregar o controle do satélite de defesa brasileiro a uma empresa norte-americana e aprovar várias reformas e medidas que eliminaram direitos dos trabalhadores, congelaram os gastos com saúde e educação por 20 anos e feriram a soberania nacional.

Com o fracasso retumbante do Governo Temer, o PSDB corre agora o risco de desaparecer como partido político e reduzir-se a uma sigla qualquer, após ter sido posto ao serviço de interesses de lideranças partidárias, que colocaram seus projetos pessoais acima dos interesses do país.

Veremos nas próximas semanas se o PSDB abdicará também do Democrático que leva em seu nome. Veremos se tomará posição, como partido, em defesa da democracia, orientando seus eleitores a não votarem em Bolsonaro/Mourão em razão destes defenderam tanto a legitimidade de um Autogolpe Militar, que poderia ser desfechado pelo presidente para conter a “anarquia” no país, quanto a possibilidade de elaboração de uma nova Constituição sem a participação de constituintes eleitos pelo povo, mas feita por “notáveis”, escolhidos pelo presidente para tornar o país governável; bem como, em razão dos seus elogios aos torturadores da última ditadura militar no Brasil e por defender que Pinochet deveria, no Chile, ter matado um maior número de opositores; enfim, em razão das posturas fascistas e preconceituosas defendidas por ambos.

Veremos se o PSDB aproveitará esse momento histórico para reassumir um projeto social-democrata em defesa da “renda dos trabalhadores” e não do lucro do capital financeiro, de “combate à pobreza” e não em defesa do capital internacional, de “universalização do acesso à escola, aos serviços de saúde e à seguridade” e não da privatização desses serviços, o que reduz o seu acesso a quem possa pagar por eles; em favor da “modernização do Estado e da estabilização da economia” que levaram o Brasil a 12 anos de crescimento econômico com distribuição de renda e inclusão social; em defesa da “democracia”, da “justiça”, do “desenvolvimento” e da “soberania nacional” e não do autoritarismo, da entrega das riquezas do país ao capital estrangeiro e do uso do poder judiciário para a prática da perseguição política,  num Estado de exceção, que viola liberdades fundamentais dos cidadãos, a sua intimidade e vida privada,  que viola a honra e a imagem das pessoas, solapando cada vez mais o Estado Democrático de Direito, para implantar, em seu lugar, um Estado Autoritário de caráter fascista, que exalta o uso das armas de fogo pela população para conter a violência com mais violência, com mais balas e vidas perdidas.

É hora do PSDB reencontrar o seu programa de origem, honrar os termos Social e Democracia que leva em seu nome e abandonar o caminho fácil de surfar nas ondas do mercado, do preconceito e da ignorância. Pois se não o fizer, estará extinto como partido político e terá se convertido apenas numa sigla coadjuvante de outra qualquer na encarnação do discurso preconceituoso anti-PT, afirmado na virulência de uma linguagem recheada de adjetivos grotescos; linguagem que, quanto mais chula, mais parece alcançar o inconsciente coletivo do ódio que se descarrega contra algum outro, convertido em bode expiatório de todos os males, dos quais o Brasil seria purificado com a eleição de um presidente fascista, vestido de verde e amarelo.

O Golpe – BRICS, Dólar e Petróleo

Euclides Mance
04 /08 / 2018

O livro “O Golpe – BRICS, Dólar e Petróleo” (ISBN: 978-85-69343-45-5) pode ser descarregado neste link:

http://www.euclidesmance.net/docs/o_golpe.pdf

Realizamos nessa obra uma análise muito detalhada e amplamente documentada do golpe de estado ocorrido no Brasil em 2016, abordando o contexto nacional e global em que ele foi consumado, alguns mecanismos adotados em sua execução e alguns objetivos já alcançados com a sua realização.

Preservando a cronologia dos acontecimentos e aprofundando os aspectos mais relevantes, o livro foi organizado em seis unidades de conteúdos.

Na primeira parte mostramos o impressionante crescimento econômico dos BRICS, desde a sua criação, e o modelo de desenvolvimento com distribuição de renda adotado pelo Brasil a partir de 2003. Mostramos como o crescimento econômico dos BRICS tornou-se um dos principais desafios à manutenção da hegemonia global norte-americana. Em seguida, detalhamos alguns elementos da crise econômica de 2015 no Brasil, a importância do pré-sal brasileiro para os Estados Unidos, os principais aspectos do cenário interno do golpe e a participação de empresas, organizações, agências e autoridades norte-americanas no desenrolar dos acontecimentos. Na sequência, explicitamos os principais instrumentos usados na realização do golpe e alguns de seus frutos para os Estados Unidos, suas empresas, organizações e investidores.

Na parte intermediária, tratamos do regime de exceção implantado no país a partir de 2016 e da violação de direitos humanos no Brasil atual. E, à luz do que ocorreu em outros países que viveram processos semelhantes, sintetizamos o que pode ser chamado de “Manual do Golpe”, detalhando os dez elementos metodológicos mais recorrentes em sua realização.

Na parte final, destacamos alguns aspectos dos golpes de estado recentemente executados na América Latina – Venezuela (2002), Haiti (2004), Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016) – e de intervenções similares ocorridas no Oriente Médio, no transcurso da Primavera Árabe.

Os elementos destacados nessa parte do livro servem de insumo para a projeção de cenários possíveis com respeito à movimentação das forças golpistas num futuro próximo, em que estas buscarão, a qualquer custo, impedir a retomada do desenvolvimento soberano do país com distribuição de renda e a recuperação, pelo Estado brasileiro, do domínio nacional tanto sobre a lavra de suas jazidas de petróleo e de gás natural quanto sobre a propriedade de gasodutos e refinarias, que foram transferidos ao controle estrangeiro pelas forças golpistas, lesando o patrimônio público e ferindo a soberania econômica nacional.

Se o leitor desejar retribuir ao autor por haver recebido gratuitamente o livro, pode realizar uma assinatura do site euclidesmance.net por um único mês, no valor de R$ 25,00, ou por um período maior à sua escolha.

O lançamento oficial do livro ocorrerá no dia 22/08/2018, às 19:00hs, numa aula do curso sobre o golpe, a realizar-se na Universidade Federal do Paraná, Edifício D.Pedro I, Anfiteatro 100.

 

Falácias de Moro

Euclides Mance
29 / 12 / 2017

O livro “Falácias de Moro” (ISBN: 978-85-69343-40-0) pode ser descarregado neste link:

http://www.euclidesmance.net/docs/livro_falacias_de_moro.pdf

Nele realizamos uma análise exaustiva das principais inconsistências lógicas, tanto semânticas quanto formais, presentes na sentença condenatória do ex-presidente Lula no caso do triplex do Guarujá.
 
O livro se divide em duas partes, demonstrando que os argumentos do juiz violam frequentemente as leis da lógica para obter conclusões que não podem ser validamente obtidas.

Na primeira parte, analisamos dez falácias, explicando-as uma a uma, indicando sua forma lógica e a nomenclatura  filosófica recorrente na tipificação desses raciocínios falhos, facilitando sua análise e estudo com base na tradição acadêmica.

Na segunda parte, percorremos a sentença como um todo, evidenciando os diferentes erros lógicos cometidos pelo juiz no transcorrer de sua argumentação. E mostramos como a condenação do ex-presidente está apoiada justamente nessas inconsistências lógicas.

A primeira versão desse estudo foi publicada em agosto de 2017 pela Agência Latino-Americana de Informação – ALAI. https://www.alainet.org/en/node/187329

Agradeço a interlocução realizada, nas semanas seguintes, com professores de lógica que trabalham em diferentes universidades no Brasil, possibilitando aperfeiçoar aquele estudo inicial, ora publicado como livro.

Boa leitura a todos/as.

 

 

O voto como capital político

Euclides André Mance
26 de Maio de 2017

O dinheiro somente funciona como capital quando é  investido num processo de produção e/ou de intercâmbio que visa resultar em mais dinheiro do que o inicialmente investido, sendo acumulado esse valor a mais, no todo ou em parte, por seus controladores.

Tudo o que possa ser capturado sob esse movimento de valorização e acumulação econômica pode se converter em capital. Assim, pessoas, comunidades e a inteligência humana se convertem em capital humano, capital social e capital intelectual, pois podem ser explorados na valorização do capital, tornado-se, desse modo, fatores de valorização do capital e de acumulação de riquezas.

Como temos visto no Brasil, esse mesmo movimento pode ocorrer pela subordinação dos votos, conferidos no interior dos aparelhos de Estado, ao processo econômico de acumulação de capitais, sendo pois convertidos em capital político à disposição de seus controladores.

O processo é similar ao modo como o grande capital, disputando mercados, busca obter o controle de empresas de capital aberto, comprando a maioria das ações ordinárias com direito a voto.

A diferença é que, neste caso, trata-se de obter o controle sobre decisões do Estado, financiando a maioria das campanhas eleitorais ou oferecendo propinas aos agentes públicos com poder de decisão, obtendo-se com tais investimentos — respectivamente, de longo e de curto prazos –, a quantidade de votos necessária à aprovação ou rejeição de projetos e programas em favor dos interesses dos controladores desse capital político, isto é, desse capital que, investido no processo político, resulta em acumulação econômica de mais capital.

Assim, na atividade de reprodução ampliada de seu poder político, como mediação para a reprodução ampliada de seu capital econômico, somente uma empresa, a  JBS, distribuiu propinas a 1.829 candidatos de 28 partidos, somando mais de R$ 600 milhões, fora as doações legais no financiamento de campanhas eleitorais [1].

Algumas grandes empresas chegaram mesmo a estruturar departamentos internos com funcionários destacados para cuidar de preservar seu capital político no interior do Estado, tanto pelo fluxo contínuo na eleição de candidatos comprometidos com suas pautas econômicas quanto pela posterior manutenção de sua lealdade através de pagamentos periódicos — para que atuassem como passarinhos felizes que cantam ao receber o alpiste [2].

Chegaríamos a uma cifra seguramente estarrecedora, se fosse possível saber e somar tudo o que foi investido pelo conjunto das empresas capitalistas  na eleição de parlamentares que operam como seus representantes no interior do Estado e na compra posterior de votos de outros parlamentares, não inicialmente financiados por elas, para aprovar seus projetos estratégicos ou para derrotar projetos que são contra os seus interesses  em câmaras de vereadores, assembleias legislativas e no Congresso Nacional .

Mas dado que no Reino dos Fins, como dizia Kant, tudo tem seu preço ou a sua dignidade, o capital nunca consegue comprar os votos de todos, pois a consciência e a dignidade de uma parte dos eleitos não estão à venda nesse mercado. E quando a sociedade, exercendo criticamente seu voto, elege como seus representantes — nas esferas do poder executivo e legislativo —  pessoas historicamente comprometidas com os interesses dos mais pobres e excluídos, com a defesa dos direitos dos trabalhadores e a justa distribuição da riqueza socialmente produzida, as bancadas do capital não conseguem exercer seu poder político como forças da situação. E, embora tentem cooptar os eleitos em tudo o que seja possível, agem de fato como forças de oposição.

Dessa forma, as organizações do grande capital montam sempre suas bancadas, maiores ou menores, financiando as campanhas de seus parlamentares, para atender aos interesses de suas empresas em particular e, no geral, aos interesses da classe econômica de que fazem parte. Cabe recordar que o próprio golpe de Estado, que deu origem à República Brasileira foi patrocinado por forças econômicas, particularmente latifundiários e cafeicultores, que aumentavam seus ganhos com a imigração de mão-de-obra europeia para suas lavouras, substituindo assim o trabalho escravo pelo trabalho assalariado. Para a consumação daquele golpe de 1889, coube às forças políticas e militares imporem à sociedade a nova ordem que traria o progresso ao país.

Em nossa história, como na história dos demais países, as bancadas do grande capital, são compostas por parlamentares de diferentes partidos políticos. Para compreender isso, cabe recordar o sentido histórico e originário da palavra partido,  que significa uma parte da sociedade, que defende um mesmo projeto ou interesses comuns.

Tais parlamentares, independentemente de suas legendas partidárias, são braços do que se pode chamar, com propriedade, de partido econômico do capital, que conforme as conjunturas se agrupa ou se separa em diferentes agremiações políticas, conformando blocos com interesses comuns, sem eliminar contudo as divergências que mantêm entre si — particularmente na disputa travada pela acumulação da mais-valia entre o capital produtivo (agrário, industrial e de serviços) que produz valores de uso e o capital improdutivo (comercial, financeiro e de serviços), que opera somente na circulação dos valores econômicos.

Tais representantes políticos são eleitos para defender os objetivos estratégicos do capital em geral, favorecendo sempre aos interesses do capital produtivo, comercial e financeiro. Bem como, para derrotar quaisquer projetos que distribuam a riqueza, defendam a classe trabalhadora ou o interesse público, em detrimento da realização dos objetivos de acumulação privada do capital.

Esse partido econômico, no sentido sociológico de uma parte da sociedade, é constituído, em seu conjunto, por todos os grupos econômicos que defendem em linhas gerais o mesmo projeto capitalista de sociedade, baseado na acumulação privada de lucro com a exploração do trabalho subordinado ao capital.

Os braços desse partido econômico operam igualmente no executivo e no judiciário.

Dele fazem parte todos os grandes veículos de comunicação que operam via rádio, TVs, Internet ou mídia impressa e que, recaindo na mesma classe de empresas com fins lucrativos, atuam com a mesma lógica de maximização da acumulação privada de riqueza com a exploração do trabalho subordinado em suas áreas de atuação.

A participação desse setor de mídias no golpe de estado de 2016 pode ser verificada pelo que lhe coube do butim, como vemos na tabela abaixo, com a reconcentração da verba de publicidade federal nos grandes grupos de comunicação.

Em números absolutos, o aumento de seu faturamento com publicidade estatal, comprova que o golpe de estado foi um negócio bastante lucrativo para o Grupo Globo, principal expoente na propagação em todo o nosso país das teses defendidas pelo partido econômico do capital. Nisso se destaca o trabalho incansável dos comentaristas econômicos da Globo News e da rádio CBN — fazendo jus, ao Grupo, abocanhar uma grande parte desse butim, que depois será gasto, entre outras coisas, possivelmente, para oferecer prêmios a cidadãos que fazem a diferença no Brasil.

Mas também foi um bom investimento para o restante do andar de cima do poder de mídia desse mesmo partido, como se pode ver no gráfico a seguir.

A famosa foto do trio que teve papel relevante no golpe de Estado de 2016 foi registrada justamente num evento promovido pela Revista Isto é. Mas, como comprovar que o aumento de 1.384,1 % que a revista obteve no recebimento de verbas publicitárias do governo federal nos últimos 12 meses teria sido uma contrapartida de Michel Temer à empresa controladora dessa revista pelos bons serviços prestados ao conceder honrarias a tais personagens em sua tentativa de consolidar o golpe?

Não basta, porém, às forças desse partido econômico conquistar apenas o poder de decisão no interior do Congresso, somando os votos de seus representantes em favor de suas causas, ou no executivo com seu serviçal de ocasião, disposto a sancionar e despachar a realização de seus pleitos. Devem fazer o mesmo também no interior do poder judiciário.

Nesse caso, a  corrupção de um magistrado pode ocorrer pelo mesmo mecanismo da oferta de dinheiro ou de vantagens materiais em troca de sentenças – razão pela qual alguns juízes já foram condenados e presos no Brasil. Mas, por outra parte, a corrupção dos valores que norteiam um juiz também pode ocorrer de forma mais sutil, pela cooptação de sua interpretação sobre  atores, eventos  e sobre particularidades das matérias que irá julgar, para que seu juízo seja favorável aos interesses dos sujeitos que personificam o capital, como protagonistas do desenvolvimento econômico, cultural e social que deve ser apoiado e propagado em todo o país.

A estratégia adotada nesse caso é conceder ao magistrado prêmios e participação em eventos de ampla repercussão social, movendo a sua vaidade, autoestima e presunção, que acabam alimentando, em vários deles, até mesmo atitudes de pedantismo e jactância – peculiares a alguns juízes e ministros que se imaginam isentos de quaisquer interesses particulares em suas decisões.

Em razão disso, se creem no dever de  passar por cima das leis do país, condenando pessoas sem provas com base em supostos “indícios” noticiados pela mídia; ou, mesmo, de violar o Artigo 5º da Constituição e dispositivos do processo judicial ao divulgar ilegalmente grampos telefônicos de conversas privadas; ou, ainda, de  julgar como válido constitucionalmente um Golpe de Estado parlamentar, sob a alegação de um pretenso crime de responsabilidade fiscal — ainda que certos parlamentares, minutos após terem votado em favor do impeachment, dessem entrevistas à imprensa afirmando abertamente que a presidente não havia cometido crime algum, apenas perdido o apoio parlamentar da maioria no Congresso[3].

Em consequência desses votos e decisões favoráveis obtidas no poder  judiciário para consolidar o golpe, formalmente realizado como um impeachment, o partido econômico do capital guindou ao comando do poder executivo da República o despachante das reformas que lhe interessam — despachante que jamais poderá tocar nos lucros do sistema financeiro, que deve implementar reformas para aumentar a taxa de lucro das empresas  e que negocia, no varejo, benesses a empresários em particular, que são retribuídas com generosas porções de alpiste, como vemos nas imagens abaixo.

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Preposto do presidente Michel Temer recebendo R$ 500 mil em propinas da JBS [4].

Se perguntado em juízo, talvez Sergio Moro não saiba dizer de memória, sem antes consultar a sua agenda, de quantos eventos empresariais tenha participado nos últimos quatro anos, em que os aplausos recebidos dos convidados do grande capital projetaram a sua fama em manchetes de primeira página de jornais e no horário nobre das TVs, para tornar-se um dos 100 homens mais influentes do mundo, segundo a revista Time. Uma simples busca no Google sobre “Moro é homenageado” resulta em mais de 11 mil resultados. E nas fotografias que surgem, há algumas muito ilustrativas,  em que ele aparece à frente de painéis de patrocinadores dos eventos de que participou, que assim associam suas logomarcas à imagem do juiz, mesmo que, por hipótese, algumas delas pudessem estar financiando a compra de votos de deputados ou a produção de adesivos verde-amarelos em favor da Lava Jato ou de pixulecos e outdoors daqueles que poderiam ser condenados com o seu imparcial julgamento, interpretado como a realização de um bem ao país – mesmo que, para isso, faltem provas e sobrem convicções aos procuradores da Lava Jato sobre  atores, eventos  e particularidades de matérias correlatas.

Mas, afinal, quem paga pelas viagens, hotéis, translados e cerimônias em que o juiz é homenageado?
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Em cinco casos, as fotos são bem  ilustrativas para supormos uma resposta. Pelo que aparece na foto da esquerda, possivelmente seriam o Citibank, a empresa fabricante do whisky Johnny Walker e os controladores da revista Time na condição de patrocinadores daquele evento.  Nas fotos do centro a Confederação Nacional da Indústria, Kia Motors e os grupos que controlam as revistas Dinheiro, Isto é e Veja.  Nas fotos da direita, o Grupo Globo que lhe concedeu o premio Faz Diferença – também  concedido a Joaquim Barbosa e Carmen Lúcia. E na última delas, que possivelmente não envolveu  gastos de viagens, hotéis, etc., o juiz recebe uma homenagem da Federação do Comércio do Paraná. Ou será que todas as despesas de sua participação nesses eventos nacionais e internacionais terão sido custeadas pelo próprio juiz?

Ora, porque os controladores do capital das empresas que patrocinam esses eventos investem tanto dinheiro para conceder essas premiações a juízes e a outras autoridades que operam no seio do Estado? Porque se trata de um investimento em capital político que pode se reverter em ganhos econômicos, seja com o marketing social, ao associar sua imagem a essas figuras veiculadas como heróis que fazem a diferença no país e no mundo, seja porque, ao gerar afinidades e sentimentos de gratidão nesses seres humanos, criam um ambiente de interpretação favorável aos seus interesses.

A tal ponto os interpretantes gerais desses atores vão sendo modelados por lógicas disseminadas por esses meios, que a Força Tarefa da Lava Jato adotou uma definição muito simples a respeito do que é doação legal de campanha e o que é propina:

“Se eu quero doar para um candidato, isso é regular, é legal. Outra coisa é pagar propina disfarçada de doação eleitoral” [5].

Mas como saber se o que um partido recebeu era propina ou doação legal, se tudo foi devidamente registrado conforme a lei exige e aprovado na prestação de contas da campanha eleitoral?

Ora, para tanto, nessa abordagem, bastaria saber quem está na situação ou na oposição e relacionar, por proximidade temporal, a data de alguma doação à data de aprovação de algum projeto ou medida que teria beneficiado direta ou indiretamente o doador — ainda que não haja qualquer prova material de conexão causal entre os fatos.

Em razão desse método de trabalho adotado na Lava Jato, Deltan Dallagnol, ao ser questionado porque o Ministério Público não investigava políticos do PSDB, particularmente Aécio Neves,  acusado pela Odebrecht de receber R$ 50 milhões em propina, simplesmente  respondeu:

“O PSDB não fazia parte da base aliada do governo do PT. Como o PSDB não fazia parte dessa base aliada, não foram indicadas pessoas do PSDB [para cargos] por exemplo como diretores da Petrobras. Não tem como achar na Petrobras corrupção de um diretor ou presidente até porque não existia diretores do PSDB”[6].

Dallagnol parece, pois, enxergar o mundo ao revés. Não percebe que os políticos corruptos estão a serviço do poder do capital e não o contrário. Parece não perceber que, por isso, o poder do capital compra votos corrompidos tanto da situação quanto da oposição, conforme a conveniência de aprovar ou rejeitar aquilo que é de seu interesse, para ampliar ou preservar os seus ganhos, não importando a coloração das  legendas partidárias de seus ativos políticos, mobilizados nessas votações conforme suas necessidades.

A origem dessa inversão talvez seja uma possível leitura religiosa da prosperidade econômica, que estaria presente no imaginário do procurador, segundo a qual, o enriquecimento do capitalista seria fruto da graça de Deus que o abençoa e não da exploração do trabalho alheio que ele contrata, do qual extrai a mais-valia que não paga ao trabalhador e que acumula como propriedade sua.

Assim, do pedestal da ingenuidade coletiva ou do cúmulo do cinismo político, operadores da  Lava Jato, adotando esse método de investigação foram usados, na primeira hipótese, ou atuaram  cinicamente, na segunda, como um braço  político —  apoiado pelo partido econômico do capital, com adesivos amarelos espalhados pelo país em favor da Operação, com homenagens e premiações conferidas a seus ícones em eventos patrocinados por grandes empresas nacionais e multinacionais, com direito a capas de revistas e farta propaganda – para a difusão de convicções, sem provas, sobre crimes de corrupção que conduziram a opinião pública do país ao apoio de um golpe de Estado parlamentar, capitaneado por  Aécio Neves (PSDB),  Michel Temer e Eduardo Cunha (PMDB) e legitimado pelo Supremo Tribunal Federal.

Porém, graças a decisões do ministro Teori Zavascki  — que talvez tenha pago com a própria vida pela coragem de havê-las tomado — e do ministro Edson Fachin, abandonou-se  a metodologia defendida por Dallagnol e assumida pela Força Tarefa da Lava Jato, de não se investigar políticos e partidos  que não compusessem a base aliada do PT  — metodologia essa que continuava a ser defendida publicamente pelo procurador,  mesmo depois da apreensão de planilhas, na casa de um ex-executivo da Odebrecht,  que detalhavam valores ligados a 316 políticos de 24  partidos [7].

Assim, abandonado o método de investigar somente a base aliada dos governos petistas, em poucos semanas de investigação sobre fatos e não sobre suposições, a Polícia Federal comprovou, materialmente, atos de corrupção envolvendo Aécio Neves e Michel Temer, os dois principais protagonistas do Golpe de Estado de 2016, que deverão agora defender-se em  juízo.

No presente momento, entretanto, ao partido econômico do capital não interessa proteger esse ou aquele preposto, seja no executivo, no legislativo ou no judiciário. O importante para ele — no emprego de seu capital político, isto é, no uso do poder dos votos que tem no Congresso e no Judiciário — é consolidar os objetivos de seu projeto econômico de privatizar tudo o que puder, repetido à exaustão pelos dirigentes,  analistas e jornalistas das empresas que compõem esse bloco hegemônico de poder por meio de todos os canais de mídia de que dispõe.

Por isso, como estampam alguns jornais, os  empresários elevam sua pressão pela aprovação das reformas previdenciária e trabalhista, destacando que as “reformas são mais importantes […] do que preservar Temer”, pois sem elas o país não geraria empregos, a previdência quebraria e não sairíamos da crise — como repete o mantra da ideologia que se pretende impor como verdade absoluta. Porém tais medidas visam basicamente aumentar a acumulação de capitais por agentes privados com o pagamento de juros pelo Estado, forçar o aumento da demanda por previdência privada com a   reintrodução da moderna lei dos sexagenários (em que o assalariado de hoje, como o escravo no Brasil imperial, somente poderá deixar de trabalhar aos 65 anos de idade) e com o aumento da taxa de lucro das empresas, a ser obtido cortando-se custos com a supressão de direitos históricos dos trabalhadores.

Mas qual é o principal instrumento de pressão que um empresário possui para tanto? Seria apenas um voto na próxima eleição, como qualquer cidadão comum? Não! Seu instrumento de pressão é a magnitude do seu capital para, entre outras coisas, financiar ou não as próximas campanhas eleitorais de seus representantes, para investir ou não na  região em que o  parlamentar atua,  para convidá-lo ou não a programas de rádio e TV, para fazer cobertura positiva ou negativa de seu mandato nas páginas de jornais e revistas.

Afirma-se textualmente numa dessas matérias que “empresas que faturam mais de R$ 1 bilhão […] orientaram seus interlocutores no Congresso a pressionar pela continuidade de votações”[8].

E assim, legendas partidárias, reputações pessoais e instituições sociais são trituradas, para que as dívidas dos bancos e do agronegócio junto ao erário  sejam perdoadas, para que os campos do pré-sal sejam entregues a corporações estrangeiras, para que quase 50% das verbas do orçamento público sejam destinadas religiosamente a remunerar o capital financeiro e para que as verbas de publicidade federal sejam ainda mais reconcentradas nos veículos hegemônicos do partido econômico do capital.

O que fica claro, para qualquer pessoa de bom senso, é que, para reverter a destruição em curso de nossa democracia pelas forças do capital, não basta trocar os personagens no comando do Estado, se eles continuarem a encenar o mesmo texto redigido por esse bloco hegemônico.

Para reverter esse quadro é necessário realizar eleições diretas e gerais, assegurando-se a posse de um novo presidente e de um novo Congresso, segundo a vontade popular,  acumulando forças para realizar um programa de medidas voltadas à desprivatização do Estado e à libertação das forças produtivas no país, sob o controle autogestionado dos trabalhadores e de suas comunidades. Isso possibilitará que o desenvolvimento econômico nacional ocorra de forma sustentável, assegurando-se maior igualdade na apropriação social dos meios de produção e de intercâmbio e da riqueza socialmente produzida no país.

É preciso, igualmente, realizar, junto dessa mesma eleição, um Referendo Revogatório em que se delibere pela revogação das alterações da Constituição, da alienação do patrimônio público e da supressão de direitos sociais realizadas pelo governo ilegítimo de Michel Temer, que responde apenas aos interesses do capital, nacional e estrangeiro, e não ao bem comum do povo brasileiro.

É preciso seguir protestando, ocupando as ruas e aprofundando a reflexão  com o conjunto da sociedade sobre os projetos de país que estão em disputa. Desse modo, unindo mobilização, organização e educação popular torna-se possível acumular as forças necessárias para que não seja eleito, de maneira indireta pelo Congresso Nacional, como numa assembleia de acionistas, um outro presidente-despachante, num jogo de votos capitalizados, somando-se a maioria dos votos de parlamentares, já previamente convertidos em capital político pelas forças econômicas que atuam junto ao Congresso Nacional.

 

A Economia Solidária nas Teses apresentadas ao 6º Congresso do Partido dos Trabalhadores

Euclides André Mance
05 de Abril de 2017

No conjunto das dez teses apresentadas ao 6º Congresso do PT, a expressão “economia solidária” aparece apenas cinco vezes.

Isso revela a marginalidade do tema no debate estratégico em curso no interior do partido – mesmo após a realização no país de três Conferências Nacionais de Economia Solidária e de dois mapeamentos nacionais de Empreendimentos Econômicos Solidários que, segundo estudo publicado pelo IPEA, apontam a existência de mais de 1,4 milhão de trabalhadores diretamente atuantes nessas iniciativas autogestionárias1.

Por isso, cabe perguntar: em que medida o PT se reconhece como expressão política dessa parcela da classe trabalhadora brasileira e que papel ele atribui à autogestão da classe trabalhadora sobre os meios de produção e de intercâmbio como elemento estratégico para a realização da libertação das forças produtivas e para a construção do socialismo democrático no Brasil?

O que se vê nas teses apresentadas ao debate do 6º Congresso, em relação à segunda questão, está aquém do já acumulado, tanto nos documentos gerados e aprovados nacionalmente pelos atores da economia solidária, quanto no debate político e acadêmico sobre o caráter emancipatório da autodeterminação de fins e da autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades.

Das cinco passagens mencionadas, em duas delas a expressão economia solidária é usada apenas para caracterizar o desmonte de políticas públicas realizado pelo governo golpista de Michel Temer2. Numa terceira, aparece associada, genericamente, a valores do socialismo3.

Por sua vez, na quarta referência, no penúltimo parágrafo de uma tese, afirma-se que:

“É preciso […] constituir elementos materiais e imateriais novos tanto na economia como na vida social que fujam do controle do capital financeiro, enfrentem o mercado ou se autonomizem em relação aos monopólios e oligopólios (como a economia camponesa e as economias solidárias e a produção agroecológica); que construam estruturas coletivas de gestão dos bens comuns, sem transformá-los em mercadorias.” [Tese Alternativa: Crítica, Autocrítica e Utopia, parágrafo 107]

Por fim, na última referência, a economia solidária é relacionada às formas cooperativas de trabalhar, nos quadros de uma economia de transição ao socialismo:

“A economia de transição ao socialismo deve ser compreendida como a combinação de quatro setores fundamentais, regida por leis e direitos que regulem seu funcionamento: a propriedade estatal, as companhias mistas, as empresas privadas e as distintas formas cooperativas de trabalho. Nosso programa inclui o fortalecimento dos empreendimentos não-monopolistas e da economia solidária, estimulando a diversidade do dinamismo econômico e reduzindo o peso dos oligopólios privados.” [Optei – Em Defesa do PT, parágrafo 13]

A fragilidade na elaboração sobre esse tema, reduzido a duas frases em 10 documentos, necessita ser revertida até a conclusão do 6º Congresso, cabendo ao PT recuperar o acúmulo já existente sobre o assunto, para debatê-lo, criticá-lo e posicionar-se claramente, em sua estratégia política, sobre as duas questões anteriormente formuladas.

Além da leitura dos documentos das três Conferências Nacionais de Economia Solidária e dos resultados do mapeamento nacional de empreendimentos econômicos solidários, sugiro outros três textos para problematização e aprofundamento desse tema:

Nesses três textos, que elaboramos nos últimos anos, fica evidente como a economia solidária pode atuar na libertação das forças produtivas e na construção do socialismo democrático no Brasil.

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NOTAS:

1 SILVA, Sandro Pereira; CARNEIRO, Leandro Marcondes. Os novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil: nota metodológica e análise das dimensões socioestruturais dos empreendimentos – Relatório de Pesquisa. IPEA, 2016. Disponível em: http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/7410/1/RP_Os Novos dados do mapeamento de economia solidária no Brasil_2016.pdf Acesso em: 05/04/2017

2 O texto o faz nos seguintes termos:

“além disso, […] o governo golpista [….] rebaixou a Secretaria Especial de Economia Solidária. […]. A médio e longo prazo, assistiremos ao desmonte do Sistema Público de Emprego, Trabalho e Renda, com a aprovação de propostas de focalização das políticas de emprego (seguro desemprego, abono salarial, etc.) e o fim dos Programas de Apoio e fortalecimento da Economia Solidária.” [Manifesto da CNB/PMB. Em defesa do Brasil, em defesa do PT, em defesa de Lula, parágrafos 73 e 82]

3 Nesta, afirma-se ser necessário

“retomar o PT como espaço de formação dos valores do socialismo: democracia participativa, socialização da produção, economia solidária […]”. [Tese Nacional – Mensagem ao Partido – Por um partido socialista e democrático! Por um governo democrático-popular!, parágrafo, 9]

A Estratégia Democrático-Popular

Euclides André Mance
23 de Março de 2017

Introdução

A estratégia democrático-popular, elaborada no seio da esquerda brasileira na década de 1980, tem sua formulação inicial marcada por aquele momento histórico. Na década seguinte ela foi aperfeiçoada em vários aspectos, com a elaboração coletiva sobre os desdobramentos de sua própria execução pelos atores do campo democrático e popular. Em síntese, ela apresenta uma alternativa às estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado para a construção de uma sociedade socialista.1

A partir do final dos anos 90, entretanto, essa estratégia foi gradativamente abandonada pelos setores hegemônicos da esquerda no Brasil, em favor de composições pragmáticas cada vez mais amplas com os então chamados setores progressistas do empresariado nacional. A fragilização do campo democrático-popular, resultante desse abandono, facilitou a consumação do golpe de estado jurídico parlamentar de 2016.

Nas páginas deste artigo, apresentamos apenas alguns elementos gerais e introdutórios ao tema.

Democracia e Socialismo

Ao longo do tempo, a democracia assumiu diversas formas de realização histórica. Embora signifique etimologicamente o poder (kratos) do povo (demos), geralmente as formas de intermediação para a sua realização institucional são marcadas por contradições entre classes sociais, nas quais o poder do Estado não é, em maior medida, posto ao serviço do interesse público – isto é, do povo, do bem comum, do bem público – mas ao serviço de interesses privados das classes economicamente dominantes que o hegemonizam.

Contrapondo-se ao uso do Estado pelas forças do capital, os setores populares da sociedade civil em diferentes países – isto é, a população organizada em movimentos sociais, entidades e partidos que defendem projetos políticos e sociais que atendam aos interesses das classes trabalhadoras e da maioria da população em geral, particularmente das populações mais empobrecidas, vulneráveis, excluídas e negadas em sua dignidade humana – conformam o que se pode denominar como campo democrático e popular. Construindo e consolidando o poder público não-estatal – isto é, o poder do povo, o poder popular – buscam ampliar sempre mais a participação institucional das classes populares na definição e gestão das políticas públicas, estatais e não-estatais, através de mecanismos como fóruns, redes, plenárias, conferências, conselhos, orçamentos participativos, plebiscitos, referendos, etc.

Busca-se, portanto, a consolidação da democracia e a sustentação das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas de todos, sob os aspectos econômico, político, social e cultural, assegurando-se, entre outras coisas,  a liberdade de pensamento, de expressão e de organização, a pluralidade de partidos políticos e de representação, a composição solidária das formas de apropriação pessoal, associativa e pública de meios produtivos e de intercâmbio, a defesa da autogestão dos trabalhadores e de suas comunidades para o desenvolvimento sustentável de suas iniciativas e de seus territórios, a educação permanente de todos, a transparência  e o acesso público à informação de qualidade e a democratização da comunicação para tomadas de decisão criteriosas e bem fundamentadas.

Diferentemente da social-democracia ou da ditadura do proletariado, que aspiram reformar ou revolucionar o modo de produção capitalista e sua formação social pelo uso hegemônico dos aparelhos de Estado, a estratégia democrático-popular, numa de suas vertentes, assenta-se em tecer, consolidar e expandir o poder público não-estatal a partir do setor democrático e popular das sociedades, com suas redes econômicas, de poder e de conhecimento, que vão transformando as relações econômicas de produção, intercâmbio, consumo e financiamento, as relações políticas e culturais da sociedade numa perspectiva libertadora, introduzindo e expandindo em todos os espaços possíveis os elementos de um novo modo de produção, autogestionado pelos trabalhadores e por suas comunidades, de um novo sistema de intercambio, fundado no valor de uso como satisfator das necessidades humanas, e de uma nova formação social, substantivamente democrática.

Somente acumulando forças cada vez maiores no seio da sociedade civil em torno de eixos estratégicos de luta, que se materializam em formas de ação direta – nos campos econômico, político e cultural –, de elaboração de políticas públicas e de confronto com o Estado ou de participação institucional estatal, torna-se possível ampliar o poder popular no controle interno dos aparelhos de Estado. A eleição de governos democráticos e populares, como consequência desse acúmulo de forças convertido em poder popular, tem por objetivo central – com a ampla participação institucional dos setores democráticos e populares – desprivatizar o Estado, colocando-o ao serviço do interesse público e da proteção do bem comum, suprimindo pois a sua subordinação aos interesses do capital.

Poder Público Estatal e Poder Público Não-Estatal

A distinção qualitativa realizada na estratégia democrático-popular entre força e poder, entre acúmulo de forças e conquista do poder, mantém uma distinção clássica entre sociedade civil e Estado. Mas é um equívoco considerar que a conquista do poder se refira exclusivamente à conquista do controle dos aparelhos de Estado. Pois o acúmulo de forças na disputa de hegemonia não visa apenas o controle desses aparelhos, mas a real transformação da sociedade como um todo, seu modo de produção, seu sistema de intercâmbio e sua formação social.

Como o novo modo de produção e de intercâmbio deve ser organizado por livres produtores associados, eles estão na base do novo poder público que se constrói. A livre associação dos produtores é elemento central da economia solidária, cujo caráter transformador se revela quando é praticada como economia de libertação e não apenas como forma de sobrevivência ou de resistência.

Assim, o poder do povo, o poder popular, o poder público é a base fundante da democracia, que sustenta e protege as liberdades públicas e pessoais de todos e não os interesses do capital. Quando a acumulação de forças na sociedade civil resulta em organizações sociais de caráter permanente, democraticamente autogestionadas pelos seus participantes com uma perspectiva de libertação da classe trabalhadora para a realização de tais liberdades, essa acumulação de forças resulta em poder popular. Ao atuar na defesa do interesse público, do bem comum, com autodeterminação de fins e autogestão de meios, esse poder popular se converte em expressão do poder público não-estatal. A consolidação desse poder público não-estatal depende da atuação conjunta e colaborativa dessas organizações, somando suas forças e seus poderes para expandir o projeto de sociedade que defendem.

A grande ilusão alimentada nas estratégias originárias da social-democracia e da ditadura do proletariado é que o poder está centralmente objetivado no Estado. E que, com a conquista dos aparelhos de Estado, torna-se possível efetivar a revolução socialista. Pois, como a experiência histórica demonstrou, o poder de Estado, resumido ao poder exercido através dos aparelhos do Estado, é apenas uma face do exercício do poder político – entendendo-se político como poder determinado pela contradição entre classes. E que ele é insuficiente para instituir, consolidar e proteger um novo modo de produção e um novo sistema de intercambio, ante as pressões internas e externas do capital.

Diferentemente, a estratégia democrático-popular, em determinada perspectiva, enfatiza o papel da acumulação de forças e da construção autogestionada do poder público não-estatal como condição essencial, para que a eleição de governos democráticos-populares resultem efetivamente no avanço e consolidação do novo modo de produção, do novo sistema de intercâmbio e da nova formação social, que vão sendo construídos e consolidados ao mesmo tempo em que se travam as lutas no plano político em torno de eixos de luta estratégicos2 .

Sob a estratégia democrático-popular, formulada em 1987, um governo assim eleito deve, ser capaz de

realizar as tarefas democráticas e populares, de caráter antiimperialista, antilatifundiário e antimonopólio […]: é um governo de forças sociais em choque com o capitalismo e a ordem burguesa, portanto, […] que só poderá viabilizar-se com uma ruptura revolucionária; […] a realização das tarefas a que se propõe exige a adoção concomitante de medidas de caráter socialista em setores essenciais da economia e com o enfrentamento da resistência capitalista. Por essas condições, um governo dessa natureza não representa a formulação de uma nova teoria das etapas, imaginando uma etapa democrático-popular, e, o que é mais grave, criando ilusões […] na possibilidade de uma nova fase do capitalismo, uma fase democrática e popular”3.

Eixos de Luta e Programa de Transição

Na definição mais elementar dos anos 1980, “acumular forças […] é acumular experiências de lutas bem-sucedidas e acumular vitórias.”4 Uma luta bem-sucedida, entretanto, não apenas alcança seus objetivos imediatos e conjunturais mas, contribui para a realização de objetivos estratégicos e estruturais.

No aprofundamento de como articular as lutas populares dessa maneira, surgiu a noção de eixo de lutas5. Um eixo de lutas possui quatro características básicas: mobiliza amplos segmentos sociais em sua defesa, atende a demandas imediatas desses segmentos, combate as estruturas capitalistas que geram a insatisfação dessas demandas e introduz formas pós-capitalistas de atendê-las. Como exemplos de eixos de luta, citamos apenas três: a reforma agrária, a reforma urbana e a economia solidária.

As reformas agrária e urbana atendem às demandas imediatas de terra para plantar e para morar, confrontam o latifúndio rural e a especulação imobiliária urbana. Mas, somente se consolidam como eixos de luta, se desenvolvem formas pós-capitalistas de realizarem a produção e o intercâmbio dos frutos da reforma agrária, a produção autogestionada de moradias e a organização do poder popular na autogestão democrática e participativa de seu território.

No caso da economia solidária, ela somente pode ser considerada eixo de lutas quando realiza a libertação de forças produtivas. Nesse caso ela atende a demandas imediatas de consumo, produção, intercâmbio e financiamento de iniciativas populares e solidárias. Além disso, combate as formas de alienação no consumo, a exploração do trabalho pelo capital produtivo e pelo capital mercantil, a expropriação dos consumidores pelo capital comercial na obtenção dos meios econômicos para a satisfação de suas necessidades e a espoliação pelo capital financeiro no pagamento de dívidas. Ela igualmente introduz estruturas pós-capitalistas, ao realizar a produção, o intercâmbio e o financiamento de forma autogestionada por trabalhadores e trabalhadoras; ao desenvolver um novo sistema de intercâmbio compondo simultaneamente compras, trocas e dádivas, libertando a capacidade produtiva de criação de valor de uso da realização do valor de troca, que ficaria restrita aos limites de dinheiro disponíveis para o intercâmbio dos bens e serviços produzidos ou produzíveis se não entrassem em operação os mecanismos de intercâmbio não-monetário e de dádivas em circuitos econômicos solidários; compartilhando, em fundos solidários de caráter público não-estatal, recursos excedentes gerados na reprodução ampliada do valor, que permitem a realização da libertação das forças produtivas, com a realização de investimentos para a expansão das capacidades de produção, intercâmbio e desenvolvimento tecnológico do setor, passando a produzir não apenas bens de consumo final, mas igualmente meios de produção e novas tecnologias.

Nos anos 90, outros eixos de luta estavam em construção. Movimentos que enfrentavam a discriminação de gênero, racial, sexual e cultural vão concebendo eixos de luta buscando o atendimento de suas pautas imediatas, o combate às ideologias racistas, machistas e preconceituosas, o combate à moral autoritária e ao direito injusto que legitimam práticas opressivas contra essas populações e a afirmação de uma nova ética na sociedade civil que defenda as liberdades de todos e a afirmação de novos direitos no plano do estado, objetivando-se em lei a garantia dessas novas condutas. Na época, aplicava-se a esse eixo de lutas o conceito de cidadania.

Estava claro para esses movimentos que a mudança desejada no exercício de poder nas práticas cotidianas no seio da sociedade – com o respeito e acolhimento da dignidade humana vivida em sua plena diversidade – não se faz pela imposição de um direito estatal, mas pelo resgate da sensibilidade ética de todos frente a dignidade humana de cada pessoa, sensibilidade essa mutilada pela cultura de dominação existente. Isso exigia, portanto, uma crítica da cultura de massas e dos elementos reacionários da cultura popular, gerando-se assim uma cultura popular que revolucionasse o capitalismo, o machismo, o racismo e todas as formas de exercício autoritário do poder nas relações micropolíticas do cotidiano. Em outras palavras, não se tratava apenas de “eliminar do cotidiano a discriminação e o preconceito, mas fundamentalmente de construir novas relações interpessoais liberadas de todos os códigos culturais opressivos, possibilitando a vazão do desejo em práticas singularizantes que, sendo incompatíveis com as dinâmicas e códigos de reprodução do capitalismo, avancem como revolução cultural, afirmando uma nova sensibilidade ética e estética”6 – horizonte tido como necessário a um novo projeto político.

Assim, o programa democrático e popular não se reduz a um programa de transição no sentido clássico, isto é, “um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciência de largas camadas da classe operária e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado”7.

E não corresponde ao que na social-democracia se denominava programa mínimo, com reformas limitadas ao quadro da sociedade burguesa, nem ao chamado programa máximo, prometido para um futuro incerto, quando seria realizada a superação do capitalismo pelo socialismo.

A elaboração do programa democrático e popular é realizada pelos próprios setores democráticos e populares da sociedade civil organizada, que formalizam, em qualidade e escala, suas próprias demandas, que as reformulam dialogicamente em politicas públicas e que concebem as formas de atendê-las de maneira autogestionada, com o fortalecimento do poder público não-estatal e a participação do poder estatal, quando esta participação seja possível.

Assim, a natureza das demandas varia conforme variam as bandeiras de luta dos diferentes movimentos sociais-populares. A partir da explicitação coletiva dessas demandas e das interfaces que elas mantém entre si, elas são integradas em eixos de luta estratégicos, que tanto contribuem para a unificação social das lutas, como para a atividade educativa de politização da sociedade – considerando as estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais a serem superadas e as novas a serem construídas para o atendimento dessas demandas –, como também para a intervenção política de confronto com o Estado ou de intervenção no seu próprio interior, seja pelos mecanismos de participação institucional conquistados, seja pela eleição de governos democráticos e populares que devem pautar suas ações visando reforçar e consolidar a hegemonia dos atores democrático-populares na sociedade em torno desses objetivos estratégicos.

Modo de Produção Socialista e Economia Solidária

Na década de 80, após a anistia (1979) e a organização de novos partidos, forças do campo democrático e popular concentraram esforços na organização da Central Única dos Trabalhadores e, posteriormente, na Central de Movimentos Populares. É nesse contexto que se delineia a formulação inicial da estratégia democrático-popular de construção do socialismo.

Naquela época não havia o acúmulo, hoje existente, sobre como os empreendimentos econômicos solidários – de produção, intercâmbio, consumo e financiamento – podem ser capazes de avançar, em seu conjunto, na libertação das forças produtivas, com a reprodução ampliada do valor econômico que eles podem realizar ao atuar de maneira colaborativa entre si; ou sobre como podem participar ativamente na organização de um modo de produção e de intercâmbio de caráter socialista, pelo contínuo desenvolvimento de suas forças produtivas em contradição com as forças do capital.

Focada na análise do funcionamento do capital e na crítica das relações capitalistas de produção, todas as formas de economia popular, familiar ou comunitária, que proliferaram a partir dos anos 80, não mereceram, inicialmente, maior atenção na estratégia democrático-popular. Elas eram agrupadas com outras atividades econômicas de pequeno porte, nas quais ocorre a exploração capitalista do trabalho subordinado, identificando-se indistintamente a esses milhões de pequenas empresas, negócios, serviços e trabalhadores autônomos com a etiqueta de pequena burguesia8, considerada, entretanto, aliada estratégica dos trabalhadores assalariados para a construção do socialismo democrático.

Afirmava-se em 1987 que:

a pequena produção serve para que a sociedade desenvolva suas forças produtivas, contribua para que não haja escassez de bens e serviços e permita incorporar ao trabalho o conjunto da população economicamente ativa, sem prejudicar a eficiência das empresas socialistas nem a constante redução da jornada de trabalho. Essa política de desenvolvimento da capacidade produtiva da sociedade, utilizando todas as forças econômicas, é a base da aliança dos trabalhadores assalariados com a pequena burguesia urbana e rural. Essa aliança é, pois, uma questão estratégica, referente tanto à destruição do capitalismo quanto à construção do socialismo9.

Apenas no final dos anos 80 e início dos anos 90, retomando-se elaborações de diferentes matrizes teóricas e de práticas históricas de organização dos trabalhadores, vão sendo delineados na América Latina distintos conceitos de economia popular e solidária, possibilitando melhor compreender as diferentes particularidades desses atores econômicos associativos em relação aos demais. Em 2008, a Constituição do Equador, em seu artigo 283, por exemplo, reconhece que “o sistema econômico se integrará pelas formas de organização econômica pública, privada, mista, popular e solidária.”

Numa das definições de economia solidária recorrentes na América Latina, a ênfase recai na autodeterminação de fins e na autogestão de meios pelos trabalhadores e por suas comunidades, conceito que se difunde a partir do socialismo autogestionado, praticado nas nações que compunham a Iugoslávia, após o seu rompimento com o stalinismo em 1950. Nessa definição,

a autogestão é, antes de tudo, uma relação socioeconômica entre os homens que se funda no principio da distribuição segundo o trabalho e não sobre a base do capital […]. A autogestão é […] uma categoria socialista. A mesma só pode desenvolver-se no campo da propriedade social, isto é, em relações de propriedade em que os meios de produção e o capital social não são propriedade privada do capitalista nem de grupos de trabalhadores de determinadas empresas, nem objeto de gestão monopólica do aparato burocrático ou tecnocrático do Estado.”10

A noção de autogestão, amplamente difundida, refere-se à gestão dos trabalhadores sobre as atividades de produção econômica com base nos princípios de autonomia, horizontalidade, democracia direta ou delegada, revogabilidade de mandato e rotatividade de funções. Mas também é compreendida, em algumas abordagens, tanto como uma forma possível de transição para a superação do capitalismo quanto a forma realizada do modo de produção e de intercambio da nova sociedade pós-capitalista.

Alguns supõem que a mera multiplicação de iniciativas de autogestão em meio ao capitalismo possibilitaria aos trabalhadores e às suas comunidades conquistarem a autonomia econômica e política – a sociedade dos produtores livremente associados – sem que para isso fosse necessário realizar uma ruptura do poder político e econômico do capital, exercido por ele sobre o Estado e a sociedade. Diferentemente disso, a estratégia democrático-popular salienta a necessidade de realização dessa ruptura, como já explicitado anteriormente.

A recente retomada do debate sobre a estratégia democrático-popular em partidos de esquerda no Brasil, ao mesmo tempo em que apontou limitações históricas em sua formulação original também permitiu recolher importantes aprendizados sobre os avanços e reveses das lutas da classe trabalhadora em nosso país, permitindo abrir novas e diferentes perspectivas de atualização dessa estratégia de construção do socialismo democrático.

Conclusões

Houve um importante acúmulo teórico e prático nos Brasil, nos anos 80 e 90, sobre a estratégia democrático-popular para a consolidação de um poder popular, fundado na autonomia das organizações e na sua integração em ações diretas e institucionais, visando atender a demandas imediatas da população, combater estruturas de dominação econômica, política e cultural e construir um modo de produção, um sistema de intercâmbio e uma formação social socialistas.

Mas, infelizmente, os governos de centro-esquerda no Brasil, nos diferentes níveis da federação, apesar dos processos de participação popular e dos avanços sociais alcançados com as diferentes políticas públicas adotadas, abandonaram progressivamente a estratégia democrático-popular e abraçaram a estratégia social-democrata, de realização de um programa mínimo, circunscrito aos limites de um desenvolvimento econômico nacional, totalmente subordinado às forças do capital produtivo, comercial e financeiro, tanto nacional quanto internacional.

Pareceram haver esquecido que sem a consolidação de um poder público não-estatal, ficariam totalmente vulneráveis frente as contradições entre os próprios setores hegemônicos do capital, particularmente em meio às disputas entre o capital produtivo e o capital mercantil pela maior acumulação possível – com sua disputa na realização de lucros – da mais-valia gerada pelo trabalho produtivo; ou frente as disputas e alianças entre setores do capital nacional e internacional quanto aos rumos da economia do país, em função de seus interesses privados sobre os ativos nacionais.

Pareceram haver esquecido, pois, da velha máxima socialista: que a burguesia sempre retoma no futuro com a sua mão direita o que concede no presente com sua mão esquerda, por meio de diferentes mecanismos de exploração, expropriação, espoliação e exclusão, que invariavelmente sempre atingem em cheio as classes trabalhadoras.

Referências Bibliográficas

ANAMPOS. Relatórios dos Encontros Nacionais – 1980 a 1989. Cadernos de Textos, N. 6. Cefuria, Curitiba, s.d. Disponível em: http://solidarius.net/mance/biblioteca/anampos.pdf Acesso em: 22/03/2017

MACHADO, João. O que foi o “Programa Democrático e Popular” do PT? Disponível em: http://www.consultapopular.org.br/sites/default/files/O que foi o PDP.pdf Acesso em 22/03/2017

MANCE, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

PT. Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional. Brasília, 1987. Disponível em: http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf. Acesso em: 22/03/2017

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Notas:

1 Um dos primeiros documentos de elaboração coletiva em que ela é abordada em suas linhas gerais e pode ser tomado como ponto de partida para sua posterior problematização e crítica, constitui-se das Resoluções Políticas do 5o Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, realizado em dezembro de 1987.

2 Claro está que esse conceito de poder púbico não estatal nada tem a ver com o conceito de público não estatal utilizado por Fernando Henrique Cardoso e Bresser Pereira em sua política neoliberal de desestatização, que passou a transferir recursos estatais para organizações sociais de interesse público prestarem serviços até então realizados pelo estado. Lei n.º 9.637/1998

3 Resoluções Políticas, par. 75

4 http://novo.fpabramo.org.br/sites/default/files/resolucoespoliticas_0.pdf

5 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

6 Mance, E. A. “Eixos de Luta e a Central de Movimentos Populares”. In: Revista de Cultura Vozes. N. 6, Ano 85 – nov-dez 1991, p. 645-671

7  https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1938/programa/cap01.htm

8  “Os setores que chamamos normalmente de camadas médias e pequena burguesia — sendo, estes últimos, trabalhadores e também proprietários de seus meios de produção — embora tenham interesses comuns com a burguesia (por exemplo, algumas camadas de pequenos proprietários vivem da exploração do trabalho assalariado, ainda que em pequena escala) têm, também, profundas contradições com o capitalismo, que os coloca cotidianamente sob ameaça de arruinamento e de proletarização.” Resoluções Políticas, par. 92

9  Resoluções Políticas, par. 42

10  Edições CLAS (Cuestiones Actuales del Socialismo). “Autogestão Socialista Iugoslava. Noções Fundamentais”. Belgrado, 1980. Apud NASCIMENTO, Claudio. Autogestão: Economia Solidária e Utopia. In: Outra Economía – Volumen II – No 3 – 2o semestre/ 2008, p. 28