Euclides André Mance
Curitiba, 09/04/2016
Introdução
A disputas de hegemonia, na definição dos rumos adotados por uma nação, pode ser analisada sob diferentes abordagens teóricas. Cada uma delas tem suas vantagens e desvantagens. Todas, porém, tratam da correlação de forças entre atores na defesa ou combate de objetivos que se relacionam a diferentes projetos de sociedade. Um aspecto central dessa análise consiste em determinar os principais atores a serem considerados, sua identidade em relação às contradições e estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais, seu protagonismo com respeito aos acontecimentos e conflitos analisados e sua posição quanto aos objetivos e projetos de sociedade em disputa.
Considerando a conjuntura atual, tratei de alguns desses atores em O Quebra-cabeça do Golpe, evidenciando a existência de um arranjo de forças internas e externas, integradas na promoção do impeachment. Entre seus objetivos está o desmonte de direitos sociais e trabalhistas, a entrega do pré-sal a grupos internacionais — com a aprovação do PL 4567/2016 de autoria do senador José Sera, que elimina a exclusividade da Petrobras na exploração dessas jazidas — e a privatização de empresas públicas. Cabe salientar que a própria privatização da Petrobras e dos Correios, defendida pelo Movimento Brasil Livre, não está descartada pelo Plano Temer, pois este propõe “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias“. Sobre isso, Kim Kataguiri, líder do Movimento Brasil Livre, afirma que “se o Temer for privatizar empresas públicas, […] como a privatização da Petrobras e dos Correios, nós o apoiaremos.”
Esse golpe contra a sociedade brasileira, que pretende abolir direitos dos trabalhadores, facultar a entrega do pré-sal a consórcios estrangeiros e privatizar ativos públicos, é retroalimentado, como analisei em As Provas de um Crime, por outro leque de atores que opera uma teia de violações legais, conectando vazamentos de operações judiciais, como a Lava Jato, com o poder de formação da opinião pública exercido por mídias de massa, particularmente pelo Grupo Globo, que se destaca em seu recorrente “acesso com exclusividade” a documentos sob sigilo judicial ou segredo de justiça. Exercendo esse poder, tais veículos difundem e retroalimentam uma interpretação hegemônica — sobre acusações, fatos, supostos fatos, normas e valores — que é favorável ao golpe.
O que pretendo desenvolver no presente texto é a reflexão sobre o modo como as forças econômicas, políticas e comunicativas que se uniram pelo impeachment, construíram um poderoso eixo de lutas que integra o combate à corrupção e a saída da crise econômica à deposição do atual governo, à extinção do PT e à execução do referido conjunto de medidas, que tramita no Congresso Nacional, agrupadas no Plano Temer.
Mais que isso, pretendo explicitar o modo como interpretantes emocionais, lógicos e (re)ativos são mobilizados para o engajamento de setores da sociedade na defesa do impeachment. E, por outra parte, apontar alguns aspectos sobre como desmontar esse eixo de lutas.
Escrevendo no calor dos acontecimentos e com o foco na análise de suas conexões, algumas passagens que seguem são compartilhadas como estão, embora a sua decantação e sua crítica rigorosa, em perspectiva histórica, seguramente permitirão no futuro reformulá-las em melhor maneira.
1. Diferentes Abordagens na Análise da Disputa de Hegemonia
O modo de analisar as disputas de hegemonia no seio das sociedades contemporâneas varia sensivelmente a depender do modelo teórico adotado. Mas, em todos eles, a identificação dos atores principais é elemento necessário para que se possa considerar a correlação de forças entre eles. Podemos mencionar, ao menos, três abordagens para identificar os atores fundamentais desses confrontos.
A primeira abordagem considera a contradição dialética entre os atores econômicos, compreendidos como mediações do capital e do trabalho, posicionando-os a partir do papel objetivo que desempenham nas relações sociais de produção do valor econômico, e no modo como se apropriam dos valores produzidos e dos meios requeridos para a sua produção, circulação e acumulação. Tais atores são agrupados em classes antagônicas, considerando, a partir de seu papel objetivo nesses processos, as contradições que tornam possível tanto a sua própria existência como atores reais, quanto a reprodução ampliada do capital com a exploração do trabalho subordinado. Tal agrupamento em classes antagônicas considera, igualmente, a práxis dos atores em relação a essas próprias contradições, pois, em razão dos fenômenos de alienação e de ideologia, eles podem atuar na defesa de objetivos específicos que são contraditórios aos interesses gerais de sua própria classe.
A partir da contradição essencial entre capital e trabalho e do modo como os atores se posicionam em relação a ela, busca-se analisar como tais classes de atores se comportam, tanto em relação à formação social existente, considerando suas dimensões econômica, politica, militar, social e cultural, quanto em relação aos diferentes projetos de sociedade em disputa, os quais compõem objetivos a serem alcançados nesses diferentes âmbitos, no curto, médio e longo prazos.
Analisam-se, igualmente, as alianças entre os atores nessas diferentes esferas, a partir de seu posicionamento em relação às contradições fundamentais do sistema, que engendram blocos sociais na forma de sujeitos coletivos, congregando conjuntos de grupos particulares, que sustentam ou almejam a hegemonia de um mesmo projeto político como referência para a organização da sociedade.
A disputa de hegemonia, assim compreendida, ocorre tanto na esfera da sociedade civil, com ações econômicas e culturais, quanto no seio do Estado, por meio de seus aparelhos, mesclando-se processos de formação de consensos e de ação coercitiva, visando a realização dos objetivos compostos no projeto político defendido. A disputa de hegemonia não se refere, portanto, apenas ao Estado em sentido estrito, mas ao próprio bloco histórico em sentido amplo, como unidade real que compõe as relações sociais nos campos econômico, politico e cultural, a teoria e a prática dos atores, as forças materiais e a força das ideologias.
Uma segunda abordagem, por sua vez, parte dos conflitos existentes nas diferentes esferas da sociedade que dão origem a distintos movimentos e organizações de caráter cultural, social, político e econômico. A partir desses conflitos, centrados sobre diferentes demandas específicas, identificam-se os atores em confronto. Estes, por sua vez, são agrupados investigando-se características e posições similares ou comuns, assumidas com respeito ao restante dos conflitos, em favor da manutenção ou da transformação de estruturas e padrões organizativos da sociedade, que causam a própria insatisfação das demandas e levam ao surgimento dos conflitos. Em seguida, são investigadas as múltiplas relações de confronto e de solidariedade que esses movimentos e grupos de atores mantém entre si, considerando como buscam manter ou subverter, coletivamente, tais aspectos da formação social existente.
Analisa-se, em seguida, o modo como suas demandas e propostas são reformuladas politicamente por eles mesmos ou por terceiros e os projetos de sociedade que resultam da articulação orgânica dessa reformulação, os quais apontam para a manutenção ou transformação das relações econômicas, políticas, culturais e sociais vigentes. Investiga-se, então, em que medida a correlação de forças entre esses conjuntos de atores, considerando as plataformas que contemplam os seus principais objetivos e bandeiras, avança ou não na transformação das estruturas e padrões organizativos da sociedade, e qual dos projetos políticos em disputa é melhor atendido com a sua realização.
Em, síntese, partindo-se dos conflitos nos âmbitos econômicos da produção e reprodução social e nos campos cultural, social e político, investiga-se a posição dos atores quanto a esses diferentes conflitos, as alianças que eles estabelecem entre si conformando blocos que defendem plataformas comuns, compondo diversos objetivos particulares desses diversos atores, como referência de horizonte a ser alcançado para a organização da sociedade, na perspectiva dos projetos políticos em disputa.
Sob uma terceira abordagem é possível realizar a análise de hegemonia considerando-se os fluxos materiais, de poder e de conhecimento a partir dos quais os atores sociais se constituem e retroalimentam suas iniciativas de luta pelo próprio controle sobre a produção, apropriação e destinação dos diferentes recursos movimentados nesses fluxos, que são a sua própria condição de existência ou, dito de outro modo, a base de sua própria realidade, reprodução e expansão. Assim, analisando a conexão e retroalimentação, tanto dos fluxos de meios econômicos e de valores econômicos, sua produção, distribuição e apropriação, quanto dos fluxos de poder político e social, como também dos fluxos de informação, sua interpretação e comunicação — considerando as múltiplas interdependências e retroalimentação entre todos esses fluxos — pode-se identificar diferentes classes e grupos de atores, que as conexões desses fluxos fazem surgir. Pode-se, identificar, também as relações de contradição desses atores com outros que lhes antagônicos ou de colaboração entre pares. E, igualmente, identificar como a reorganização dos fluxos materiais, de poder e de conhecimento dos quais participam permite empoderar ou enfraquecer atores, fortalecer ou debilitar estruturas sociais, reproduzir a formação social existente ou dar origem a uma nova formação social.
Essa abordagem permite compreender os eixos de luta em torno dos quais os atores organizam sua práxis, para expandir a sua hegemonia sobre as atividades econômicas, politicas e culturais ou para contrapor-se à hegemonia adversária, obrigando o deslocamento de suas forças e de sua atenção para outro campo ou foco dos confrontos. Permite compreender também o caráter de afirmação ou de antagonismo desses eixos de luta em relação aos diferentes projetos de sociedade em disputa e em relação à formação social existente.
Nessas três abordagens, identificados os principais atores, busca-se, na análise de um dado período, selecionar os principais acontecimentos de natureza econômica, social, política e cultural, identificando mediações que apontam para tendências de seu desdobramento em possíveis cenários, destacando o que muda e o que não muda em relação à situação analisada, relacionando cada um desses acontecimentos aos cenários de conjunto e reformulando tais cenários a partir da evolução dos acontecimentos. Desse modo, busca-se perceber como a alteração na correlação de forças entre os atores aponta para realização de um ou outro desses cenários, destacando a sincronia de um jogo de ocorrências para sua realização e a diacronia da evolução desses cenários com a sua transformação. O embasamento requerido para a projeção desses cenários repousa nos dados da realidade analisada — isto é, na informação mediada por índices (signos indicadores) da realidade concreta. E como essa realidade está em constante movimento, é necessário ajustar permanentemente esses cenários que embasam as decisões dos atores sobre ela.
2. Eixos de Luta na Disputa por Hegemonia
Embora nenhuma abordagem teórica seja capaz de dar conta de toda a complexidade do real, a disputa por hegemonia no seio das sociedades contemporâneas se organiza basicamente em torno de eixos de luta. Embora eles sejam constituídos a partir de interesses relacionados a projetos antagônicos de sociedade, eles condensam o foco das ações sobre objetivos políticos específicos, associados a demandas gerais da sociedade. É na luta pelo atingimento desses objetivos, associados a tais demandas, que as hegemonias se constituem no horizonte desses projetos de sociedade em disputa.
Os atores, operando em redes constituídas em torno de eixos de luta, integram seus diferentes fluxos materiais, de poder e de conhecimento para consolidar e expandir novos de campos de possibilidade para a realização de seus próprios objetivos, imediatos e estratégicos. A conexão desses fluxos possibilita o surgimento e integração de novos atores que, conectados nessas mesmas redes, empoderam-se a si mesmos na exata medida em que as empoderam. A depender dos elementos implicados, a realização desses objetivos impõe um revés à capacidade dos adversários em realizar os seus próprios eixos de luta. E, portanto, impõe um revés à implementação do projeto de sociedade defendido por seus adversários.
Esses eixos de luta podem ter um caráter ético ou cínico, a depender de como efetivamente contribuem para expandir as liberdades públicas e privadas eticamente exercidas do conjunto da sociedade ou apenas para expandir o poder de uma parcela da sociedade que, com a realização dos objetivos condensados no eixo de luta, amplia ainda mais o seu controle e domínio sobre um volume maior de fluxos materiais, de poder e de conhecimento. Neste caso, tais fluxos, que poderiam, distributivamente, contribuir para o atendimento de demandas do conjunto da sociedade, são prioritariamente canalizados para o empoderamento dos projetos dessa parcela de atores que sobre eles ampliou o seu domínio.
Assim, em um eixo de lutas, as demandas da sociedade são sempre reformuladas politicamente, conectando-as a objetivos estratégicos. Porém, tal reformulação tanto pode ocorrer de modo ético, com a participação dos setores populares da sociedade civil como sujeito dessa reformulação, visando atender da melhor maneira possível às demandas do bem comum, quanto pode ocorrer de maneira cínica, sem a participação popular, visando servir da melhor maneira possível aos interesses privados de quem as reformula e as atende.
Um eixo de lutas se compõe basicamente de quatro elementos: uma demanda imediata do segmento da sociedade que se deseja mobilizar (e quanto maior for esse segmento, mais forte tende a ser o eixo de lutas); a sua capacidade em desencadear interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos em torno dele mesmo, resultando na mobilização de grandes contingentes da sociedade em seu favor; a indicação clara, como causa dos problemas por ele enfrentados, de uma ou mais estruturas — de natureza econômica, social, política ou cultural — que se deseja enfraquecer, destruir ou fazer desaparecer; e a indicação clara de uma ou mais estruturas que se deseja fortalecer, construir ou fazer emergir com a sua realização, para a solução dos problemas e a satisfação da demanda. Usamos aqui a expressão estrutura no sentido de alguma propriedade estável ou permanente de caráter econômico, político, cultural ou social, sobre a qual se assentam outros elementos que, em seu conjunto, compõem a formação social vigente.
Nos anos 80 do século passado, um os principais eixos de luta da classe economicamente dominante integrava: a demanda social pelo fim da inflação; a difusão de uma série de interpretantes emocionais, (re)ativos e mentais a respeito dela; a apresentação da inflação como consequência da intervenção do Estado na economia; e a eliminação da inflação com a privatização de empresas públicas, redução de impostos, a abertura dos mercados aos produtos externos e o ajuste da taxa de juros e do cambio como âncoras para a estabilidade de preços. Assim, as sociedades, desejosas de pôr fim à inflação, mobilizadas em sua emoção, compreensão e reação em torno desse objetivo, apoiaram planos econômicos que desmontaram estruturas públicas e fortaleceram grandes grupos econômicos privados, transferindo recursos e poderes do Estado para os atores do mercado, isto é, para a iniciativa privada.
A força de um eixo de lutas está em eleger uma demanda imediata, a cujo atendimento ninguém, de boa fé, poderia se opor. E o grande trabalho dos atores que colaboram na consolidação do eixo de lutas, articulando seus fluxos materiais, de poder e de conhecimento em torno dele, está em desencadear na sociedade pensamentos, emoções e (re)ações em torno do atendimento dessa demanda na perspectiva de suprimir as causas do problema e de instituir ou fazer surgir o aquilo que soluciona o problema, conforme explicitado no próprio eixo de lutas.
O caráter ético ou cínico de um eixo de lutas se revela, tanto pelo modo como apresenta as conexões entre os problemas, suas causas e soluções, de maneira crítica ou ideológica, quanto pelos meios que usa em sua difusão e efetivação, como também pelo resultados objetivos de sua realização. Se os fluxos materiais, de poder e de conhecimento resultantes de sua consumação efetivam um maior compartilhamento dos recursos econômicos, políticos, educativos, informativos e comunicativos em favor do bem comum, suprimindo assimetrias de poder entre as pessoas e organizações e amplia as condições de realização das liberdades públicas e privadas para o bem-viver de todos, trata-se de um eixo de lutas de caráter ético e democrático. Por outra parte, se efetivam uma maior concentração desses recursos em favor do interesse privado de uma parcela de atores, ampliando a assimetria de poder deste grupo em relação ao restante da sociedade e amplia igualmente as condições de expandir a realização de sua liberdade privada em detrimento das liberdades públicas, trata-se de um eixo de lutas de caráter cínico e não-democrático.
O sucesso de um eixo de lutas no embate das forças sociais está, pois, diretamente relacionado à capacidade dos diferentes movimentos, setores ou classes sociais em disputa, em obter o engajamento emocional, mental e ativo das subjetividades em seu favor, consolidando, palmo a palmo, a integração de segmentos cada vez maiores da sociedade em sua defesa.
Tal engajamento não significa apenas em aderir ao enfrentamento do problema selecionado como objetivo estratégico de intervenção, mas em considerar como verdadeiras e corretas as conexões apresentadas, que co-relacionam o problema às suas causas estruturais e que co-relacionam a solução do problema ao conjunto de medidas, apresentadas no eixo de lutas, como necessárias para alcançá-la.
A consideração sobre a verdade e correção dessas conexões tanto pode ser fruto de um processo educativo libertador, necessariamente ético e não-manipulador, fundado na crítica dialógica e na problematização da realidade e das propostas para transformá-la, quanto de um processo educativo de dominação, anti-ético e manipulador, fundado na propaganda do que deve ser considerado verdadeiro e correto. Como as teses e argumentos, nesta segunda perspectiva, não possuem consistência em sua relação com a realidade, busca-se nesse caso ativar os interpretantes emocionais e (re)ativos para o engajamento das condutas, cabendo aos interpretantes lógicos operarem apenas como representações ideológicas e não como conceitos críticos.
A linha básica que demarca, pois, o exercício ético da política em relação aos eixos de luta, ante o seu exercício cínico, está diretamente relacionada à prática da problematização, do diálogo e do respeito à palavra do outro na produção coletiva e na comunicação crítica do conhecimento assim produzido, que se valida por sua conexão com a realidade e pela práxis de libertação para o bem-viver de todos — com o melhor compartilhamento possível dos meios (materiais, políticos, educativos, comunicativos e informativos) que são requeridos à expansão das liberdades públicas e privadas de todos, éticamente exercidas. Com essa problematização e diálogo os atores da práxis de libertação contribuem na reformulação política das demandas integradas no próprio eixo de lutas, isto é, explicitando, dialógica e coletivamente, o modo como essas demandas devem ser atendidas, fazendo do eixo de lutas a expressão de uma elaboração política, substantivamente democrática, em que se constrói um poder verdadeiramente público, verdadeiramente popular. Pois, como dizia Paulo Freire, ninguém ninguém liberta, ninguém se liberta sozinho: os seres humanos se libertam em comunhão.
Mas, se ao invés da comunicação crítica tem-se a propaganda ideológica, se ao invés do respeito à palavra do outro difunde-se a intolerância e o ódio contra o diferente, se o conhecimento é validado não pela práxis que o confirma mas pela autoridade da fonte que o proclama, se o bem-viver de todos é negado em favor de preservar o bem-estar de uma parcela da sociedade, se os recursos requeridos à expansão das liberdades públicas e privadas eticamente exercidas são carreados para a realização de interesses de grupos privados, então a política torna-se a expressão do cinismo. E o eixo de lutas assim construído é necessariamente um instrumento de dominação
Na propagação cínica de um eixo de lutas no interior da sociedade, as causas e as soluções para os problemas são apresentadas, já de princípio, como verdadeiras e inquestionáveis. O esforço será produzir sempre mais elementos para confirmar a sua verdade e não a problematização e a crítica desses elementos, que poderiam evidenciar suas possíveis falhas e inconsistências. O diálogo e a problematização — que, criticando o conhecimento existente, permitem formular um novo conhecimento — vão sendo suprimidos, por onde essa cultura de dominação cognitiva se alastra. E, sob essa lógica, quem não esteja de acordo com a verdade da interpretação da realidade, das causas do problema focado no eixo de lutas e das soluções nele inscritas, é tomado como o inimigo a ser vencido e silenciado, seja pela ironia, pelo deboche, pelo insulto, pela ameaça ou pela agressão.
Em outras palavras, são duas formas totalmente diferentes de realizar a ação política em torno dos eixos de lutas. As duas operam processos distintos de subjetivação, de produção de subjetividades. Esse tema, que desenvolvemos de maneira ampla em outras oportunidades, particularmente em nossa dissertação de mestrado, será aqui resumido em poucas palavras, para não perdermos o fio condutor do argumento.
3. A produção de Subjetividades e as Semióticas do Capital
Compreender, a partir de diferentes abordagens, quais são os principais atores na disputa pela hegemonia em torno de eixos de luta e quais os diferentes projetos de sociedade associados a esses eixos é um exercício analítico relevante para entender os processos históricos, os conflitos e contradições em uma dada sociedade. E, especialmente, para uma tomada de posição, crítica e ética, em relação a esses eixos e projetos.
Porém, a compreensão que os atores possuem de si mesmos no seio dessas relações sociais é, igualmente, fruto de uma auto-interpretação, resultante da aplicação sobre si mesmos de interpretantes emocionais, lógicos e (re)ativos, que são socialmente produzidos, sobre os quais os indivíduos exercem maior ou menor interferência.
De fato, todo conhecimento resulta de uma intrincada teia de relações entre objetos dinâmicos, signos e interpretantes. A nossa própria subjetividade, nossa identidade e modo de ser, não escapam a essa teia semiótica. O modo recorrente como costumamos sentir, pensar e agir sobre eventos de natureza idêntica em nosso dia-a-dia nos permite constituir uma identidade sobre nós próprios e projetar uma auto-imagem de nós mesmos. Com base nesses interpretantes e auto-imagem, conectamos nosso presente ao nosso passado, percebendo um fio condutor na afirmação de nossa própria identidade.
Mas, do mesmo modo que nenhum signo representa totalmente o seu objeto, nós próprios não somos aquilo que pensamos de nós mesmos, não havendo pois total congruência desse auto-ícone com o que realmente somos, nem da interpretação de nossa história com o que foi realmente vivido em nosso passado. No seio das relações que vivemos no presente, diferentes eventos desencadeiam em nós emoções, ideias e ações que vão sendo incorporadas em nossa memoria afetiva, energética e mental e que são, igualmente, integradas em nossa auto-imagem, como reconhecimento de nós próprios naquilo que sentimos, pensamos e fazemos que abrem novas possibilidades de reinterpretação de nossa própria história.
Porém, no último século e, particularmente, nas últimas décadas, muito conhecimento foi produzido nos campos da psicologia, publicidade, propaganda, economia, sociologia, ciência política, etc, possibilitando organizar formas cada vez mais eficientes de agenciar emoções, ideias e ações, para conectar nossas auto-imagens, nossas identidades e nossas liberdades à compra de produtos, à eleição de candidatos, a opções de trabalho e a muitos outros engajamentos subjetivos, mentais, emocionais e (re)ativos.
Assim, os interpretantes com os quais nos acoplamos ao ambiente social e natural, com os quais (re)agimos nas mais diferentes situações e nos compreendemos como nós mesmos nessas (re)ações, com os quais interpretamos os fatos, as normas e os valores, deixam de estar modelados basicamente pelas famílias, escolas e outras comunidade de proximidade geográfica, mas, especialmente, por meios de comunicação de massa — que nos integram a fluxos materiais, de poder ou de conhecimento de grandes grupos econômicos, políticos ou comunicativos — e por diferentes comunidades virtuais, organizadas através de redes sociais.
Félix Guattari nos ensinou muito sobre as semióticas do capital e como elas operam a produção de subjetividades, não apenas agenciando intensidades (particularmente desejos) que serão associadas a marcas e produtos, resultando na produção de consumidores para esses produtos e objetos-sígnicos, mas também na modelização da subjetividade para a produção de produtores, que devem possuir as habilidades emocionais, mentais e de ação requeridas para a produção do capital, segundo processos tecnológico-produtivos que estão em constante transformação.
Podemos dizer que se trata de um movimento (-dução) que lança à frente (pro-) a realização do modo de ser (sistere) que nos integra ao ambiente externo (ex-) em que vivemos, sendo pois, um modo de produção da existência das pessoas. Esse movimento tanto pode ser de alienação e dominação, quanto pode ser de singularização e libertação.
A consolidação de eixos de luta, tanto de forma ética quanto de forma cínica, implica em desencadear o movimento de interpretantes mentais (lógicos), emocionais e energéticos (isto é, de ação e reação) que se relacionam aos problemas, às suas causas e às suas soluções.
A abordagem cínica opera, nessa consolidação, uma produção de subjetividade que, modelizando emoções, ideias e atitudes, engaja as pessoas na reprodução dessa mesma abordagem, propagada como verdadeira através de aparelhos de comunicação hegemônicos. Combate, igualmente, toda crítica recebida, associando tal crítica à perpetuação daquilo que deve ser eliminado para que os problemas enfrentados sejam resolvidos.
Por sua vez, a abordagem ética, na consolidação dos eixos de luta, busca realizar a crítica e a subversão das semióticas de dominação e o desencadeamento de subjetivações em que as emoções, ideias e atitudes escapem das semióticas econômicas e políticas do capital, das semióticas machistas e racistas e de todas as diferentes semióticas autoritárias, num movimento de desalienação e de singularização das pessoas. Trata-se de subverter os modos alienantes e autoritários de produção da existência das pessoas e todos os regimes de signos que, sobrecodificando as auto-imagens que as pessoas fazem de si mesmas, levam-nas, inconscientemente ou não, a submeter-se a relações autoritárias de poder, em que são reduzidas a coisas que podem ser postas ou dispostas em função do interesse alheio.
Assim, trata-se não apenas da problematização da realidade ou da produção dialógica de novo conhecimento. Mas, igualmente, de um movimento que permita às pessoas compreenderem a si mesmas com maior autonomia e liberdade, de redescobrirem o seu direito à diferença, o direito de pensar e de agir em função de seu próprio bem-viver, no exercício ético de suas liberdades, respeitando por isso mesmo o bem-viver de todos, subvertendo a prática de compreenderem a si mesmas em função do que as semióticas hegemônicas capitalistas, machistas, consumistas, segregadoras, enfim, autoritárias, estabelecem como auto-imagem para a realização de suas vidas.
Todavia, a depender do grau de intervenção realizado na produção cínica de subjetividades, a argumentação crítica, que a enfrenta dialogicamente, pode ser ineficaz para desencadear processos de subjetivação subversiva. Pois a argumentação lógica, por si mesma, tende a ser incapaz de re-singularizar os interpretantes emocionais e energéticos envolvidos na propagação cínica do eixo de lutas. Pelo contrário, os diálogos tendem, facilmente, a descambar para polêmicas que se convertem em agressões emocionais, consolidando, ainda mais, a convicção sobre o eixo de lutas já adotado para a solução dos problemas, comprovando, emocionalmente e (re)ativamente, que a proposição defendida pelo antagonista deve ser realmente combatida e eliminada.
Por isso, as abordagens estéticas, compondo diversas formas de arte capazes de desencadear processos de subjetivação que subvertem essas semióticas autoritárias são elementos essenciais às práticas de educação popular. Não se trata, contudo, de realizar qualquer tipo de arte mensageira, isto é, que pretenda transmitir algum conteúdo como sendo a resposta verdadeira a algum problema. Mas, sim, de romper as recapturas dos interpretantes emocionais e energéticos, realizadas pelas semióticas hegemônicas.
Do ponto de vista micro-político, tal ruptura busca abrir espaços para a redescoberta das próprias pessoas sobre as diferentes possibilidades de realização de sua própria existência. E, com isso, criar as condições subjetivas favoráveis para que elas possam perceber, sentir e reagir de outros modos, em relação a si mesmas e em relação às outras pessoas — modos que sejam mais livres e melhores para elas próprias, em seu cotidiano tornar-se pessoa, em sua cotidiana humanização.
A adesão a um eixo de lutas de caráter ético e libertador não pode ser resultado de uma prática pedagógica de dominação, mas de uma abertura a diferentes modos de pensar o mundo e de nele existir, movida pelo desejo de que cada ser humano possa realizar-se, em sua dignidade e diferença, em sua singularidade e distinção. De fato, cada pessoa jamais se reduz ao que pensamos dela, do mesmo que nossa auto-imagem não corresponde ao que nós somos. Por sua condição de alteridade, isto é, por sua condição de ser outro, as pessoas podem nos ensinar aquilo que ainda não sabemos e podem despertar em nós emoções e reações que ainda não vivemos e que, por isso mesmo, podem ampliar a nossa própria liberdade de realizar o nosso bem-viver. Sob o aspecto ético e libertador, esse movimento de adesão, abertura e singularização se desdobram na necessidade de reorganizar os fluxos materiais, de poder e de conhecimento em nossas sociedades, em proveito do bem-viver de todos e não do empoderamento de uma pequena parcela que luta por controlá-los em função de seus interesses privados.
Assim, a construção ética de eixos de luta, embora estabeleça objetivos específicos em torno dos quais, os atores colaboram com seus fluxos materiais, de poder e de conhecimento, para disputar um projeto de sociedade exige, tanto no processo da formulação desses eixos quanto de sua realização, um movimento pedagógico libertador. Esse movimento afeta não apenas a consciência, mas as demais dimensões da subjetividade, particularmente os interpretantes emocionais e (re)ativos.
Isso é necessário para que o resultado dos processos de mobilização, organização e educação não se voltem apenas ao combate de estruturas econômicas, políticas, culturais e sociais e à afirmação de novas estruturas em seu lugar, mas igualmente em suprimir todas as formas autoritárias de produção de subjetividades, substituindo-as por agenciamentos de livre subjetivação. A superação de estruturas opressivas e a supressão de formas autoritárias de produção de subjetividade devem contribuir para que as pessoas possam realizar, de modo pessoal e coletivo, a sua própria libertação, construindo uma nova formação social que possibilite realizar eticamente, da forma mais ampla possível, as liberdades públicas e privadas de todos.
Trata-se, portanto, de subverter as diferentes estruturas e códigos de poder autoritários, que reproduzem relações sociais de exploração e dominação. Trata-de de um movimento de desalienação, de singularização, em que a pessoa se descobre como sujeito singular e social de sua história pessoal e da história coletiva. E não como alguém que adotou uma interpretação dos signos de si mesmo e um determinado modo de pensar e de agir modelados sob diferentes semióticas hegemônicas opressivas, com o concurso de TVs, rádios, jornais, revistas, comunidades virtuais e de movimentos sociais e organizações políticas autoritárias que o engajam na defesa de um cínico eixo de lutas.
4. Redes Sociais e Produção de Subjetividades
Mas para bem entendermos as dinâmicas de produção de subjetividade associadas ao eixo de lutas pelo impeachment, há um elemento importante a destacar sobre as formas como as redes sociais filtram as informações que as pessoas recebem e como retroalimentam a produção de um mesmo tipo de subjetivação.
Quando alguém faz uma busca por determinado produto ou assunto na Internet, essa operação fica registrada em diferentes arquivos no aparelho em que foi realizada ou em arquivos, associados às suas contas, em nuvens de dados. Esses registros são usados automaticamente pelas empresas para monitorar os interesses dos usuários. Com base neles, as empresas selecionam as publicidades a serem veiculadas, exibindo propagandas de produtos e outros conteúdos correlatos nas maioria dos sites pelos quais o usuário navega. O mesmo ocorre com o monitoramento dos likes clicados, dos tweets e e-mails enviados e de outras atividades on line para identificar as preferências do usuário e filtrar a exibição conteúdos, destacando os que seriam de seu maior interesse.
Assim, quando alguém busca por um assunto ou produto, tende a receber conteúdo sobre ele. E quanto mais clicar sobre as publicidades e links que levam a documentos e produtos a respeito desse assunto, mais publicidades e links para textos e vídeos sobre ele a pessoa tende a receber, em razão da redundância na retroalimentação dos filtros de conteúdo.
Por outra parte, quando as pessoas organizam redes sociais com outras que pensam de forma semelhante a elas, todas as mensagens, imagens, piadas, textos nas diferentes áreas do conhecimento enviadas nessas comunidades tendem a expressar uma mesma afinidade com as perspectivas e valores desse grupo. Mas, também aqui, esses conteúdos sofrerão uma análise automática de palavras-chaves pelo programas de monitoramento, sendo tomadas pelo provedor do serviços como indicação de interesses prioritários para direcionamento de publicidade e conteúdo nessas comunidades.
Esses dois mecanismos de filtragem, tanto o automático que monitora conteúdos para deduzir interesses, quanto o social pelos likes e compartilhamento de arquivos no seio do grupo, faz com que exista um laço de auto-reforço, em que o fluxo de informação se concentra sobre alguns temas e sobre determinadas abordagens sobre eles. Como a identidade das pessoas se constrói a partir da sua recorrência aos interpretantes mentais (lógicos), emocionais e (re)ativos com os quais normalmente se conectam ao ambiente, a exposição continuada ao mesmo conteúdo sob abordagens idênticas tende a consolidar uma mesma disposição sobre ele, compartilhada no seio das comunidades por meio das quais as pessoas se integram ao mundo, particularmente no que se refere aos fluxos de conhecimento. A manifestação pública dessa disposição em relação a esses conteúdos, retroalimenta a afirmação da auto-imagem que as pessoas têm de si mesmas, reafirmando a identidade comum que integra o indivíduo à sua comunidade.
Assim, se alguém busca informações sobre um determinado assunto, mais informações receberá sobre ele. E quanto mais compartilhamentos sejam feitos de resultados obtidos, em razão de serem interpretados por diversos sujeitos com um jogo afim de interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos, tanto mais esses interpretantes se consolidam e se difundem como padrões de interpretação dos fatos aos quais eles se aplicam. Porém, como não há uma investigação maior pela maioria das pessoas sobre possíveis fraturas na conexão entre os fatos (objetos dinâmicos) e as informações (signos) que os representam, tem-se uma produção de subjetividade em torno do acoplamento estrutural dessas subjetividades ao ambiente mediado por esses signos, interpretados no seio dessas comunidades, sob mecanismos de auto-reforço.
Assim, a comunidade reforça a identidade do indivíduo e este reforça a identidade da comunidade pela abordagem similar dos conteúdos compartilhados. Como as fendas ao diferente vão desaparecendo pela lógica mesma dos filtros de informação, com os likes ou curtidas que posicionam os conteúdos de maior afinidade com essa mesma identidade no topo da linha do tempo desses participantes, passa a existir um produção de subjetividade que leva não apenas a sentir e compreender os acontecimentos, mas especialmente a reagir a eles, com uma mesma afinidade coletiva, reproduzida de maneira redundante, nesses grupos e comunidades.
Em outras palavras, a abertura à diferença vai desaparecendo pelo reforço de uma mesma identidade. Do ponto de vista da formação humana das pessoas isso é uma grande perda, pois elas acabam se convencendo de que o modo justo e certo de pensar o mundo é esse que elas constroem, compartilhando todas as reportagens, noticiais, memes, imagens, vídeos e links que reproduzem o mesmo sistema modelizante e interpretativo do grupo a que pertencem. Se alguém discordar frontalmente de algo, subvertendo pois o regime de signos e a interpretação realizada na espiral que elimina a diferença e repõe a redundância, haverá uma fratura dos interpretantes hegemônicos do grupo com relação ao seu sentir, pensar e (re)agir em relação a esse conteúdo e, igualmente, em relação a essa pessoa. Surge, então, um problema ou conflito que, a depender das proporções alcançadas, pode fraturar essas comunidades ou mesmo outras tramas de relações sociais vividas por essas pessoas por desdobramento dos conflitos nessas comunidades.
Assim, o grau de redundância na auto-afirmação da identidade de um sujeito em relação a um grupo social, no modo de compreender a si mesmo, sua auto-imagem e o seu próprio papel histórico no mundo — pela experiência comum vivida na interpretação emocional, mental e (re)ativa sobre os objetos compartilhados pelo grupo — pode levar uma pessoa, por exemplo, a romper relações com a própria família, pois sua auto-imagem vai se distanciando dos interpretantes anteriormente assumidos, pelos quais se reconhecia como si mesma ao longo de sua história.
As mídias de massa e essas comunidades sociais, realimentadas por elas, são espaços de produção de subjetividade que, em geral, estão subordinados a empresas econômicas que provem serviços informativos, comunicativos, de hospedagem de comunidades e de ofertas de conteúdo segmentado. Mais do que captar audiência, essas empresas operam, por meio desses serviços, na produção de subjetividades das pessoas como consumidoras. Mas, igualmente, atuam na produção de interpretantes lógicos, emocionais e energéticos que resultam em posicionamentos afins aos próprios interesses dessas empresas.
Assim, quando fazemos uma análise dos fluxos de informação em movimentos de disputa de hegemonia, podemos identificar um jogo de retroalimentação de interpretantes sobre acontecimentos, resultando numa redundância interpretativa reafirmada em vários veículos de grupos afins, fazendo crer que, pelo fato de uma mesma informação ser divulgada em diferentes fontes sob uma mesma abordagem interpretativa, tal interpretação hegemônica da informação corresponda à verdade dos próprios acontecimentos aos quais a interpretação se refere.
É necessário expandir a análise desses mecanismos de redundância na produção de subjetividades, particularmente no caso das redes sociais, investigando-se os procedimentos de manipulação de conteúdo operados pelas empresas que oferecem os serviços ou por terceiros que deles se valem.
É de conhecimento público que o Facebook realizou experiências com milhares de usuários, concluindo que o humor destes podia ser modificado, positiva ou negativamente, influenciando-se suas próprias postagens, a depender do que aparecia com prioridade na linha do tempo em suas contas. Dado que os likes que posicionam conteúdos nesse serviço podem ser obtidos mediante pagamento, pode-se posicionar determinados conteúdos na linha do tempo dos usuários, elegendo-se palavras-chaves específicas e pagando-se para melhor posicioná-los. A reação mental, emocional e energética a esses conteúdos, quando a subjetividade é exposta de forma recorrente a eles, pode desdobrar-se no engajamento da pessoa à abordagem dos problemas e ao modo de solucioná-los, segundo o eixo de lutas que se propaga por meio desses conteúdos.
Outro mecanismo, que passou a ser adotado no Brasil em algumas campanhas eleitorais, é o uso de robôs que possibilitam disseminar conteúdos pela Internet, particularmente nas redes sociais. Trata-se de programas que automaticamente disparam mensagens que replicam outras de origem humana, segundo critérios de seleção embutidos no programa. É muito provável que tais mecanismos estejam sendo usados na propagação de eixos de luta de grandes grupos econômicos em todo o mundo, particularmente na América Latina.
De fato, na Colômbia, como a Bloomberg detalhou em ampla reportagem, está preso um hacker, condenado por crimes cibernéticos, que afirma ter utilizado vários mecanismos de Internet para interferir no resultado de eleições na América Latina, com a postagem de conteúdos dirigidos em diferentes serviços, manipulando redes sociais, criando e propagando sentimentos de entusiasmo ou de escárnio com relação a conteúdos de campanhas políticas.
5. O impeachment como eixo de lutas
Assim, chegamos ao eixo de lutas do golpe em curso no Brasil, que associa as causas da corrupção e da crise econômica no país a um determinado partido político e defende, como solução do problema, o impeachment da atual presidente, abrindo espaço para a realização de um amplo conjunto de medidas econômicas, apresentadas como a “ponte para o futuro“.
Os quatro elementos básicos do eixo de lutas do impeachment são: a demanda imediata pelo fim da corrupção e pelo fim da crise da econômica; a ampla mobilização da sociedade desencadeando interpretantes emocionais, mentais e (re)ativos em torno disso; a indicação clara de que o Partido dos Trabalhadores e, por extensão, o atual governo são os principais responsáveis pela corrupção e pela crise econômica no país, em função da gestão ineficiente e fraudulenta do Governo Federal, sendo necessário, portanto, depor o atual governo e, em seguida, eliminar o registro do PT; e, por fim, implantar um conjunto de medidas para tirar o Brasil da crise, que estão agrupadas no Plano Temer e, aos poucos, ir concluindo as operações de combate à corrupção, que, por haverem desmascarado e ajudado a extirpar a organização criminosa que se apossara do Estado, já teriam cumprido a sua função.
O grau de força potencial desse eixo de lutas é bastante elevado, pois ninguém, de boa fé, se oporia ao combate à corrupção ou ao fim da crise econômica no Brasil.
O trabalho dos atores que colaboram na consolidação desse eixo de lutas, articula fluxos materiais, de poder e de conhecimento em torno dele. Investigando tais fluxos chegamos aos principais atores da rede que o propaga. Não faremos aqui uma analise aprofundada de todos esses fluxos, apenas realizamos algumas indicações a seu respeito. Parte dos atores a que chegamos pela análise desses fluxos está identificada, com detalhes, em O Quebra-Cabeça do Golpe e As Provas de um Crime — e não repetiremos aqui o que lá já está. Nesses dois textos estão muitos links para documentos e fontes de dados que suportam essa análise de fluxos.
Seguramente, um trabalho coletivo de investigação com esse método, poderia resultar em uma análise bastante surpreendente, mapeando as múltiplas conexões desses atores com outros, que vão sendo identificados, aos quais estão conectados por fluxos materiais, de poder e de conhecimento, desenhando-se, ao final, uma ampla figura de rede, em que esses atores operam como nodos de circuitos de poder muito mais complexos, constituídos em torno de diferentes hubs.
Investigando os fluxos materiais, relacionados a propaganda, infra-estrutura disponibilizada e materiais produzidos para a difusão da campanha pelo impeachment, chegamos, por exemplo, a Federações de Industrias e organizações empresariais no Brasil, a organizações estrangeiras que apoiam lideranças que defendem a “privatização de todas as empresas publicas” e que “Brasil livre é Brasil sem PT“, bem como a grandes grupos empresariais de comunicação que colocam seu poder de mídia serviço dessa causa.
Investigando os fluxos de poder, chegamos a um conjunto de partidos políticos de oposição e de parlamentares sob investigação em casos de corrupção. Chegaríamos, possivelmente, a juízes e membros da Polícia Federal e do Ministério público que, por ação ou omissão, poderiam ser responsáveis pelo recorrente vazamento ilegal de trechos de documentos que têm, por alvo prioritário, acusações contra o PT e seus membros. Chegaríamos, possivelmente, a Ministros do STF, que pouco fariam para conter esses vazamentos e que aceitam, como provas para elemento de juízo, gravação resultante de grampo telefônico, colhida sem o devido amparo legal, e divulgada à sociedade em flagrante violação do Art. 5 da Constituição. Chegamos também ao Movimento Brasil Livre, principal articulador do movimento pelo impeachment e que pretende formar uma bancada no congresso com os políticos que elegerá por diferentes partidos políticos.
Investigando os fluxos de conhecimento, isto é, os fluxos de informação, de comunicação e da interpretação dos fatos, normas e valores, em favor do impeachment e que o retroalimentam, encontramos grandes grupos de mídia no Brasil, com destaque para o Grupo Globo, Veja e outros, com seu recorrente “acesso com exclusividade” a documentos sob sigilo judicial ou segredo de justiça, que somente podem ter a sua reprodução realizada graças ao cometimento, por alguém, de algum crime relacionado ao seu vazamento e à sua reprodução não-autorizada. Igualmente, encontramos inúmeras comunidades em redes sociais, especialmente organizadas para a promoção do impeachment. Encontramos a participação da organização Students for Liberty no Brasil, aglutinando e formando jovens na defesa da “privatização de todas as empresas públicas” e na difusão da tese de que “Brasil Livre é Brasil sem PT“.
Sobre isso, é interessante analisar o fluxo de lideranças, de recursos humanos, aglutinadas no Movimento Brasil Livre, compreendendo onde ocorre a sua produção de subjetividade, com quais recursos materiais e como são apoiadas posteriormente. Conforme o site da Students for Liberty, seu nodo brasileiro treinou, em janeiro de 2016, a quinta turma do Programa de Coordenadores Locais, com a participação de mais de 1.000 coordenadores. A matéria prossegue dizendo que a maioria dos institutos liberais no Brasil têm líderes treinados por essa organização.
Por sua vez, sobre as redes sociais e o uso da Internet para o fortalecimento desse eixo de lutas, uma busca no Google com a expressão anti-PT resultou em 286 milhões de documentos e com a expressão “pro-impeachment” resultou em 11 milhões.
Uma parte desses resultados advém de uma reflexão crítica em que essas expressões são mencionadas. Mas, a produção de redundância interpretativa sobre esses termos e de seus conteúdos correlatos, recapturando toda e qualquer linha de fuga que os subverta, é elemento central para a reprodução da convicção sobre o acerto do eixo de lutas do impeachment. É muito provável que exista o uso de robôs e de atores especializados na propagação pela Internet desse conteúdo e de interpretantes a ele associados, com as técnicas que analisamos na seção anterior.
Por outra parte a produção e comercialização de pixulecos e camisetas anti-pt encontra, entre suas diferentes fontes, o próprio Movimento Brasil Livre e membros do Students For Liberty. Na loja.mbl.org.br, onde se encontram à venda esses artigos, o rodapé apresenta a titularidade do copyright da página como pertencente a Kim Kataguiri, líder de ambas as organizações.
A ideologia difundida em torno desse eixo de lutas pelo impeachment está associada, pois, ao que se quer implantar: a privatização de todas as empresas públicas, a redução de impostos, a eliminação de vários direitos sociais e trabalhistas. Por outra parte, para consolidar a adesão a esse eixo, que ao final criaria melhores condições para a realização desses objetivos, movem-se os interpretantes emocionais e energéticos das pessoas, retroalimentados pelo fluxo de informações, previamente interpretadas pelos veículos associados à sua propagação.
Os atores atingidos por esses fluxos, tomando posição sobre o impeachment e manifestando-se favoráveis ou contrários a ele, constroem uma auto-imagem sobre sua própria atitude, sobre sua prática, sobre si mesmos, sobre seus discursos, interpretados não apenas com elementos lógicos mas, igualmente, com emoções e reações corporais. Nesse processo de interpretação, diferentes memórias de vivências passadas e interpretantes emocionais e energéticos se relacionam, desencadeando devires, muitas vezes inesperados, para as próprias pessoas e para quem as conhece.
Um exemplo interessante, para ilustrar esse fenômeno, foi o desfecho de um discurso da co-autora do pedido de impeachment, Janaina Paschoal, há poucos dias. Os movimentos de seu corpo são uma reação energética à semiose de seu próprio discurso, com emoções que se misturam a interpretantes familiares e religiosos, resultando num desfecho de metáforas bíblicas que operam como interpretantes lógicos em seu raciocínio. Não seria surpreendente tal discurso se fosse realizado por alguma liderança eclesial. Mas o é, por tratar-se de uma advogada, professora de direito na USP, e pelo argumento ser apresentado no ato de Juristas pelo Impeachment na própria Faculdade de Direito dessa universidade:
“É o momento de discutir a que Deus queremos servir. É ao dinheiro? Nós queremos servir a uma cobra? O Brasil não é a República da cobra. […] Nós não vamos deixar essa cobra continuar dominando as nossas mentes, as almas dos nossos jovens. […] Eles querem nos deixar cativos. Mas nós não vamos abaixar a cabeça. Porque desde pequenininha que o meu pai me diz ‘Janaína, Deus não dá asa para cobra’. E eu digo pra ele: ‘Mas Pai, às vezes, a cobra cria asa. Mas, quando isso acontece, Deus manda uma legião para cortar as asas da cobra’. Nós queremos libertar o nosso país do cativeiro de almas e mentes. Não vamos abaixar a cabeça para essa gente que se acostumou com o discurso único. Acabou a República da cobra.”
O registro religioso, contrapondo Deus e a cobra, associa a figura desta ao demônio e este a Lula, contra o qual Deus enviará sua legião, para libertar o país do cativeiro das almas e mentes, da República da cobra. Esse componente de auto-imagem messiânica, de ser mediadora de uma missão redentora do país com a realização do impeachment, também está difuso numa parcela desse movimento, em que arquétipos de natureza religiosa operam na compreensão das condutas assumidas.
É importante destacar que nessa forma de disputa por hegemonia, não é necessário que todos os atores participem de um mesmo partido ou organização. Eles não necessitam realizar alguma convenção para decidir sobre o eixo que os une. Uma vez detectado o engajamento da sociedade em torno de objetivos imediatos a serem alcançados (o combate à corrupção e o enfrentamento da crise econômica), uma vez associados esses objetivos ao impeachment, os diferentes atores passam a organizar os fluxos de materiais, de poder e de conhecimento para consolidar esse eixo, vinculado-os ao que se quer abolir e ao que se quer instituir.
Se um real crime de responsabilidade da presidente existe ou não, isso não será problema para a sua deposição, conquanto haja a difusão de uma interpretação hegemônica sobre algum fato, o mais suscetível de ser interpretado como crime, como se o fosse em realidade, ainda que efetivamente não o seja.
Assim, o vazamento de uma acusação publicado numa revista é reproduzido na TV; o que é publicado na TV é retomado nas revistas; e a informação segue circulando, por jornais, Internet, rádios e diferentes mídias, agregando-se novos interpretantes, consonantes à necessidade de realização do impeachment para a solução dos problemas enfrentados. A maior parte da informação dissonante é descartada ou publicada apenas de passagem e sem qualquer destaque, para evitar o enfraquecimento da adesão da população ao eixo defendido nessa disputa de hegemonia. Mas quando essas informações dissonantes circulam, busca-se reduzir sua importância, difundindo-se interpretantes sobre elas, evitando que se propaguem linhas de fuga ou dissonâncias cognitivas que fraturem a unidade interna do eixo de lutas que aparenta conectar os problemas às suas causas e às suas soluções.
A técnica de reproduzir a redundância e de suprimir a dissonância na interpretação dos fatos leva a situações paradoxais. Assim, por exemplo, dois partidos recebem dinheiro de uma mesma empresa para uma mesma campanha eleitoral, para a disputa de um mesmo cargo eletivo e, igualmente, declaram esse recebimento do mesmo modo ao TSE. Mas o juiz interpreta que o dinheiro recebido pelo partido A era doação legal de campanha. E o dinheiro recebido pelo partido B era propina, fruto de corrupção — ainda que o partido A tenha recebido mais dinheiro que o partido B. Em outro momento, encontra-se uma lista com mais de 300 nomes de políticos citados em recebimento de dinheiro de uma empresa. Cruzam-se os valores indicados e a prestação de contas dessas campanhas e não se encontra a indicação, junto ao TSE, dessas doações recebidas em muitas dessas campanhas. Então, a mídia afirma que: “Não é possível, de antemão, saber se os pagamentos são doação eleitoral legal ou propina. É que mesmo que não estejam na prestação de contas registrada pelo Tribunal Superior Eleitoral, existem formas de pagamento chamadas de “doações ocultas”. São repasses feitos de forma legal aos partidos, que só depois se destinam aos candidatos.”
Assim, como se vê, graças à interpretação hegemônica, as coisas ficam claramente invertidas. Aquilo que está legalmente declarado é crime para um, mas não o é para outro. E aquilo que não está legalmente declarado, pode ser uma “doação oculta”, porém legal, para um e ser interpretado como crime para outro. Assim, na difusão cínica desse eixo de lutas, menos importam os fatos do que a interpretação sobre eles.
A ênfase das semioses recai sempre sobre o problema a ser enfrentado (a corrupção e a crise econômica), a causa desse problema (o PT e o atual governo) e a solução do problema (o impeachment). E quanto mais as semioses enfatizam o tamanho da corrupção e o tamanho da crise, mais a convicção de que o impeachment deve ser realizado é reforçada por aqueles que adotam essa interpretação como verdadeira.
Porém, como a explicitação dos elementos a serem realizados no pós-impeachment — supressão de direitos sociais e trabalhistas com o Plano Temer e fim da exclusividade da Petrobras como operadora na exploração do pré-sal — poderia gerar interpretantes de rejeição do próprio impeachment, isso não é o objeto central das semioses dos veículos de comunicação alinhados na defesa desse eixo de lutas.
Trata-se, pois, de um eixo de lutas cínico, por fazer crer que as causas da corrupção e da crise econômica no Brasil repousam num determinado partido e no atual governo. E que, para sair da crise e combater a corrupção, é preciso realizar o impeachment do atual governo e cancelar o registro desse partido. De fato, o modo como são apresentadas as conexões entre a crise econômica e suas causas, entre a corrupção e suas causas, é plenamente ideológico, fundado em representações que não correspondem efetivamente à realidade, como o pode comprovar uma análise de indicadores internacionais a respeito de ambos os temas. As semioses hegemônicas, contudo, repetem essa conexão à exaustão. Se a crise e a corrupção fossem apresentados como sendo fruto das responsabilidades de diferentes atores econômicos e políticos no país, o público chegaria à conclusão de que o impeachment não traria a solução da crise econômica e nem seria um golpe fatal no combate à corrupção.
É, igualmente, cínico pois os fluxos materiais, de poder e de conhecimento que resultam de sua consumação final ampliam a concentração de recursos sob o domínio de grandes grupos econômicos e a assimetria de poder desses grupos em relação ao restante da sociedade. E por outro lado, reduzem os volumes de recursos destinados ao atendimento das necessidades das populações mais pobres no país, fazendo regredir a sua já precária condição de vida.
A propagação desse eixo de lutas, portanto, é semelhante à de um vírus de computador, embutido numa bela imagem de plano de fundo. Uma vez instalado, as rotinas que estão nele escondidas passam a funcionar sem que se perceba, para realizar coisas que as pessoas nunca imaginaram que aconteceria.
Porém, embora esse eixo de lutas tenha conseguido consolidar-se amplamente, ele possui vulnerabilidades que permitem fragilizá-lo e derrotá-lo.
6. Como enfrentar esse eixo de lutas
Há duas frentes de atuação, uma junto à sociedade e outra em relação aos parlamentares. Ambas são importantes, pois, crescendo a reação ao impeachment no seio da sociedade, menos parlamentares tenderão a apoiá-lo.
Há vários aspectos a considerar no enfrentamento desse eixo de lutas, particularmente os seus quatro elementos constitutivos (seu objeto imediato, o agenciamento coletivo, o que será eliminado e o que será instituído), a forma como ele está sendo retroalimentado e os seus principais signos de referência.
6.1 Interpretantes Lógicos
Sob o aspecto dos interpretantes lógicos ou mentais, é importante realizar a problematização sobre quem são os ganhadores e os perdedores com a aprovação do impeachment e sobre o que eles ganham ou perdem. Um detalhamento disso, fazendo referência aos projetos de lei em tramitação e diversas propostas inscritas na “Ponte para o Futuro“, está realizado em O Quebra-Cabeça do Golpe. Resumimos abaixo alguns elementos desse texto.
– Quem serão os grupos econômicos mais beneficiados pelo impeachment?
Entre eles estão grandes grupos econômicos, no país, favorecidos pelo Plano Temer; companhias estrangeiras que atuam no ramo de petróleo e derivados, que poderão explorar o pre-sal; corporações internacionais favorecidas com as privatização de ativos da União; os investidores nas bolsas de valores; os especuladores com a política cambial; os grandes bancos com a política monetária; as grandes empresas com a redução de impostos; e os grupos de mídia que desejam reforçar os seus monopólios.
– Quem são são os grupos políticos mais beneficiados pelo impeachment?
Entre eles se incluem os políticos corruptos que desejam pôr fim às investigações de corrupção no país. Como o Governo Dilma fortaleceu os instrumentos de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011) e empoderou a luta contra a corrupção, é preciso depor esse governo para que não se aprofunde a investigação sobre todos os partidos e se mantenha o foco das atenções apenas no PT e nos seus aliados. Serão beneficiados também os candidatos lançados pelo Movimento Brasil Livre através de diferentes partidos, particularmente PSDB, Partido Novo, DEM, PSD, PSC e PPS. E, ainda, o Movimento Brasil Livre, como tal, que futuramente pretende montar uma bancada liberal no Congresso Nacional, com os parlamentares que irá eleger nos próximos anos por diferentes partidos. Assim, aproveitando-se das mobilizações iniciais do passe-livre e das mobilizações que vieram depois, as lideranças desse movimento pró-impeachment, tornando-se políticos profissionalizados, levarão para dentro do congresso, de forma permanente, suas propostas de “privatizar todas as empresas públicas” — e, portanto, também a Petrobras e os Correios —, de reduzir impostos e o gasto com políticas sociais e de suprimir politicas de transferências de renda destinadas ao auxílio dos mais pobres.
– Quem serão os mais prejudicados economicamente pelo impeachment?
A maior parte da população brasileira, com a redução de direitos sociais e trabalhistas previstos no Plano Temer. O fim da exclusividade da Petrobras na exploração do pré-sal, como aprovado no senado, e sua possível privatização como ativo a ser transferido à iniciativa privada, suprimem a soberania energética do Brasil na área do petróleo e impactam sobre o Fundo Social, que destina 50% de seus valores para a aplicação integral nas políticas de educação. Por sua vez a redução de impostos fará com que haja menos dinheiro para o orçamento federal e com isso, como não será reduzido o pagamento da dívida pública, haverá menos recurso para saúde, educação e políticas de transferência de renda. Isso impacta sobre a classe média e os micro-empresários, pois com a redução do poder de compra da maioria da população, inverte-se a lógica de crescimento com distribuição de renda que marcou o período de 2003 a 2014.
– Quem serão os mais prejudicados politicamente pelo impeachment?
Não havendo crime de responsabilidade da presidente, o impeachment é um golpe de estado. Se esse golpe for dado, perdem todas as forças políticas que defendem a democracia no Brasil, inclusive o partido da atual presidente. A intolerância política tende a se acirrar, juntamente com diferentes formas de preconceito e discriminação contra os segmentos sociais que eram o público de diferentes programas que serão abolidos ou terão seus recursos drasticamente reduzidos.
6.2 Interpretantes Emocionais e (Re)ativos
O enfrentamento emocional e reativo desse eixo de lutas requer subjetivações criativas que escapem da semiótica hegemônica de intolerância e de agressão propagada pelos seus defensores. Como analisado anteriormente, não se pode adotar o mesmo modo cínico de desencadear emoções e reações para enfrentar qualquer eixo de lutas. Pelo contrário, deve-se combater toda forma de manipulação de interpretantes emocionais e (re)ativos que busca o engajamento alienado das pessoas a qualquer causa.
Nisso é fundamental uma abordagem estética de reinterpretação dos principais signos mediadores das semióticas hegemônicas do impeachment. Com imagens, músicas, poesias, vídeos etc, tais signos podem ser reconectados a outros interpretantes, relacionados ao futuro que a implementação do Plano Temer e do Projeto do Serra traz escondido dentro do Pato Amarelo da Fiesp. Qual é o recheio do Pato Amarelo? O que vem escondido por dentro do Pato de Tróia?
O patrão lhe deu um pato amarelo,
como se fosse peru de natal.
Enfeitiçado por seu encanto,
entregou aos gringos o pré-sal.
6.3 Explicitar as conexões internas do Impeachment como eixo de lutas
O resultado da problematização sobre as conexões entre semioses e fatos, abordando os aspectos lógicos ou mentais a seu respeito, e da singularização dos interpretantes emocionais e (re)ativos sobre eles deve contribuir, dialogicamente, para desvendar a trapassa desse eixo de lutas.
Essa trapaça do impeachment consiste em fazer crer que a realização de seu objeto imediato, o combate à corrupção e à crise econômica, tal como mobilizado pelos empresários no Brasil e por movimentos que tem lideranças apoiadas por organizações com sede nos Estados Unidos, seria alcançado com a deposição do atual governo e a extinção do PT. Isso, entretanto, não acabaria com a corrupção que está disseminada entre muitos partidos nem resolveria a crise econômica, que afeta, em maior ou menor medida, a todos os países no mundo, particularmente aos Brics.
Porém, o grupo que assumirá o governo, com esse golpe, terá condições de implementar uma série de projetos de lei, em tramitação no Congresso, agrupados no Plano Temer, que trarão profundos reveses para a maioria da população brasileira. Tais projetos suprimem ou esvaziam direitos sociais e trabalhistas, retiram da Petrobras a condição de operadora exclusiva da exploração do pré-sal, facultando a sua participação ou não nos blocos licitados. Temer prevê, igualmente, realizar a transferência de ativos públicos à iniciativa privada, isto é, privatizar tais ativos. Isso poderia incluir a privatização da Petrobras e dos Correios, como defendido pelas lideranças do Movimento Brasil Livre.
Eis o recheio do pato amarelo, servido como peru de natal.
6.4 Disputar a Hegemonia Contrapondo Eixos de Luta
Além de desmontar o eixo de lutas do impeachment, a Frente do Povo sem Medo e a Frente Brasil Popular, em minha opinião, devem construir em diálogo com os movimentos e organizações populares e sindicais, envolvendo suas bases e lideranças, alguns eixos de luta para aglutinar e unificar a disputa de hegemonia em todo o país. Tais eixos devem partir das demandas imediatas da população, para serem capazes de mobilizar um amplo conjunto de atores populares em sua defesa; apresentar com clareza as estruturas de exploração e de dominação econômica, política e cultural que são geradoras de tais problemas e que, portanto, devem ser suprimidas; e apresentar com clareza as novas estruturas a serem construídas, possibilitando fazer surgir um novo modo de produção e de apropriação econômica e uma nova formação social.
Esses eixos de luta devem incidir sobre os fluxos materiais, de poder e de conhecimento que reproduzem as formas de opressão, exploração e dominação do sistema capitalista e as diversas semióticas opressivas de produção de subjetividade. Eles devem, igualmente, retroalimentar os fluxos de materiais, de poder e de conhecimento que possibilitam a construção de sociedades pós-capitalistas, que assegurem, para todas as pessoas, pela sua satisfatória participação nesses fluxos, na condição de sujeitos históricos, o exercício ético e mais pleno possível de suas liberdades, públicas e privadas, na realização de seu próprio bem-viver e do bem-viver de todos.
Nesse esforço é preciso reconstruir o conteúdo substantivo de alguns eixos de luta, tais como, reforma agrária, reforma urbana, economia solidária, cidadania, reforma tributária, reforma do sistema financeiro, reforma do sistema de comunicação e o combate à corrupção.
Para cada eixo desses, é necessário associar as demandas sociais imediatas e bandeiras de movimentos populares e sindicais que serão por eles atendidos; as causas dos problemas relacionadas a estruturas e dispositivos econômicos, políticos, culturais e legais que deverão ser abolidos; formular coletivamente as propostas que devem ser implementadas para o atendimento dessas demandas, que resultarão nas novas estruturas e dispositivos econômicos, políticos, culturais e legais que deverão ser implementados com o fortalecimento do Estado Democrático de Direito em mosso país.
Cabe salientar, porém, que tais eixos de luta não se direcionam ao Estado em sentido restrito, mas à construção do Poder Público em sentido amplo, à construção do Poder Popular, em sentido próprio, devendo tais eixos, naquilo que for possível, serem implementados pela sociedade, com ou sem a participação do Estado.
7. Consolidar e Avançar o Combate à Corrupção
O governo Dilma fortaleceu o instrumento de Delação Premiada (Lei 12.850/2013) e instituiu o instrumento do Acordo de Leniência (Lei 12.529/2011), empoderando, com tais instrumentos, as operações de combate à corrupção no país. É preciso, agora, avançar no fortalecimento, qualificação e acompanhamento das instituições, para impedir que esses instrumentos sejam usados com fins espúrios, quando associados à violação da lei, como no caso do “acesso com exclusividade” por grupos de mídia a documentos de delação premiada, que tramitam sob sigilo processual ou segredo de justiça.
O combate contra a corrupção é um grande avanço na sociedade brasileira, devendo ser intensificado e alcançar a todas as suas ramificações em nossa sociedade. A Operação Lava Jato, apurando os crimes ocorridos na Petrobras, denunciando empresários, gestores e políticos, julgando, punindo os culpados e obtendo a reparação parcial dos danos causados à empresa, tornou-se uma das mais importantes investigações na história da nossa República. Por outra parte, a instrumentalização política dessa Operação acabou por resultar em violações da lei, com escutas ilegais e vazamentos seletivos, que ferem a Constituição e o Código do Processo Penal.
Sendo essa Operação de grande importância para o pais, ela não pode ser fragilizada ou prejudicada pela condução indevida das ações, cabendo apurar as possíveis violações legais nela ocorridas, devendo os responsáveis serem denunciados, julgados e punidos nos termos da lei. Pois, num Estado Democrático de Direito, devem ser respeitados todos os procedimentos legais, tanto para a realização das investigações quanto dos julgamentos, para que sejam corretos e justos. Igualmente, todos os direitos e garantias legais devem ser assegurados aos investigados, reafirmando a presunção de sua inocência enquanto não haja condenação criminal transitada em julgado.
8. O Enfrentamento da Crise Econômica
Sobre à crise econômica e como enfrentá-la, remeto o leitor às análises e propostas apresentadas no texto Uma Alternativa Econômica para o Brasil, que possibilitam ativar diferentes cadeias produtivas, ao conectá-las a Circuitos Econômicos Solidários, os quais mostram-se capazes de operar a libertação de forças produtivas, operacionalizando um Fundo Nacional de Investimento da Economia Solidária e assegurando o consumo sustentado da produção realizada por essas forças produtivas.
A saída da crise não pode ser alcançada pelo caminho da recomposição da taxa de lucro das empresas, através da elevação de preços dos produtos, da sonegação ou da elisão fiscal e da subtração de direitos dos trabalhadores pela via da terceirização.
9. A Deposição de Governos na América Latina pela via Jurídico-Parlamentar
Do mesmo modo que nos anos 60 e 70 do século passado vários governos foram depostos por golpes militares na América Latina, em nossa atualidade estão sendo aperfeiçoados os mecanismos de deposição de governos pela via jurídico-parlamentar.
O golpe de estado em Honduras, que destituiu o presidente Manuel Zelaya em 2009 parece ter sido uma transição entre os dois modos de atuação, tendo sido caracterizado como golpe militar pela Onu. Porém, o que o torna idêntico ao método que passou a ser usado desde então, é o fato de ter sido formalmente operado pela via das instituições, com a participação do poder judiciário e parlamentar.
O golpe de estado no Paraguai, que destituiu Fernando Lugo em 2012, contou com a anuência desses mesmos poderes e completou a transição, com o uso da figura formal do impeachment e a deposição do presidente pelo senado em processo que durou 24 horas. O Mercosul identificou tal processo como “ruptura da ordem democrática” e o Paraguai foi suspenso do bloco por um ano, por haver desrespeitado o Compromisso Democrático no Mercosul, firmado em 1998. A Unasul, igualmente, se posicionou contra o processo e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA manifestou que o julgamento, político e sumário, afetou o Estado de Direito no país. Cabe igualmente agregar que o motivo evocado para o impeachment, o “mau desempenho” de suas funções pelo presidente, era inconsistente sob o aspecto material para a adoção dessa medida.
Uma análise de hegemonia, nos dois casos, nos revela que tais golpes ocorreram como desdobramento de crises políticas, assentadas no fato de que os setores progressistas conquistaram a presidência do país mas não obtiveram uma maioria parlamentar de esquerda. Assim, a correlação de forças desfavorável possibilitou a ocorrência dos golpes.
Essa mesma condição se verifica atualmente no Brasil e na Venezuela, que também fazem parte do Mercosul. No caso brasileiro, instaurou-se o processo de impeachment. No caso venezuelano, a oposição busca aprovar uma lei que permita realizar o referendo revogatório. Em ambos os casos, a tentativa de deposição dos governos constrói um eixo de lutas que apresenta a deposição desses governos como condição de superar a crise econômica, a recessão e a inflação.
A atitude do Mercosul na suspensão do Paraguai por um ano nas decisões do bloco é um marco histórico importante no enfrentamento dessa prática. Pois, embora aparentemente legal, o impeachment realizado, tanto por seu procedimento formal quanto por seu objeto material, violou a democracia no país.
Paradoxalmente, entretanto, uma possível suspensão do Brasil no Mercosul, caso o impeachment venha a ser aprovado, contribuiria com o próprio objetivo das forças golpistas em enfraquecer o bloco.
O aprofundamento da reflexão sobre os golpes jurídico-parlamentares, associados a processos de impeachment, é urgente e necessário, pois esse mesmo mecanismo poderá ser usado contra outros governos democraticamente eleitos na América Latina.
Concluindo
O impeachment da presidente Dilma, sem a comprovação de crime de responsabilidade, corresponde a um golpe de Estado jurídico-parlamentar. Essa técnica de deposição de governos está sendo aprimorada a cada uso que dela se faz na América Latina. Assim, diferentemente do Paraguai, os prazos legais estão sendo cumpridos em nosso país. Porém, o objeto material invocado para a destituição da presidente não corresponde ao exigido pela lei 1.079/1950 como crime de responsabilidade.
Esse uso do impeachment, como golpe de Estado, não apenas está sendo aprimorado em sua forma de execução institucional, mas igualmente no modo como a adesão social a esse eixo de lutas é obtido, com o concurso das mídias de massa e da Internet, particularmente, de comunidades virtuais em redes sociais.
A forma de enfrentar esse eixo de lutas exige conectar os fluxos materiais, de poder e de conhecimento dos setores democráticos da sociedade, para desencadear ações coletivas na disputa de hegemonia, explicitando as conexões internas desse eixo de lutas, que o vincula à realização das medidas do Plano Temer, incluindo a supressão de direitos sociais e trabalhistas, o fim da exclusividade da Petrobras na exploração do pré-sal — com a aprovação do projeto de José Serra — e a possibilidade de transferência de ativos da União à iniciativa privada, entre os quais a Petrobras e os Correios.
Na explicitação dessas conexões é necessário trabalhar pedagogicamente com os interpretantes lógicos, emocionais e energéticos de maneria tal a subverter as semióticas hegemônicas que operam na interpretação ideológica dos fatos, normas e valores. Isso exige o uso de formas estéticas apropriadas para realizar a critica, sem reforçar a negação ao diferente, tendo como alvo os principais signos mediadores do eixo de lutas do impeachment, difusos na sociedade.
O aprofundamento dos estudos sobre esse tema no Brasil é de interesse geral para a América Latina, pois essa técnica de golpe de estado tende a se propagar por diferentes países na região, sempre que se elejam governos progressistas mas não se consiga eleger uma maioria de esquerda no congresso, que evitaria o uso fraudado desse instrumento.
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